sábado, 30 de setembro de 2023

XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 21,28-32:

 


O evangelho dominical nos insere na leitura do capítulo vinte e um do Evangelho segundo Mateus. O evangelista, neste capítulo recupera um ensino em parábolas de Jesus, que só aparece em seu evangelho, e, assim, o transmite para a sua comunidade: a parábola dos dois filhos (Mt 21,28-32). Para compreende-la, se faz necessário abrir o horizonte de visão para o contexto no qual ela se situa.

O capítulo vinte e um apresenta a entrada de Jesus em Jerusalém. Ali, passa a sofrer forte resistência e oposição por parte dos lideres do povo, os chefes do judaísmo. O contexto imediato é delimitado pela cena anterior, a discussão com os chefes religiosos no templo. Eles questionam a Jesus acerca de Sua autoridade. O Senhor coloca uma condição para responder ao questionamento deles: “Responderei se me responderem uma pergunta: De onde vêm o batismo de João Batista, do alto ou dos homens?”. Diante da questão, os religiosos viram-se em apuros. Se respondessem que a ação profética de João era autorizada por Deus (vem do alto), então estariam obrigados a reconhecer e responder que Ele viria de Deus, e, que, portanto, estariam errados. Se respondessem que a missão de João era terrena, cairiam na ira do povo, porque consideravam o Batista como um profeta. A pergunta é envolvente e a resposta, comprometedora. Preferem dizer que não sabem. De sua parte, Jesus responde: “Então, eu também não direi com que autoridade eu faço estas coisas”. Mas com uma provocação que lhe é própria, o Mestre não perde a oportunidade de chamar-lhes a atenção através de uma parábola em forma de pergunta: “Que vos parece?” (v.28).

A partir da contextualização do capítulo vinte e um, parece que o evangelista procura oferecer um panorama histórico para seus leitores/ouvintes através dos temas do pecado da rejeição e da recusa dos líderes que não acreditaram na missão de João (21,25 e 32), que mataram os profetas de Deus (21,34-36), e, que, concluirão a perversidade de suas ações tramando a morte do Filho de Deus (21,39).

A parábola é destinada para dois grupos: em seu tempo, Jesus a direciona para as lideranças do povo. No tempo da comunidade, Mateus se apropria do ensinamento para corrigir os rumos da comunidade leitora do Evangelho. Sempre é necessário unir (ou fundir) estes dois horizontes. Uma vez mais, a parábola se serve do tema da vinha. Já nos é sabido que ela sempre foi tida na tradição de Israel como metáfora do Povo de Deus. Isto posto, podemos mergulhar no texto bíblico.

O texto bíblico começa com esta pergunta para os chefes do povo, “Que vos parece?” (v.28), para narrar lhes a parábola de um pai de família, dono de uma vinha, que convida os filhos a trabalharem na plantação. O primeiro protesta, mas depois vai. O segundo, prontamente responde de modo afirmativo, mas não cumpre o que diz. O relato é privado de colorido e de particulares, centrando-se sobre a contraposição dos dois filhos: contraposição de respostas e de comportamento.

Com a pergunta, “Qual dos dois fez a vontade do pai?” (v.31), Jesus amarra ainda mais o grupo dos fariseus e sacerdotes. As perguntas têm a intenção de envolver e comprometer os ouvintes tornando-os participantes do ensino, e identificando-se com as personagens. Deste modo, Jesus conseguiu colocá-los contra a parede tirando deles um juízo de autocondenação.

Eles respondem e são censurados por Jesus: “O primeiro. Então Jesus lhes disse: Em verdade vos digo, que os cobradores de impostos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus. Porque João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os cobradores de impostos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele” (vv.31-32). Com esta resposta, Jesus joga na cara dos líderes religiosos do povo suas incoerências e resistências. Ele declara, de forma muito lógica que o caminho aberto por João foi conforme o querer do Pai; e, que os pecadores, as prostitutas e os publicanos acolheram a pregação dele. Ao passo que aqueles entendidos sobre Deus, não. Ora, Se o Batista veio preparar e abrir o caminho, Jesus, é o realizador pleno deste projeto de Deus. Com isso, responde a pergunta que lhe fora feita acerca de Sua autoridade. Ela vem do Alto e é destinada a todos, sem exclusão.

Mas lancemos um olhar mais acurado para as personagens da parábola. O primeiro filho, que se nega a trabalhar na vinha, mas que depois vai torna-se metáfora para os publicanos e às prostitutas, símbolos dos marginalizados, excluídos; dos sem voz e nem vez do tempo de Jesus, os quais tanto a religião, como o poder imperial marginalizavam.

Jesus, assim como eles, fez uma amarga experiência de rejeição obstinada dos rígidos e legalistas mestres da lei e fariseus. Por outro lado, encontrou boa acolhida nas mulheres de rua, nos fraudulentos cobradores de impostos, excomungados pela sinagoga, que eram excluídos pela sociedade puritana. Eles acolheram o anúncio do Reino e mudaram de vida, abrindo-se na esperança ao futuro de Deus

As lideranças do povo – os anciãos e sacerdotes – são caricaturados pelo segundo filho, que contradisse com a atitude, o sim dos lábios. Não podem iludir-se e pensar que estão obedecendo à vontade de Deus apenas porque dizem ter aderido a ele, ostentando um culto estéril à lei.

Entendida as personagens da parábola, lancemos agora um olhar para a pergunta de Jesus aos líderes “Qual dos dois fez a vontade do pai?” O pai é o termo de comparação aplicado a Deus. Fazer a vontade de Deus era o eixo sobre o qual girava toda a religião do AT e do judaísmo. E a lei era sua expressão escrita e clara. Mas agora, a revelação plena e perfeita da vontade divina acontece em Jesus, que anuncia a vinda do Reino e chama à conversão (4,17). A obediência não é feita de palavras estéreis e descompromissadas, mas com atitudes concretas e precisas. Os verdadeiros obedientes são exatamente os pecadores, porque creram. A obediência, portanto, chama-se fé/adesão ao Filho.

A vontade de Deus é revelada, agora, através da pessoa do Filho. Nesse sentido, o Pai deseja e espera que os homens acolham Aquele que Ele enviou. De agora em diante, os homens colocam em jogo seu destino último, decidindo-se a favor ou contra Àquele que Deus enviou ao mundo. Mateus quer ensinar para a sua comunidade que encontrar Deus prescindindo de Jesus é ilusório. Entretanto, a obediência da lei e a rejeição a Jesus, conforme denunciado pela parábola, equivale a um sim meramente verbal, desmentido pelos fatos, descomprometido da vida.

Ora, se a parábola, no tempo de Jesus serve para denunciar a oposição e rejeição das lideranças do povo frente ao Projeto de Deus anunciado por Ele, para Mateus ela tem fins bem catequéticos e comunitários. Apresentar dois tipos de cristãos: os que vivem segundo o projeto do Reino e os que só falam, sem praticar. A comunidade do Reino não deverá reproduzir as mesmas atitudes dos líderes antigos do povo de Jesus. 

O evangelista deseja coibir, ao interno da comunidade, que o discípulo/fiel caia na tentação de levar uma vida de aparências, descompromissada e incoerente, que assume, inclusive, facetas puritanas e excludente com o intuito de se autopreservar. A coerência do discípulo de Jesus, bem como da inteira comunidade cristã está na sintonia entre o falar e o fazer. Não se torna discípulo de Jesus e membro de sua comunidade somente pelo bonito, perfeito, acertado – e, portanto, ortodoxo – discurso que se verbaliza ou assimila; não se torna discipulo ao se decorar fórmulas, ritos e preceitos. Para Jesus e Mateus, a pessoa se torna discípulo (a) quando assimila e faz a vontade de Deus, que passa pela opção pelo Cristo e pela decisão de assumir seu modo de viver, no acolhimento aos excluídos e marginalizados desta história – a ortopraxis. Corre-se o risco de se viver muita ortodoxia (discurso correto), mas totalmente descolado da realidade, e, por isso, pouca ortopraxia (o agir correto). Na comunidade e na vida do discípulo não pode haver espaço para incoerências e aparências.

Diante da parábola deste domingo cabe-nos sempre a pergunta qual tem sido nossa atitude/resposta ao querer de Deus manifestado por Jesus. Qual dos filhos pode refletir nossa imagem?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 23 de setembro de 2023

XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 20,1-16:

 


O evangelho significa Boa Notícia. Jesus anuncia com a própria vida a boa notícia de que o Deus que ele chama de Pai não se relaciona com o ser humano nos moldes da religiosidade antiga, retribuindo a cada um segundo os próprios méritos; premiando os bons e castigando os maus. Ao contrário, fala de um pai bondoso que faz brilhar sobre maus e bons o mesmo sol; faz chover sobre justos e injustos. Precisamente esta nova face de Deus apresentada pelo Senhor parece não ter sido aceita pelos discípulos que o seguiam; tampouco aos fariseus e escribas. Nesse sentido, a parábola contada no evangelho dominical (Mt 20, 1-16) é dirigida para estes dois grupos. Antes de tudo, se faz necessário contextualizar o texto. 

