sábado, 27 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 15,1-8:


 

A liturgia deste quinto domingo da páscoa continua a leitura e meditação do Quarto Evangelho. Na semana anterior, o evangelista apresentou a alegoria do Bom Pastor. Jesus se autodeclarava o “pastor ideal”, “exemplar”, modelo, porque agia de forma diferente daqueles que deviam agir como pastores do povo. A exemplaridade deste pastor se verificava pela capacidade de colocar a Sua própria vida em jogo, por causa de suas ovelhas. O texto evangélico deste final de semana apresenta outra revelação essencial do Senhor. Declara ser a videira verdadeira.

O texto de Jo 15,1-8, no horizonte da catequese joanina, encontra-se ao interno do livro da glória – a segunda parte do Quarto Evangelho. O contexto imediato em que estes oito versículos se encontram é o do bloco discursivo que compreende o Testamento de Jesus (Jo 14 – 16), através do qual o evangelista concatena e faz memória do ensinamento do Senhor destinado aos discípulos que com ele se põem à mesa. O testamento representa o elenco dos bens importantes que se deixa para alguém muito amado. Ele sempre expressa àqueles que o recebem a última vontade do doador, e, via de regra, a forma através da qual devem se empenhar por viver. Por isso, este discurso de despedida transmite e apresenta a forma através da qual o discípulo deverá viver depois da páscoa do Mestre, a fim de continuar a Sua obra, e perpetuar sua existência no seio da comunidade. 

Qual o conteúdo do testamento de Jesus? No desenvolvimento deste bloco discursivo de 14 – 16, o Senhor transmitirá o mandamento novo do Amor e o dom de sua vida – que já foi explicitado pelo gesto do lava-pés. Através de imagens muito vivas, o evangelista faz a memória das palavras do Cristo aos discípulos, de modo a ensinar para a sua comunidade qual é a forma exemplar de se viver a vida do Filho de Deus. Feita a contextualização do texto ao interno do conjunto da catequese joanina pode-se tomar os versículos que ajudarão na assimilação da mensagem de salvação.

O v.1 inicia o ensinamento de Jesus com uma solene declaração “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor”. Novamente o evangelista se recorda da expressão de revelação do nome divino. Com essa proclamação, ele pretende transmitir para sua comunidade que Deus está plena e substancialmente presente em Jesus, em suas obras e palavras. Ele é o lugar definitivo da revelação e da ação do Pai.

A declaração adquire peso ainda maior porque Jesus se declara a “videira verdadeira”. Ora, se ele diz ser a verdadeira, então existiria uma videira falsa? Há que se entender o sentido da palavra “verdade” e, então, o significado do adjetivo “verdadeiro”. Por “verdade”, o evangelho de João entende o conceito de fidelidade. A palavra Aletheia (gr. ἀλήθεια), utilizada pelo evangelista traduz o hebraico “Emet” (אמת hbr.), que significa “fidelidade”. Acontece que esta palavra traz consigo outra, indissociável, “Hesed” (חסד hbr.), que significa amor. Portanto, todas as vezes que, no Quarto Evangelho aparecer o termo verdade se deve entender por “amor fiel”. Assim, o adjetivo “verdadeira” significa fiel, aquele que age com um amor fiel. O senhor está se declarando como a videira fiel, isto é, aquela que conseguiu viver e expressar toda a fidelidade e o amor de Deus.

Na tradição religiosa do povo de Jesus, a videira (e a vinha também) era a imagem simbólica aplicada a Israel. O profeta Isaias, em seu cântico (5,1-24), narra a empreitada de um amigo seu que construí uma vinha numa fértil encosta, e esperou dela uvas boas. Frutos bons. No entanto, só produziu frutos ruins, uvas amargas. Jeremias é mais direto na crítica que faz à Israel, dizendo que o YHWH plantou uma videira excelente, mas que havia se transformado numa parreira podre e selvagem. A primeira vinha (videira), portanto, era Israel. Este, não conseguiu ser fiel ao projeto de Deus, deixando-se sempre seduzir pela idolatria e rompendo com a Aliança e com amor fiel de Deus. Jesus, ao contrário, vive na fidelidade e no amor do Pai. Por isso, supera a primeira vinha.

