sábado, 29 de julho de 2023

XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 13,44-52

 


A liturgia deste domingo nos apresenta a conclusão do Discurso em parábolas, com o qual Jesus visa transmitir o acontecimento do Reino dos Céus. Este ensinamento foi reunido pelo evangelista Mateus no capítulo treze de sua catequese. Já meditamos nos domingos anteriores as quatro primeiras comparações que o discurso se serve para transmitir a catequese de Jesus acerca do Reino, e, nestes versículos conclusivos, temos a oportunidade de meditar as outras três, totalizando sete imagens ilustrativas utilizadas pelo mestre. Por isso, já se pode tomar o texto e meditá-lo.

“O Reino dos céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (v. 44). Jesus compara o Reino a um tesouro que alguém escondeu num campo. Recordemos que a parábola tem por método assimilar e tomar a realidade simples e existencial do cotidiano, para transmitir uma mensagem/ensinamento. O Senhor se serve de uma prática muito comum de seu tempo: os tesouros encontrados nos campos. Fato comum na antiguidade, por ocasião de guerras ou rivalidades. Quem possuía algum objeto de valor (um vaso de argila cheio de moedas valiosas e joias) ou bens, cavava o chão e os ocultava, na esperança de recuperá-los quando passasse o momento difícil. Os tesouros eram encontrados muito tempo depois, por pessoas que não sabiam da sua existência ao utilizarem o terreno para outras atividades de subsistência.

O fato que nos chama a atenção é o seguinte: a personagem não estava procurando tesouros. Estava, sim, trabalhando a terra. Atenção para esta imagem transmitida: o trabalho. Este é um tema muito próprio da literatura sapiencial. O homem sábio, que busca e cultiva a Sabedoria é simbolizado pelo operário, ou seja, pelo home que trabalha. O trabalho manual (o artesão ou homem que trabalha a terra, o agricultor) é uma imagem para a Sabedoria. Voltando para a parábola, a personagem está trabalhando a terra. Numa linguagem sapiencial, ele está em busca da Sabedoria. Esta, não se trata de um saber teórico, como a filosofia grega. A sabedoria bíblica é a Palavra de Deus, a palavra do Reino. Portanto, esta personagem é uma pessoa sábia. Por isso consegue identificar o tesouro, ao encontra-lo. Na verdade, a personagem é que foi encontrada pelo tesouro. Somente quem se coloca na disponibilidade de trabalhar a terra (meditar e alicerçar-se sobre a Palavra de Deus) conseguirá identificar o tesouro que o Reino é.

O aspecto da alegria é uma característica essencial de quem encontrou o Reino e a ele aderiu plenamente. Ela é o impulso para a atitude da personagem: ao encontrar o tesouro, ele viu um motivo e uma oportunidade para mudar a sua vida. O fato de vender todos os seus bens para adquirir o campo e ficar com o tesouro acena para a atitude que o discípulo deve ter diante do Reino: empenhar toda a sua energia por ele. Quando o discípulo se depara com o projeto de Deus e de Jesus, e a ele adere, deve coloca-lo em primeiro lugar e empenhar tudo o que tem e o que se é, em vista deste Reino. O Reino deve ser a primeira opção de quem o encontra, de modo que todas as outras coisas possam encontrar nele sua orientação e propósito, princípio e fundamento.

Na segunda parábola, do comprador de pedras preciosas, Jesus provoca novamente seus ouvintes: “O Reino dos céus é como um comprador de pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola” (vv. 45-46). Todavia, a atitude deste mercador é que chama a atenção: ele sabe o que procura. Ele está, na verdade, à procura! Trata-se de um homem experiente, e, também, inquieto; capaz de distinguir o valioso do vulgar. Como na parábola anterior, também ele encontra algo que lhe faz tomar uma decisão radical. Também o discípulo, ao entrar em contato com o Reino e sua mensagem, coloca-o como o centro de sua vida, relativizando tudo mais. O Reino torna-se o absoluto de sua vida; tudo mais tem valor secundário.

