A liturgia deste domingo continua a meditação e a leitura do capítulo sexto do evangelho lucano. O ensinamento-sermão da planície já foi meditado na narrativa anterior. Assim, pode-se tomar tranquilamente o v.36: “Sede misericordiosos como o vosso Pai Celeste é misericordioso”, e meditar toda esta perícope a partir dele. Com este dito, Jesus reformula a prescrição contida em Lv 19,2, “Sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. Esse mandamento foi decisivo para a construção do orgulho de Israel. O povo de Deus compreendia a santidade, no AT, como a separação dos outros povos. Jesus inova e supera esta mentalidade através da atitude da Misericórdia.
A misericórdia é o caminho pelo qual Jesus decide pautar a sua missão e sua vida. Mas o que vêm a ser a misericórdia na Bíblia? Misericórdia remete ao Amor fiel que Deus tem pela humanidade, que deve ser o amor que não somente o israelita piedoso, mas toda a pessoa deve exercitar para com o seu próximo. A palavra misericórdia (gr. οἰκτίρμων/oichtirmôn) como Lucas nos apresenta traduz o termo hebraico Hesed (amor). A palavra hebraica Hesed deriva da palavra Rahamim (entranhas, vísceras, estômago). Então, o Amor verdadeiro e fiel de Deus para com a humanidade é aquela atitude que brota das entranhas de Deus mesmo. Assim, a misericórdia não é um sentimento, mas uma atitude em favor do outro. Foi assim que Jesus decidiu viver e pautar sua missão. Segundo Lucas, em Jesus de Nazaré (através de sua vida, pessoa e história) temos acesso à face misericordiosa de Deus. O adverbio de comparação “como” (gr. καθώς/katós) acena para a atitude da imitação. O filho deve imitar o pai no agir. Assim, ser filho significa ser parecido com o pai. Tal é a dinâmica do amor ensinado por Jesus: tornar o ser humano parecido com Deus, sendo bondoso como Ele é.
Lucas conservou o teor original do ensinamento de Jesus, traduzido por Mateus com a conhecida sentença: “Sejam, portanto, perfeitos como é perfeito o seu Pai Celeste” (5,48). A perfeição – no âmbito do texto mateano – é a maneira de amar segundo o modo e com a força do Pai; o estilo e a força que Jesus revela e comunica aos discípulos. Então, ser misericordioso implica em agir segundo a mesma força e estilo (misericórdia) de Jesus e do Pai. Logo, a perfeição que o Pai propõe através de Jesus e propõe para cada um de seus filhos é a atitude da misericórdia.
Mas a quem é destinada esta misericórdia? A todos, responderá o Jesus de Lucas. Agora se pode compreender, com estas lentes da misericórdia, o texto todo. Dos vv.27-28, o mestre orienta seus discípulos amar os inimigos, fazer o bem a quem destila ódio, bendizer quem amaldiçoa; rezar pelos caluniadores. Inimigos, aqui, são aqueles que agem na contramão do projeto de Deus, promovendo o mal. A fala de Jesus não propõe um sentimento genérico de benevolência compreensiva, mas convida a um amor prático, operativo, que tem seu teste de sinceridade na oração diante de Deus, onde não é possível mentir ou fingir amar. Ou seja, aquele que assimilou a proposta de Jesus de ser e assumir a misericórdia de Deus como parâmetro para sua vida, se compromete em agir na contramão da mentalidade do mundo.
No v.29, Jesus toca no tema da violência, do insulto pessoal, do vexame e da injustiça. O discípulo do Reino, que optou por agir pela misericórdia, deve oferecer a outra face. Isso deve ser bem entendido, de modo a não gerar equívocos nem conformismos ou pacifismo vitimizador. Não significa oferecer o rosto para que se bata novamente. Mas responder à violência com a não-violência, e, assim, romper e quebrar esta espiral. Quando o discípulo age assim, ele desmonta o violento, rompendo o elo desta cadeia. Só um amor fiel, criador de novas relações, elimina pela raiz a injustiça das relações humanas.
Emerge, no v.31, a regra de ouro para a
vida dos seguidores e seguidoras de Jesus: “O que vós desejais que os outros
vos façam, fazei-o também vós a eles”. O evangelista coloca na boca de
Jesus, de modo positivo e afirmativo, o que está no AT de modo negativo, “não
façais aos outros o que não quereis que outros vos façam” (Tb 4,15). Não
basta não fazer o mal, mas é necessário fazer o bem. Nesse sentido o
ensinamento de Cristo é mais exigente do que aquele presente na tradição
hebraica.
Dos vv.37-38, o Jesus de Lucas orienta seus discípulos: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo; porque, com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos” (vv. 37-38). Ele não está afirmando que o agir humano é critério para o agir de Deus. Antes, é Deus o critério, sobretudo na bondade e no amor, para o agir do homem. Não julgar é o mesmo que não condenar; não condenar remete a atitude de dar crédito ao irmão que erra, apostar no seu futuro e nas suas possibilidades de mudança ou renovação. Nesse sentido, mais uma vez, ele reivindica a coerência de vida. Julgar e condenar não são prerrogativas de nenhum ser humano. Por isso, é no campo das relações com o próximo que os cristãos e cristãs revelam como se relacionam com Deus e como entenderam o Evangelho de Jesus.
Diante do espelho do texto poderíamos nos questionar em sintonia com evangelho do domingo passado: 1) Tenho assimilado o projeto de Jesus que é perpassado pela misericórdia ou tenho vivido de acordo com a mentalidade do anti-reino? 2) A misericórdia do Pai e de Jesus tem performado e pautado meu agir na relação com os outros?
Oxalá estejamos entre os Benditos e misericordiosos de Deus.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese
de Botucatu-SP.