sábado, 19 de fevereiro de 2022

REFLEXÃO PARA O VII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 6,27-38:



A liturgia deste domingo continua a meditação e a leitura do capítulo sexto do evangelho lucano. O ensinamento-sermão da planície já foi meditado na narrativa anterior. Assim, pode-se tomar tranquilamente o v.36: “Sede misericordiosos como o vosso Pai Celeste é misericordioso”, e meditar toda esta perícope a partir dele. Com este dito, Jesus reformula a prescrição contida em Lv 19,2, “Sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. Esse mandamento foi decisivo para a construção do orgulho de Israel. O povo de Deus compreendia a santidade, no AT, como a separação dos outros povos. Jesus inova e supera esta mentalidade através da atitude da Misericórdia.

A misericórdia é o caminho pelo qual Jesus decide pautar a sua missão e sua vida. Mas o que vêm a ser a misericórdia na Bíblia? Misericórdia remete ao Amor fiel que Deus tem pela humanidade, que deve ser o amor que não somente o israelita piedoso, mas toda a pessoa deve exercitar para com o seu próximo. A palavra misericórdia (gr. οἰκτίρμων/oichtirmôn) como Lucas nos apresenta traduz o termo hebraico Hesed (amor). A palavra hebraica Hesed deriva da palavra Rahamim (entranhas, vísceras, estômago). Então, o Amor verdadeiro e fiel de Deus para com a humanidade é aquela atitude que brota das entranhas de Deus mesmo. Assim, a misericórdia não é um sentimento, mas uma atitude em favor do outro. Foi assim que Jesus decidiu viver e pautar sua missão. Segundo Lucas, em Jesus de Nazaré (através de sua vida, pessoa e história) temos acesso à face misericordiosa de Deus. O adverbio de comparação “como” (gr. καθώς/katós) acena para a atitude da imitação. O filho deve imitar o pai no agir. Assim, ser filho significa ser parecido com o pai. Tal é a dinâmica do amor ensinado por Jesus: tornar o ser humano parecido com Deus, sendo bondoso como Ele é.

Lucas conservou o teor original do ensinamento de Jesus, traduzido por Mateus com a conhecida sentença: “Sejam, portanto, perfeitos como é perfeito o seu Pai Celeste” (5,48). A perfeição – no âmbito do texto mateano – é a maneira de amar segundo o modo e com a força do Pai; o estilo e a força que Jesus revela e comunica aos discípulos. Então, ser misericordioso implica em agir segundo a mesma força e estilo (misericórdia) de Jesus e do Pai. Logo, a perfeição que o Pai propõe através de Jesus e propõe para cada um de seus filhos é a atitude da misericórdia.

Mas a quem é destinada esta misericórdia? A todos, responderá o Jesus de Lucas. Agora se pode compreender, com estas lentes da misericórdia, o texto todo. Dos vv.27-28, o mestre orienta seus discípulos amar os inimigos, fazer o bem a quem destila ódio, bendizer quem amaldiçoa; rezar pelos caluniadores. Inimigos, aqui, são aqueles que agem na contramão do projeto de Deus, promovendo o mal. A fala de Jesus não propõe um sentimento genérico de benevolência compreensiva, mas convida a um amor prático, operativo, que tem seu teste de sinceridade na oração diante de Deus, onde não é possível mentir ou fingir amar. Ou seja, aquele que assimilou a proposta de Jesus de ser e assumir a misericórdia de Deus como parâmetro para sua vida, se compromete em agir na contramão da mentalidade do mundo.

No v.29, Jesus toca no tema da violência, do insulto pessoal, do vexame e da injustiça. O discípulo do Reino, que optou por agir pela misericórdia, deve oferecer a outra face. Isso deve ser bem entendido, de modo a não gerar equívocos nem conformismos ou pacifismo vitimizador. Não significa oferecer o rosto para que se bata novamente. Mas responder à violência com a não-violência, e, assim, romper e quebrar esta espiral. Quando o discípulo age assim, ele desmonta o violento, rompendo o elo desta cadeia. Só um amor fiel, criador de novas relações, elimina pela raiz a injustiça das relações humanas.

Emerge, no v.31, a regra de ouro para a vida dos seguidores e seguidoras de Jesus: “O que vós desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a eles”. O evangelista coloca na boca de Jesus, de modo positivo e afirmativo, o que está no AT de modo negativo, “não façais aos outros o que não quereis que outros vos façam” (Tb 4,15). Não basta não fazer o mal, mas é necessário fazer o bem. Nesse sentido o ensinamento de Cristo é mais exigente do que aquele presente na tradição hebraica.

Dos vv.37-38, o Jesus de Lucas orienta seus discípulos: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque, com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos” (vv. 37-38). Ele não está afirmando que o agir humano é critério para o agir de Deus. Antes, é Deus o critério, sobretudo na bondade e no amor, para o agir do homem. Não julgar é o mesmo que não condenar; não condenar remete a atitude de dar crédito ao irmão que erra, apostar no seu futuro e nas suas possibilidades de mudança ou renovação. Nesse sentido, mais uma vez, ele reivindica a coerência de vida. Julgar e condenar não são prerrogativas de nenhum ser humano. Por isso, é no campo das relações com o próximo que os cristãos e cristãs revelam como se relacionam com Deus e como entenderam o Evangelho de Jesus.

Diante do espelho do texto poderíamos nos questionar em sintonia com evangelho do domingo passado: 1) Tenho assimilado o projeto de Jesus que é perpassado pela misericórdia ou tenho vivido de acordo com a mentalidade do anti-reino? 2) A misericórdia do Pai e de Jesus tem performado e pautado meu agir na relação com os outros? 

Oxalá estejamos entre os Benditos e misericordiosos de Deus.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 12 de fevereiro de 2022

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 6,17.20-26

 



A narrativa deste sexto domingo do tempo comum apresenta o sermão da planície em Lucas, que é introduzido pelas Bem-aventuranças, seguidas dos “ais”, as invectivas ou lamentações (advertências). As bem-aventuranças encontram suas raízes na literatura sapiencial, onde predomina o elogio à pessoa justa, a qual segue retamente os caminhos do Senhor. Elas são reconhecidas como a síntese do programa de vida de Jesus, como também seu verdadeiro autorretrato. Já as lamentações são inspiradas na literatura profética. É uma forma de denúncia e reprovação do comportamento de quem cometia injustiças e praticava um culto superficial.

Os Evangelhos apresentam duas versões das Bem-aventuranças, uma contida em Mateus, com um total de oito, e esta forma lucana mais breve, porém com o acréscimo de quatro maldições, que visam denunciar a incoerência daqueles que se dizem discípulos do Reino e de Jesus. Na versão mateana, elas abrem o assim chamado “Discurso Inaugural”, que e se estende até o capítulo sétimo. Ali, este discurso recebe o nome de Sermão da Montanha. Os dois evangelistas utilizaram uma mesma fonte literária, mas os evangelistas as adaptaram conforme suas intenções teológicas e às necessidades de suas respectivas comunidades.

No entanto, diferentemente de Mateus, Lucas prefere Sermão (ou discurso) da Planície. Como dissemos acima, o evangelista dispôs as sentenças de Jesus de acordo com as necessidades de sua comunidade. O que está por detrás deste nome? Justamente uma das finalidades ou temáticas que o terceiro evangelho aborda e explicita: a temática da misericórdia e a da universalidade da salvação. O Evangelho de Lucas é conhecido pelo tema da misericórdia e da abertura da salvação a todos, sem distinção.

Ora, o sermão (ou discurso) se dá na planície, justamente para que o ensino e a pessoa de Jesus pudessem ser acessíveis a todos! Paralíticos, coxos, cegos, e enfermos de toda a sorte não poderiam, segundo a perspectiva lucana, aproximar-se de um lugar elevado. Por isso, o evangelista informa que depois de orar, Jesus desceu da montanha para um lugar plano, e começou a ensinar. A atitude de descer da montanha mostra precisamente a condescendência, o amor e a misericórdia de Deus em Jesus para com a humanidade sofredora, os pobres, enfermos, excluídos; com a gente simples que havia ficado de fora da vivência da fé, por parte das lideranças religiosas daquele tempo inclusive. O Jesus de Lucas é um homem orante. Do começo ao fim de seu evangelho tratará de mostrá-lo em sintonia com o Deus que chama de Pai. Isso significa que o conteúdo do ensinamento de Jesus, bem como sua atitude de descer da montanha e ir ao encontro das pessoas, colocando-se em meio a elas corresponde ao querer do Pai, discernido por Jesus na oração.

O texto de Lc 6,17.20-26 deve ser lido ainda em retrospectiva ao episódio programático da sinagoga de Nazaré (4,16), uma vez que nesta planície, o anúncio da Boa Nova aos pobres também está sendo realizado por Jesus. Literariamente, o texto se desdobra em termos que estão no mesmo campo temático: de pobres, passa para famintos, desdobrando-se para aflitos, até chegar em perseguidos. Estes termos pertencem ao campo semântico dos pobres. 

Se faz necessário compreender esta categoria ao interno do Evangelho de Lucas. São categorias e situações concretas: famintos, aflitos, perseguidos. Isto é, as pessoas que estão embaixo, que dependem dos outros, segundo o sentido originário do termo bíblico anawim, os pobres da terra (pobres de YHWH); os quais são privados de segurança material e social. Já os profetas tinham anunciado a eles a intervenção eficaz de Deus (cf. Is 49,9.13). Os salmistas tinham dado uma voz à massa anônima de oprimidos, aos pobres da terra, pisoteados pelos poderosos (cf. SI 113,7-8; 107,41; 72,2-4.12-14). Agora, como no discurso programático da sinagoga de Nazaré, Jesus diz que chegou o tempo esperado pelos pobres. A esperança e a expectativa deles não foi iludida; Deus está aqui, e agora ele intervém em seu favor. Por isso, eles são “bem-aventur
ados”, felizes.

Não devido à sua condição social precária, mas porque Deus toma a defesa dos pobres, faz justiça a quem está privado dela, oferece uma esperança e um futuro a quem se acha sem futuro e sem esperança a partir da atuação de Jesus. E isto, não porque são melhores que os ricos, mas porque Deus é justo e fiel e, por isso, imerge nas situações da história humana, para fazer saírem delas.

Ora, as bem-aventuranças são a proclamação da subversão dos valores e das situações históricas, iniciadas pela ação salvífica de Deus agora em Jesus. Com efeito são, também, um convite urgente dirigido à comunidade dos discípulos para que se confronte com a alternativa proposta por Jesus: ou com os “pobres” para o reino de Deus, ou com os ricos na ilusão que leva à falência e à projetos, sistemas e situações de morte, contrárias ao projeto de Deus. Depois das bem-aventuranças, não há mais lugar para uma neutralidade ou uma falsa consciência cristã, em face dos ricos e dos pobres.

Nesse sentido, as lamentações introduzidas no texto pelos “ais”, que pertencem ao gênero literário muito presente no AT, na pregação dos profetas, as invectivas. Os “ais” dirigidos aos ricos não são um augúrio abstrato de ruína, nem um juízo para os ricos, mas uma declaração que ao mesmo tempo tem os tons de lamentação e de convite à conversão ou mudança radical. Mas, na intenção de Jesus, são sobretudo uma admoestação para a comunidade cristã a não cair na ilusão e tentação do sucesso fácil e do prestígio (6,26).

Na redação de Lc, os destinatários das bem-aventuranças são os discípulos. Eles partilham a condição dos pobres, porque se expuseram à insegurança e à marginalização social, por serem fiéis ao Filho do Homem, o profeta perseguido como todos os que o precederam (cf. 11,47-51; 13,33-34). Na quarta bem-aventurança (6,22-23), ouve-se o eco das palavras de Jesus sobre a sorte do discípulo que participa do destino do Filho do Homem, representante de todos os perseguidos da história (cf. 9,23-26). Mas a palavra de Jesus se torna atual na vida concreta da comunidade cristã, que experimenta a perseguição e a enfrenta com a audácia e a esperança que brotam da morte e ressurreição de Jesus (cf. At 5,41)

Portanto, nas bem-aventuranças Jesus não abençoa nem consagra a situação dos pobres, dos famintos ou dos aflitos como condição ideal para acolher o reino de Deus, porque seria o mesmo que consagrar a injustiça e a prepotência humana, Não: os pobres são “felizes” porque o reino de Deus pertence a eles, porque enfim a condição de dependência, que os torna famintos e aflitos acabará. Jesus não promete aos pobres torná-los ricos; isso criaria outras multidões de pobres, trocando simplesmente os protagonistas da injustiça e da opressão. Ele promete o “Reino de Deus”, que é a subversão radical da situação presente, geradora de pobreza, dependência e dor.

O evangelho deste domingo funciona como uma advertência e convite para a comunidade e para os discípulos de todos os tempos a não se permitirem estar na contramão do projeto de Deus que se revela em Jesus; para que ela não reproduza os mesmos sistemas de morte que geram ainda mais submissão, dependência e opressão; não caia na indiferença típica dos detentores do poder; ou do sucesso fácil e do prestígio. O discípulo e a comunidade devem ser aqueles que optam fundamentalmente por Cristo e preferencialmente pelos pobres, e colocar-se ao lado deles e retirá-los da condição da pobreza e da marginalização.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 5,1-11:


 

A liturgia de hoje nos insere no capítulo quinto do Evangelho de Lucas. Para compreendê-lo devemos lançar um olhar retrospectivo para o capítulo anterior, precisamente para a cena narrada em Lc 4,16-21, o chamado discurso inaugural de Jesus, na sinagoga de Nazaré. Este discurso é um ensino acerca de sua identidade, e, ao mesmo tempo, um programa de vida assumido por Ele, na obediência ao Pai. É ele o ungido pelo Espírito do Pai para pregar a boa nova aos pobres, proclamar liberdade aos presos e recuperação da visão aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça (ou favorável) do Senhor (Lc 4,18). Jesus assume este programa isaiano como sendo seu. Mas o que Ele assume vale, também, para os discípulos. O que faz e vive o mestre, deverá fazer e viver, igualmente, o discípulo do Reino. Se na experiencia de Nazaré encontra-se o fracasso de Jesus, no texto de hoje nos deparamos com o fracasso e a frustração do discípulo antes mesmo do início da missão. Tanto para Jesus como para o discípulo a Palavra de Deus deve ser seu horizonte.

Agora podemos mirar o horizonte do texto. Os primeiros onze versículos do capítulo quinto do evangelho lucano nos narra a vocação dos primeiros discípulos. O evangelista pode ter reunido e harmonizado outros episódios semelhantes para elaborar esta narrativa, de acordo com os estudiosos do texto. Após a primeira cena, segue o relato da pesca milagrosa, que prepara o momento culminante de toda a narração: o chamamento de Pedro para a nova missão no seguimento a Jesus (5,10b). A ligação entre estes três momentos é constituída pela “palavra” de Jesus. No começo, ele anuncia a “palavra de Deus” ao povo que se amontoa à margem; é por causa da palavra do Senhor que Pedro lança as redes para a pesca novamente, e, ainda motivado pela palavra do mestre que ele deixa tudo juntamente com seus companheiros para segui-lo.

Nos v.1-2, o evangelista situa Jesus entre a multidão, às margens do lago de Genesaré. O lago é um lugar teológico, onde Ele desenvolverá sua missão. Está praticamente apertado pela multidão, a qual tem fome e sede da Palavra de Deus. Lucas descreve que na margem encontravam-se algumas barcas vazias, pois seus donos estavam lavando as redes (também vazias). Mais a diante, Simão Pedro dirá que trabalhara a noite inteira sem resultado. Tal era a situação do povo em volta de Jesus: faminto da Palavra de Deus. O povo está precisando de palavras e ações novas, capazes de reverter a situação em que se encontra. Mais ainda: precisa de uma Palavra que provoque a novidade portadora de vida para todos.

Jesus toma uma decisão, informa-nos o texto. Sobe na embarcação de Simão Pedro e pede-lhe para que se afastem um pouco da margem (v.3). Na verdade, Jesus, ao subir na barca assume a vida e as dificuldades daqueles pescadores que nada pescaram na noite anterior. Assume-lhes o lugar e o fracasso. Todavia, sobe na barca para poder olhar aquela multidão. Olha-la de frente, nos olhos e sentir suas angústias, para comunicar uma Palavra que tem o poder de trazê-la novamente a vida. Sentado, posição do mestre autorizado e verdadeiro, se põe a ensinar. A dar-lhes o pão da Palavra que lhes comunica vida e liberta o povo de suas opressões. O conteúdo deste ensino fica, aqui, oculto. Mas é fato que Jesus ensina a partir da situação em que vive o povo. Por isso, tem a coragem de olhá-lo de frente!

Nos v.4-7, tem-se a narrativa de uma “pesca milagrosa”, iniciada por uma ordem de Jesus a Simão Pedro: “Avancem paras as águas mais profundas e lançai as vossas redes para a pesca”. Pedro objeta, primeiramente, mas, em seguida, acata: “em atenção à sua palavra, vou lançar as redes”. Ele adere à Palavra daquele de Jesus (v. 4). O que teria transformado Simão, especialista em pescaria, fazendo com que voltasse a pescar sob as ordens de quem nunca se deu a essa tarefa? O que orienta a vida de Pedro, a partir daquele momento, é a atenção à Palavra do Mestre, a qual é capaz de mudar radicalmente as situações sofridas em que se encontra o povo. Qual o resultado da confiança na Palavra do Mestre? Precisamente, a mudança ou reversão da situação: as redes se rasgam; superam as expectativas a ponto de uma barca não ser suficiente. A Palavra do mestre  quando levada à sério gera abundância para todos.

Os estudiosos classificam este texto dentro do gênero literário de revelação, que quer transmitir uma mensagem importante. Ora, uma pesca abundante, em pleno dia é contra os costumes normais em que aquela atividade era realizada. Por isso, o relato indica que o texto tem mais uma lição para dar, do que uma história a contar. Seu objetivo, portanto, não é o de ser uma crônica literal dos fatos. Na verdade, esta cena, ilustrada pelas redes que estão a ponto de se romper, e as barcas a ponto de afundar, preparam o encontro decisivo entre Jesus e pescador de Betsaida. Simão reconhece-se, através do espanto, pecador. Este reconhecimento é mais um sinal que indica que o texto pertence ao gênero de revelação. É a atitude das personagens diante da manifestação de Deus. Simão reconhece no mestre que deu a ordem de lançar as redes, o Senhor. Importa salientar que, neste momento, Simão Pedro chama Jesus com o título cristológico atribuído à sua condição de ressuscitado, Kyrios (gr. κύριος), Senhor.  Nesse sentido, a pesca se torna um sinal precursor da vitória de Cristo sobre a morte. É dela que surge a abundância de vida para todos.

Jesus, com uma nova palavra supera o distanciamento e o espanto de Pedro. Ele não se aparta das pessoas, mesmo quando elas se tornam conscientes de suas limitações e “indignidade”, pelo contrário. A partir do momento em que a pessoa acolhe Sua Palavra libertadora, Ele a associa ao Seu ministério, vida e missão: “De agora em diante serás pescador de homens” (v.10). 

Compreenda-se o seguinte: a rigor, a pesca lesa somente ao peixe. Porque a água é o seu ambiente vital. Fora dela, o peixe asfixia-se e morre. Para o homem, a água é fonte de vida, mas também é lugar de morte. Ao contrário do peixe, o homem não pode viver na água. Ao incumbir Simão Pedro e os demais da tarefa de serem “Pescadores de Homens”, Jesus ordena-lhes retirar os homens de todas as situações de morte que possam existir, e fazer crescer neles a vida. Porque o mar (ou o oceano) é símbolo para todas as forças contrárias ao projeto de Deus; metáfora para as forças de morte e de opressão, no mundo bíblico. Lucas modificou a expressão de Mc 1,17b, “pescadores de homens”, substituindo-a por um vocábulo grego que ele retomou da tradução grega do AT, que significa “pegar vivos” ou “pegar para a vida”. Quer dar a entender que Pedro e os demais terão a tarefa de “pescar” as pessoas para a vida. Ressignificando-as para o projeto de Vida plena, através da Palavra que pode assumir a figura da rede lançada na pesca. Com efeito, será a Palavra de Jesus a garantia da eficácia da missão.

Preso a esta palavra que a vida de Simão Pedro e dos demais discípulos se torna outra coisa. E para nós, não é diferente: é quando nos amarramos com confiança à Palavra do Senhor que a vida se transforma. É quando confiamos no risco de sua Palavra, quando depois de termos limpado nossas redes o Senhor nos manda lançá-las uma vez mais; quando depois das noites das nossas humanas pescas fracassadas Ele nos manda arriscar; quando não vemos “como” e o Senhor nos diz uma palavra na direção oposta à que não imaginávamos ou não queríamos, e, mesmo assim, avançamos e acreditamos é ali que a nossa vida se transforma.

Através da narrativa de hoje o evangelista pretende ensinar as condições do discipulado: dar atenção às palavras do Mestre e deixar tudo, para poder lançar as redes em águas profundas. Mas, como sempre, o texto evangélico nos questiona, 1) quais seriam as águas profundas para as quais o Senhor, hoje, nos envia? 2) Tenho sido atento à Palavra do Senhor, ou prefiro meus próprios esquemas e mecanismos?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP