sábado, 20 de março de 2021

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA QUARESMA - Jo 12,20-33:


 

A liturgia deste quinto domingo do tempo quaresmal apresenta a leitura e a meditação do capítulo 12 do Quarto Evangelho. O leitor-discípulo, se chegou até aqui, está em vias de transição para a segunda parte do evangelho, o assim chamado Livro da Glória. O livro dos sinais, onde se situa o texto de hoje encerrou a apresentação dos sinais de Jesus com a vivificação de Lázaro (Jo 11). O texto que se segue apresenta o discurso sobre a dinamicidade do grão de trigo que, ao cair na terra, deve “morrer”, a fim de frutificar.

A perícope de Jo 12,20-33 encontra-se imediatamente após a entrada de Jesus em Jerusalém (Jo 12,12-19). Dentre a multidão que já aguardava a sua vinda para a festa estavam alguns gregos. Mas para entender a entrada destas personagens na narrativa, se faz necessário retomar os versículos anteriores, que concluem a cena da entrada na cidade santa. Os fariseus, que assistiam a recepção calorosa a Jesus comentam entre si, no v.19, “Estais vendo que nada conseguis? O mundo se foi atrás dele”. No vocabulário do Evangelho segundo João, o termo “mundo” refere-se à realidade, a história, que pode assumir uma atitude contrária ao projeto de Deus. Em outras palavras, uma realidade que se encontra em oposição à Deus e, que, ao interno da narrativa vai sendo chamada a fazer uma opção em favor de Jesus. O mundo que vai atrás de Jesus é simbolizado pelos gregos que buscam vê-lo. Todavia, pode ainda indicar, no horizonte da comunidade joanina, a sua composição, pois o tema dos estrangeiros da diáspora já tinha sido frisado em 7,35; 10,16 e 11,51-52. Foi entre estes que cresceu a comunidade de João.

O v.21 informa que aqueles gregos se aproximaram de Filipe, e disseram que queriam ver Jesus. Ele conversa com André e os levam até o mestre. Então, o v.23 traz uma declaração solene de Jesus: “Chegou a Hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”. Os gregos, ao ouvirem isso pensam que chegaram na hora certa: o Filho do Homem vai aparecer na terra com a glória que recebe de Deus (cf. Jo 1,51). Com um solene “Amém, amém (Em verdade...)”, que tem a função de introduzir um ensinamento importante de Jesus para seus discípulos (geralmente uma revelação), Ele lhes diz outra coisa. Ele usa da dinamicidade do grão de trigo, que cai na terra e deve passar pela “metamorfose” (a transfiguração) de um estado para outro, isto é, “morrer” enquanto semente para frutificar (viver). O grão de trigo serve de metáfora ou símbolo para que Jesus possa atingir seus interlocutores. Banho de água fria? Vão para ver o Filho do Homem poderoso e acabam escutando uma metáfora-ensinamento sobre vida e morte!

Todavia, o autor do evangelho pretende chamar a atenção de sua comunidade para a realidade de que a manifestação da Glória do Filho do Homem (tão esperada e preparada pelo catequista bíblico) não será um espetáculo triunfalista, mas um mistério de morte e vida, perpassado pela plenitude da vida de Deus que despontará em Jesus. Ora, Jesus quer dizer que, do dom de sua própria vida neste mundo brotará o fruto que Deus espera, o fruto do amor fraterno (cf. 15,8), que refaz todo o horizonte da história, da vida e das relações.

No v.25, Jesus continua seu discurso, afirmado que “Quem ama sua vida (lit. alma) perde-a, e quem odeia sua vida neste mundo guarda-a para a vida eterna”. O texto original o termo alma (gr. psyche), e o termo odiar. Eles devem ser bem compreendidos. Na linguagem do Quarto Evangelho, “alma” significa vida física, biológica, psicológica e material. E o verbo odiar, na verdade, é o contrário de preferir, no vocabulário semítico. Este versículo deve ser entendido assim: quem se apega à sua vida perde-a; mas quem não faz conta de sua vida neste mundo, há de guardá-la para a vida [da era] eterna. Ninguém deve odiar sua vida, que é dom de Deus, mas preferir em sua vida, a Vida que Deus doa (em Jesus). Quando o discípulo de Jesus acolhe em sua vida a Vida que Deus comunica, então essa vida do discípulo dá um salto qualitativo, que é a vida do “eon (era)” eterno.

Como, então, preferir a vida (da era) eterna? O Jesus joanino responde esta pergunta, modificando um tema presente nos evangelhos sinóticos, o seguimento. Se em Mt e Mc o tema do seguimento ao Filho do Homem se dá através do seguimento a Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir, no Quarto Evangelho o autor opera uma mudança significativa: o seguimento é serviço à Jesus. O Seguimento transforma-se em diaconia. 

No entanto, quando Jesus fala de serviço a ele, não está se referindo ao serviço a um individuo privado, mas à sua Comunidade, porque o Jesus joanino não se separa de sua comunidade. Então, o serviço a Jesus consiste no serviço à comunidade que ele reuniu. Quem for fiel à diaconia de Jesus na sua comunidade se encontrará aí, onde Ele está.

Jesus declara sentir-se angustiado. João não tem medo de mostrá-lo em sua humanidade. Mas, como é próprio do autor, faz questão de mostra-lo como senhor da situação. Ninguém o tira de sua paz e de sua autonomia. O que ele faz, é por si mesmo que o faz. O Jesus joanino não é uma vítima das circunstâncias. Isso virá a tona com toda a sua força na narrativa da paixão e morte. Por isso, o evangelista recorda-se do dito de Jesus: “Mas foi precisamente para esta hora que eu vim” (v.27).

Clama, pois, ao Deus que chama de Pai: “Pai, glorifica o teu nome!” Em outras palavras, “mostra a tua glória”. Ouve-se uma voz. O próprio Pai entra em cena e diz, que glorificou seu nome, e o fará novamente. Para João, Deus glorificou seu nome em todo desenrolar da história da salvação e, sobretudo, nas obras que Jesus realizou. E o fará novamente. Quando?

O final do texto de hoje revela esse momento. A melhor explicação para essa glorificação é o v.33: “Quando eu for elevado (enaltecido) da terra, atrairei todos a mim”. O Enaltecimento de que o Jesus joanino fala é, na verdade, a maneira pela qual morrerá: a Cruz. Ali, na crucificação, ou melhor, no Crucificado, o Pai revelará todo o seu poder; a sua Glória. Ela não é algo que vem depois da cruz; ela está na cruz como revelação do amor de Deus em seu Filho, revelação de seu Ser que é Amor. Amor que vai até às últimas consequências.

O Texto é um espelho para a vida! No começo desta narrativa, gregos que peregrinavam em Jerusalém por ocasião da festa da Pascoa quiseram ver Jesus, movidos pelos sinais que ele realizava, e principalmente devido ao (último?) sinal realizado por ele, a vivificação de seu amigo Lázaro. No entanto, acabaram vendo (fazendo experiência) e ouvindo outra coisa, um discurso acerca da Hora do enaltecimento de Jesus. Esperavam um mega show ou uma demonstração fabulosa de (super)poder, mas se depararam com a “in-pontência” do enaltecimento ignominioso e fracassado da cruz. Acabam vendo um Jesus que lhes mostra o Serviço (diaconia) a Ele, e, por conseguinte, à sua comunidade, ao invés do poder, do domínio e da submissão.

É importante que nos questionemos: 1) Que Jesus eu procuro (e quero) ver (fazer experiência)? O Jesus do espetáculo, da “emoção”, da prosperidade, do “passe de mágicas”? Este não é o Jesus do Evangelho! Contudo, se mesmo assim se insistir procurar estas facetas de um Jesus “popstar” ou da “moda”, ele poderá muito facilmente ser encontrado nos púlpitos e nos altares convertidos em palcos ou picadeiros. 2) A realidade de um Jesus servo e suspenso numa cruz é uma imagem fácil de ser assimilada, ou O preferimos todo resplandecente e triunfante? 3) Que imagem de Jesus nossas comunidades tem oferecido ao que pedem para vê-lo?

O tempo quaresmal é marcado fortemente pela temática da conversão. Mas, além de uma conversão – mudança de mentalidade – para Deus e Jesus, se faz necessário e urgente a conversão da imagem que se fez ou se experimentou de Deus em Jesus. Assimilar o mistério de Sua vida que passa pela dinamicidade de um grão de trigo que cai na terra e morre para frutificar. 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP

sexta-feira, 12 de março de 2021

IV DOMINGO DA QUARESMA - Jo 3,14-21:


O quarto domingo do tempo quaresmal continua a leitura do evangelho joanino. O texto litúrgico proposto para a meditação eclesial é retirado de Jo 3,14-21. Para compreendê-lo, se faz necessário contextualizá-lo no horizonte da narrativa. O capítulo terceiro situa-se imediatamente após o primeiro sinal realizado por Jesus, em Caná, e depois das palavras ditas contra o templo. Ambos revelam e atestam Jesus como a novidade de Deus na história. Neste capítulo terceiro, Jesus entabula um diálogo com um certo Nicodemos, mestre em Israel, chefe dos fariseus e versado nas Escrituras. Muitos elementos apresentados pelo evangelista estão carregados de simbologia e tem a intenção de conduzir o leitor-discípulo para esta novidade presente em Jesus.

Nicodemos vai encontrar-se com Jesus a noite. A cronologia apresentada pelo evangelista é importante. A noite, para o Quarto Evangelho, é o período cronológico que simboliza as trevas. Trevas e Luz desempenha um papel importante ao interno de toda a narrativa. Para João, a Luz é trazida por Jesus, o qual ilumina – insere no âmbito e na realidade de Deus – a pessoa que se decide por Seu projeto de vida; que adere a Ele. Todavia, era no período noturno que os rabinos tinham o costume de rezar, estudar, ler e meditar a Palavra de Deus – a Torá. Era uma hora propícia em que podiam interiorizar a mensagem divina contida na Palavra. Por exemplo, nos Salmos, encontramos constantemente o salmista que reza, se levanta pela noite para meditar a Palavra. Também Jesus é apresentado, constantemente nos evangelhos, durante a noite, em oração ao Pai. 

Para o homem e a mulher, a noite é, também, o ambiente em que emergem as interrogações e as inquietações mais profundas da existência. Todos aqueles questionamentos que, durante o dia, foram sufocados pelas preocupações cotidianas. Nesse sentido, a noite pode ter sua conotação negativa de uma realidade que precisa ser iluminada (liberada das trevas; de tudo o que é oposição à Deus), mas é, também, uma ocasião propícia para se fazer a experiência com Deus e sua Palavra. Estas duas compreensões não podem ser perdidas do horizonte da leitura e da meditação do texto.

Ora, Nicodemos era um rabino, pertencia ao grupo dos fariseus, um rigoroso observante da Lei, um chefe dos judeus e um mestre em Israel. Ele sentiu-se provocado pelo gesto de Jesus no templo, e o interpretara corretamente: foi um gesto profético. Por isso, quis entender melhor qual a mensagem contida naquela atitude. Não seria certo imaginar que todos os fariseus tenham sentido raiva diante do ocorrido no templo. Entre eles existiam os que viviam uma religiosidade sincera e, que, diante do gesto desconcertante de Jesus no Templo se puseram pensativos. Nicodemos é uma destas pessoas que se deixaram interrogar pelo acontecido. Por isso, ele é o símbolo do discípulo que está começando seu processo de adesão e seguimento à Jesus, e que precisa ser, por isso, iluminado. Ele é, pois, símbolo daquilo que é velho e que necessita ser superado, elevado a um novo sentido, ou mesmo abolido.

Agora é possível situar o diálogo entre Jesus e Nicodemos, o qual está mais para uma homilia (quer seja de Jesus mesmo ou de João). No v.14, Jesus retoma um texto de Nm 21,8, a narrativa da serpente de bronze confeccionada e elevada sobre uma haste (ou estandarte), que curava o povo das investidas das serpentes, durante a caminhada no deserto. “Assim como Moises elevara uma serpente de bronze para salvar o povo, é necessário que o Filho do homem seja elevado”. Palavras muito enigmáticas, que poderiam, inclusive, fazer com que Nicodemos deixasse a conversa. O Filho do Homem é uma figura simbólica presente na literatura sapiencial e apocalíptica. É aquele – que sendo uma figura humana – se põe a realizar o querer de Deus na história (Dn 7).

João coloca na boca de Jesus um verbo muito importante: “levantar”. Mais precisamente, “enaltecido” (gr. ὑψωθῆναι / ypsothínai). O Quarto Evangelho prepara o seu leitor-discípulo para este momento da vida e obra de Jesus, que é o acontecimento da “sua hora”. Esta, trata-se da revelação da glória – da presença -  de Deus em Jesus. Através de seu enaltecimento, Ele revela a presença do Pai, e, este, por sua vez, revela-se todo no Filho. Para João, esta elevação se dá na hora da Cruz.

Esse Filho do Homem é Jesus Crucificado. Sua Cruz é seu enaltecimento. Ora, as coisas do alto das quais Ele fala, referem-se ao seu próprio enaltecimento, que mostra o agir e o revelar-se de Deus. A serpente de bronze levantada prefigura, nesse sentido, o enaltecimento (a elevação) de Jesus, na Cruz. No texto de Nm 21,8, aqueles que olhavam para a serpente, ficavam curados. Na intenção do evangelista, os que dirigem o olhar com fé para Jesus enaltecido na cruz, possuem a vida eterna. 

Olhar (ver), no sentido bíblico significa a capacidade de se estabelecer uma experiência relacional com Deus. Este “ver” indica a atitude da adesão, da decisão, da opção que o fiel-leitor e discípulo faz em relação à Jesus. Adentra numa qualidade de vida, que é a vida do âmbito de Deus. Uma vida que não perece mesmo diante da realidade da morte. O termo (e a realidade) "vida", ao interno do evangelho joanino, substitui o termo Reino de Deus.

Os vv.16-21 comentam os vv. 14-15, porém com uma novidade. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (hbr. yahid), “o imensamente querido”). O catequista pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus amou tanto a humanidade, que deu seu Filho unigênito (o seu imensamente querido), para salvá-la. Uma constatação importante: o verbo usado não é “entregou”, mas “doou” (gr. ἔδωκεν, δίδωμι / edoken, didomein). Deus não enviou Jesus especificamente para sofrer e morrer; não o entregou para que pagasse até a última gota de sangue os pecados da história. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue. Ou seja, a salvação que o Filho dado pelo Pai garante à humanidade é a possibilidade – em efeito – de se tomar parte da vida mesma de Deus, trazida e apresentada na novidade que é Jesus de Nazaré.

Deus doa o Seu Filho para que a humanidade, assimilando o sentido e a plenitude de Sua vida (missão e obra), seja recolocada no Seu horizonte divino. A vida do Filho é, nesse sentido, exemplaridade e modelo para o discípulo, através da qual poderá tomar parte da vida divina, dom gratuito de Deus.

O v.18 aprofunda o sentido do verbo “julgar/condenar” (v.17). Aquele que aceita esse Dom, que na fé adere a Jesus, não é condenado por Ele. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. Isso não depende da vontade de Jesus, mas é a consequência da opção do discípulo. Mas João não está falando de pessoas que nunca ouviram falar do Cristo (quer seja naquela época ou hoje). Se dirige àqueles que já conhecem a mensagem cristã. O versículo dezoito tem a finalidade de induzir o leitor-ouvinte a uma pergunta: “vocês comprometem as suas vidas a este Jesus que vocês conheceram como Dom e como amor de Deus?” É a estes que é dirigido o julgamento e a autocondenação.

Diante do espelho do texto, emergem algumas perguntas. 1) Com quais personagens nos identificamos: com Nicodemos, que ainda não fez sua opção/decisão por Jesus, ou por aqueles que aderiram ao Dom de Deus, em Jesus de Nazaré, Senhor e Cristo? 2) Temos acolhido, de fato, a Jesus de Nazaré como Dom por excelência de Deus em nossas vidas? 3) Em nosso discipulado-seguimento a Jesus, em quais horas de nossas vidas nos dirigimos à Jesus para ter com ele, durante a noite (na treva da escuridão, da indecisão, do descompromisso, do medo, da rejeição ao seu projeto) ou na hora da Luz (da decisão, da verdade, da fidelidade e do Amor a ele ao irmão)? 4) É tempo de conversão (mudança de mentalidade). Por isso, pelo que tenho me decido: a novidade do Dom de Deus em Jesus, ou os velhos e superáveis sistemas? 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP. 



 

sábado, 6 de março de 2021

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA QUARESMA - Jo 2,13-25:

 


O Quarto Evangelho é constituído por duas partes: o Livro dos Sinais, que compreendem os capítulos 1,28 – 12,51, através dos quais o catequista João trata de animar a vida da sua comunidade renovando-a na adesão à Jesus, e, ao mesmo tempo ensinando aos que estão dando os passos na fé acerca da identidade de seu Senhor. Os sinais possuem a função catequética de apontar para uma realidade totalmente superior. Eles atuam como símbolos, ou seja, através de seu dinamismo simbólico unem duas realidades. Eles não têm fundamento em si, mas direcionam o olhar tanto dos discípulos quanto dos iniciados para quem Jesus é, a fim de optarem pelo sentido de sua vida. Dos sinais, eles são chamados a dar o passo para a contemplação da “hora” de Jesus (preparada ao longo do Livro dos Sinais), a fim de fazerem a experiência com a sua Glória. Por isso, a segunda parte da catequese joanina é delimitada como Livro da Glória.

A perícope litúrgica deste III Domingo da Quaresma apresenta o texto de Jo 2,13-25, que trata de apresentar a Jesus como a novidade de Deus agindo na história, através da superação das instituições do judaísmo antigo. O autor, através deste capítulo segundo da catequese joanina, pretende ensinar e transmitir aos seus que a novidade de Deus reside em Jesus.

O contexto imediato da narrativa é aquele após as núpcias de Caná, onde Jesus havia revelado o vinho novo; o vinho das núpcias messiânicas de Deus e da humanidade. Em seguida, Ele sobe à Jerusalém. A cena que João descreve caberia melhor ao final do escrito (cf. Mc 11). Mas para a finalidade de sua catequese, ele o desloca para o início de seu evangelho. Contemplemos a cena.

“No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados” (v.13). Jesus vai ao Templo por ocasião da primeira páscoa de seu povo narrada pelo Quarto Evangelho, e lá se depara com uma desigualdade. Vê bois, ovelhas e pombas. Animais para o sacrifício. Ora, os bois e as ovelhas eram destinados a gente rica; as pombas, eram matéria de sacrifício para os pobres. Depara-se com uma religiosidade promotora, naquele contexto, de desigualdade e segregação. Vê também os cambistas, para a troca de moedas. 

Ao interno do templo de Jerusalém só se podia usar o dinheiro antigo, do tempo pré-exílico, por não possuir nenhuma imagem (efigie) gravada nele, porque a Lei proibia quaisquer imagens que pudessem ser associadas à Deus, ou mesmo que apresentassem divindades pagãs, contrárias a fé judaica. Por isso, o dinheiro romano era trocado dentro templo. Ora, ofertar uma moeda na qual se vinha cunhada a expressão “Divus Caesar” sob a figura do imperador não ficava nada bem. Aquela situação provocava uma animosidade nos Judeus do interior, contra o regime do templo. Talvez aquilo que Jesus fará se encontre dentro da perspectiva desta animosidade contra o templo. 

João narra este episódio com um certo colorido. “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (v.15). Neste versículo, o autor aponta um pormenor especial: o chicote de corda e os animais expulsos. Esta característica não se encontra nos evangelhos sinóticos. Muito provavelmente, o evangelista conhecia o relatos de Marcos.

Uma constatação importante: nos evangelhos sinóticos (Mc, Mt e Lc) a ira de Jesus se desencadeia contra o comercio e não contra os animais dos sacrifícios. E aí está a diferença característica de João, em relação aos Sinóticos: o detalhe da expulsão dos animais para sacrifício. Ora, ele usa o chicote porque tem que expulsar os animais. A intenção do evangelista é outra: ele acrescenta este detalhe da expulsão dos animais a véspera da primeira pascoa para, na verdade, mostrar que os sacrifícios do templo ficam impossibilitados, abolidos e superados. Por que?

O evangelista João, em sua proposta catequética, trabalha com o esquema da superação/abolição de todo o sistema levítico cultual do judaísmo dos anos 30 d.C (mas também, numa fusão de horizontes com tempo da comunidade, nos anos 90). Muito importante: João, o evangelista, trata da religiosidade (práticas, preceitos, sistemas), não a religião, que fique bem claro isso. Na perspectiva do Quarto Evangelho, Jesus supera e aboli a lei de Moisés e as práticas de culto. Estas, conforme a narrativa anterior das núpcias de Caná, são caducas e já não servem mais para comunicar ao homem a vida de Deus e a possibilidade de se fazer uma experiência com Ele. Agora, segundo João, é a vida, a obra e Palavra de Jesus que revelam a novidade (escatológica) da presença (Glória) de Deus em meio a história e realidade.

O acontecido no templo poderá combinar com aquilo que ele dirá para a samaritana a beira do poço (Jo 4), que nem em Garizim, tampouco em Jerusalém, se adorará o Pai, mas na novidade escatológica que que se apresenta em Jesus de Nazaré. Conforme o Sl 49 (50), Deus está farto dos sacrifícios de bois e ovelhas, ou mesmo em Os 6,6, “Hesed (misericórdia) quero, não sacrifício”. Mas quando se trata dos vendedores de pombas, os que vendiam para o povo simples e pobre, Jesus diz com mansidão no v.16, “Tirai isto daqui, não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio” (cf, Zc e Ml).

Ora, Jesus não veio para reformar; não veio para purificar. Mas veio para eliminar as situações injustas e os sistemas de morte, os quais não revelavam mais a presença e amor de Deus. Na perspectiva de João, Jesus propõe um novo modo de relacionar-se com Deus. Na nova relação que Ele inaugura com o Pai, não há mais necessidade deste sistema religioso. O Cristo mostra um Deus completamente diferente: um Deus que não pede, mas doa; um Pai que não suga ou absorve a força de vida de seus filhos, mas que comunica a eles o Seu dinamismo vital. O catequista quer ensinar, portanto, que esta é a novidade comunicada por Jesus. O Deus que ele chama de Pai não está distante, nos céus, muito menos preso ao interno do Templo, mas presente em Sua pessoa, existência, vida e obra. O novo templo de Deus é Jesus. Mais ainda, se o novo Templo de Deus é a vida de seu Filho encarnado na história, a humanidade toda, através de sua carne, se torna o a morada de Deus. Todavia, isto é uma afronta aos líderes religiosos, ao mesmo tempo que um perigo para os que detém o poder religioso e social. Eles não querem sair perdendo. Com isso, não se pretende abolir e eliminar a dimensão da vivência comunitária da Fé, mas o leitor-discípulo que toma contato com o texto de João deve sempre crescer na consciência diante das coisas, situações e sistemas contrários ao projeto de Deus, que podem ser sempre reproduzidos ao interno da comunidade cristã, podendo gerar o distanciamento e a desconfiguração dela do projeto de Jesus. Descer o chicote naquilo que pode representar obstáculo ao interno da vida do discípulo e da comunidade. E não a eliminação da comunidade e de sua vida e expressão da Fé.

No v.18, os judeus entram em cena: “Que sinal nos mostras para agir assim?” Evidentemente, a palavra Sinal, alude a um sinal de autoridade, como Moisés (sinais no Egito) e os profetas. Os sinais eram as credenciais. A credencial de Jesus é bem dura. "Destruí, este Templo, e em três dias o levantarei” (v.19). Interessante, Jesus não mostra aquilo que já fez, mas aponta para aquilo que vai fazer. Outra nota importante, o Jesus joanino não diz que destruirá todo o templo (com a esplanada e adjacências), mas, literalmente, “este santuário” (gr. ναός / naós). O santuário possuía duas câmaras: o santo e o Santo dos Santos. Voltemos ao dito de Jesus, precisamente ao verbo “erguer”, e não “construir”. O verbo “erguer” (gr. ἐγείρω / egheíro) aplica-se ao Seu corpo humano.  A expressão “eu o reerguerei em três dias” significaria a ressurreição de Jesus no terceiro dia.

“Os judeus disseram: Quarenta e seis anos foram precisos para a construção deste santuário e tu o levantarás em três dias?” As autoridades judaicas pensaram que ele se referiria à construção de pedra, ornada por Herodes, o Grande, uma vez que já não se tratava mais do templo de Salomão, mas o de Zorobabel, concluído pelo tetrarca. O Evangelista gosta de mostrar a dificuldade das lideranças do povo em entender o que Jesus fala. Para eles, a dificuldade é sinal de rejeição e oposição. Tanto os adversários quanto os seguidores de Jesus ainda permanecem na superfície do dito e das palavras e pensam em termos meramente materiais. Para os discípulos e para os que estão iniciando os passos na fé, a dificuldade se deve ao fato de que eles ainda estão no começo e tem um processo todo pela frente. Por isso, enquanto narrador, João acrescenta por conta própria que Jesus falava do Santuário de seu corpo (v.21).

O v.22 é importante para o desfecho deste episódio: “Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele”. Um bom judeu acredita piamente na Escritura e procura nela tudo aquilo que é valioso para crer. João coloca, aqui, em pé de igualdade, as Escrituras judaicas e as palavras de Jesus porque o seu discípulo não apenas acredita nas escrituras de Israel, mas em Suas palavras, como chave de interpretação para elas. A Palavra e a vida vivida de Jesus fazem descobrir o sentido profundo das Escrituras de Israel. A compreensão das escrituras é, assim, pós-pascal, mediante a luz do evento de sua Ressurreição e da força do Espírito. Antes que Jesus tenha realizado sua obra não se pode compreender as escrituras antigas. Somente depois de sua obra, com o auxílio de Seu Espírito, que faz a memória para a comunidade. A ressurreição ilumina todo o sentido da vida de Jesus, e o Espírito do Ressuscitado é quem fará a memória de Sua vida para os seus seguidores, para o leitor-discípulos. Faz sentido, então, no relato joanino, que este episódio se encontre no início da atividade de Jesus, porque ele fornece a chave de compreensão para aquilo que acontecerá. 

O Quarto Evangelho é o evangelho ruminado. Deve ser meditado e relido pela comunidade dos Leitores. O Discípulo-leitor, diante da novidade escatológica apresentada por Jesus, deverá decidir-se: optar pelo sistema levítico-cultual Judaico ou aderir à Jesus e à novidade messiânica-escatológica Nele presentes.

Mas o texto deve despertar algumas provocações. Jesus em sua ação pretende revelar a novidade de Deus agindo através Dele: como acolhemos esta novidade? Através de Seu gesto, Jesus pretende levar à superação/eliminação de todas as situações e sistemas que impendem uma genuína relação de vida e amor entre Deus e o homem: o que precisa ser superado/eliminado na vida do discípulo, que ainda impedem-no aderir plenamente ao projeto de vida de Jesus? Como se encontram as nossas comunidades? Se Jesus aparecesse hoje, às portas de nossas comunidades – católicas ou reformadas – ditas cristãs, como Ele se comportaria diante delas, com o chicote e a ira da indignação por haverem subvertido Seu projeto de vida e de amor, ou as tomaria pela mão e as tornaria sempre mais sua cooperadora na missão? O que necessitaria ser eliminado/superado em nossas comunidades, que não permitem ainda a Vida que o projeto de Deus traz através de Jesus, e não correspondem a Ele?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.