Jesus declara que o Pai é o agricultor. Que imagem bela. Pois, aquele que cuida da vinha se mostra próximo dela. O vinhateiro proporciona a nutrição e o cuidado. Ao dizer isso, o Senhor está revelando que é Pai que nutre e cuida de Sua vida. A seiva que sustenta a existência do Filho é o amor fiel de Deus. O Cristo, como videira, transmite aos seus ramos a mesma linfa de vida que recebeu do Pai.

O v.2 continua o ensinamento de Jesus: “Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto ele o limpa, para que dê mais fruto ainda”. Este versículo precisa ser bem compreendido para não gerar confusões. O Ramo, que mesmo estando unido à videira, e não transformou a seiva de nutrientes em uvas, é o discípulo, que, estando em Cristo, não frutificou em amor e alegria. Porém, a palavra final é do Pai, o agricultor. Somente ele, vendo se o ramo produziu ou não, a seu tempo, é quem pode realizar o corte. É uma advertência que João recolhe do ensinamento de Jesus e o destina à comunidade e a todos os discípulos. Não basta estar unido à Cristo. Há que se produzir o fruto. Pois pode muito bem acontecer de se estar na videira e, mesmo assim, ser um galho morto, ou seja, que impede a seiva de produzir o nutrimento e a gestação do fruto. Porém, a última palavra sempre será de Deus no que toca a produção e a qualidade dos frutos.

O ramo produtivo também é purificado pelo agricultor. A limpeza acontece para que este possa produzir sempre mais. Qual é o fruto produzido? Na lógica interna do texto é a lógica e o dinamismo do Amor do Senhor. A forma e modo do amor de Jesus que se doa a todos deve ser o fruto que o galho ligado à videira deve sempre produzir. Este Amor gera alegria

No v.3, Jesus revela a ferramenta da poda utilizada pelo Pai-Agricultor: “Vós já estais limpos por causa da Palavra que eu vos falei”.  A Palavra de Jesus é toda a sua existência, obra e ensinamento, unida à Escritura, a Palavra de Deus. A Palavra de Deus que se verifica unida na de Jesus, quando aceita pelo discípulo, purifica-o. Quem adere a ela fica mais unido ao Senhor e mais produtivo em termos daquilo que Deus espera. Aquele que assimila sua palavra – seu modo de viver e ser – encontra-se intimamente unido à Ele. Logo, produz o mesmo fruto de amor que Ele produz.

Para produzir o sentido da vida de Jesus em si, na vida do próximo e à esta realidade, o discípulo precisa crescer numa atitude muito importante. “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós... Vós não podereis dar fruto se não permanecerdes em mim” (v.4). O verbo “permanecer” (gr. μένein/ménein) no evangelho joanino é muito importante. Por isso, ele será recorrente até o final do discurso. João o usa 7 vezes para expressar a união entre o tronco e os ramos, ou seja, entre Jesus e os fiéis, mas também em relação ao Pai. O sentido é o da mútua inabitação de Deus (ou Jesus, ou o Paráclito) nos seus, e deles em Deus.

Da parte de Jesus, trata-se de Sua presença salvífica, como a Morada (hbr. shekiná) de Deus no meio do povo (a Tenda no deserto), só que agora, na própria existência do discípulo. Da do discípulo, na medida em que este abre espaço para a presença do Senhor em si, também ele “permanece” no âmbito de Deus. A sua vida passa ser morada de Deus, e este passa ser a morada do fiel! Por isso esse convite também deve ser lido no horizonte da comunidade joanina – e das gerações futuras.

“Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos” (v.8). O versículo oitavo encerra de modo sugestivo a alegoria da videira. Deus é glorificado quando o agir do discípulo corresponde ao agir do Filho. O agir de Jesus consiste na comunicação da vida mesma do Pai para o mundo. O agir do discípulo deverá ser a mesma comunicação de vida e de amor do Senhor. Isto significa frutificar a vida em Cristo.

Quem somos a partir deste texto? Temos permanecido em Jesus, ou em outros referenciais? Que frutos temos produzido e apresentado à Deus? Permitimos que Deus nos pode (purifique, nos limpe), para que produzamos os frutos? Quais galhos secos Deus precisa eliminar de nossa vida, e que nos impedem de sermos fecundos?