O contexto próximo da parábola de hoje situa-se na seção narrativa imediatamente após o Discurso Eclesial. Neste bloco, 19 – 23, o evangelista narra o começo da viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Encerra-se a missão na Galileia. Na cidade santa, a sua pregação passará pelo filtro dos homens religiosos e a fé dos discípulos será posta em xeque. Uma opção deverá ser feita: aceitação ou recusa do Messias Jesus e do Deus que ele chama de Pai. Nesta viagem, os discípulos serão instruídos na sabedoria e pedagogia do Reino, contemplando as ações e as palavras do Mestre e pondo-se a refletir sobre elas. O contexto imediato, corresponde ao capítulo vinte da catequese de Mateus. O qual inicia-se com uma parábola.

A parábola serve-se de imagens conhecidas das pessoas do tempo de Jesus, bem como absorve elementos da tradição religiosa do povo. A vinha, por exemplo, servia de imagem comparativa e simbólica para o povo de Israel (Is 5,1-7; Jr 2,21; Ez 15,1-8; Os 10,1; SI 80[79]). Mais a diante esta imagem retornará noutra parábola (mais forte ainda, a dos vinhateiros maus, em Mt 21,33-46). Assimilando mais ainda a imagem simbólica, a vinha, por assim dizer, trata-se do campo da atuação histórica de Deus. 

A parábola dos trabalhadores se liga à cena anterior, o diálogo-ensinamento de Jesus aos discípulos. Ao final da narrativa do jovem rico (Mt 19,16-30), Pedro, em nome dos doze, questiona Jesus acerca da recompensa que o discípulo, que deixou tudo pelo Reino, ganharia: “Eis que deixamos tudo e te seguimos. O que receberemos?” (Mt 19,27). Eis o problema que Jesus precisa solucionar: a mentalidade equivocada do discípulo acerca de uma desejável recompensa por fazer parte de Seu grupo. Com a parábola a seguir, Mateus retoma o tema da recompensa dos discípulos, e ensina que ela em nada se identifica com os frutos das ações realizadas por alguém. Antes, porém, com a misericórdia do Pai dos céus. Como que esta misericórdia desconcertante se visibiliza neste texto evangélico? 

Dos vv.1-7, Jesus ilustra aos discípulos as ações de um certo dono de vinha. Por ser uma parábola, os contadores de histórias (seja o evangelista ou o próprio Jesus) transmitem imagens exageradas para chamar a atenção do leitor-ouvinte. O dono sai contratar trabalhadores para sua vinha, de manhã, bem cedo; de novo, às nove da manhã. Uma vez mais, ao meio-dia. Depois, às três, e, por fim, às cinco da tarde. A atitude do dono é questionadora: é ele quem sai em busca dos trabalhadores, quando, na verdade, os feitores eram encarregados da tarefa. A atitude mostra a urgência que ele tem. Em que consiste tal urgência? Satisfazer vontades próprias? Enriquecer? Não. Ele pensa nas necessidades dos outros. Se ele estivesse pensando nas necessidades próprias, bastariam os que foram chamados na primeira hora. Parece espantoso um proprietário que pense primeiro nos outros, que em suas necessidades.

O patrão sai, última vez, às cinco. O leitor, aqui, já deve estar surpreso. Ele conhece o ambiente e o costume; sabe que é o último horário antes do sol se pôr, para iniciar a vigília do dia seguinte. Mas também a estes, na última hora, o patrão os chama. É mais uma forma de Jesus e de Mateus enfatizarem que a atitude do patrão não é pautada por suas próprias necessidades ou ganancias, mas está toda ela orientada para o bem-estar do outro.

Na realidade do tempo de Jesus, quem não tivesse trabalho, não teria chance de comer, de se sustentar e à sua família. Os que estavam nas praças desocupados não estavam ali porque queriam, mas porque não encontravam trabalho. A falta de emprego não significa preguiça! É sinal de uma realidade e contexto históricos injustos. Com os primeiros, combinou uma moeda de prata, o equivalente a uma jornada inteira de trabalho, a qual começava às seis da manhã, terminando seis da tarde. Com os demais, ele combina “aquilo que for justo” pagar.