O objetivo das duas primeiras parábolas é o de motivar o discípulo e a comunidade a fazerem opção pelo Reino, preferindo-o a qualquer outra realidade ou bem. Lidas em conjunto, as duas parábolas mostram que não há contradição entre dom e esforço, que resultam na alegria de se ter encontrado o sentido pleno da vida, tal e qual a descoberta de um grande tesouro ou de uma perola preciosa. A adesão ao Reino e a vivência de seu programa de vida exigem esses três elementos.

Na terceira e última parábola, a experiência dos pescadores no lago da Galileia serve de termo para a última comparação de Jesus. O Reino dos Céus é como uma rede jogada no mar e recolhe peixes de toda espécie (vv. 47-49). Depois que está cheia, os pescadores a puxam para a praia e recolhem os peixes bons, enquanto os imprestáveis são jogados fora (Lv 11,10-12). Existe, aqui, uma certa semelhança com a parábola do joio e do trigo. Mas, diferentemente daquela, onde a cizânia fora semeada por algum inimigo, aqui, os peixes ruins têm a mesma origem dos peixes bons. Esta parábola alerta mais uma vez a comunidade para as contradições e a diversidade que estão em contato com o Reino, e  a previne de qualquer puritanismo e segregação. Os discípulos são enviados a pregarem a Boa Nova do Reino a todos, e não somente aos peixes bons, os santos, os irrepreensíveis; Jesus os chama para pescar gente, isto é, ir ao encontro da humanidade inteira, sem distinção ou rotulação. Porque a última palavra caberá somente ao Pai que está nos céus. É o que a alegorização da parábola deseja ensinar. “Assim acontecerá no fim dos tempos: os anjos virão para separar os homens maus dos que são justos. E lançarão os maus na fornalha de fogo. E aí haverá choro e ranger de dentes” (v. 50).

O fim dos tempos será como um final de um dia de pesca. Os anjos de Deus executarão o trabalho de separar os justos dos malvados. Estes serão lançados num lugar de castigo e haverão de sofrer muito (Mt 13,41-42). Novamente aparece a figura dos anjos (mensageiros celestes). Uma vez mais se faz necessário compreender estas personagens. Por anjos, os autores bíblicos entendem a ação divina. Por reverência ao Nome e à Pessoa divina, acabam servindo-se deste elemento simbólico. Em suma, por anjos entenda-se a ação do próprio Deus. Portanto, será Deus mesmo a agir ao separar os peixes bons e os ruins. Isso serve de advertência aos discípulos, e, posteriormente, às lideranças da comunidade. Os líderes da comunidade não podem se constituir em juízes dos irmãos, condenando a quem não lhes parece entrar nos esquemas do Reino, que, na verdade, são esquemas criados por eles mesmos (Mt 7,1-2). A palavra de salvação e de condenação é exclusividade de Deus, no dia do juízo, não antes nem durante o tempo da pesca.

As parábolas exigem discernimento para serem compreendidas. Jesus questiona as multidões se elas de fato compreenderam tudo. Elas, afirmativamente respondem que sim. É evidente que nada entenderam, pois o próprio evangelho nos mostrará a incompreensão dos que seguiam a Jesus, no tocante à sua mensagem. 

A compreensão significa a aceitação da sua mensagem, com as consequências implicadas nela; não se trata da abstração teórica de um conteúdo, mas de assimilar um jeito novo de viver. Por isso, se faz necessária uma atitude importante destacada por Jesus no final: “Assim, pois, todo o mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas (v.52). A sabedoria do Reino oferece ao discípulo uma nova chave de leitura para tudo, possibilitando-lhe ver a realidade com os olhos de Deus e perceber nela a ação divina. Nessa perspectiva, as coisas antigas são a Lei e os profetas, enquanto as coisas novas são os ensinamentos de Jesus, que ele mesmo considerou como o pleno cumprimento das Escrituras (Mt 5,17).

O texto nos confronta: Tenho conseguido reconhecer o Reino na cotidianidade da existência? O Reino tem sido o tesouro ou a pérola de grande valor pelos quais tenho empenhado a totalidade da vida? Qual a minha reação diante do encontro com ele: alegria ou indiferença? Sabemos compreender e discernir como o mestre pede: reler, reinterpretar e ressignificar tudo segundo a perspectiva da Sua vida e existência?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 15 de julho de 2023

XV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 13,1-23 (1-9):

 


A liturgia do décimo quinto domingo do tempo comum, apresenta para a nossa meditação o capítulo treze do Evangelho segundo Mateus, a terceira catequese de Jesus para o discípulo: o discurso em parábolas. Antes, se faz necessário compreender o que são elas, porque nesta seção, o leitor-ouvinte do evangelho se depara com o coração do ensinamento do Senhor.

Contextualizar é importante para compreender o texto. As parábolas pertencem ao gênero literário sapiencial, denominado mashal. Uma forma de se servir dos acontecimentos do cotidiano, das coisas simples, dos acontecimentos que rodeavam a vida para transmitir o ensinamento da Lei. Este método era muito utilizado pelos rabinos. Jesus, homem simples e sábio, igualmente se serviu desta técnica, pois seus ensinamentos eram marcados pela cotidianidade da vida, pelas circunstâncias da realidade, e, por isso conseguia atingir os discípulos e as multidões com suas palavras, pois elas eram confirmadas pelo estilo de vida Dele. A título de informação – não podemos desprezar ferramentas que ajudam na interpretação do texto para bem meditá-lo – as parábolas possuem três funções: 1) chamar a atenção dos ouvintes, através dos elementos simples da vida cotidiana e da realidade que ela assume para si; 2) provocar os mesmos ouvintes; 3) gerar uma mudança de comportamento na audiência, no público alvo, os leitores-ouvintes.

Ainda a nível de contextualização, Mateus trabalha nesta catequese o segundo polo orientador de sentido da vida e da missão do Senhor: o Reinado de Deus ou “dos Céus”. A vida de Jesus se pauta a partir de dois absolutos, a saber: a relação com o Deus que ele chama de Pai, e o anúncio do Reino. Este, torna-se o conteúdo de sua missão. O Reino ou Reinado – como a exegese atual prefere assim nomear – é a ação soberana de Deus na história humana através de Jesus de Nazaré. Por isso, o Reino é uma pessoa, Jesus. A adesão a Ele, confessado como Senhor e Cristo, promove um modo de ser e de viver no discípulo e na história humana: uma ética.

As parábolas de Jesus sobre o Reinado de Deus (dos Céus) são sete. Mateus reúne neste capítulo sete parábolas destinadas a ilustrar o modo como o Reino acontece e atua na história. O número 7, como já se sabe, é o número da perfeição/plenitude. Há uma intenção de ordem comunitária para o evangelista. Elas serão as (sete) chaves de interpretação que discípulo terá para compreender a ação de Jesus e o destino do Reino, após sua morte e ressurreição, de forma a eliminar neles as ideias equivocadas a respeito do Mestre. A primeira parábola a ser meditada é a da semeadura.

Dos  vv.1-3, Mateus situa-nos na cena. Jesus está nas margens do mar da Galileia. Ali uma multidão se reúne para ouvi-lo. Importante informação, pois é a partir deste lugar que o Reino é por Ele é inaugurado. Toma a iniciativa de subir numa embarcação e começa a ensinar. Estar entre a multidão é outro dado que merece a atenção do leitor-ouvinte do evangelho. Mateus não quer que Jesus seja comparado aos rabinos de seu tempo. Eles ensinavam em pequenos grupinhos e de modo privado. Para Ele, está fora de cogitação discorrer sobre como interpretar a Lei de Moisés nos moldes destes, em suas zonas de conforto e de prestígio. A preocupação do Mestre centra-se, antes, no desafio de ensinar e ser discípulo em contextos diversos, e, até mesmo, de crise.

Dos v.v 4-9, Jesus começa a expor a dinâmica do acontecimento do Reino servindo-se da imagem do semeador, que sai para semear. A semente que carrega consigo vai, ao longo do caminho caindo e comidas pelos pássaros. Em seguida em terreno pedregoso, depois entre os espinhos; e, por fim, em terra boa e fértil. O elemento-surpresa da parábola que deve chamar a atenção do ouvinte-leitor, que é, por si só paradoxal encontra-se no próprio semeador: “mas que tipo de semeador é esse, que não percebe que as sementes vão caindo pelo caminho? desatento!” Pode pensar o leitor-ouvinte. Esta provocação, como dissemos no início, é intencional. Ela serve para despertar o discípulo.

O semeador, numa leitura cristológica é o próprio Jesus. A semente, numa perspectiva teológica, é o próprio anúncio da Palavra do Reino de Deus na história. O sentido desta parábola, portanto, é o de ilustrar o acontecimento/evento do Reinado de Deus em meio as muitas realidades, sejam elas positivas ou negativas. É uma maneira bem simples de Jesus dizer aos seus que o mistério do Reino acontece (é eficaz, real e atuante) na realidade e na história humana em meio a muitas perdas.

A semente caída em terra boa simboliza quem acolhe a palavra e anúncio do Reino e se deixa transformar, produzindo os frutos do amor, do perdão e da reconciliação, desejados por Jesus. “Cem, sessenta e trinta” acenam para a capacidade de cada pessoa acolher a mensagem do Reino e fazê-la frutificar em boas obras. Essa imagem exagerada dos frutos é importante: o máximo que se esperava de uma espiga de trigo eram trinta grãos. O que parecia ser muito (trinta frutos) passa a ser mínimo diante da beleza que é a vida de quem se deixou conduzir pelos frutos do Reino. A colheita surpreendente (cem frutos por semente) só é possível para quem confia na Palavra e se abre completamente aos valores do Reino. Aqui está uma demonstração da vida em plenitude que receberão aqueles que aderirem ao projeto do Reino.

Até aqui o texto adquiriu seu sentido, mesmo que fossem omitidos os versículos de 10-23. Mas nestes treze versículos, Mateus mostra Jesus explicando aos discípulos a parábola. Por que o evangelista relata a explicação de Jesus da parábola? Muito provavelmente, ele tenha recolhido esta explicação para querer corrigir ressignificar a vida da sua comunidade, de modo a alerta-la a não cair na atitude da multidão: a resistência diante do anúncio do Reino feito por Ele. “Porque a vós foi dado o conhecimento dos mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não é dado” (v.10). Ou seja, somente o discípulo poderá ser capaz de compreender as parábolas do Senhor acerca dos mistérios do Reino, porque encontra-se disponível e de coração aberto. Quem não está disponível, e, portanto, manifesta resistência não conseguirá entender o Reino que acontece em Jesus, nem seu ensinamento. E para reforçar esta ideia, o autor bíblico recorre ao dito do profeta Isaias: “É por isso que eu lhes falo em parábolas: porque olhando, eles não veem, e ouvindo, eles não escutam, nem compreendem. Desse modo se cumpre neles a profecia de Isaías: Havereis de ouvir, sem nada entender. Havereis de olhar, sem nada ver. Porque o coração deste povo se tornou insensível. Eles ouviram com má vontade e fecharam seus olhos, para não ver com os olhos, nem ouvir com os ouvidos, nem compreender com o coração, de modo que se convertam e eu os cure” (v.14-15). Só poderá compreender as parábolas de Jesus quem se deixar ser discípulo, quem tiver um coração como o terreno bom e fértil, isto é, capaza de acolher o ensinamento de Jesus, a Palavra-semente do Reino. Quem não quiser, não irá compreender porque já tomou a decisão de ser insensível e duro de coração.

O texto ainda pode ser compreendido a partir de mais duas perspectivas: a comunitária, e escatológica. Na perspectiva comunitária, o alerta vai na seguinte direção: A missão de semear é comunitária, portanto, de todos. Mas o texto alerta para a tentação da eficiência. “Tudo o que se faz deve ser bom!” Por isso, Jesus quer ensinar que o mistério do Reino vai acontecendo, sim, porém por força própria, mesmo em meio a muitas perdas. Contudo, o investimento deve ser total, ainda que seja nas pequenas coisas. A força do crescimento desta semente depende de Deus. A missão do Semeador, e, consequentemente, dos discípulos, consiste apenas no lançar a semente. Vale também repensar o agir da comunidade, que, muitas vezes cai naquela tentação do êxito, e, em decorrência disso, na pastoral do milagre e do sucesso.

O texto alerta para o seguinte: a comunidade dos discípulos (a Igreja) não deve ter a pretensão do sucesso garantido. Não deverá julgar a sua identidade e qualidade mediante a isso. Mas poderá medir sua autenticidade diante das muitas perdas. Quando se começa a perceber muito sucesso, é porque a mentalidade do Anti-Reino entrou em suas estruturas.

A dimensão escatológica se mostra na qualidade dos frutos. Somente no final da missão, simbolizada pela imagem da colheita é que se verá, de fato, que tipo de semente se produziu. Os que se acham os maiorais, santos, irrepreensíveis, doutores da moral e dos bons costumes, cidadãos de bem, poderão se reconhecer também como sementes que não produziram ou solos inférteis. Em contrapartida, os que achavam que nada produziriam poderão ser as sementes autênticas, que deram frutos em abundância. A ninguém é dada a autoridade de julgar fora de hora, isto é, durante o processo, se o fruto é bom ou não; se a semeadura rendeu ou não. A última palavra pertence à Deus.

Estrada, pedra, espinhos e terra boa é metáfora para o coração de cada um. Que a Igreja seja estimulada sair constantemente de si mesma para lançar as sementes do Reino, a Palavra, em todas as circunstâncias. O importante é ter coragem de assumir a semeadura. Sem medo. É necessário, inclusive, ter a coragem de fracassar. Este discurso nos interpelará e provocará ainda mais nos próximos domingos. Por hora, são suficientes estas chaves de leitura.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas  Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 8 de julho de 2023

XIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 11,25-30:

 


O décimo quarto domingo do tempo comum apresenta o capítulo onze do Evangelho segundo Mateus, para a nossa reflexão. Sempre se faz importante contextualizar o texto. No capítulo décimo, Jesus inaugurou e transmitiu o ensinamento aos discípulos do discurso missionário: a catequese que toca no tema da missão do mestre e, consequentemente a do discípulo. Todavia, o envio missionário não acontece imediatamente ao ensinamento. Ele será postergado e só se dará ao final do Evangelho, quando estiver pronto para se tornar missionário-apóstolo do Reino, tendo compreendido o sentido da vida de Jesus.

Os capítulos 11 – 12 apresentam as várias reações diante do ensinamento e da ação de Jesus, eivados de controvérsias por parte dos adversários, escribas e fariseus, e dos incapazes de compreender sua pregação. A partir de então, o evangelho apresentará o tema da rejeição sofrida pelo Senhor. Culminando na decisão de matá-lo (Mt 12,14). Em contraste a estes grupos rivais, encontra-se o grupo dos pequeninos. E é a partir deles que se inicia a narrativa proposta pela Igreja para a meditação dominical.

“Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos” (v.25). O evangelista mostra um louvor em forma de bênção de Jesus dirigido ao Pai, Senhor do céu e da terra (isto é, senhor de tudo). O louvor tem um motivo: foi do agrado de Deus revelar os mistérios do Reino aos pequeninos. Não se pode perder de vista e da memória os gestos que foram realizados pelo mestre na seção narrativa de Mt 8 – 9, as ações reveladoras da misericórdia de Deus (curas e purificações; conferir os sete gestos de poder realizados pelo mestre naquela seção), o chamado e o acolhimento aos pecadores, o modo exemplar de viver a missão (Mt 10). Ou seja, todas estas ações e ensinamentos correspondiam a iniciativa do próprio Deus, à sua vontade de, em Jesus, agir desse modo. Foi dessas coisas que o Senhor se referiu em seu louvor ao Pai. Este agir vai na contramão do pensamento, dos esquemas e da lógica humana.

Quem são os pequeninos? Um mesmo vocábulo grego, dependendo do contexto em que é usado, assume conotações diferentes, dando origem a traduções diferentes. Isso acontece com a palavra pequenino. Ao interno deste evangelho, o autor se serve de duas palavras para designar este grupo: mikrós e népios.

Mikrós (gr. μικρός) foi utilizado no capítulo décimo e se referia ao grupo dos discípulos. A mesma palavra ocorre novamente em 11,11 (“o menor no Reino dos Céus”); 13,32 (“a menor de todas as sementes”); 18,6.10.14 (“escandalizar a um destes pequeninos ... não desprezar a um destes pequeninos ... não se perca nem um só destes pequeninos”). Mikrós (pequeno) é antônimo de grande (gr. μέγας/mégas). No caso dos discípulos, ser pequeno é contrapor-se à ambição do poder e do domínio dentro da comunidade, coisa dos grandes do mundo.

Népios (gr. νήπιος), utilizado no texto de hoje, tem o significado de criança, menor de idade. É aquele que se deixa instruir, que possui um coração e uma mentalidade abertos para o querer e a vontade de Deus, que deixa-se ensinar pelo Senhor. Este terá precedência na revelação porque está aberto à novidade do Reino. Que não se julga proprietário, dono, detentor da verdade, perfeito, pronto, acabado, como se nada tivesse a aprender. Qualquer pessoa que assumir essa convicção de vida pode ser chamada de népios. Em português, pode-se chamá-los de simples.

No v.27, Jesus declara: “Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece o Filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar”. O Pai, Senhor do céu e da terra, ou seja, de tudo, decidiu colocar tudo nas mãos de Jesus, por isso ele é o Seu revelador autorizado. Ele possui a autoridade de colocar (explicar, revelar, mostrar) tudo a respeito de Deus a quem ele quiser, e não somente aos que “podem” e “tem direito” (fariseus, escribas, elite religiosa, o judeu piedoso).

Dito de outra maneira, o conhecimento do Pai se dá através de Jesus! E todos podem ter acesso a Ele. Isso soa como advertência para os seus opositores, dado a dureza de seus corações a rejeitar a Jesus, uma vez que eram os detentores do poder religioso da época. Nesse sentido, rejeitá-lo e fechar-se a Ele significa, em última análise, rejeitar a Deus e fechar o coração para Sua palavra.

No v.28, Jesus reorienta a vida e a direção dos pequeninos e dos discípulos através de um convite: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso”. Este dito foi sempre mal compreendido, dando margem para compreensões romantizadas, adocicadas ao texto. O fardo não são os pecados ou o peso da vida, frutos das atitudes humanas permeadas pela liberdade.

Fardo, na intenção de Jesus e de Mateus, é a Lei mosaica, com suas 613 prescrições, as quais eram derivações forçadas das interpretações que os escribas e fariseus faziam sobre os mandamentos da Torá. Estas seiscentas e treze leis oprimiam as pessoas, dada sua complexidade (Mt 23.4) porque o povo simples não conseguia cumpri-las; não geravam mais vida, senão a manutenção de sistemas e mecanismos injustos, promotores de alienação e de morte. Portanto, não se trata do jugo do pecado ou das dificuldades da vida, mas, sim, o da Lei, expressão da religiosidade e da fé transformadas em mentalidade equivocada acerca de Deus que passava a ser um peso para as pessoas (cf. Sr 6,22-32; 51,26-27). 

Jesus, Sabedoria encarnada na história (Pr 8), em contrapartida, propõe um jugo, diferente do fardo/peso. Fazendo-se discípulo dele, manso e humilde de coração, que não busca dominar é possível encontrar descanso, pois seu jugo não machuca ninguém e seu peso é leve (v.29-30). Ele exige dos discípulos somente o essencial, a justiça do Reino (Mt 7,33), ou seja, o agir segundo a mentalidade do Reino desenhado desde o Sermão da Montanha. Por isso, o essencial proclamado por Jesus é quantitativamente mais simples, mas qualitativamente mais exigente que a justiça dos escribas e fariseus (Mt 5,20), apegados aos rigorismos, moralismos, exclusivismos e às prescrições que legitimavam seus estilos de vida. Jesus reordena a vida do discípulo às exigências do coração, do amor e da misericórdia que promovem a Justiça do Reino. E, não para uma lei que não gera mais vida.

O texto evangélico de hoje nos questiona: quem somos e onde estamos? O que temos carregado em nossas vidas, o fardo/peso ou o jugo? O que apresentamos aos irmãos, o fardo ou jugo de Jesus? Nossas comunidades, são comunidades dos pequeninos ou dos sábios?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP


sábado, 1 de julho de 2023

SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - Mt16,13-19:

 


A Igreja no Brasil, todo ano, transfere a solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo para o domingo após a celebração do dia litúrgico, 29 de junho, de modo a favorecer a maior participação do povo fiel nas celebrações dos mistérios do Senhor. Ambos os apóstolos estão, a seu modo, associados ao mistério da vida, paixão e morte de Cristo, e, enquanto colunas da Igreja de sustento da vida eclesial, alicerçadas sobre a rocha firme da fé no Senhor que professaram, merecem nossa admiração. Mais ainda, merecem ser assimilados no exemplo e na a vivência da fé em Jesus por todos os discípulos e discípulas de todos os tempos. Somos convidados a dar um salto na leitura do evangelho de Mateus, excepcionalmente neste domingo, precisamente para o capítulo dezesseis da catequese do evangelista, Mt 16,13-19.

O texto de hoje começa no v.13. Mas ele iniciara com duas situações que servem de estopim para a narrativa que se segue. O primeiro acontecimento foi uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, os quais pediram a ele um sinal que comprovasse que ele seria messias (Mt 16,1-4). A segunda situação foi motivada pela advertência contra o fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). O fermento dos fariseus, ao qual Jesus se refere é a ideia errada que nutriam em relação a Deus e ao messias, bem como a própria maneira hipócrita de viver. Diante deste contexto, Jesus leva os discípulos para a cidade de Cesareia de Filipe. Indicação importante para os leitores da catequese de Mateus.

Cidade situada ao norte de Israel, dedicada à Cesar, imperador romano, era sede do poder romano na província da Palestina e, portanto, lugar de culto ao imperador e de cultivo da ideologia imperial. Um território pagão. Por outro lado, a cidade fica distante de Jerusalém, sede do poder religioso. Jesus e seus discípulos encontram-se longe das influências do poder religioso. Lugar propício para fazer uma experiência nova e pura com Deus. É o que Jesus deseja propor. “ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” (v. 13b). Não há concordância entre os biblistas a respeito da intencionalidade de Jesus na pergunta. Mais do que preocupado com a imagem que a multidão fazia dele, estava preocupado com a ideia que faziam de sua missão.

Segundo os discípulos, a opinião pública dizia: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). A atuação de Jesus tinha dado margem para variadas interpretações, e as figuras do passado serviam aos espectadores de Jesus fazerem alguma imagem Dele. É bem verdade que o modo através do qual Jesus decidiu-se por viver sua missão foi a via profética. A comunidade cristã não pode ver Jesus como uma personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Após a resposta dos discípulos, Jesus dirige a pergunta para eles: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v.15). Trata-se de uma pergunta importante, porque a resposta revelará a percepção dos discípulos a respeito dele. Mais ainda, a reposta revelaria também as expectativas que traziam consigo, e qual mentalidade nutriam acerca dele.

“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v.16), responde acertadamente Simão, em nome dos doze. É uma reposta que ele dá em nome do grupo, e, portanto, eclesial. Uma profissão de fé comunitária. Os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam com Pedro. Deus está a agir em seu ungido. Toda ação de Cristo revela o querer do Pai.

“Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17). Jesus admira-se com a resposta tão acertada. E reconhece em Simão um bem-aventurado. Seu entendimento não provém do esforço humano; só pode ser revelação do Pai dos céus. O apóstolo é chamado pelo seu nome “Simão”. Todas as vezes que Jesus se dirigir ao discípulo desta maneira, significa que o seu agir e seu pensamento estão corretos e condizem com o querer de Deus e do Senhor. Quando o narrador apresentar o discípulo com seu nome composto “Simão Pedro”, é porque ele apresenta dificuldades na caminhada que necessitam ser superadas. Agora, quando o autor apresentar a personagem apenas com nome de “Pedro” será porque o discípulo está na contramão do querer de Jesus e do Pai e precisa deixar de ser duro, como pedra, para ser formado e lapidado como uma pedra de construção.

A bem-aventurança dirigida ao discípulo (e à toda a comunidade) é devida a sua abertura à vontade do Pai e deixar-se conduzir por ela. As coisas começam a funcionar na vida do fiel e da comunidade quando a voz do Pai é ouvida. Nesse sentido, quando a voz de Deus é acolhida e seu querer encontra lugar no coração do discípulo é que este consegue reconhecer a Jesus como enviado do Pai. O fiel discípulo precisa deixar emergir Simão de dentro de si. Deve procurar exercitar sua dimensão de ouvinte da Palavra para reconhecer o agir de Deus e se autoavaliar para ver se está no caminho certo.

“Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus declara Simão Pedro como rocha firme devido à Fé que professara. O acento aqui não recai sobre o discípulo, mas sobre a Fé que ele, juntamente com a comunidade dos discípulos, a Igreja, professa. A pedra firme por sobre o qual se edifica a comunidade dos crentes é o conteúdo e o núcleo da Fé professada pelo discípulo: Cristo, o filho do Deus vivente. Simão Pedro, na verdade, é o garantidor da unidade em torno desta Fé. Esta não se baseia num conjunto de ideias ou de proclamações dogmáticas, mas se embasa numa pessoa e na relação experiencial com ela: Jesus de Nazaré.

Mateus se serve de duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las. “Petros” corresponde à pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, alude à superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Simão é Pedro (Πέτρος /petros), uma pedra-tijolo da construção. Ele deve estar assentado a pedra-rocha (πέτρα /petra), Jesus e a fé que professou acerca de Sua pessoa: “Tu és o Messias e Filho do Deus vivente”.  Só aqui, e em Mt 18,17, o evangelista chama de “Igreja” a comunidade dos discípulos do Reino, evocando o antigo povo de Deus (hbr. qahal). A missão da igreja consiste em ser, na história humana, um sinal da presença do Reino, vivendo os seus valores e o seu projeto. Alicerçada sobre a rocha.

A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expressado nas bem-aventuranças (Mt 5 – 7), tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” são, acima de tudo, responsabilidades, e não um poder. A chave simboliza a autoridade conferida a Pedro, da qual a comunidade também participa. Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino acontecer já aqui na terra.

A pergunta que Jesus faz aos discípulos se direciona também à nós. 1) Quem é Jesus de Nazaré para mim? 2) Tenho permitido que Simão emerja em mim, exercitando a capacidade da escuta da Palavra e do querer do Pai?

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.