Se desejamos saber se Cristo está em nós, cabe verificar se suas palavras – vida e obra – desempenham um papel efetivo e afetivo em nossa vida. Deus deseja ver-nos produzir muito fruto – o amor fraterno – através do qual visibilizamos e testemunhamos ser verdadeiros discípulos de Seu Filho. Do fruto do amor fraterno todos os outros derivam.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


domingo, 21 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA- Jo 10,11-18:

 


O capítulo décimo do evangelho segundo João apresenta o discurso (alegoria) do Bom Pastor, proferido por Jesus. A liturgia, ao quarto domingo da páscoa, sempre se serve dos versículos que compõem este capítulo. Qual a sua finalidade para o tempo pascal? Afirmar que somente Jesus tem uma vida plena a doar para o seu rebanho. A exemplaridade desta vida é capaz de dotar a existência de uma vida ressuscitada.

A nível de contextualização, João insere o discurso do Bom Pastor proferido por Jesus, imediatamente após o ocorrido no capítulo nono, a cura do cego de nascença. Após realizar o sinal do restabelecimento da visão ao cego, o Senhor se autodeclara Luz do Mundo. O evangelista tem a intenção de mostrar para a sua comunidade a oposição existente entre as autoridades judaicas – que estão na escuridão – e Jesus. Durante o episódio, os chefes religiosos tomam a decisão de expulsar aquele o ex-cego de seus meios de convivência.

O discurso do Bom Pastor, recolhido no capítulo décimo do Quarto Evangelho, é uma denúncia de Jesus contra a atitude das autoridades religiosas de seu povo; ao mesmo tempo, João o transforma numa verdadeira catequese destinada à sua comunidade, a fim de revelar que o Pastor verdadeiro é Jesus. Pois, desde antiga tradição, a função de pastorear (cuidar, nutrir, conduzir) o povo de Israel pertencia aos líderes. Num primeiro momento, ao rei. Mas, após o exílio babilônico, esta tarefa ficou sob a responsabilidade dos sacerdotes, dos escribas e dos fariseus. Todavia, a partir de um projeto pessoal de poder e ideológico, aqueles que deveriam cuidar do povo, quais pastores à seus rebanhos, estavam mais preocupados consigo mesmos, com seus poderes e domínios, com seus prestígios; com a autoridade moral e religiosa, do que com o bem estar e a plenitude da vida das pessoas. Ao invés de as aproximarem do projeto de Deus, acabavam por afastá-las.

João, para dar ainda mais colorido ao texto, se serve da profecia de Ezequiel. O capítulo 34 daquele livro serve de pano de fundo para que o evangelista transmita sua catequese. O profeta denuncia os maus pastores de Israel, os quais apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, Deus tomaria a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidaria, ele mesmo, do rebanho (cf. Ez 34,11). Contextualização feita, estamos prontos para mergulharmos na meditação dos versículos 11, 14 e 16.

O texto inicia-se a partir do v.11, com uma declaração importante de Jesus: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. A expressão “Eu sou” (gr. Ἐγώ εἰμι – egô eimí) recorda a condição divina de Jesus, pois essa é a fórmula da revelação, com a qual Deus tinha se revelado a Moisés (cf. Ex 3,14). O evangelista João a emprega somente ao Cristo. Tem a intenção de afirmar que Ele possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo. Mas de que modo? Na forma de Pastor. O evangelista recupera esta declaração solene de Jesus, que precisa ser bem compreendida a partir da sua correta tradução: “O pastor exemplar sou eu”. Não é utilizado pelo autor o adjetivo bom (gr. άγαθος / agathos), mas “belo (gr. καλός / kalós)”.

Não se trata de uma beleza estética. O adjetivo Kalós deve ser compreendido a partir de seu contexto, pois, a beleza, da qual os gregos se referiam era a exemplaridade. Assim, o belo era sinônimo de exemplo, modelo. A intenção de João é a de indicar e reavivar o horizonte de sua comunidade, e para aqueles que estão iniciando-se na fé, que Jesus é o protótipo do pastor. É o pastor exemplar. Qual o motivo de sua exemplaridade? A capacidade de empenhar a vida pelas ovelhas.

Em seguida, João mostra a Jesus estabelecendo um contraste entre si e o assalariado mercenário), diante do perigo do lobo. Quem era esse mercenário (assalariado)? Uma espécie de cuidador de rebanho, contratado mediante um salário, para passar a noite com as ovelhas nos campos. Era um funcionário. Exercia o seu trabalho visando unicamente o lucro, a recompensa, o pagamento. Não se importava com a vida das ovelhas. Era indiferente começar o turno com 100 ovelhas e acabar, no dia seguinte, com 80. Receberia seu salário da mesma forma. Evidentemente, esse mercenário, no horizonte do discurso, serve de imagem para as lideranças religiosas daquele tempo. Não se importavam com o povo e suas necessidades. Diante do perigo e das situações adversas que se colocam contra o rebanho, simbolizado pelo lobo, o Pastor Exemplar não tem medo de encará-lo. O funcionário, pelo contrário, pensa mais em si e na recompensa que ganhará, e, por isso, foge. Ou seja, não se compromete com elas.

Interessante notar que em nenhum momento, tanto Jesus como João mencionam a recompensa que o Pastor Ideal ganha. Porque, na verdade, ele não a ganha nada. Ao contrário ele é quem dá. Ou seja, a gratuidade é a marca existencial de sua vida, a tal ponto de oferece-la às ovelhas. Ao contrário do mercenário: aquele, só deseja receber sua recompensa.

“Eu conheço minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu empenho minha vida (lit.: dou/ponho minha alma) pelas ovelhas (do Pai!)” (v.14-15). Entre Jesus e os seus discípulos existe uma comunhão que se fundamenta na relação que ele tem com o Pai. É o que o verbo “conhecer” deseja expressar: relacionamento pessoal, e, também, esponsal. Precisamente, nesse sentido é que Jesus se declara como pastor ideal e exemplar. Ele possui uma relação profunda, existencial e um vínculo estreitos com seu discípulo. Ou seja, nesta relação existe a partilha da vida entre pastor e ovelha. Assim como a relação profunda entre os esposo gera vida, a de Jesus (pastor) com seus discípulos (ovelhas) tem capacidade de gerar vida plena e amor. Gerar força de sentido.

“Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v.16). Quem são elas? Sempre que se leem os textos bíblicos, se faz necessário e oportuno utilizar a técnica da fusão dos horizontes. Unir o tempo narrado (os anos 30 d.C) ao tempo em que a narração é elaborada ( 90 d.C), o tempo da comunidade de João. As ovelhas seriam os samaritanos (primeiro grupo a acolher a fé em Jesus, após sua ressurreição) e aos greco-romanos provindos do paganismo. Porém, se faz necessário corrigir a tradução de Jerônimo. Não há a conjução “e” (“E haverá um só rebanho e um só pastor”). Esta, que, na verdade está mais para uma interpretação do tradutor do que um esforço de tradução propriamente dito, dá a entender que Jesus deve sair e reunir todas as ovelhas que estão por aí, a fim de trazê-las para o seu rebanho. Não é este o sentido do texto, porque o termo utilizado “aulé” (gr. αὐλή), não significa rebanho, mas recinto. Do qual o Senhor deseja retirar todas as ovelhas que se encontram fechadas por causa dos ladrões e assaltantes mencionados nos versículos introdutórios deste discurso (Jo 10,1-10). Este recinto é o átrio do Templo de Jerusalém. Ele se refere, nesse sentido, à instituição religiosa de seu tempo que pregava uma relação falsa com Deus. Na qual as pessoas eram mantidas.

Na perspectiva de Jesus, e que João sabe muito bem captar, o Templo de Jerusalém havia se tornado um lugar sem vida, que precisa ser superado. Então, é necessário retirar as ovelhas daquele recinto sem vida. Atenção: Ele não deseja retira-las de lá para confina-las em outro lugar. Mas para introduzi-las numa relação nova, de liberdade com Deus, onde não há necessidades de dar nada de si para obter dele seu amor e seu favor, porque Ele concede tudo gratuitamente.

Para onde, então, Jesus, o Pastor Exemplar levará as ovelhas daquele redil e as que estão em outro? Para si mesmo. O rebanho do Senhor não se fixa nem, nem se encarcera num lugar, nas numa Pessoa. Este é o real sentido do versículo no original grego: “e haverá um só rebanho, um só pastor”. Ou seja, um só rebanho unido ao seu Pastor. Uma comunidade identificada com Ele. A comunidade de Jesus precisa estar inteiramente relacionada à Ele. Quando vive dessa maneira, o Senhor sempre se fará presente em seu meio. Através desta comunhão de vida é que ela poderá aponta-lo a que o procura.

Um rebanho unido e identificado a Seu Pastor Ideal, é, na verdade um rebanho que coopera com ele na missão de pastorear, cuidar, alimentar, acolher e apontar caminhos, mais do que carregar ao colo. É um rebanho que assimila a exemplaridade de seu Pastor, ao ser sinal e lugar gerador de vida e amor.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 6 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:

 


A liturgia deste segundo domingo de páscoa apresenta a leitura e meditação do belíssimo texto de Jo 20,19-31, onde se narra o encontro de Jesus Ressuscitado com a comunidade dos discípulos. Durante esta oitava pascal – um grande domingo vivido na semana – as comunidades de fé tiveram a oportunidade de vivenciar uma série de encontros com o Senhor, após a experiência do sepulcro vazio. Esta narrativa que meditaremos a seguir é a imediata continuação do encontro de Madalena com o Cristo no jardim da sepultura (Jo 20,11-18).

A cena narrada por João é uma verdadeira página de catequese que deseja recuperar e transmitir uma força de ânimo para as comunidades e para os discípulos de todos os tempos e lugares. Na verdade, este trecho evangélico trata de mostrar a ressurreição da comunidade e do discípulo. Com efeito, o texto transmite o sentido pleno da ressurreição de Jesus: ela é a nova criação realizada por Deus.

Uma importante constatação: os relatos pascais, ou seja, que contém e transmitem a experiência com Jesus Ressuscitado são textos que narram o Encontro vivenciado entre a comunidade e Ele. Não são narrativas de aparições de um fantasma ou de uma alma desencarnada. Nada disso!

Há diferença entre aparição e encontro? Sim. Os textos evangélicos pós-pascais desejam afirmar que a iniciativa do encontro é do próprio Jesus. Sabendo das dificuldades que ela possui na assimilação do acontecido com Sua vida, ele mesmo vai ao encontro dela. Esta, por sua vez, faz a experiência com o Senhor vivendo a memória do sentido de sua vida. Através desta dinâmica relacional, se pode fazer experiência com o Ressuscitado e com a ressurreição. Para ficar mais claro ainda, estes relatos são de Encontros porque Jesus não é uma alma penada (o que não existe); tampouco uma ideia ou memória psicológica; mas, um vivente. Somente com um vivo se pode experimentar encontros. Feitas estas considerações iniciais e a nível de contexto, se pode mergulhar com profundidade no texto.

O v.19 é denso: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” João nos situa no tempo e no espaço, como gosta de fazer. A anotação que oferece não é sem sentido, pois ele deseja mostrar que o espaço e o tempo mudaram. Não é mais o amanhecer daquele primeiro dia, mas o entardecer, o final do dia. Ou seja, o dia avançou, e, com ele, se faz necessário que as consciências dos discípulos acerca do acontecido com Jesus tenham também avançado, e, portanto, mudado. A mudança de cenário também tem a intenção de ensinar que a comunidade e os discípulos distanciaram-se do sepulcro. Estão na casa.

A delimitação cronológica “primeiro dia semana” é importante em duplo sentido: o evangelista pode estar se referindo ao dia em que a comunidade se reunia para celebrar a memória pascal de Jesus. Ou, se se assimila a lógica de se contar os dias naquela época, este primeiro dia acaba por ser, na verdade, o oitavo, uma vez que o sétimo era o sábado. Mas, qual a importância desta informação? O número oito, na tradição cristã primitiva é número da ressurreição, e, portanto, do ressuscitado. É neste primeiro/oitavo dia da semana que o evento da ressurreição acontece. Todavia, há um detalhe que o evangelista conserva e transmite: os discípulos, e, portanto, a comunidade está fechada, com medo. Mesmo o dia tendo avançado, o cenário tendo mudado, a comunidade encontra-se fechada no medo.

O medo é o contrário da Fé. Ele, se não encarado, pode paralisar a pessoa. João pretende mostrar o estado de ânimo da comunidade frustrada pela morte de seu mestre: bloqueada na experiência do medo. Isso a impede de fazer a memória das palavras do Senhor que se disse vencedor do mundo.

Não há mal em ter medo. Ele é um mecanismo natural da condição humana. Não se pode viver a vida de forma banal e destemida. Não é isso que o evangelho orienta e pede. Ao contrário, é necessário saber coexistir com ele, tomar a vida nas mãos, e, se aventurar a viver. Não cair na tentação de perder a vida por deixar-se bloquear pelo medo. No horizonte da vida daqueles primeiros discípulos, o medo era devido à captura do mestre. Que poderia resultar na prisão também deles. Ou seja, a possibilidade de ter a vida ameaçada e abreviada. Outra face que o medo oferece aos discípulos, é a de terr que assumir o sentido da vida do Senhor. E, agora, “sozinhos”, ou seja, sem a presença física do Cristo, terem de viver as consequências das escolhas.

João, como bom catequista e escritor, sabendo de que esse pode também ser o medo da sua comunidade, faz a memória da experiência com Jesus Ressuscitado, narrando esta cena: “Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’” (v.19b). A superação do medo se dá com a certeza da presença de Jesus Ressuscitado que lhes comunica uma plenitude da vida.

A Paz (hbr. Shalon) que ele oferece aos discípulos tem esse significado de plenitude dos bens divinos; a certeza de que Deus agiu de forma definitiva. E a maneira através da qual ele agiu foi a forma da vida de Seu Filho, que se torna o realizador das promessas de Deus. Não há porque ficar preso no medo quando se tem a certeza que em Jesus Deus já nos deu as condições de viver; é como se ele dissesse “tudo está realizado; eu vos abri o caminho para a vida; tome a vida nas mãos e se coloque a vive-la”.

Um detalhe importante: o evangelista apresenta Jesus em meio aos discípulos. A intenção é a de ensinar que quando o Senhor está em meio, a comunidade e o discípulo podem fazer experiência com Sua vida plena. O centro da vida de ambos deve ser o Cristo. Quando ele está no meio não existe maior ou menor. Todos são iguais; todos estão referidos à uma única direção: o Vivente. Em Jesus, Deus não está acima ou distante de todos, mas próximo.

“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.20). Esta informação é profunda e carregada de significado. Primeiro, o evangelista quer mostrar para a sua comunidade que o Ressuscitado traz consigo as marcas da sua paixão e morte, isto é, o Crucificado é o Ressuscitado. Não é um fantasma. Não é alguém diferente. Segundo, o sentido da vida que o Senhor deu à sua existência, pois na antropologia bíblica as mãos são símbolos do agir. Mostra-las aos discípulos significa fazê-los compreender qual foi o caminho pelo qual decidiu pautar a sua missão. Mostrar o lado aberto significa indicar que este agir foi motivado por puro amor, pois o lado alude ao coração e este é imagem do amor existencialmente vivido. Jesus deseja mostrar que a sua vida vivida desta maneira, em amor até o fim, tem a potencia e a plenitude de uma vida indestrutível, e deve ser assimilada por eles como meta. Diante de uma existência como esta, nem a morte tem poder.

No v.21, ao conceder a Sua paz, Jesus abre os discípulos para o horizonte da missão: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio". O evangelista deseja ensinar para a sua comunidade que a obra e missão do Senhor tem origem no querer divino do Pai. Há uma comunhão de vida entre eles. Desta comunhão de plenitude de vida, ele deseja tornar participante o discípulo e a comunidade. Enviados pelo Cristo estarão em unidade e em comunhão com o Pai.

Depois de enviar os discípulos, Jesus realiza um gesto muito profundo e carregado de significado, que o evangelista soube recordar e transmitir: “soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v.22). O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, através dela, a humanidade inteira, e, por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor do Senhor é espalhado pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Seu Espírito.  

Note-se, que este dinamismo de vida e amor, o Espírito,  é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. O Senhor não está dando um poder exclusivo aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilha da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Esta personagem, na verdade, é um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a toma-lo como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa. Portanto, circulava livremente e sem temor algum. Porém, sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a realizar o gesto que havia pedido como prova. Todavia, ao invés de tocar o Senhor, o discípulo formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18), a qual tem a intenção de afirmar a identidade do Mestre.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos: muito questionadores, chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

Quais são os medos que ainda podem nos paralisar e à nossa comunidade? O Cristo tem ocupado o centro de nossas vidas e de nossas comunidades? Nossas comunidades conseguem aponta-lo aos que necessitam desta experiência de vida plena? Quais dimensões em mim precisam ser recriadas pelo Senhor?


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.