Dos vv. 8-10, Jesus narra o acerto de contas, ao final da diária. O patrão (lit. O Senhor / gr. κύριος/Kyrios, o que dá a entender que Jesus e Mateus identificam o dono à Deus), manda o encarregado do pessoal chamar primeiro os últimos, em consonância com a prescrição de Dt 24,15, onde se ordena pagar ao operário, no final do dia, antes do pôr-do-sol o equivalente a uma jornada de trabalho, para que não passem necessidade. A postura dos trabalhadores da primeira hora chama a atenção: murmuram contra o fato do patrão pagar a mesma quantia combinada com estes, no início da jornada, aos que chegaram por último. É logico – dentro dos esquemas humanos – pensar que os que trabalharam desde o primeiro momento, devessem ser mais favorecidos. A generosidade e a solidariedade do patrão os deixavam desconcertados e estupefatos. Não esperavam tal coisa. Começam a protestar contra a injustiça do patrão. Murmurar é agir contra o projeto de Deus. Mas aqui no horizonte do texto ela representa o protesto dos privilegiados, contra a gratuidade / Graça outorgada aos que não tem nada.

A resposta do patrão é uma correção e visa abrir lhes os olhos: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não combinamos uma moeda de prata? Toma o que é teu e volta para casa! Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti. Por acaso não tenho o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja, porque estou sendo bom?” (vv.13-15). Por três vezes no evangelho de Mateus Jesus usa o vocativo “amigo” (gr. ἑταῖρος/ehtaîros). Em todas elas, o termo é usado para mostrar que a pessoa está errada e precisa ser corrigida.

Na resposta do dono da vinha, “Eu quero dar a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti” (v.14), Jesus enfoca o sentido da parábola: ilustrar o agir de Deus em relação ao ser humano que ainda não foi alcançado pelo projeto de Deus, pela dinâmica do Reino. Este projeto não é para poucos, alguns ou privilegiados, mas para todos, indistintamente. Os que estão dando o passo na fé e na salvação até mesmo na última hora da história humana tem lugar e espaço. Todos têm lugar. Sempre o agora da vida é hora da salvação. Diante deste ensinamento, o discípulo veterano deve tirar “o olho mal” (olhar maldoso) de si. Inveja é a tradução para expressão contida no original grego “olho mal”. “Estás com inveja (olho mal), porque estou sendo bom?”.

Eis a novidade que Jesus transmite através desta parábola: Deus não trata o ser humano segundo seus méritos, sua religiosidade, a assiduidade ou conduta do cristão de bem; mas o trata conforme a Sua gratuidade e generosidade, levando em conta a necessidade das pessoas. Não é o mérito que motiva Deus a agir, mas a necessidade que o ser humano apresenta. Necessidade de ter junto de si todos aqueles que ainda não foram alcançados pelo projeto do Reino aberto até na última hora da história de cada pessoa.

Ao terminar a parábola, Jesus faz uma consideração importante acerca do modo de agir de Deus: “Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (v.16). O modo de pensar e de agir de Deus diametralmente diferente do pensar e agir dos homens. Ele inverte (ou subverte) os esquemas humanos. Estamos diante do tema da inversão escatológica realizada por Deus através de Jesus. Que é a reviravolta radical que Deus opera na história reinserindo os últimos – pecadores, excluídos, marginalizados – no seu horizonte salvífico.

O discípulo do Reino é desafiado a se inspirar em Deus (Mt 5,48). Esta parábola pode ter sido dirigida tanto aos fariseus, interlocutores e opositores de Jesus, incapazes de imaginar que os recém-convertidos seriam recompensados, isto é, salvos por Deus na mesma medida que eles. Como pode ser aplicada a parábola também aos líderes da comunidade cristã, que, no contexto da vida comunitária poderiam  cair na tentação de se sentirem superiores e mais dignos de recompensa (aplausos, elogios, lugares de honras, adulações, senso de importância, méritos) do que os  que começaram a pouco na caminhada de fé, no seguimento a Jesus e à vida da comunidade. Não há nenhum privilégio à quem quer que seja. Isso vale para o discípulo e para a comunidade que se identifica como cristã.

Quem somos no horizonte deste evangelho? Em qual horário da nossa vida fomos chamados por Deus? Em que horário do discipulado estamos? Quais atitudes existem em nós, que não corresponde ao proceder de Deus diante dos últimos? Peçamos a Graça de um olhar sadio em relação ao irmão. Que nossas comunidades sejam espaço de vida e de acolhimento especialmente para os trabalhadores da última hora, porque jamais podemos nos esquecer que, talvez, estejamos entre eles também.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 16 de setembro de 2023

XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 18,21-35:

 


A leitura do capítulo dezoito do Evangelho segundo Mateus continua a partir dos vv.21-35. O discurso comunitário contido neste capítulo serve para iluminar e oferecer balizas para os discípulos de todos os tempos e lugares acerca do modo de se viver e crescer enquanto comunidade do Reino, e como seguidores e das seguidoras de Jesus de Nazaré. Ela deve ser espaço de acolhimento, de perdão e de promoção da vida das pessoas. Com a introdução que fora feita na meditação anterior, pode-se adentrar no horizonte do texto bíblico proposto e meditá-lo a partir do questionamento que Pedro faz a Jesus.

No v.21-22 temos o diálogo entre Pedro e Jesus acerca do Perdão: “Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?”. A pergunta pode soar intimista ao ser direcionada para eventualidade de o irmão pecar contra ele (contra a comunidade). Interessante notar, que, no texto da correção (fraterna) comunitária, Jesus foi quem introduziu a dinâmica do irmão pecador, colocando-a de forma geral. Agora, é o discípulo quem refaz a pergunta, projetando-a para si. A insistência do tema do pecado do outro deve apontar para alguma dificuldade que a comunidade está passando ao seu interno. A recorrência de temas indica que o ensinamento não está sendo bem compreendido ou sofre resistência.

O discípulo tenta induzir a resposta do Mestre, “até 7 vezes?”. O número sete indica plenitude. Aqui, portanto, terá o sentido de “plenitude da ação”.  Jesus responde: “Não te digo até sete vezes, mas setenta e sete vezes” (v.22). Ele recorda para os discípulos, através da resposta  que dá, a uma passagem de Gn 4,24, onde o autor-narrador menciona um personagem chamado Lamec. Se trata de um descendente de Caim, conforme o texto de Gn 3,1 – 4,26. Em Gn 4,23-24 se lê: “Lamec disse à suas mulheres: (...) Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. É que Caim é vingado sete vezes, mas Lamec, setenta e sete vezes”. Este trecho encontra-se nos primeiros capítulos do Livro do Gênesis. Neles, o autor sagrado se serve de um gênero literário antigo chamado de formulas de origens (Toledoth), as quais tentavam explicar o surgimento dos nomes, dos lugares, das pessoas e das coisas. Em Gn 3, narra-se a origem da descendência de Adão. Mas também se aproveita para tentar explicar a origem da violência. Ela nasceria do assassinato de Abel, por seu irmão Caim. Neste capítulo, Deus, depois de dar falta de Abel, diz que “escuta o sangue de Abel clamar”. Clamar, aqui, refere-se a intenção da vingança. O que o autor do livro pretende ensinar aos israelitas? Uma possível origem da vingança no mundo, e, ao mesmo tempo, indicar que o caminho do violento será sempre pautado pela sede da retribuição. Nesse sentido, esta menção ao numero setenta e sete, recorda a passagem de Lamec, que está ligada à narrativa da morte de Abel, que tenta ser uma explicação para a entrada da violência no mundo. Este número é, portanto, uma representação da máxima vingança, para o A.T. Infelizmente, no tempo de Jesus dava-se muito mais ênfase a esta atitude que ao ensinamento que os autores de Gênesis pretendiam dar: não pode haver este tipo de atitude no meio do Povo de Israel.

A intenção de Pedro, que reflete o pensamento do grupo, que por sua vez, reproduz a mesma mentalidade equivocada do povo de Israel pode ser compreendida da seguinte forma: “quantas vezes se pode permitir ao irmão, que pecou contra o projeto do reino, voltar para comunidade?” “Existem limites a serem impostos?” “A comunidade pode ser vingativa para com aquele que errou?”

Jesus, ao responder “setenta e sete vezes” pretende, na verdade, corrigir o pensamento equivocado do povo e de seus discípulos. Não há espaço para vingança na comunidade de Jesus, nem limites ou condições a serem impostos. Sempre que a pessoa quiser voltar, deverá ser acolhida, mesmo que se vislumbre a sua queda. Assim, a  resposta do Senhor não visa estabelecer uma quantidade matemática (70x7), mas ilustrar a qualidade da atitude do perdão e da acolhida fraterna em relação ao irmão que errou. O discípulo que procura fazer parte da comunidade do Reino necessita romper com a lógica da retribuição, o pagar na mesma moeda. Deve ser meta da comunidade e do discípulo perdoar sempre. Não à máxima vingança! Sim, ao máximo perdão!  

Talvez, problemas na comunidade de Mateus deviam estar  surgindo. E para compreender ainda mais a mensagem da catequese bíblica que o autor recupera e transmite, deve se fazer uso do recurso da fusão dos horizontes – o horizonte narrado e o tempo da comunidade mateana. 

A comunidade se depara com o problema dos “Lapsis”, aqueles que caíram diante da perseguição do Império Romano e do Judaísmo da época. Eles renegavam a fé por medo de morrer. Mais tarde voltavam arrependidos para comunidade e pedia-lhe acolhimento. Existiam correntes severas de cristãos que pensavam que, uma vez acontecida a queda da pessoa, esta seria definitiva, e não se podia admiti-la à comunidade. Ora, o indivíduo renegou a fé por medo, e não por convicção. Então, nesse caso, ao invés da máxima vingança, ainda mais o máximo perdão deve tomar lugar na vida comunitária.

Voltando para o horizonte do texto. Jesus, percebendo que os discípulos, diante da exigência máxima do perdão, ainda permaneciam resistentes ilustra o ensinamento com uma parábola, dos v.23-34. Tomemos a primeira parte dela (23-27). Começa com a história de um rei-patrão a quem se lhe devia muito dinheiro. Ele manda chamar, primeiramente, a um servo que lhe devia dez mil talentos (de ouro ou prata). Um talento pesava em torno de 34,232kg. Multiplique-se por dez mil. Logo, uma soma impagável. Não tendo o servo condições de pagar, foi sentenciado a ser vendido como escravo, juntamente com sua mulher e filhos. O empregado, se ajoelhando diante do soberano, pediu um prazo para o pagamento da dívida. O poderoso, por sua vez, compadecido (cheio de misericórdia), atende-o, perdoando a divida. Parece um absurdo: o sujeito deve uma enorme fortuna, uma quantia impagável, está preste a ser penalizado, e o soberano o perdoa!

Ao sair dali, este servo se encontra com um colega que lhe devia a importância de cem denários (menos de 30g de ouro; ou equivalente a três meses de trabalho). O servo não compreende a dívida irrisória e pagável de seu companheiro. Este, por sua vez, suplicava-lhe um prazo para o pagamento. O colega não lhe dá ouvidos e o lança na prisão. Interessante, o primeiro foi alvo da misericórdia do seu soberano. Mas ele mesmo não usou de misericórdia para com o companheiro devedor. Os que ficaram sabendo da atitude do servo foram ao patrão e o delataram. Este, o chama e o interroga:“Servo malvado, eu te perdoei toda a tua dívida, porque me suplicaste. Não devias tu também ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?”. A partir da fala do rei, o que se esperava do servo? Assim como foi plenamente perdoado, desse o passo da misericórdia para com o irmão.

Mateus, recuperando o ensino de Jesus propõe, para sua comunidade, que ela seja, constantemente, multiplicadora do perdão e da misericórdia de Deus.

Chegamos, pois, à conclusão do discurso eclesial, com o v.35: “É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão”. Em Mt 6,9-13, Jesus ensinara a seus discípulos a rezar. Na oração do discípulo do Reino contém o pedido do perdão: “perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. É um perdão gratuito de Deus, mas que será medido na vida do fiel a partir de seus atos.  Essa atitude do fiel servirá de modelo para atitude de Deus. Isto é profundamente comprometedor! Pois, na oração do Senhor, o discípulo pede ao Pai do Céu, que, no dia do juízo tenha a mesma atitude da pessoa no decorrer de sua história e de seu discipulado-missionário.

A conclusão da parábola toca diretamente o modo de proceder da comunidade. Quem não perdoar o irmão de coração, será tratado pelo Pai do Céus como um devedor desumano. Não caiamos no equívoco. Por maior que seja – no nosso modo de pensar – o perdão concedido ao irmão que errou contra mim ou contra a comunidade, ele ainda será menor que o perdão recebido diariamente do Pai do Céus. Portanto, quando a comunidade se dispõe a perdoar irrestritamente, imita o modo de proceder de Deus, donde provem um perdão sem limites.

Questionemo-nos se nos identificamos com algumas destas personagens da parábola; se com Pedro, que tenta impor ao Mestre sua maneira de ser (pensar) e agir. Interroguemos se, enquanto discípulos, e como comunidade, temos agido segundo o querer de Deus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 9 de setembro de 2023

XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 18,15-20:

 

A liturgia nos introduz na leitura do quarto discurso do Evangelho segundo Mateus, o “Discurso Eclesial” contido em Mt 18,1-35 Através deste ensinamento, Jesus coloca para seus discípulos as balizas para serem reconhecidos como membros da ekklesia, a comunidade do Reino. Esta catequese é dirigida aos discípulos, primeiramente; mas no horizonte da obra, o autor, recuperando o ensinamento do Cristo, aplica-o a vida e ao contexto de sua comunidade, dados os desafios que começam a surgir ao seu interno e ao seu redor. Mateus, de sua parte, apresenta o conteúdo dos ensinamentos contidos no Discurso para lançar luzes para a vida de sua comunidade. O discurso visa levar a comunidade dos discípulos a pautar sua ação pela justiça — modo de ser e de agir— própria do Reino.

No contexto amplo, Mateus narra o início do capítulo mostrando Jesus exortando os discípulos a assumirem a atitude exemplar dos pequeninos, com o gesto metafórico de colocar ao seu meio uma criança, visando coibir a mentalidade e a tentação da superioridade ao interno da comunidade (18,1-5). Em seguida, adverte para o perigo dos escândalos ao interno da comunidade, os quais geram obstáculos aos pequeninos (os recém-iniciados na Fé em Jesus e na vida comunitária, 18,6-9). Em seguida, tem-se a primeira parábola do mestre ao interno do discurso, a da ovelha extraviada, Mt 18,10-14 (ela foi tornada assim pela intransigência das lideranças e dos escândalos ao interno da comunidade).

O trecho bíblico de hoje, Mt 18,15-20, apresenta o texto da chamada “correção comunitária”. Como bom mestre, Jesus propõe uma situação: “Se o teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, mas em particular, à sós contigo! Se ele te ouvir, tu ganhaste o teu irmão” (v.15). O texto contido nos originais, em grego, omite o pronome obliquo de segunda pessoa, “ti”, ficando assim: “se teu irmão pecar”. Qual o sentido deste dito? Se o irmão começar a tomar atitudes incompatíveis com o projeto do Reino, levando uma vida que não condiz com o modo de ser de Jesus. Nesse sentido, o pecado reside no ato de se colocar contrário ao projeto prescrito em Mt 5 – 7, no Sermão da Montanha. Qual o passo a ser dado? A pessoa deve ser chamada, e ser mostrado a ela que o seu modo de vida está incompatível com o a ética do Reino. Podendo, porém, haver dois resultados: positivo e negativo, que acompanharão os próximos passos: o positivo, resulta na conversão (retomada do caminho do discipulado), enquanto o negativo resultará na redução do individuo à categoria de multidão. Algo desta natureza deve estar acontecendo na comunidade do evangelista e, por isso, ele retoma este ensinamento de Jesus.

O termo irmão, utilizado nesta pericope, reflete uma relação comunitária. Outro elemento que nos chama a atenção é o fato de que não é o culposo que deve vir pedir perdão. Mas o irmão ofendido, que deve ir ao encontro do faltoso. O verbo “corrigir”, utilizado na tradução litúrgica pode dar sempre a impressão de superioridade a quem corrige e de inferioridade ao corrigido. O verbo correto é convencer, isto é, fazer  que o irmão tome consciência do erro cometido. Não há espaço para superioridade e inferioridade ao interno da comunidade.

O texto de Mateus mostra que o aconselhamento deve ser feito mais duas vezes, em caso de reação negativa da outra parte, totalizando três vezes. O número três na teologia bíblica simboliza a condição humana. Representam as três dimensões constitutivas da pessoa: alma, espírito e corpo. Sua totalidade. Significa, aqui, a opção incondicional pelo ser humano que a comunidade, constantemente, deverá exercitar. Por isso, Jesus orienta, na segunda vez, a presença de mais duas testemunhas. De modo que o procedimento siga as orientações de Dt 19,15, onde elas dão veracidade ao ato, e, acima de tudo, a questão não seja decidida por uma só pessoa, evitando o risco de que o procedimento ou a decisão venha a ser fruto do autoritarismo do líder.

Os três passos da correção comunitária ensinam o seguinte: A comunidade, e não o arbítrio, o humor ou gostinho das lideranças, é a instância de decisão; ela deve ter os mecanismo para a integração da pessoa no horizonte do projeto de Deus, ainda que deva ela mesma encaminhar o indivíduo para recomeçar o caminho, para refazer o processo do discipulado.

Nas três tentativas, Jesus deixa bem claro que existe a possibilidade da pessoa fechar-se diante do aconselhamento comunitário. A pessoa é livre em sua decisão e o Senhor preserva a liberdade do outro. Nada se impõe. Muito menos a comunidade deverá se colocar de modo impositivo diante do irmão que errou. Por isso, a atitude eclesial não é uma sentença escatológica, isto é, a palavra final na vida da pessoa. A última palavra é sempre a de Deus. O recurso do aconselhamento (correção) comunitário é, acima de tudo, pastoral. Porque ele recoloca a pessoa no grupo da multidão, a fim de busca-la novamente e habilita-la para o seguimento. A atitude da comunidade não é, e não poderá ser, a da exclusão. É contra isso que ela deve lutar, iluminada pelas palavras e atitude de Jesus. Por isso, as palavras contidas no v.17, “Se nem mesmo à Igreja ele ouvir, seja tratado como se fosse um pagão ou um pecador público”, devem ser entendidas nesta perspectiva. Ser declarado como pagão ou pecador, nada mais é que reconhecer que o individuo ainda não deu o passo na fé. Mas ao se tratar de um membro da comunidade que já aderiu à Cristo, ser considerado uma pessoa como esta significa  receber a chance de recomeçar e retomar o caminho. A comunidade deve ser lugar do perdão e espaço da misericórdia e ambiente de recomeço. 

Jesus, novamente, assume um tom rabínico. Tem um ensinamento importante a ser dado: “Em verdade vos digo, tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu” (v.18). Com a mesma expressão utilizada para Pedro (Mt 16,19), transmite à comunidade uma responsabilidade, e não um poder retentor, relacionado ao perdão. O que Jesus quer dizer? Que quem não perdoa retém o perdão de Deus. O perdão de Deus já foi dado, mas se torna eficaz e operativo somente se traduz-se e se transforma em perdão aos irmãos.

Os vv.19-20 concluem: “De novo, eu vos digo: se dois de vós estiverem de acordo na terra sobre qualquer coisa que quiserem pedir, isto vos será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome eu estou ali, no meio deles”. Eles devem ser entendidos a partir do contexto do aconselhamento comunitário. Ao contrário do que costumeiramente se pensa, este dito não alude à importância e a eficácia da oração comunitária. Céu refere-se ao âmbito do Pai. Terra refere-se ao lugar da comunidade cristã. O evangelista quer ensinar que existe uma estreita relação entre o Pai e a comunidade. Ele utiliza o verbo synfoneo (gr. συμφωνηω / συμφωνησωσιν), “estar de acordo”, “agir segundo a mesma sinfonia”. Daqui se origina o termo sinfonia. O que é uma sinfonia? Uma musica, que, a partir de uma partitura é tocada por instrumentos diferentes, num mesmo tom (na diversidade dos instrumentos). Nesse sentido, a comunidade cristã é uma sinfonia, e age como tal, quando toca sob a partitura do amor de Deus que perdoa, acolhe, recupera a pessoa, integra e gera vida. Sua partitura é o Evangelho. Ela deve, então, fazer sua oração para discernir a respeito da decisão a ser tomada em relação ao irmão. Ser consciente de que no meio dela está Jesus. Portanto, é uma oração que se faz na presença do ressuscitado, conduzida por seu Espírito. Assim espera Ele que a comunidade dos discípulos viva e atue na história.

Emerge do texto evangélico de hoje todo o esforço do evangelista em coibir, no interno de sua comunidade, qualquer postura vingativa, revanchista, autoritária, moralista por parte das lideranças comunitárias. Quando essas mentalidades são alimentadas, os indivíduos ficam completamente fragilizados e a comunidade se fragmenta. E passa a se submeter aos caprichos e às vontades das lideranças. Com isso, se distancia da sintonia e da sinfonia do Reino e do Pai. 

Nossas comunidades têm sido espaço de perdão e acolhida? Sob qual sinfonia as nossas comunidades têm se pautado? Tem ela sido fiel à partitura do Reino anunciado e vivido por Jesus, a Palavra de Deus, que alimenta, gera conversão, promove perdão e vida? Nossas vidas e existências são prolongamentos da Comunidade do Reino, a Igreja. Por isso, como o texto se encontra com a vida? Nossas relações tem sido pautadas pela misericórdia, pelo perdão, pelo acolhimento? Nossas vidas tem sido espaços de reconciliação? Que estejamos sob a mesma partitura, sob um único maestro, executando a sinfonia do amor, do perdão e da vida.

Pe. João Paulo Góes Sillio. 

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP.