domingo, 29 de outubro de 2023

XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 22,34-40:

 


O evangelho deste trigésimo domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo 22 do evangelho de Mateus, o qual apresenta o último conflito entre Jesus e as lideranças do povo. Devemos sempre situar a cena em seu contexto. Ela é ambientada em Jerusalém. Lugar importante, porque ali acirra-se a resistência, a recusa e a rivalidade por parte dos chefes do povo. No templo, Jesus tratou desmascarar as ações dos sacerdotes e anciãos, acusando-os de ladrões e assassinos. Ladrões, porque roubavam o lugar de Deus, e assassinos, porque o faziam pela força, oprimindo o povo simples. Diante destas denúncias que Jesus faz, as autoridades tratam de deslegitima-lo diante dos seus seguidores.

O texto continua, informando que “Os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus” (v.34). O que, de fato, aconteceu? Se faz importante recuperar os versículos anteriores. Jesus, depois de censurar a hipocrisia religiosa dos fariseus e dos partidário de Herodes no tocante do imposto, foi enredado pelos saduceus (sacerdotes) numa questão “doutrinal”, a ressurreição dos mortos, que estes mesmos líderes não acreditavam. Diante da resposta que o Senhor dá, que na eternidade de Deus, não há preocupações, mas apenas a vida plena, os saduceus se calam. Os fariseus, tendo conhecimento do fato, “reuniram-se em grupo” para novamente testarem a Jesus. Aqui, como no texto do evangelho do domingo passado, o autor do evangelho utiliza o mesmo verbo para expressar a maldade do coração dos chefes: “tentar” o mestre.

Mateus utiliza o verbo “tentar” (gr. πειράζων / peiráson), que já apareceu no capítulo 4, na narrativa das tentações no deserto, empregado na ação de Satanás. Este verbo segue sendo utilizado pelo evangelista para ilustrar as ações dos fariseus, escribas, saduceus frente a Jesus. Ora, o que evangelista está querendo insinuar para a sua comunidade é que as lideranças religiosas do povo, ao invés de serem instrumentos de Deus, estavam a serviço do opositor, o Diabo, aquele que gera a divisão. Enquanto o Deus de Jesus é amor que se coloca à serviço, o deus deles é o poder que deseja dominar. Aquele que está filhado ao poder age conforme Satanás. 

Eis a tentação: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?” (v.36). Novamente o título de mestre aparece na boca daqueles que se posicionam hostis a Jesus. Atenção: a pergunta não está colocada com a intenção de aprender através da resposta um ensinamento importante, mas é feita na intenção de condenar o Senhor pela resposta que der. Ora, eles sabem qual é o maior mandamento da lei de Moisés: é o mandamento do repouso sabático; a prescrição para guardar o Sábado. A observância deste único mandamento correspondia ao cumprimento de toda a lei. Sua transgressão equivalia à transgressão de todos os outros mandamentos. Para isso estava prevista a pena de morte. Mas por que interrogam a Jesus sobre isso? Evidentemente porque Ele já havia atuado em dia de Sábado, em favor da gente simples e sofredora.

Jesus responde à pergunta-armadilha sem citar os mandamentos. “Jesus respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!” (v.37). Ele responde com a profissão de fé religiosa do povo de Israel, contida em Dt 6,4, o Shemá (Escuta, ó, Israel), ainda que venha a omitir o verbo “escutar”, ao contrário de Marcos, que o explicita. Interessante é a mudança (ou releitura) que o próprio Jesus faz do Shemá. No texto contido em Dt, não aparece a palavra entendimento/mente, mas a palavra “força”. Ora, na compreensão e na experiência de Deus que Jesus faz e transmite através de sua vida, o Deus de Israel não é aquele que se alimenta e consome-se da força vital do ser humano, do homem de fé; mas é aquele que dá a vida, que promove o nutrimento do homem. O Deus de Jesus não é um deus que pede, mas que dá, oferece-se e propõe-se em gratuidade.

Jesus acrescenta que este é o maior de todos os mandamentos. Mas este não é um mandamento. Ele, então, o eleva à condição de mandamento. Na perspectiva de Mateus, Jesus atua na ruptura, continuidade e superação da história de seu povo. Imediatamente, acrescenta: “O segundo é semelhante a esse: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (v.38). Ele toma a prescrição de Levítico relacionado ao amor ao próximo. Para Ele, não há relação de amor com Deus que não passe pela relação humana e fraterna com o próximo, com o outro. Interessante: à Deus, com o todo de “ti mesmo” e ao próximo como ti mesmo.

Na lista formal e oficial das seiscentas e treze prescrições, elaboradas por Maimonedes, o mandamento “amarás o teu próximo como a si mesmo”, ocupava o ducentésimo sexto (206º) lugar. Antes deste, portanto, vinham duzentos e cinco mandamentos. Jesus o desloca de lugar, colocando-o em segundo, e igual ao primeiro. Ora, recordemos que toda a cena deste confronto acontece ao interno do Templo de Jerusalém, quando todos estão ali para cumprir o Primeiro mandamento; quando todos estão lá para olhar para Deus e amá-lo. Daquele lugar, Jesus se lembra do próximo. Não há como amar à Deus sem que se ame o próximo. Toda a Lei e os Profetas se sustentam nestes dois mandamentos.

Não são dois mandamentos a mais, de uma lista maior. Não. Eles são os sustentáculos de toda a Escritura viva que norteia a vida do homem. Jesus já havia dito isso no Sermão da Montanha, quando disse “faça aos outros aquilo que os outros façam a você”, e acrescentou que toda a Lei e os Profetas, dependem disso. Nenhum poderoso tem um poder tamanho que possa dizer “você tem que me amar”. Não se obriga ninguém a amar. Todavia, no momento que Deus diz que o primeiro e o segundo mandamento enquadram-se no amor, Ele está renunciando a ser amado. Consequentemente, a única atitude que ele tomará será a de nos amar por primeiro. O evangelista, com esta reinterpretação feita por Jesus, que recupera para a sua comunidade quer dizer: “com o todo de ti, tu amas a Deus; como a ti mesmo, tu amas o teu irmão”. Este é o templo e o culto que agradam a Deus.

Jesus conclui sua resposta, dizendo: “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos” (v.40). Lei e Profetas são a síntese das escrituras sagradas de Israel. Jesus, ao elevar à condição de mandamento o amor à Deus e ao irmão, está dizendo que toda a Sagrada Escritura (Lei e Profecia) se alicerça nesta ordem relacional, neste modo de ser e de existir a partir do horizonte de Deus, encarnado na história, através do amor para com o próximo.

Jesus sai vencedor da armadilha, ao proclamar uma nova realidade nas relações entre Deus e o ser humano, não mais embasada sobre a prática e observância dos preceitos da lei, mas sobre a acolhida e a prática de Seu amor. Deseja chamar a atenção do seu discípulo, para que não caiam na armadilha de transformar a religião em algo que é “para mim mesmo”, para o culto de mim mesmo; uma religiosidade estéril, individualista, alheia à história e à realidade. Isso será o estrago maior para a religião e um dano para o discípulo.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

domingo, 22 de outubro de 2023

XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 22,15-22:

 

A liturgia deste vigésimo nono domingo do tempo comum continua a leitura do capítulo 22 do evangelho de Mateus, a partir do v.15, o qual apresenta mais uma controvérsia entre Jesus e as lideranças do povo, os fariseus, seus discípulos e os herodianos. O tema do conflito é o imposto a ser destinado ao imperador. É a vez delas atacarem e tramarem contra Jesus pois, nos capítulos e versículos anteriores, uma série de acusações foram feitas por Ele às autoridades do povo. Tratarão de desacreditá-lo diante de seus seguidores.

“Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra” (v.15). A conveniência é o que determina o agir das lideranças religiosas. A expressão “fizeram um plano (lit. reuniram-se / juntaram-se; gr. συμβούλιον)” nos evangelhos soa sempre negativa e indica uma trama, um complô. Atenção para a informação que Mateus dá à seus leitores. “Então mandaram os seus discípulos, junto com alguns do partido de Herodes” (v.16a). Fariseus e herodianos rivalizam com Jesus nesta narrativa. Porém, ambos se odiavam. Os Herodianos, partido de Herodes, assim como ele eram favoráveis à dominação romana, uma vez que o tetrarca era um fantoche do poder imperial. Os fariseus, por sua vez, eram contrários à dominação romana. Mas para ambos existe um perigo em comum: Jesus. Agora, colocam-se lado a lado para eliminá-lo.

Os rivais iniciam um diálogo com Jesus, chamando-o de “Mestre”. Este vocativo está sempre na boca dos adversários. Faz parte do vocabulário adulador. É o típico tapinha nas costas que precede a punhalada. Não reconhece a autoridade de Jesus como mestre. Apenas zombam dele. Todavia, a afirmação que fazem é correta: “sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências” (v.16b). Existe uma diferença entre o Senhor e os chefes do povo: estes procuravam realizar as coisas visando admiração e a própria vanglória.

Jesus, ao contrário, não faz isso; não se referencia a si mesmo, tampouco procura sua própria glória. Não faz nada visando suas conveniências, mas o bem do ser humano. Quando se coloca o bem do outro acima de suas próprias conveniências, já não se faz mais conta das aparências. Já não se leva mais a sério a opinião dos outros. Na verdade, Mateus pretende mostrar através desta constatação feita pelos fariseus e herodianos, que Jesus é diferente daquelas autoridades.

“Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?” (v.17). Observe-se que a fala dos chefes está na forma imperativa. Eles não estão pedindo uma opinião. Antes, estão exigindo de Jesus uma resposta. Não é um ensinamento que pedem ao mestre, mas uma imposição. Estão impondo a Ele uma posição acerca do imposto que devia ser pago por todos (entre 12 a 65 anos) ao poder dominador: Roma. Trata-se de uma pergunta auspiciosa. O imposto já havia gerado muitas revoltas ao interno da vida do povo. Basta recordar a revolta liderada por Judas, o Galileu, que se levantou contra o poder imperial por conta desse tributo. É, pois, uma armadilha em forma de pergunta. A resposta à pergunta desencadeará a reação dos líderes.

Há que compreender o contexto sociopolítico da Palestina da época. Se Jesus responde afirmativamente estará indo contra a Lei, segundo a qual o único Senhor do povo é Deus, e, neste caso estaria afirmando ser Cesar maior do que Deus. Não esqueçamos o fato de que a cena se dá ao interno do pátio do Templo. Se responde de maneira negativa poderá ser acusado de agitador e de subversivo frente ao poder romano. Jesus poderá ser preso imediatamente pela guarda do templo, se se posicionar dessa forma.

Ora, se os chefes se dão ao direito de preparar uma armadilha a Jesus, da mesma forma lhes devolve a resposta em gesto e pergunta. Depois de chama-los de hipócritas e constatar a armadilha, lhes pede uma moeda e pergunta: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda? Eles responderam: De César” (v.20). Os chefes mostram-no uma moeda romana. Estas eram confeccionadas com a efigie do imperador, no caso Tibério, numa das faces da moeda, em que se trazia a inscrição “Divus Augustus Pontificis Maximus (Divino Cesar, Augusto e máximo pontífice)”, e, na outra face da moeda encontrava-se gravada a efigie de sua mãe, representada pela deusa da paz. Mas ao interno do Templo era proibido trazer consigo moedas romanas, justamente devido ao fato de que elas apresentavam o imperador como um ídolo, conforme o Deuteronômio, que legislava contra fazer representações de figuras humanas, porque era isso que as religiões pagãs vizinhas de Israel faziam. Ora símbolos pagãos eram proibidos dentro do santuário. Por isso, a existência das bancas de cambio no pátio do templo, para trocar a moeda romana pela do templo. O que os grandes religiosos do povo fazem ali com uma moeda romana?

Precisamente é essa a denúncia que o evangelista deseja fazer: mostrar que são pelos seus próprios interesses que as autoridades do povo agem. Este é o verdadeiro deus a quem os fariseus prestam culto. Ora, aqueles que travavam com o povo uma luta sobre o que é puro e o que é impuro; eram escrupulosos e meticulosos no cumprimento do preceito, trazem consigo, ao interno do templo, lugar da pureza ritual, algo que é impuro diante da Lei. Quando se tratam de suas próprias conveniências, ideologias e vontades passam por cima de tudo; relativizam a tudo. Eis a armadilha que lhes faz cair Jesus.

“Dai, pois, a Cesar o que é de Cesar” (v.21). Jesus não responde se é lícito ou não pagar o imposto. Ele usa outro verbo que dá a ideia de restituição. Ou seja, se as lideranças são contrárias a ideia da dominação romana, deverão, pois, devolver e restituir à Cesar a moeda que lhe pertence, e não ficar com ela em poder deles. Se não querem, portanto, a dominação de Cesar, não devem usar para benefício próprio aquilo que é dele. Devolvam-no, é o que quer dizer Jesus.  

“A Deus, o que é de Deus”. O que é preciso dar a Deus, segundo Jesus? Aqui deve se recordar a parábola dos vinhateiros homicidas. Aqueles vinhateiros eram metáforas para as lideranças do povo, os quais usurparam o lugar de Deus na vida religiosa do povo. Portanto, o que deve ser devolvido a Deus é o seu lugar, tomado pelos chefes. Esta é tarefa realizada por Jesus em toda a sua vida e ministério público.

Dobrar os joelhos diante de Deus significa logicamente recusar dobrá-los diante dos homens. Reconhecê-lo como Senhor significa negar qualquer pretensão de ser senhor sobre as pessoas. Devolva-se o imposto ao imperador, mas a Deus seja tributada a adesão total e exclusiva de cada um porque não há e não se tem outro Senhor. Devolver a César é, portanto, dizer não a todo poder que se absolutiza – seja ele religioso ou político – gerando usurpação, exploração e dominação. Dar a Deus o que é de Deus significa lutar para que todos tenham liberdade e vida, sejam quais forem as formas de dominação e de morte. Significa recusar a mentalidade dos Césares deste mundo; vencer o apego às próprias conveniências e vontades, à tentação de fazer-se ídolo ou senhor de si ou dos outros. O Discípulo deve recusar levar consigo a moeda de Cesar.

Pe. João Paulo Goes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 14 de outubro de 2023

XXVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 22,1-14:


 

O capítulo 22 do evangelho de Mateus insere-se no bloco narrativo que compreende os capítulos 20 – 22. A seção se abre com a entrada de Jesus em Jerusalém (21,1-11). As lideranças – sumo sacerdotes, fariseus (escribas) e anciãos do povo – permanecem indiferentes à sua pessoa e à mensagem que traz consigo, tornando-se, até mesmo, hostis e refratários a Ele. Recusa, hostilidade e dureza de coração perpassam as lideranças do povo em relação à Jesus.

Mt 22 encontra-se dentro de uma série de cinco controvérsias entre Jesus e as autoridades judaicas, tanto em âmbito político como religioso: a discussão acerca da autoridade reivindicada por Jesus, diante da expulsão dos vendedores no Templo (21,23-27); a legalidade do imposto ao imperador romano (22,15-22); a ressurreição dos mortos (22,23-33); o mandamento importante (22,34-40), e finalmente, a problemática acerca da filiação davídica (ser filho de Davi, em 22,41-46) do Messias. Jesus, no entanto, sai vitorioso de todas estas situações.

O evangelista Mateus pretende mostrar à sua comunidade, e às gerações posteriores dos discípulos que, à incredulidade e à recusa por parte das autoridades judaicas corresponde o Juízo de Deus, que se revela como condenação e destruição para a cidade e seus responsáveis. É o que pretende demonstrar a narrativa parabólica de Mt 22,1-14: os convidados de honra (que foram chamados primeiro, ou seja, as autoridades religiosas-políticas de Israel), que recusaram o convite da festa, são excluídos definitivamente do banquete nupcial. Tal é o contexto da narrativa. Agora, vamos ao texto!

Jesus dirige mais uma vez aos líderes do povo (sacerdotes e anciãos), uma parábola. Ele começa comparando o Reino dos Céus a uma festa de casamento, dada por um rei a seu filho (v.1-3). Objetivamente, o Rei da parábola é Deus mesmo, e os primeiros convidados são o povo de Israel e seus líderes. Na Sagrada Escritura, o banquete – e principalmente o banquete nupcial – tornou-se símbolo da iminente vinda do Messias. Tal concepção teve sua origem no pós-exílio. No entanto, as expectativas messiânicas já florescem nos primeiros momentos da pregação de Isaias, quando a monarquia de Judá começava dar sinais de corrupção.

O gênero das parábolas chama a atenção do leitor justamente por suas particularidades, que numa primeira leitura, podem parecer incomuns. Chama a atenção o fato de que, diante de um convite importante (a festa de casamento de um príncipe), os convidados não dão a mínima. Ora, no tempo e na realidade de Jesus, onde os recursos para subsistência eram escassos, e constantemente o povo passava muita necessidade, as festas de casamento tornavam-se oportunidade para o povo se alimentar melhor, e renovar as esperanças futuras. Todavia, ao interno da parábola paira a recusa dos convidados. O rei insistiu (v.4-7). Essa insistência do monarca revela, na verdade, a do próprio Deus, que acena para a necessidade de se decidir pelo Reino dos Céus com urgência. Não é possível adiar a decisão de acolher os apelos de Deus.

Tudo em vão: uma parte dos convidados foi para os campos; outra foi cuidar de seus negócios; e outra, mais hostil, responde com violência frente aos funcionários do rei. A preocupação e insistência do rei chocam-se com a indiferença dos convidados: eles não estão nem ai! O rei irrompe, então, em fúria, e envia seu exército para derriçar com os convidados negligentes.

O rei ordenou, então, aos seus funcionários, que fossem pelos caminhos e pelas encruzilhadas, e que chamassem aqueles que encontrassem: bons e maus (v.8-10). A festa não deixou de acontecer em face a recusa dos primeiros convidados. Os que não esperavam, tiveram a honra de tomar parte de um banquete de alto nível.

O ensino subjacente destes versículos reside, de acordo com a lógica da parábola, na mudança de atitude de Deus, ao redirecionar o convite a todos, e não exclusivamente aos judeus. Emerge, nesse sentido, a temática da salvação universal acenada pelo relato parabólico. O anúncio do Reino não é mais exclusivo à Israel, mas inclusivo, agora, aos que não fazem parte do povo. Isso é o que significa convidar Bons e Maus. A categoria dos maus simboliza, na verdade, os que não pertencem ao povo. Não se trata aqui de uma conotação moral, necessariamente.

Chamo a atenção, aqui, para um termo que foi mal traduzido. “Encruzilhada” enfraquece o termo “Diéxodos (Diexódous; gr. διεξόδους)”, que seria melhor traduzido por “saída”, “fronteira” e “periferia”. “Ide, pelas saídas (fronteiras – periferias) dos caminhos” traduz melhor a intenção de Jesus e do evangelista Mateus em dar enfoque, a partir da rejeição e auto exclusão de Israel do convite recebido, à universalidade da salvação.

Mas não basta ser convidado para festa. É necessário mostrar-se predisposto e com atitudes de justiça. Todavia, houve quem ousou participar da festa sem o traje festivo. O rei notou, e, imediatamente mandou expulsar o penetra (v.11-14). O traje, em toda a Sagrada Escritura (e principalmente no Apocalipse), é símbolo para as boas ações, as obras de Justiça, Amor e Misericórdia. Simboliza a fé traduzida e encarnada em obras de misericórdia e justiça aos irmãos, principalmente aos que estão nas margens, nas fronteiras e periferias. 

A comunidade de Éfeso, recordando os ensinamentos de Paulo e a pregação do Evangelho, foi a que melhor percebeu que a veste do cristão são a caridade e a Justiça, que brotam da vivência da Palavra de Deus, encarnada na vida do fiel discípulo de Jesus, em Ef 6,10-17 (famoso texto da "armadura ou veste do cristão", que infelizmente foi tão deturpado em sua interpretação). Jesus não está falando de uma veste física, de grife (até mesmo das “grifes religiosas”), tampouco estaria ele imbuído de moralismos acerca do quê e como se vestir. O texto não permite tal abordagem.

Nem todos os que são chamados são escolhidos. O chamado de Jesus vai, então, noutra direção. O fato de se pertencer à comunidade do Reino, não significa ter assimilado o modo de ser peculiar ao Reino. Participar da Eucaristia, ou manter uma vida espiritual (ainda que a seu modo) não implica ou garante salvação. Os que estiverem nesta situação (assim como os primeiros convidados) serão excluídos do banquete messiânico: não serão escolhidos! Ora, o chamado inicial se distingue na perseverança final e consequente salvação. Infelizmente, haverá discípulos que não experimentarão a alegria final do Reino, pela incapacidade de perseverar, até o fim, no caminho iniciado (Mt 24,13), pela indiferença ao convite ao modo de ser e de existir exigidos por Jesus, ou por não estarem vestidos com o traje das obras de justiça.

Quem somos diante do texto de Mt 22,1-14: os primeiros, os segundos ou os últimos convidados? Qual a nossa atitude diante do convite para a festa do Reino? Estamos nas periferias (às saídas ou nas fronteiras e limites humanos, sociais, religiosas), ou indo até elas? Temos vestido a veste das obras? Que possamos ver nossa vida no espelho deste texto bíblico.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 7 de outubro de 2023

XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 21,33-43:

 

O evangelho para este vigésimo sétimo domingo do tempo comum prossegue com a leitura e meditação do capítulo 21 do evangelho de Mateus. Jesus está já em Jerusalém. Seguem-se confrontos e controvérsias entre ele as autoridades do povo. Na cena anterior, contou uma parábola de dois filhos que apresentavam condutas distintas no falar e no agir (Mt 21,28-32), aplicando-a aos anciãos e aos sumos sacerdotes. Os versículos propostos hoje, Mt 21,33-43, seguem direcionando a fala do Senhor às mesmas personagens.

Jesus conta aos anciãos e aos sacerdotes mais uma parábola: a dos vinhateiros homicidas. Qual a intenção desta parábola? Pode-se elencar 3: a) denunciar a atitude de recusa dos chefes religiosos em relação a Jesus e ao seu ensinamento, no âmbito do tempo da narrativa; b) chamar a atenção dos discípulos para não caírem na atitude dos chefes religiosos do tempo de Jesus; c) provocar o leitor-discípulo do evangelho em relação aos frutos que ele e a comunidade devem apresentar.

Mateus se serve de um texto do AT, situado em Is,5,1-7, o cântico da vinha, onde o profeta Isaias relata a história de uma vinha plantada por seu amigo, que não produziu uvas boas, senão frutos amargos. A imagem da vinha é apresentada novamente. Ela simboliza, como já sabemos, o próprio povo de Israel e sua história de altos e baixos, perpassada história da salvação. O evangelista realiza um midrash, reinterpretando os textos antigos da fé do povo de Israel, aplicando-o para a realidade e para a vida de sua comunidade, a fim de confirmar a identidade de Jesus de Nazaré como Messias. A própria parábola deixa isso muito evidente. Jesus faz, através dela, um resumo e recapitulação de toda a história salvífica de Israel.

Há duas perspectivas de leitura e interpretação. Ler a parábola a partir de Jesus, isto é, cristológico: ler, reinterpretar e aplicar a parábola à Sua própria vida e missão, através de sua práxis reconhece-lo como enviado de Deus; e a perspectiva eclesial (comunitária, eclesiológica), que aplica o texto para a situação da vida da comunidade, a Igreja, o Novo Israel: produzir frutos de Justiça. Isto posto, pode-se meditar o texto.

Dos vv. 33-39, Jesus descreve a ação de um proprietário de terra que planta uma vinha, prepara-lhe tudo para a sua subsistência, e, partindo para o estrangeiro, decide-se arrenda-la à terceiros. Chegada a época da colheita, enviou seus empregados para recolher os frutos e os lucros. Estes foram desrespeitados pelos vinhateiros, os quais agiram com violência, espancando um, matando outro e apedrejando o terceiro. Mais uma vez o dono envia outros empregados, que são tratados da mesma forma. O terceiro enviado foi o filho do dono. Nada de novo! Ao filho agarraram, levaram para fora da vinha e o mataram. Jesus conclui com uma pergunta aos ouvintes destinatários da parábola: “Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros?” (v.40). Com essa pergunta, Jesus utiliza-se da técnica antiga de envolver os leitores, a fim de se identificarem com as personagens de forma a se comprometerem com a resposta que derem.

A quem simbolizam estas personagens? O dono da vinha é o próprio Deus, os vinhateiros homicidas simbolizam os líderes religiosos, os anciãos (fariseus e escribas) e sacerdotes. Os empregados enviados são imagens dos profetas de Israel, enviados muitas vezes ao povo. O filho do dono da vinha é Jesus.

A interpretação da parábola em chave cristológica se dá assim: o terceiro enviado, o filho do dono é Jesus, que denúncia a atitude das lideranças do povo que se fecharam em relação à sua pessoa, rejeitando-o. A recusa chegará ao radicalismo da eliminação da vida Mestre. O levarão para morrer porque não suportam a forma que ele vive; não toleram a sua Justiça, ou seja, sua vida colocada em relação ao projeto e ao querer do Deus que chama de Pai; não aguentam a fidelidade radical de Jesus à Palavra de Deus, que desmantela e revela a infidelidade deles. O evangelista descreve a história da fidelidade e da infidelidade do povo e das lideranças ao longo da história. E ao interno desta história está a de Jesus.

Na parábola (// com Is 5,1) são diversos os servos que são mandados. A referência aos profetas do AT não podia ser mais clara. Nesse sentido, Jesus tem seu lugar na longa série daqueles que Deus enviou a seu povo. Até a recusa feita pelos judeus tem atrás de si uma longa história de infelicidade como a dos profetas. Assim como eles, Jesus também será perseguido e morto. Mas Jesus não é um dos profetas, e sim o Filho de Deus enviado ao mundo. E a sua missão consiste em revelar o gesto salvífico extremo do Pai. Tê-lo rejeitado e levado à morte será o gravíssimo pecado dos chefes de Israel. Neste sentido, a parábola é lida em chave de compreensão para a vida e missão de Jesus.

Agora, emerge a perspectiva eclesial da parábola, a partir do v.43, “Por isso eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos”. Devido à recusa, rejeição e a trama homicida em relação à Jesus, na perspectiva das primeiras comunidades cristãs, especialmente a de Mateus, o antigo Israel dá lugar à comunidade cristã. Um novo povo nasce a partir do antigo. Este é um tema muito apreciado pelo o evangelista: o verdadeiro Israel. O primeiro, com a sua obstinada incredulidade e rejeição a Jesus, negou os frutos de fidelidade que Deus esperava deles. É precisamente esta passagem o ponto crucial da interpretação de Mateus.

As duas perspectivas, cristológica e eclesiológica, complementam e iluminam-se. A primeira ajuda o discípulo-leitor do evangelho a reconhecer no mistério da vida, missão, e morte trágica (e tramada) de Jesus, o sentido de uma vida e existência segundo o querer e o projeto de Deus, e, logo, salvífica. E, que, por outra parte, ilumina a compreensão da comunidade em relação à sua vocação e missão: produzir os frutos que o antigo povo não produziu. E a não reproduzir a história antiga, tampouco as condutas e atitudes dos antigos líderes do povo frente ao projeto de Deus em Jesus.

O exemplo das lideranças judaicas infiéis é colocado diante dos olhos do discípulo e da comunidade do Reino como advertência. A graça salvífica que se revelou na comunidade é exigente: ser o novo povo de Deus, produzindo frutos de fidelidade, de justiça, de amor, de bondade, de misericórdia e de vida. O texto incide na vida. Com quais personagens nos identificamos? Que frutos temos produzidos? Não sejamos como os vinhateiros homicidas.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.