Completou-se
a oitava pascal – o grande domingo da Ressurreição do Senhor. E a narrativa proposta pela liturgia para a nossa meditação é tomada da conclusão original do
Quarto Evangelho, Jo 20,19-31 (uma vez que o vigésimo primeiro capítulo do Evangelho segundo
João é um apêndice, o qual possui sua finalidade que ainda não cabe comentar). O texto deste Segundo domingo do tempo pascal continua a leitura do
capítulo vigésimo, omitindo apenas o encontro de Maria Madalena com Jesus Ressuscitado.
João
situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia
(v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro
dia. Note-se, no entanto, que já não se trata do amanhecer do primeiro
dia, após o sábado, como foi descrito no começo da seção narrativa. Aquele
indicativo temporal servia para ilustrar a condição da comunidade dos
discípulos: ela não havia conseguido desvencilhar-se ainda dos costumes
judaicos do repouso sabático e da Lei, e, portanto, não desfrutava da realidade
da ressurreição.
A
partir deste novo indicativo temporal (ao anoitecer ou “ao entardecer”), João
dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está
fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que
ela já estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor
Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo;
a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o
da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela venceu o sepulcro (cf.
KONINGS, 2005, p. 354).
“Estando
fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se
encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no
processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora,
Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada
acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O
medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de
alguns. Acena também, para a ausência do Senhor.
Todavia,
é preciso fundir os horizontes. O leitor é chamado à unir o panorama temporal
da comunidade dos discípulos, que faziam a experiência com o ressuscitado com a
realidade da comunidade joanina dos anos 90 d.C, que sofria perseguição por parte
dos Judeus e das autoridades romanas. Assim, o relato do encontro com o ressuscitado
em 20,19-23 torna-se uma mensagem de conforto para a comunidade do fim do
século I, e de todos os tempos (cf. KONINGS, 2005, p. 354)”.
Eis
que Jesus põe-se no meio deles. É importante a informação dada pelo
evangelista, pois ela indica que na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade
joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade
igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Na Memória do Ressuscitado
celebrada pela comunidade ninguém é maior e todos estão referenciados – numa
circularidade – ao Senhor.
Para
uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes
de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Encontrando-se com
os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de
transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o
encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada (CORNÉLIO,
F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).
“A
paz esteja convosco (ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso
parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três
vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O
número três, na bíblia indica plenitude. Por isso, esta primeira palavra dirigida
por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A
Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no
tempo do Messias. O Shalom (שָׁלוֹם)
bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento
(o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz. Aqui, parece implicar também a realização das
promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo
(14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz
(14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus
joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom de sua vida
vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas
feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada (cf. KONINGS, 2005, p. 355).
Jesus
mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela
lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e
Ressuscitado. Sua condição ressuscitada traz as marcas de sua Paixão. E os
principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o
amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do
amor, pois representa o coração.
“Como
o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus
estava fundamentada na tarefa recebida do Pai; a deles, na incumbência de
Jesus, que constitui com o Pai uma unidade. Aqui, encontramos três termos
importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, ἀποστέλλω;
mas aqui é απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se
no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (καθως,
como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e
causalidade, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus
recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem.
A
ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos
discípulos. Ao enviá-los, ele sopra
sobre eles o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em
Gn 2,7, onde Deus sopra nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de
Jesus remete à Criação, e por isso, na Ressurreição de Jesus acontece uma nova
Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora
dessa força de vida. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo)
significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, nessa, a
humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também
comunicadora dessa força de vida. Não é um simples carisma que recebem, algo
que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino; vida nova! É uma nova
criação (cf. Sl 104,30). Sua vida tem outra força que antes.
“A
quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes,
eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que
ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus
não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o
mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os
lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se
presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o
Ressuscitado com a sua paz.
A
comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as
realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja
definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à
medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus
discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo os
pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão o discípulo
que recusa amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos
quando houver omissão da comunidade diante do mandamento do amor, e a atitude
de negação do fiel em relação à pessoa de Jesus.
A
comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem,
precisa ser compreendido bem, a fim de evitar-lhes apelidos e mal-entendidos. Voltemos
para a informação inicia, dada pelo evangelista, em que os discípulos estavam
fechados, com medo das autoridades judaicas. Ora, Tomé não se encontra ali,
naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilhasse
da mesma mentalidade. Todavia, esta é uma informação teológica que o autor do Quarto
Evangelho transmite, e não uma informação no nível da crônica, a qual daria
margens para possíveis interpretações errôneas, por exemplo, a de que o
discípulo ausente não teria medo de nada, o que poderia rotula-lo como inconsequente
em matéria de fé. A qualidade da fé nada tem a ver com a inconsequência do fiel.
Tomé não é um super-discípulo (inconsequente), mas, no nível teológico
da narrativa, um personagem gêmeo do leitor discípulo.
Tomé
era chamado Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo. Quem é o gêmeo de
Tomé? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho (e em toda a Sagrada
Escritura), a função de paradigmas para a comunidade e os leitores. Ou seja, os
personagens anônimos servem para que os leitores assumam aquela identidade; se
identifiquem com ele. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a
tomarem Tomé como irmão gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e
convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.
Tomé
não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se
deixou paralisar diante da experiência negativa e, portanto, circulava
livremente e sem temor algum. Porém, sua coragem foi ofuscada pelo rótulo
inadequado de incrédulo. O erro de Tomé foi o de não aceitar o testemunho da
comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar
o Senhor.
Oito
dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do
Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se
dirige a Tomé. Convida-o a executar o gesto que havia pedido como prova. Ele,
ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu
Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele
que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado.
O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18) e
cria, assim, uma inclusão que abarca e resume o Evangelho segundo João inteiro
(BEUTLER, 2016, p. 359).
Aqui,
revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus:
“Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a
preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito
questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da
ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de
visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar
a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de
manifestação do Ressuscitado.
O
capítulo 20 do evangelho joanino corresponde ao final original do Quarto
Evangelho. Nesta seção o leitor-discípulo é convidado a tomar parte da
experiência da comunidade dos discípulos com Jesus ressuscitado. Não se tratam
de aparições, propriamente, mas de Encontros com o Crucificado-Ressuscitado. É
evidente, que para aquelas testemunhas oculares não se constituiu tarefa fácil
encarar as horas e os dias seguintes ao “acontecido” com Jesus de Nazaré. Por
isso, o fiel e leitor do Quarto Evangelho, ou melhor, a geração posterior (na
qual nos incluímos), deverá colocar-se no mesmo horizonte daquelas testemunhas
oculares. Caberá a esta geração “Crer sem ver”, e por isso ser considerados o
bem-aventurados por isso. Fundido os horizontes, o discípulo-leitor é convidado
a tomar parte da narrativa da experiência da comunidade dos Doze. “Para João,
morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois aspectos
inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus (KONINGS, 2005, p.
346)”.
Diante
desta belíssima catequese joanina, três perguntas se fazem necessárias: 1)
Estamos no segundo domingo da Páscoa. Já faz uma semana que estamos envolvidos
pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição
interior: amedrontados e fechados, ou alegres e reedificados na Fé, pela
virtude do Ressuscitado? 2) Quais atitudes de Tomé encontram lugar em mim, com
toda a ambivalência daquela personagem? 3) Tomo consciência da importância que
a vida e o testemunho da Comunidade têm para minha vivência de Fé, como sua matriz
e geradora?
Feliz
Páscoa.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu – SP.
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