sábado, 31 de julho de 2021

REFLEXÃO PARA O XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Jo 6,24-35:


O texto para a liturgia deste décimo oitavo domingo do tempo comum, é Jo 6,24-35. Ele situa-se logo após a narrativa da travessia do mar (Jo 6,16-23), que na verdade pode muito bem ser uma continuidade do relato do sinal da condivisão dos pães, narrado na semana passada. Jesus realizou o sinal profético da partilha, o qual prefigura a doação de sua própria vida através da entrega na Cruz. Todavia, a partilha provocada por Ele deve ser assimilada pelos discípulos, a fim de que possam gerir e resolver a partir de dentro da comunidade os problemas e os obstáculos que impendem que a vida plena aconteça. É o que pretende sugerir também o relato evangélico do domingo passado, ao apresentar o menininho que traz consigo cinco pães e dois peixes e os apresenta a Jesus. Assim que Ele realizou o sinal, a multidão decide-se por levar e proclamá-lo rei. Consciente de que isso pode ser prejudicial para sua missão, se retira para o monte com seus discípulos para a oração.

O narrador informa que, a multidão, maravilhada com o gesto de Jesus, acorre até ele, no outro lado do lago, na cidade de Cafarnaum. Eles, desconhecendo a manifestação de Jesus atravessando o lago, andando sobre as águas (Jo 6,16-22), perguntam como Jesus chegara ali. A multidão entabula com ele um diálogo, pela primeira vez ao interno do capítulo. O termo rabi (hbr. Mestre) usado por ela coloca o leitor-discípulo, para o qual se destina o texto, na atmosfera de um ensinamento profundo. Sob o mesmo véu de mistério da pergunta, Jesus lhes responde de maneira enigmática: “Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos” (v.26). Jesus denuncia-lhes o erro: procuram-no porque encheram a barriga, ficaram satisfeitos e queriam mais. Ou seja, não o buscam motivados por quem Ele é, mas pelo que ele pode fazer. Isto é um erro: significa permanecer na superfície do sinal, sem sequer captar o seu sentido profundo. Provavelmente, o evangelista João deva estar chamando a atenção da sua comunidade também. Ela deve sentir-se tentada a viver a relação com Deus em Jesus – que chamamos fé – somente a partir dos sinais grandiosos e espetaculares que o mesmo Jesus realizou. A comunidade não pode cometer este erro.

E, continuando, Jesus lhes diz “Esforçai-vos não pelo alimento (lit. pão) que se perde, mas pelo alimento (pão) que permanece até a vida eterna, e que o Filho do Homem vos dará. Pois este é quem o Pai marcou com seu selo” (v.27). O Filho do Homem é, na literatura apocalíptica e profética, o grande autorizado e enviado de Deus para estabelecer o domínio e o juízo em Seu nome. O selo é o atestado de autenticidade e autoridade conferido por Deus a este Filho do Homem, e o Sinal do Pão é a confirmação e a garantia da autoridade que ele recebeu. O pão que nutre para a vida eterna, de fato, só pode ser dado por Jesus, porque é ele mesmo na inteireza do seu ser.

A fala de Jesus gera, na multidão, uma inquietação, que a leva a refletir. E perguntam, “Que devemos fazer para realizar as obras de Deus?” (v. 28). Típica pergunta da mentalidade judaica da época habituada e condicionada ao fazer, mais do que ser. Esta pergunta é reveladora da concepção religiosa da época, incrustada e cristalizada no coração até mesmo do povo simples: a teologia da retribuição, a qual apregoava (inclusive hoje encontramos discursos assim nos meios cristãos), que para receber um benefício de Deus, o fiel deveria fazer algo que o agradasse. A referida teologia se expressava través da seguinte lógica: Se a pessoa fosse fiel aos preceitos divinos receberia, então, as bênçãos divinas. Do contrário, maldição e castigo. Diante desta mentalidade equivocada, Jesus responde: “A obra de Deus é que acrediteis naquele que ele enviou”. A obra de Deus não consiste num simples “fazer”, mas no acreditar, aderir, optar pelo dom de Deus que se lhes apresenta através de Jesus. A obra (que eles devem fazer) é acreditar Naquele que de Deus enviou. Caso contrário negarão a salvação como dom gratuito e amoroso de Deus.

A multidão ainda não entendeu as palavras de Jesus, tampouco o sinal realizado e ainda reivindicam um novo para que possam crer. Ela permanece na materialidade do fato. Com um solene “Amém, Amém (Em verdade, em verdade)”, maneira de João indicar que o que virá a seguir constitui-se um ensinamento importante do mestre (quase sempre como gênero de revelação), Jesus lhes corrige a mentalidade. Não foi Moisés que deu (e, atenção ao verbo que está no passado) o pão do céu aos hebreus no deserto, mas tão somente o Senhor.  Jesus ensina-lhes que o alimento misterioso (o maná) foi, no máximo, uma prefiguração e, isso sim, fruto da providência amorosa de Deus. Mas, agora (no presente), Ele declara, “meu Pai o verdadeiro pão do céu”. Não se trata de um alimento qualquer, mas “o” pão do céu. Não é do passado, mas acontece hoje (o verbo está no presente), o que indica uma ação contínua de Deus através de Jesus. Não é mediado por Moisés, mas vem de Deus mesmo. E é Pão que dá vida ao mundo, e não só a eles, os israelitas.

Jesus, solenemente faz uma autoproclamação simbólico-prefigurativa: “Eu sou o pão da vida!”. Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim não terá mais sede” (v.35). Na teologia bíblica pão (e bebida) simbolizam o ensinamento e a sabedoria de Deus. A passagem do sentido material (o mal-entendido dos judeus) para o sentido simbólico se confirma pelo fato de a terminologia se ampliar do campo da fome para o da sede. A literatura sapiencial associa comer e beber com a instrução da Sabedoria (Pr 9,5; Sr 15,3; 24,21). O ensinamento e a sabedoria de Deus são dados agora por Jesus e pelo sentido da Sua vida.

De doador de pão que alimenta por poucas horas, Jesus se apresenta como o próprio pão que alimenta para a vida toda. Jesus não faz espetáculos públicos. A fé, por conseguinte, não se baseia no extraordinário, no estardalhaço, no barulho ou na milagreira, mas numa relação pessoal e decidida com Deus em Jesus. Implica criar intimidade com ele, deixar-se alimentar pela sua vida, vontade e, consequentemente, ter toda a vida conduzida conforme o Seu modo de viver. Alimentar-se desse pão é assumir na concretude da vida o estilo de Jesus, suas opções, atitudes e ensinamentos. Isso é eternidade de vida, pois, uma vida autêntica assim não pode ser destruída nem mesmo pela morte.

Algumas provocações são necessárias. Que Jesus procuramos, aquele que nos satisfaz com benesses, ou aquele que nos convida ao comprometimento com Ele; a tomar parte do Pão que é sua vida, sua história, suas escolhas e seu modo de ser? A procura de quais pães nos encaminhamos? Que Pão apresentamos às pessoas ao nosso redor?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 24 de julho de 2021

REFLEXÃO PARA O XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Jo 6,1-15:


 

Interrompemos a leitura do evangelho de Marcos que nos acompanha desde o início do ano litúrgico. Durante cinco domingos a liturgia nos conduzirá pela leitura e meditação do capítulo sexto do evangelho segundo João. A narrativa relata o quarto sinal realizado por Jesus, no evangelho joanino, a “multiplicação dos pães”, termo incorreto, como veremos a seguir. Antes, porém, se faz importante recordar a função do Sinal para a narrativa do Quarto Evangelho.

Os sinais são um indicativo que apontam para verdadeira identidade de Jesus; tem a função de despertar (ou iluminar) a fé das pessoas e, por fim, ser um meio pedagógico de levá-las a uma opção/decisão pró ou contra Jesus. Ainda sobre os sinais, importa lembrar que os três primeiros sinais narrados por João, a saber, as núpcias (messiânica) de Caná (Jo 2,1-11), a cura do filho do funcionário do rei (Jo 4,46-54), e a cura do enfermo de Bezata (Bethesda) possuem a função de despertar a fé do discípulo. O quarto sinal, além de mover a fé do discípulo-leitor, traz consigo a temática da decisão por Jesus, o que é narrado ao longo do capítulo sexto.

“Jesus foi para o outro lado do mar da Galiléia, também chamado de Tiberíades” (v.1). João situa o leitor-discípulo no espaço. Informa que a ação transcorre no outro lado da margem do mar da Galileia. Importante esta localização geográfica, porque ela mostra todo o imaginário judaico que funciona como pano de fundo da obra joanina. A expressão “outro lado da margem” sugere a travessia do mar vermelho, acenando para o contexto da libertação do povo hebreu da escravidão, no Egito. Uma recordação do Êxodo, evento fundante da história de Israel. O contexto do qual o evangelista se serve para a composição deste capítulo é o do livro do Êxodo: o tema do deserto, do mar, do monte, da páscoa, da tentação e, por fim, o tema do pão.

A narrativa continua, informando-nos que “Uma grande multidão o seguia, porque via os sinais que ele operava a favor dos doentes” (v.2). A terminologia que João usa “Ver os sinais” acena para uma dificuldade, a qual pode, também, tornar-se um risco: o discípulo permanecer apenas no nível material do sinal. Dito de outra maneira: procuram Jesus pelo o que realiza e não pelo que Ele é. É o indicativo de uma fé ainda superficial e inicial que deve ser ainda trabalhada.

O v.3 nos informa que Jesus, com seus discípulos, subiu o monte que circundava a margem do lago de Tiberíades, e ali sentou-se para ensinar. Pode ser que toda esta cena faça lembrar o ensinamento contido em Mt 5,1 – 7. Mas também acena para caráter sapiencial do ensino de Jesus, ou seja, antes de partilhar de um pão material, Jesus partilha seu ensinamento, o seu pão, a sua vida.

João situou-nos, acima, no espaço geográfico. Agora, no v.4, situa o leitor-discípulo no tempo, ao informar que “Estava próxima a pascoa dos judeus”. Conforme dito acima, o autor do Quarto Evangelho traz consigo todas as tradições judaicas como pano de fundo para sua obra, no intuito de ensinar à sua comunidade que estas tradições, a partir de Jesus, são superadas ou substituídas pela novidade que Ele próprio traz em si mesmo. O evangelista lembra, num parêntese, a proximidade da festa da Páscoa, comemoração do êxodo de Israel do Egito, quando Deus alimentou o povo no deserto. A festa é chamada, com um ar de ironia, “a Páscoa dos judeus” (v. 4). Aliás, Jesus não vai a Jerusalém para a festa. Talvez João queira apresentar uma “alternativa cristã” para rememorar as tradições da Páscoa e do Êxodo. Talvez possamos ver aqui o esquema teológico de João que consiste em substituir as instituições judaicas por Jesus (cf., p.ex.,2,6; 2,18-21).

Jesus se surpreende com a multidão. E faz uma pergunta auspiciosa aos discípulos, “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?” (v. 5). Na verdade, a pergunta soaria melhor “De onde vamos comprar pão...? Uma pergunta didática e teológica. Na teologia do Quarto Evangelho, a pergunta “de onde?” sempre evoca uma origem misteriosa, aquilo que vem do alto, de Deus (Jo 2,9; 3,8). Mas a resposta de Filipe também soa no nível do material. Ele não consegue, ainda, captar o ensinamento de Jesus. Está somente na superfície da Fé e dá uma resposta calculada, afirmando que nem duzentos dias de trabalho braçal seriam suficientes para dar conta de alimentar tanta gente. Uma moeda de prata (denário) equivalia a uma jornada de trabalho. De acordo com João, nem sequer bastaria. Assim, o evangelista aumenta discretamente o paradoxo.

Entra em cena o discípulo André, que apresenta um “menininho”, gente simples que ninguém dá atenção, voz ou vez. Este traz consigo cinco pães de cevada e dois peixinhos. Interessante o detalhe que João apresenta: cinco pães de cevada. Pão de cevada é o alimento da gente simples e pobre. Já os pães de trigo são os alimentos dos ricos. Aqui é importante prestar atenção na soma dos alimentos apresentados: cinco pães e dois peixes perfazem um total de sete. Sete, na teologia bíblica, corresponde à plenitude. O menininho, aquele que diante da sociedade e da comunidade pode ser considerado inferior, coloca plenamente a disposição de Deus e da mesma comunidade aquilo que ele tem de melhor. O menino também pode aludir ao profeta Eliseu, em 2Rs 4,42-44, que permitiu a uma tropa de cem homens famintos saciar-se com uns vinte pãezinhos de cevada, pães sagrados (“pães da proposição”). João quer ensinar para sua comunidade que Jesus é maior que Eliseu.

O menininho pode ser símbolo para o discípulo e para a comunidade cristã. Antes de tudo, para entrar na lógica do Reino é necessário fazer-se e reconhecer-se pequeno. Reino de Deus e grandeza são incompatíveis. Não importa a quantidade daquilo que se tem, mas a disposição de colocar a serviço do próximo.

Se por um lado, André lamentou que somente cinco pães e dois peixes não seriam suficientes. Por outro lado, Jesus age de modo diametralmente oposto: “tomou os pães e deu graças”, ou seja, agradeceu. O evangelista usa aqui o verbo grego eukaristêo (gr. ευχαριστεω), do qual provém a palavra Eucaristia, cujo significado é agradecimento/ação de graças. Ao invés de lamentar-se, Jesus agradeceu o pouco que tinha e, daí, veio a abundância. Neste gesto está a ressignificação do nosso olhar para o texto.

Jesus dá uma ordem aos discípulos, para que mandem sentar as pessoas (v.5). É importante o termo grego utilizado por João (homens; gr. ἀνθρώπους), o qual sofre variação durante a narrativa. Ao se sentarem na relva, ele muda o termo antrópous para ándres (gr. ἄνδρες), que significa o homem amadurecido, crescido e decidido. Ou seja, a eucaristia, para a qual o texto alude, é o alimento que encaminha a pessoa para a maturidade na relação com o Deus e Pai de Jesus e com o próprio Senhor. Mas, ao fim do relato, o autor do evangelho retoma o termo antrópous para revelar a dificuldade e a resistência das pessoas ao projeto de Jesus, quando elas manifestam o desejo de proclamá-lo rei. Não querem assumir a maturidade e a responsabilidade na vida. Preferem a submissão e obediência a uma figura humana, representada pela figura do rei. Acontece, que essa atitude reflete o pecado da idolatria. Para Jesus, isto é um pecado, porque ela consiste em substituir Deus por um ídolo, o qual tira a liberdade e a responsabilidade das pessoas. Deus, pelo contrário, é aquele que torna as pessoas livres, responsáveis e maduras.

Atitude paradigmática nos é relatada a seguir. Jesus mesmo é que sem põe a distribuir os pães. Ele dá o exemplo. Nesse sentido, o seu gesto não é um ato mágico. Mas uma atitude concreta. Por isso, é importante nomear este episódio como condivisão dos Pães. Ele recebe os cinco pães e os dois peixes e, simplesmente os distribui aos discípulos e às pessoas. Jesus não é um mago que profere palavras mágicas sobre os pães e os peixes, e, como consequência disto começa a brotar das cestas pães e peixes. Pelo contrário, é o gesto/atitude exemplar de Jesus que motivam os discípulos e a multidão à partilhar o que trazem consigo. Quando a comunidade partilha o que tem, o sinal do novo tempo acontece; ninguém passa privação e ainda não falta nada, pelo contrário, superabunda! É isso que se celebra na Eucaristia cristã (v. 23 e 51-58).

“Jesus disse aos discípulos: “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca!” Recolheram os pedações e encheram doze cestos com as sobras dos cinco pães, deixadas pelos que haviam comido” (v. 12-13). O número doze alude aqui às doze tribos de Israel, que constituem o antigo povo de Deus, mas também acena para o grupo dos Doze, a reconfiguração do Novo Israel. A quantidade recolhida, doze cestos, significa que, quando a partilha é praticada, tem alimento para todos. Essa não deve ser um ato isolado, mas uma prática constante na comunidade. As soluções para seus problemas devem vir de dentro.

Nisto consiste a pragmática – a utilidade – do texto para a comunidade, revelar e mostrar que ela é a responsável por eliminar os sistemas de morte que pairam na história, representados pela fome, no texto de hoje. A fome foi e sempre será instrumento de dominação; utilizada pelas estruturas de poder para gerar dependência e controle nas pessoas. Mas ela é saciada quando até mesmo o pouco que se tem é colocado em comum, quando cada um considera aquilo que tem como dom de Deus e, por isso, põe-se a partilhar! O gesto de Jesus ensina que pessoas de corações agradecidos sabem colocar-se a disposição dos outros com o que possuem. Corações agradecidos sabem partilhar.

Ainda na ordem da narrativa, a multidão se equivoca duplamente: pensa que Jesus seria um profeta, pelos gestos e palavras realizados por ele; consideram-no apto para reinar sobre eles soberanamente. Neste sentido, que o evangelista usa novamente o termo homens (gr. ἀνθρώπους / antrópous), o homem imaturo e dominado. Que rejeita a condição de liberdade e responsabilidade que Deus, em Jesus, oferece. Que não consegue, ainda, dar o passo da fé genuína, permanecendo na superfície. Ficam na materialidade do sinal, apenas. Não se deixam iluminar por este, e, ainda não estão aptos para tomar a decisão pró Jesus.

Querem fazê-lo rei, salvador da pátria, para que ele resolva todos os problemas (v.15). Jesus não quer isso. Nesse sentido, retira-se para a montanha, sozinho, perto de Deus, a fim de discernir melhor sua missão e não permitir que ela seja mal compreendida. Somente quando o discípulo compreender que este gesto de Jesus é símbolo de sua vida condividida (entregue, dada ou partilhada), então compreenderá a intensidade do sinal da “condivisão dos pães”, e poderá realizar sua opção pró ou contra Jesus.

Algumas provocações. 1) No seguimento a Jesus, em que etapa nos encontramos, na materialidade superficial da Fé, provocada pelo simples “querer ver sinais”, ou nos encontramos entre os que já fizeram sua opção por Jesus? 2) Tenho a consciência de que os pães ou peixes que tenho contribuem para o crescimento da vida da comunidade, e se tornam os meios de resolução de seus problemas? 3) Quais pães, hoje, precisam ser colocados em comum, quer ao interno da comunidade cristã, quer na vida em sociedade?


Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 17 de julho de 2021

REFLEXÃO PARA O XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 6,30-34:

 


Os quatro versículos que meditamos nesta perícope do evangelho de Marcos, situam-se na continuidade do evento narrado anteriormente, em 6,7-13, se descartarmos a interrupção narrativa que o evangelista insere em 6,14-29, através da qual relata a morte/martírio de João Batista por Herodes (e pelas ideologias imperiais). Por isso, os versículos, 30-31 deste sexto capítulo funcionam como que uma transição para a cena que meditaremos hoje, que remete o leitor ao envio missionário narrado em 6,13. Mas o presente texto serve, ainda, de introdução para o acontecimento seguinte, o qual adquire vital importância para esta seção do evangelho de Marcos: a primeira multiplicação dos pães.

Algumas notas importantes para entender este texto e a presente seção literária do evangelho de Marcos, o que facilitará a leitura e compreensão do texto que virá a seguir. Mas, antes de tudo, o que significa uma seção literária? Objetivamente, uma parte narrativa ou discursiva que apresentam temas importantes, os quais se tornam recorrentes até o final da narrativa. Quais temas emergem nesta seção? O tema da fé, que, na verdade, relaciona-se à formação do discípulo, acompanhado do tema do pão: o discípulo precisa, antes de tudo, ser fecundado (e formado) na Fé para poder repartir o Pão (da fé e das necessidades humanas). Esta seção (da formação) da fé e do pão é enquadrada entre os capítulos 6,30 – 8,21.

Uma primeira multiplicação de pães abre a seção logo após o evangelista informar que Jesus sentiu compaixão da multidão “desreferenciada” (como ovelhas sem pastor). E começa ensinar lhes, para depois repartir o pão. A seção se conclui com uma segunda multiplicação de pães, seguida de um sumário, através do qual Jesus recapitula os ensinamentos aos discípulos, e, que, mesmo assim, acabam não entendendo a missão e o ensino do mestre (8,21). Existe, nesta seção, ainda, uma certa cegueira por parte dos discípulos, que lhes impedem de serem formados na Fé. Mas, abordaremos estes temas em outra ocasião. Importa saber que o texto que temos hoje, 6,30-34, trata da formação do discípulo na fé.

Meditávamos, na ocasião anterior que Jesus, diante da rejeição sofrida em sua cidade, por parte dos seus, e, depois, por todo o povo, toma a consciência de que o Israel enfermo (simbolizado pela mulher hemorrágica e a filha de Jairo, de doze anos, morta) só poderia ser curado através do anúncio da Boa Nova do Reino. E, para tanto, toma a decisão de enviar os seus discípulos em missão, dando-lhes poder (autoridade) sobre os espíritos impuros e enfermidades (Mc 6,13).

O texto de hoje, nos mostra o retorno dos discípulos. “Os apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que haviam feito e ensinado (v.30)”. Uma nota importante: os discípulos, no episódio anterior, são enviados. Portanto, se tornam apóstolos. Retornam e narram as experiências vividas. Interessante é que Marcos não diz nada acerca do conteúdo da missão dos discípulos-missionários. O evangelista pretende ensinar a sua comunidade que a missão do discípulo é semelhante a do mestre. O discípulo-apóstolo realiza as mesmas coisas que realizara o seu mestre. Nada menos; nada mais.

Mas são os versículos seguintes que revelam a pedagogia de Jesus.  Ele, após ouvir os relatos dos doze decide-se em leva-los para um lugar deserto, para descansar um pouco, pois a multidão não deixava nem que eles se alimentassem (v. 31-32). Há que se recordar que Jesus escolhe e elege os seus discípulos “para que ficassem (permanecessem) com Ele”. Ou seja, para que fizessem uma experiência relacional com Ele, afim de que aprendessem acerca de sua vida, de suas opções e sua missão. Que se tornem companheiros e companheiras Dele: que estabeleçam uma relação pessoal e intima com Jesus. A essa relação pessoal e íntima chamamos Fé. Assim sendo, a Fé é uma relação-opção a Jesus. Uma relação de fala e escuta, de silêncio, resposta e aposta. Mas, sobretudo, livre. E que precisa ser cuidada, formada e aperfeiçoada.

Jesus os leva para um lugar deserto para descansar. Bonita esta pedagogia, pois ela revela que aquele mestre que chamou, elegeu e enviou os seus discípulos, é uma pessoa que cuida deles! Leva-os para um lugar deserto. Na bíblia, o deserto é o lugar da experiência intima com Deus, ou mesmo do refazimento desta primeira experiência. É o lugar teológico da escuta da Palavra de Deus. Com este gesto de Jesus, o evangelista acena para dois ensinamentos: 1) a comunidade dos discípulos-missionários de Jesus deve refazer-se sempre e constantemente através da escuta da Palavra; 2) o descanso deve reorientar ou reorbitar o discípulo na logica do mestre.

O Cristo que chama, elege e envia não se trata de um inconsequente que esquece daqueles e daquelas que enviou. Mas cuida deles. Cuida-lhes de sua humanidade e do processo de humanização deles; cuida e forma lhes a Fé – a relação pessoal e íntima com o Deus de Jesus.

O descanso proposto por Jesus aos discípulos, na verdade, constitui-se um itinerário formativo. Não se trata de um descanso alienador, mas humanizador (ou humanizante), porque a fé é humanizadora. Se dissemos que a fé trata-se de uma relação pessoal e intima com o Deus de Jesus, ela deve ser formada de modo que esta relação humanize mais ainda o ser humano. Percebamos que o Jesus que chama é o mesmo que cuida. Quando o discípulo se deixa cuidar (forma-se, a amar-se) por Jesus, então poderá, ele, cuidar dos demais e formar lhes a fé.

O que se torna evidente no v.34: “Jesus teve compaixão da multidão porque eram como ovelhas sem pastor”. O descanso da comunidade dos discípulos não são férias. Mas oportunidade de se reorientarem nas palavras do mestre, e serem cuidados por ele, para que possam agir de modo semelhante. Embora irrenunciável, a experiência do encontro do lugar deserto não pode se sobrepor às necessidades concretas das pessoas, principalmente das mais vulneráveis. Ao invés de envaidecer-se com o aparente sucesso, pois as multidões o buscavam incansavelmente, Jesus sente compaixão. Compaixão quer dizer o amor profundo e máximo de Deus, que nasce das entranhas, comparável somente ao amor materno; literalmente, compaixão significa “contorcer as entranhas” (gr. σπλαγχνίζομαι / splagnísomai), o núcleo mais profundo e íntimo do ser humano, conforme a mentalidade semítica. “E começou a ensinar lhes”. Fica, uma vez mais, oculto o conteúdo deste ensino às multidões. Porém, passível de dedução: o anúncio da Boa Notícia do Reino. Reino que se compadece das necessidades das pessoas.

Que possamos tomar consciência de que o seguimento a Jesus implica uma convivência profunda e humanizadora com Ele. Desta relação (Fé) é que brota o apelo de sentir compaixão dos que se encontram desorientados, excluídos e marginalizados em relação a Deus e a Jesus. Nos deixemos humanizar por Jesus (por sua Palavra e Pessoa) que chama, e, ao mesmo tempo cuida de nós, para que possamos cuidar dos outros em suas necessidades, repartindo o pão da dignidade, da humanidade, da liberdade e do amor.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 10 de julho de 2021

REFLEXÃO PARA O XV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 6,7-13:

 


O trecho do evangelho de Marcos que a liturgia do décimo quinto domingo do tempo comum propõe para a meditação, situa-se na continuidade do texto da semana passada. Jesus, ao constatar a grave enfermidade de Israel, em face ao projeto de Deus, simbolizadas pelas duas personagens femininas do capítulo quinto – a mulher hemorrágica e a menina Thalita – e, seguida da rejeição à Boa Notícia, ele toma a iniciativa de enviar os discípulos. É o texto que meditaremos a seguir, Mc 6,7-13.

Antes de tudo, se faz necessário compreender uma dinâmica pessoa e pedagógica de Jesus, que Marcos realça: Ele constitui, chama e elege um grupo de seguidores próximos para “permanecer com Ele” (Jo 1,35; Mc 3,13-19), ou “elegeu-os para que ficassem com Ele”.  Muito importante! Jesus não constitui um grupo para transmitir lhes preceitos, doutrinas ou ideias. Mas para que estabelecessem uma relação pessoal com Ele. A fé não consiste numa doutrina, mas numa relação de caráter existencial com um Outro, que é o próprio Deus. O discípulo deverá ser aquele que toma parte, primeiramente, do modo de vida de seu mestre. Depois, de seus ensinamentos, podendo, por fim, viver a mesma dinâmica existencial assinalada pelo mestre. Discipulado, é, antes, uma experiência de vida e de seguimento! Aprendizado e assimilação, que acontecem na cotidianidade da experiência existencial e relacional com aquele a quem se chama de mestre.

Jesus percebe que a enfermidade de seu povo se tornara aguda e crônica. Vendo que não daria conta sozinho, decide-se por enviar os discípulos em missão pelas vilas e povoados da Galileia, de modo a cooperarem com Ele na tarefa de reconduzir a Israel no caminho e no projeto de Deus. Acontece, que Ele sabia que os seus discípulos ainda não estavam completamente preparados. Haja vista as futuras correções e censuras que fará a eles. Por isso, o texto de hoje funciona como um manual e programa de vida para os discípulos. A partir destas constatações podemos mergulhar no oceano do texto.

“chamou os Doze, e começou a enviá-los dois a dois” (v. 7a). Jesus não se fecha diante da rejeição sofrida em sua própria terra, e, prova disso é o envio dos seus, de modo que a missão e a Boa Notícia trazidas por Ele pudessem chegar a todos. Envia “dois a dois”. Em primeiro lugar, para mostrar a dinâmica comunitária da Fé. De acordo com a mentalidade judaica, para que uma notícia fosse aceita, ela precisava ter o testemunho de mais de uma pessoa. Esta Fé não é excludente, exclusiva e individualista. É, essencialmente, comunitária. Não se trata de uma propaganda ou marketing, mas um anúncio de salvação e libertação. Não deve haver espaço para individualismo no seio da comunidade de Jesus. A Fé deve ser experimentada e vivida no espírito da partilha, comunitariamente! Em segundo lugar, envia-os “dois a dois” para que os missionários possam encorajar-se mutuamente; lembrarem-se de que os dons do Reino e a Fé que anunciam  não são propriedades deles. Pertencem a Deus!

“dando-lhes poder sobre os espíritos impuros” (v. 7b). Na verdade, o texto grego seria melhor traduzido por “dando-lhes autoridade (gr. exousia)”. Primeiramente, “espíritos impuros” são todas as forças, mecanismos e esquemas maléficos que impedem com que o homem possa responder livremente à Graça de Deus e, portanto, ao seu agir: o Reino. São simbólicos para indicar a realidade do Mal no mundo. Esquemas e mecanismos de morte, de corrupção, de mundanidade, que alimentam as estruturas de morte, que não permitem que o ser humano se relacione com Deus, consigo próprio e com o irmão. Importante notar que muitas vezes, esses elementos eram criados pela própria religião, como a segregação e condenação por doenças físicas e psíquicas. Mas o que vem a ser este poder-autoridade?

O Poder, na verdade, é a autoridade (gr. ἐξουσία / exousia) do próprio Jesus! Não se trata de uma força mágica. Se trata da conduta, do modo, do éthos existencial do próprio Jesus, que o discípulo assimilou em seu processo de discipulado. Compreendamos e estejamos atentos para um fato importante da vida e missão de Jesus: “ele ensinava como quem tem autoridade (Mc 1,40)”, diferente dos escribas, fariseus, saduceus, ou seja, o ensino de Jesus (seu modo de ser e ensinar) superava as aparências religiosas daquelas lideranças. Ele vivia o que ensinava (vivia o que dizia!), e nisso consiste a Autoridade que ele recebeu do Pai: fazer e dizer tudo o que o Pai lhe manda.

Jesus confere aos discípulos os mesmos dons que recebeu do Pai, e os capacita a tornarem real a sua própria presença durante a missão. O poder (gr. exousia) conferido sobre tudo isso é o mesmo que Ele próprio já exercia. Não é um poder de domínio sobre as pessoas, mas o contrário: é o poder-autoridade de combater tudo o que escraviza e priva o ser humano de sua liberdade e dignidade.

Ao serem enviados, Jesus lhes orientara que não levassem nada para o caminho, a não ser um cajado; nem pão, nem sacola, nem dinheiro na cintura. Mandou que andassem de sandálias e que não levassem duas túnicas” (vv. 8-9). O que significa isso? Estas orientações visam incutir no coração dos discípulos a coerência, simplicidade e austeridade em face a essencialidade do anúncio do Reino, e para que aprendam, constantemente, a confiar e viver da Providência Divina.

Andar de sandálias alude ao caráter itinerante da sua missão: um constante caminhar. Ora, o lugar do discípulo não é o lar com seu conforto, mas a estrada com seus perigos e adversidades. Evidentemente, nada daquilo que possa anular a vida do discípulo. Esta é importante para a missão! O Discípulo não poderá estar imbuído da mentalidade do super-herói ou do famoso complexo de messias, querer resolver tudo, e mais um pouco. Ele deverá ter a coerência e a convicção de que não fará nada além do que o mestre tenha feito. Se as adversidades lhes sobrevierem, que assim seja unicamente enquanto consequência livre da vida que levam em nome de Jesus e da Missão. Mas que não as procurem. Isso é heroísmo e não discipulado!

O evangelista se recorda, ainda da hospitalidade. “Quando entrardes numa casa, ficai ali até vossa partida” (v. 10). Aqui, além de chamar a atenção dos missionários para aceitarem o que lhes for oferecido como hospedagem, também se chama a atenção da comunidade para acolher os peregrinos e missionários em casa. Ora, a hospitalidade – a capacidade de receber e acolher alguém é sempre, ao interno da tradição bíblica, oportunidade de se fazer experiência de Deus. Permanecer quer dizer criar relações e laços duradouros. Da mesma forma, é necessário que as casas dos membros da comunidade estejam sempre disponíveis para a acolhida dos peregrinos e necessitados.

Dissemos acima que o discípulo é convidado a tomar parte da vida do mestre, em todos os seus aspectos e dinâmicas. Por isso, é caro a Marcos (e a Mateus também), apresentar que o que acontece com o Mestre Jesus, acontece (ou acontecerá), igualmente, na vida do discípulo. Por isso, o discípulo só estará devidamente (e não completamente) pronto para missão quando tiver assimilado a vida de Jesus. Quando tomar consciência de que aquela vida também é perpassada pelo sofrimento, rejeição e recusa. A vida do discípulo nunca será sucesso constante, nem será cômoda, tampouco uma vida “sob holofotes e fama”. E se isso assim se apresentar, tenham a certeza de que não se trata do cristianismo proposto por Jesus. Poderá ser, sim, algum tipo de catolicismo ou evangelismo híbrido que camufla o marketing, a propaganda, a prosperidade. Mas não será projeto de Jesus, tampouco indicativo de um genuíno discipulado cristão.  Isso se verifica no v.11, que nos mostra Jesus dizendo “Se em algum lugar não vos receberem, nem quiserem vos escutar, quando sairdes, sacudi a poeira dos pés, como testemunho contra eles”. A rejeição é sinal de que a Missão e a Palavra anunciada são de Deus, e não maquinação ou ilustração humana; serve, igualmente para indicar que a vida do discípulo-missionário é uma vida coerente com o a Palavra de Deus.

Se existe recusa, o discípulo-missionário não deverá fazer birra, nem qualquer tipo de chantagem barata, tampouco drama, muito menos assédio psicológico ou moral. Não deve sequer deixar-se abater. O discípulo deve respeitar a liberdade daqueles que recusam pois a Boa Nova do Reino e a Fé não devem ser impostas. Antes, propostas. O Evangelho é, e sempre será convite, proposta. O Reino é anunciado e ofertado, jamais imposto!

No entanto, Jesus prevê um gesto um tanto curioso para os discípulos, em face a rejeição: “sacudir a poeira dos pés, como testemunho contra eles”. Esse gesto deve ser muito bem compreendido para não gerar equívocos, muito menos assombrar o imaginário das pessoas. O gesto de sacudir a poeira dos pés não é uma condenação! É, antes, uma confirmação de que o Evangelho proposto foi rejeitado. Sinal de rejeição – recusa – fechamento diante da Boa Nova do Reino.

Dadas as instruções de envio, “os doze partiram e pregaram que todos se convertessem” (v. 12). Quanto ao conteúdo específico da pregação, o evangelista não entra em detalhes. Apenas diz que consistia num anúncio de conversão. Ora, conversão  significa mudança de mentalidade e pensamento. A adesão aos valores do Evangelho exige rupturas com a maneira tradicional de pensar e compreender as coisas, inclusive a relação com Deus.

“Expulsavam muitos demônios e curavam numerosos doentes, ungindo-os com óleo” (v. 13). Marcos já informa os seus acerca do resultado da missão. Uma constatação importante é a de que os doentes são, para o evangelista, a síntese do necessitado e, por isso, destinatários privilegiados da Boa Nova. O catequista bíblico mostra os êxitos. Mas a principal razão para chegar a tais resultados é a fidelidade ao que foi recomendado. Quando a proposta de conversão proposta pelo Evangelho é aceita, os sinais do Reino de Deus se evidenciam.

Ao meditar este evangelho, somos convidados a 1) Compreendermo-nos em nossa missão de discípulos-missionários do Reino, refletindo acerca de nossa fidelidade ao ensinamento e anúncio de Jesus; 2) compreender que fomos (e somos) enviados a recuperar vidas; 3) procurar retornar ao modo de vida proposto e esperado por Jesus – vivendo à maneira dele, como ele mesmo recomendou aos discípulos da primeira geração. Enquadramo-nos neste projeto? Temos percorrido este caminho? O temos assimilado? Nos dispomos a trilhar os passos de Jesus? 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 3 de julho de 2021

SOLENIDADE DE SÃO PEDRO E SÃO PAULO - Mt 16,13-19:


 


A cada ciclo litúrgico que a Igreja vive, somos convidados a fazer a memória de Pedro e de Paulo. Para isto, a liturgia nos propõe a perícope pertencente ao capítulo dezesseis do Evangelho segundo São Mateus (Mt 16,13-19).

O texto de hoje começa no v.13. Mas ele iniciara com duas situações que servem de estopim para a narrativa que se segue. O primeiro acontecimento foi uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, os quais pediram a ele um sinal que comprovasse que ele seria messias (Mt 16,1-4). Ora, Jesus, a esta altura do evangelho, já havia realizado muitos sinais e realizado muitos ensinamentos. Não há porque satisfazer a curiosidade dos chefes religiosos com os sinais. Estes não são ocasião de exibicionismo para Jesus. A segunda situação foi motivada pela advertência feita aos discípulos para que eles tomassem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). O fermento dos fariseus, ao qual Jesus se refere é a ideia errada que nutriam em relação a Deus e ao messias, bem como a própria maneira hipócrita de viver. É importante situar o contexto com esses pormenores para poder compreender a atitude de Jesus de levar seus discípulos para longe da cidade santa, Jerusalém, que estava impregnada com essas ideologias triunfalistas acerca do messias esperado. Agora pode-se entrar no horizonte do texto de hoje.

Mateus indica geograficamente a seus leitores-discípulos onde o fato se dá. “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe” (v.13a). Cidade situada ao norte de Israel; dedicada à Cesar, imperador romano. Sede do poder romano na província da Palestina e, portanto, lugar de culto ao imperador e de cultivo da ideologia imperial. Um território pagão. Por outro lado, Cesaréia fica distante de Jerusalém, sede do poder religioso. Jesus e seus discípulos encontram-se longe das influências do poder religioso. Ali poderiam fazer uma experiência nova e pura com Deus através de Jesus. “ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” (v. 13b). Filho do Homem é aquela personagem bíblica de que nos fala a literatura apocalíptica de Dn 7. É o encarregado por Deus de executar o Seu senhorio e vontade na história. É o plenipotenciário enviado em nome de Deus. Jesus se identifica e reconhece-se a partir desta personagem. Mas a personagem alude também a sua condição humana.

Fato é, que não há concordância entre os biblistas a respeito da intencionalidade de Jesus na pergunta. Uns alegam que ele estaria preocupado com sua imagem. Outros, que ele não estaria preocupado com sua imagem, mas com a correta compreensão de sua pessoa e missão. Mais do que preocupado com a imagem que a multidão fazia dele, estava preocupado com a ideia que faziam de sua missão.

Segundo os discípulos, a opinião pública dizia: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). A atuação de Jesus tinha dado margem para variadas interpretações, e as figuras do passado serviam aos espectadores de Jesus fazerem alguma imagem Dele. Acontece que Jesus não foi um reformador como Elias (e Eliseu, no Antigo Testamento), muito menos como João Batista, na transição do Antigo para o Novo. Ele inaugura uma novidade em relação ao modo de se relacionar e experimentar o Deus de Israel, e uma novidade quanto ao modo de se relacionar com o próximo. É bem verdade que o modo através do qual Jesus decidiu-se por viver sua missão foi a via profética.

Mas Jesus supera os profetas de Israel. Embora continuem sempre atuais, eles são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como uma personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso a impede de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Após a resposta dos discípulos, Jesus retorna a pergunta, agora, para ele: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v.15). Trata-se de uma pergunta importante, porque ela revela como os discípulos, o círculo mais próximo e pessoal de Jesus, o concebiam. Mais ainda, a reposta revelaria também as expectativas que traziam consigo, e qual mentalidade nutriam acerca dele.

“Tu és o Cristo, 0 Filho do Deus vivo” (v.16), responde acertadamente Simão, em nome dos doze. É uma reposta que ele dá em nome do grupo, e, portanto, eclesial. Uma profissão de fé comunitária. Os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam com Pedro.

“Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17). Jesus admira-se com a resposta tão acertada. E reconhece ser Pedro um bem-aventurado, ao compreender uma verdade muito profunda. Entretanto, seu entendimento não provém do esforço humano; só pode ser revelação do Pai dos céus. Esta bem-aventurança não provém do mérito do discípulo, mas unicamente da iniciativa de Deus.

O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino. O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição de pertencer ao mundo dos pequenos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por ela.

“Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus declara Simão-Pedro como rocha firme devido à Fé que professara. O acento aqui não recai sobre o discípulo Pedro, mas sobre a Fé que ele, conjuntamente com a comunidade dos discípulos, a Igreja, professa. A pedra firme por sobre o qual se edifica a comunidade dos crentes em Cristo é o conteúdo e o núcleo da Fé professada pelo discípulo. Pedro, na verdade, é o garantidor da unidade em torno desta Fé. Esta não se baseia num conjunto de ideias ou de proclamações dogmáticas, mas se embasa numa pessoa e na relação experiencial com ela: o Messias e Filho do Deus vivo, Jesus de Nazaré.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”, que foi transformada no segundo nome de Simão, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, alude à superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção que se assenta por sobre a pedra-rocha (petra) da fé que  professou: “Tu és o Messias e Filho do Deus vivente”.

Só aqui e em Mt 18,17, o evangelista chama de “Igreja” a comunidade dos discípulos do Reino, evocando o antigo povo de Deus (hbr. qahal). A missão da igreja consiste em ser, na história humana, um sinal da presença do Reino, vivendo os seus valores e o seu projeto.

A chave simboliza a autoridade conferida a Pedro, da qual a comunidade também participa. Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expressado nas bem-aventuranças (Mt 5 – 7), tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” são, acima de tudo, responsabilidades, e não um poder.

O texto litúrgico de hoje termina, mas, ao mesmo tempo encaminha para conclusão do capítulo dezesseis, o qual apresenta o primeiro anúncio da paixão, que visa abrir a compreensão dos discípulos para que comecem a compreender o verdadeiro modo pelo qual Jesus decide-se encaminhar a sua vida e missão, vaticinando a eventualidade de sua paixão e morte, coroadas pelo evento redentor e salvífico da ressurreição. O modo pelo qual Jesus exercerá plenamente seu messianismo é o modo da cruz. O caminho da cruz que foi assimilado, com não pouca dificuldade, pelo discípulo Simão-Pedro, através de sua vida gasta pelo Evangelho da libertação e da Graça.

A pergunta que Jesus faz aos discípulos se direciona também à nós. 1) Quem é Jesus de Nazaré para mim? 2) Qual a ideia de messias e Filho de Deus possuo e fiz experiência? O triunfalista, opressor, belicoso, poderoso? Ou o messias e Filho de Deus que realiza sua missão através da obediência ao Pai e ao projeto do Reino, vivendo uma existência em amor, compaixão, misericórdia e serviço aos irmãos?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.