quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS - Lc 2,16-21:

 


A oitava do natal se completou. Por oito dias, desde a noite santa da solene vigília de natal, a Igreja permaneceu ao redor do menino e de seus pais no estábulo de Belém. Hoje, a liturgia da Igreja celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica – relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Tudo o que se pode dizer acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que é e do que sempre foi dito de seu filho.

Qual o sentido deste dogma na conclusão da oitava do Natal? A liturgia sempre quis visibilizar e introduzir o fiel no mistério da salvação que a Igreja celebra de modo sacramental e sensível na vida do ser humano e na história. Na solenidade do santo Natal, a Igreja fez a memória do mistério da Encarnação, ou seja, Deus que se fez carne, armando sua tenda entre nós (Jo 1,14). Com a solenidade de Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais o mistério da Encarnação, colocando acento, agora, na humanidade do Filho. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro e plenamente Deus; verdadeiro e plenamente homem.

A proclamação dogmática acerca da maternidade divina de Maria se dá, portanto, em chave cristológica, ou seja, em virtude da Pessoa de Jesus. O bispo de Antioquia, Nestório e seus companheiros acreditavam (de modo equivocado) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. O que, desde as primeiras profissões da fé Cristológica, a começar por Niceia e culminando em Calcedônia, em 450, a unidade das naturezas na pessoa de Cristo foi sempre confessada e professada. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou a fé cristológica de que em Jesus existe uma comunicação tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo, e não só de sua humanidade.

Quando proclamamos “Maria, mãe de Deus”, estamos dizendo, conforme o dogma, que ela é a mãe do Filho de Deus encarnado. Maria não se tornou uma deusa, nem entrou na Trindade. Por isso, devemos vê-la em relação às pessoas deste Deus Uno e Trino.

A proclamação de Fé sobre a maternidade de Maria deve ser lida em chave teológica, e, portanto, à luz da Santíssima Trindade. Em relação ao Pai, Maria é uma filha predileta. Ela foi agraciada com ternura pelo Criador, que a moldou com especial carinho. Ao mesmo tempo, Maria concretiza, de forma humana, a eterna geração que o Pai realiza com o Filho, no seio da Trindade. Como toda mãe ou pai, ela é figura do amor criador de Deus-Pai. Em relação ao Filho, Maria é mãe, educadora e discípula. O seu relacionamento com Jesus supera os laços de família. Maria é mãe, mas sua missão vai mais além. Esteve junto de Jesus durante sua vida terrena e, agora, glorificada, continua junto do Filho ressuscitado, na comunhão dos Santos. No tocante ao Espírito Santo, Maria é uma pessoa plena Dele. Como perfeita discípula de Jesus, acolheu o Espírito e fez-se transparente a ele. Tornou-se um templo vivo de Deus e se transformou, por Graça, na mãe do Messias.

A liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.  E delineia, durante todo o evangelho, as atitudes esperadas para os que querem se tornar discípulos do Reino e de Jesus.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico. No v.16, eles vão se certificar do evangelho que lhes fora dito pelo mensageiro celestial. O terceiro evangelho é caracterizado pelo tema da pobreza. A primeira palavra que sai da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré, é que seu projeto de vida contempla o anúncio aos pobres, e que o Espírito do Senhor estaria sobre ele, e o ungira para esta missão (Lc 4,18). Ora, entre as muitas faces do terceiro evangelho, está o aspecto da salvação para os pobres, os últimos, a inversão escatológica, onde os primeiros se tornam últimos, e os últimos se tornam os primeiros. Ora, o Evangelho de Lucas é o mais social dos escritos do NT. Lucas é plenamente o evangelista dos pobres; aqueles aos quais os anjos anunciam um evangelho de Alegria.

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas. Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (hbr. shemá), que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. Por mais que a imagem da ruminação seja aplicada ao evangelho de João, podemos entender essa atitude de Maria de “guardar no coração”, como sendo uma ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma. É a postura do discípulo do Reino.

No esquema da obra Lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu intimo, ruminando-a, para, enfim, coloca-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é convidado e enxergar nela o exemplo do discípulo de Jesus.

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula. 

O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Santo Ambrósio, no século IV, dizia que cada cristão é mãe como Maria, pois gera Cristo no seu coração. A declaração de fé toca a vocação de cada discípulo e discípula do Reino, pertencente à comunidade eclesial, por serem, através do Batismo, Igreja. Maria é imagem da Igreja em sua dimensão glorificada. Por isso, a Igreja é mãe. E à luz da maternidade de Maria, ela gera, alimenta, dá vida e cuida dos filhos de Deus nascidos no Batismo, através da Fé que transmite, da Palavra de Deus e dos Sacramentos de Seu Filho Jesus. A Maternidade de Maria ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.

 

Pe. João Paulo Sillio.  

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 26 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA SOLENIDADE DA SAGRADA FAMÍLIA - Lc 2,22-40:

 


O evangelho proposto para a solenidade da Sagrada Família de Nazaré, continua a leitura do segundo capítulo da catequese de Lucas. A narrativa de hoje nos convida a imitar a atitude de Maria que para o evangelista se torna figura exemplar do autêntico discípulo do Reino. A meditação sobre a sagrada família de Nazaré será pautada, nesta leitura, a partir da atitude que a mãe do menino assumirá e deverá ser a atitude de todo aquele que se propõe a viver o projeto do Pai: deixar que a espada da palavra do filho traspasse o seu íntimo e provoque uma atitude. Maria e a atitude que deverá assimilar serão as balizas para a compreensão deste evangelho dominical.

Trinta e três dias após a circuncisão de Jesus, Maria e José sobem à Jerusalém levando-o para ser apresentado ao Templo e para cumprir duas prescrições da Lei: a primeira, concernente à purificação da mãe, determinada em Lv 12, para a qual se devia ofertar um cordeiro ou uma rola ou um casal de pombos, dependendo da condição financeira da família. As mais abastadas ofertavam uma ovelha, ao passo que as mais pobres só podiam ofertar pombos ou rolinhas. A segunda prescrição consistia no sacrifício de resgate do filho primogênito, em Ex 13,1-2. O filho primogênito, na mentalidade do povo e da fé de Israel, era propriedade de Deus. Ele tinha o direito de reclamá-lo para si. O sacrifício de resgate cumpria a função de pagar a Deus uma quantia em resgate do primogênito – cinco moedas de prata, o equivalente a vinte dias de trabalho do indivíduo.

O evangelista, através desta informação acerca dos cumprimentos dos preceitos rituais, pretende mostrar que Maria e José estão, ainda, sob o peso da Lei. Por cinco vezes o termo Lei aparecerá só neste trecho bíblico, aludindo aos cinco livros que constituem a Lei de Israel, a Torah. Mas, enquanto Maria e José dirigem-se ao templo para cumprirem os preceitos, ao seu encontro vem um certo Simeão, que Lucas identifica como um “homem do Espírito”.

Simeão, na intenção do evangelista, pretende impedir que os pais cumpram os preceitos rituais. Para a personagem e para o catequista bíblico, o sistema levítico-cultual, com suas prescrições e ritos são inúteis. Esta personagem carrega consigo a imagem e o peso de todo o antigo que está na expectativa da novidade da irrupção de Deus na história. E esta novidade Simeão sabe reconhecer no menino trazido ao Templo por seus pais. Ele representa a espera do antigo que se encontra disponível para acolher o novo.

Acontece, pois, o encontro entre o casal e o recém-nascido com Simeão, que toma o menino nos braços, o abençoa, e, aqui, o evangelista retoma a temática já apresentada na ocasião do anúncio do anjo aos pastores na noite do nascimento do menino: o elemento da luz, que envolvia os pastores, os quais temiam ser incinerados pela luz, que aludia à ira de Deus, que, ao contrário os envolve com ternura, amor e compaixão, o que provoca um desconcerto.

Em relação ao tema da luz, Simeão declara ser aquele menino a luz que ilumina as nações. O vocábulo grego utilizado por Lucas é ethnôn (gr. ἐθνῶν ), indica os povos pagãos. E isto causa o desconcerto, porque a tradição dizia que Israel com seu messias deveriam ambos dominar sobre os pagãos. Ao contrário, o evangelista coloca nos lábios do homem movido pelo Espírito que o projeto de amor de Deus é universal e destina-se também aos pagãos. Mais uma vez o catequista bíblico diz que o desconcerto paira, agora, sobre os pais do menino.

Simeão se volta para Maria, mãe do menino, com uma bendizência em tons coloridos de dramaticidade: “Este menino vai ser causa tanto de queda como de reerguimento para muitos em Israel. Ele será um sinal de contradição” (v.34). Jesus será o instrumento do agir de Deus que, através de sua vida, missão e obra subverterá a lógica humana. Ele realizará a inversão escatológica querida por Deus: a novidade, ultimidade, plenitude da ação e do querer de Deus realizando salvação na história através dos últimos.

O homem movido pelo Espírito completa com essas palavras: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma” (v.35), dirigindo-se à Maria. Que espada é esta? Não é nenhuma profecia das dores e dos sofrimentos da mãe em relação ao seu filho. A intenção é bem outra e muito mais profunda. A espada, na tradição bíblica, sempre foi símbolo para a Palavra de Deus, que ao penetrar no íntimo do homem gera uma divisão, a ponto de fazer o fiel tomar uma decisão: uma espada-Palavra que gera divisão-decisão no ser humano. Mas, em relação à Maria, a espada é a Palavra de Deus através da palavra de seu filho Jesus. O que está dizendo Simeão à Maria? Que a palavra deste seu filho fará com que ela tome decisões até mesmo difíceis.

Como Maria acolheu a palavra do anjo, no relato da anunciação, em Lc 1,26-38, e se tornou a mãe de Jesus, agora deverá acolher a palavra de seu filho para prosseguir em seu crescimento e se tornar discípula exemplar. Ora, no evangelho de Lucas, ela é apresentada como o modelo do discípulo do Reino, porque possui as características esperadas do discípulo: a escuta da Palavra de Deus, seu acolhimento na vida – tal como uma espada que traspassa a existência – o cumprimento – realização da Palavra na vida através das obras, da vida colocada em resposta, doação e serviço. Para ela, não foi fácil percorrer o caminho do discipulado, superando em relação ao seu filho a condição de mãe para tornar-se discípula de seu filho.

Assim, para se tornar parte da Família de Deus, o discípulo deverá procurar assumir em si as disposições necessárias: como Maria, ouvir a Palavra – deixar-se traspassar pela espada – de Jesus, acolhê-la em seu íntimo, e crescer na condição do discipulado.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA O DIA DE NATAL - Jo 1,1-18:

 


A liturgia deste dia Solene do santo Natal apresenta para a meditação eclesial a leitura do prólogo do Quarto Evangelho. Podemos dizer que se trata de um hino ao projeto de amor fiel de Deus para a humanidade. O caráter próprio dos dezoito versículos que compõem este belíssimo canto de entrada que é o prologo do Evangelho joanino nos coloca na mentalidade própria do autor do Quarto Evangelho, de modo a compreender bem o texto bíblico. Nesta introdução, o evangelista resume todo o conteúdo de sua catequese. Propomos começar a sua meditação a partir do último versículo, para bem compreendê-lo: “A Deus ninguém jamais viu. Mas o Unigênito de Deus, que está na intimidade do Pai, ele no-lo deu a conhecer” (v.18). Uma afirmação fortíssima, se o leitor-ouvinte do evangelho a tomar literalmente. Uma afirmação que contradiz até mesmo a própria bíblia, uma vez que os autores sagrados escreveram as experiências de Moisés com Deus.

João não está de acordo. Deus, ninguém jamais O viu. Portanto, as descrições acerca de Deus feitas por Moisés são conflitantes, incompletas e não expressam a plenitude da experiência com Deus. Todavia, “o Filho unigênito de Deus”, no sentido da unicidade existente entre Deus e o Filho – e, que, portanto, é Deus – , que  está no seio mesmo do Pai, isto é, na plenitude da vida de divina, “na intimidade do Pai”, é quem revela Deus para a humanidade. Com esta afirmação, o evangelista conclui o prólogo de sua catequese, convidando, pois, a todos os discípulos-leitores a colocarem a atenção sobre a figura de Jesus. Isto quer dizer que não é Jesus que se iguala à Deus, mas Deus que se iguala a Jesus. Se dissermos que Jesus é igual a Deus, correremos o risco de afirmarmos ser ele apenas uma imagem ou ideia de Deus. O evangelista nos convida a suspender esta imagem e romper com essa ideia, e centrar toda a atenção a Jesus. Tudo aquilo que vemos em Jesus, isso é Deus mesmo. João, através deste prólogo trata de propor e de ensinar para a sua comunidade uma nova forma de ver e de conhecer a Deus.

“No princípio era a Palavra” (v.1). Quando se repensa esta primeira linha do prólogo, sob pano de fundo hebraico, é evidente que ele tem em mente o Gênesis. Mas o evangelista toma certa distância da teologia do primeiro livro da Bíblia que começa com um “No princípio (Bereshit), Deus criou o céu e a terra”. Para o catequista bíblico, “no princípio,” antes ainda da criação existia a Palavra-verbo, que possuía um projeto que interpelava a Deus. Qual era esse projeto? Doar ao homem a condição divina.

Logo, João faz uma releitura do poema da criação do Gênesis (Gn 1,1-31). Ali se fala da palavra efetiva, criadora e ordenadora. Esta Palavra foi efetiva: “Haja Luz, e houve luz”. É, então, sobre esta Palavra efetiva e eficiente que João faz uma meditação para nos colocar no espírito de sua obra. É uma Palavra que faz coisas, que cria possibilidades e horizontes.

No v.12, o autor do Quarto Evangelho afirma que a Palavra veio para os seus, mas os seus não a acolheram, mas pontuando que não foram todos dentre os que eram seus, que não o acolheram (Israel e suas lideranças). Mas aqueles que A acolheram, se tornaram filhos de Deus. Tornando-se filhos no nome do Filho, e receberam, portanto, Graça por Graça.

O v.14 é explosivo, ao passo que é o versículo central deste prólogo: “A Palavra se fez Carne e (literalmente) armou sua tenda entre nós, e nós vimos a sua Glória” (gr. ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν / ho logos sarx egheneto kai eskenéhsen en ehmîn). Esta Palavra-lógos que evoca João é a Palavra geradora, criadora e ordenadora de Gn 1; a Palavra-Sabedoria criadora de Deus. Esta, segundo o evangelista, não se torna homem, mas carne (gr. σὰρξ / sarx), ou seja, a estrutura mais frágil da condição humana. O projeto de Deus não se realiza através de um super-homem a ser imitado ou contemplado, mas se realiza e toma forma na debilidade humana, isto quer dizer que Deus se manifesta na humanidade. Quanto mais o homem se torna humano, descobre o divino que existe nele. Esta Palavra-verbo que se fez carne é o projeto de amor fiel de Deus, que se revela num homem bem concreto que se torna o único e o verdadeiro santuário através do qual a humanidade toda poderá se encontrar com Deus. Esta imagem evoca a Tenda da Reunião, nos livros de Êxodo e Números, a Shekiná. Por meio dessa imagem sugestiva da tenda, João quer ensinar para a sua comunidade que a Palavra-verbo, Jesus é a nova Shekiná de Deus no meio de nós. E, por isso, sua Glória e seu amor se tornam visíveis para nós.

João, ao declarar que a Palavra se fez carne, significa dizer que a Palavra se tornou humanidade precária já marcada para a morte. O caminho de toda a carne é a morte. Então, a encarnação de Jesus não é só seu natal, mas também sua sexta-feira da paixão, quando a encarnação é consumada e levada a Termo. Aqui, Jesus é carne ao extremo.

O v.14 acrescenta mais uma informação importante: “e nós vimos a Sua Glória”. Glória no Antigo Testamento não é sinônimo de Brilho. Em hebraico, a palavra Glória (hbr. Kabod) significa Peso, substância. Ora, o Judeu, que sabia lidar com ouro tinha a consciência de que este pode, enquanto polido irradiar sua glória e brilho. Mas mesmo opaco, sem nenhum tratamento, ele sabe que a importância do ouro não está no seu brilho, mas em seus quilates, portanto em seu peso, mesmo escondido. Então, Glória é como o ouro, que, mesmo escondido, tem seu peso, sua subtância, sua qualidade, seu Kabôd.

O que está no Menino de Belém [Jesus] não é algo que brilha sobre o mundo, mas o Peso e a substância de Deus (Kabod há YWHW – Glória de Deus) em meio à história. João quer ensinar à sua comunidade e ao leitor de seu evangelho que o lugar da manifestação da Glória (da presença) de Deus acontece na Carne, na vida e na história de Jesus de Nazaré. A glória de Deus (seu peso, sua presença substanciosa) reside, agora, na Carne do ser humano: reside no Homem.

“Pleno de Graça e de Verdade (gr. πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας / plêres cháritos kai Aletheías), nos informa, ainda o v.14. Estas duas palavras nos fazem retornar ao modo semítico de pensar. Em Hebraico, Graça corresponde a Hesed-Hem, dois conceitos que estão muito próximos. É aquela Benevolência indescritível e Leal. Já Verdade corresponde ao hebraico Emet (fidelidade e veracidade), verdade (mas normalmente, no sentido existencial), que pode ser resumida na expressão “Amor Leal” ou “Amor Fiel” (ou mesmo, Amor e Fidelidade). Graça e verdade são traduções muito aproximativas daquele Amor fiel (Hesed waEmet), que são as ultimas palavras de autorevelação de Deus em Ex 34,26, quando YHWH passa diante de Moisés e lhe proclama suas próprias qualidades, dentre elas seu amor e sua fidelidade. Então, é o mesmo Deus do Sinai que está presente neste unigênito, que não é outra coisa, senão a automanifestação (ou autocomunicação) deste Deus pleno de Graça e verdade.

Assim sendo, a solenidade do Santo Natal, que celebramos hoje, é a festa da glorificação de nossa Carne, através da Carne de Jesus de Nazaré, o Unigênito Filho de Deus. No mistério de sua Encarnação, sua Antróposis, Deus eleva a condição humana à sua Théosis, à Deificação. Dizer que através da Carne do Filho tem-se acesso à glória de Deus, significa dizer que Carne (tudo aquilo que é de mais frágil, precário, finito, débil e mortal) se torna lugar de Deus. O humano se torna lugar de Deus. A humanidade torna-se o lugar de Deus. Ela, agora, leva consigo o próprio Deus, que desejou ser cuidado, também, na fragilidade de uma Criança. Como bem expressou Santo Irineu de Lyon, "a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus (Adversus Haeresis, de Santo Irineu, Bispo (Lib. 4, 20, 5-7: Sch 100, 640-642. 644-648, séc. I). Como dizia acertadamente Fernando Pessoa: "Tão humano assim, só poderia ser Divino" (parafraseando consciente ou inconscientemente São Leão Magno).

Feliz e Santo Natal.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.


quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA A NOITE SANTA DO NATAL - Lc 2,1-15:

 



A noite santa na qual a Igreja faz a memória atualizadora da completude do mistério da Encarnação, da primeira vinda do Senhor, é iluminada por esse riquíssimo texto evangélico de Lucas, Lc 2,1-15. O catequista, mais do que transmitir para seus leitores e para todos nós, a segunda geração dos discípulos, uma crônica, narra um acontecimento real, interpretado à luz da fé Cristã. O que isso quer dizer?

Mateus e Lucas escrevem sobre os primeiros momentos da vida de Jesus. Mas o fazem de maneira diferente. O primeiro, escreve o nascimento de Jesus, como sendo da estirpe de Davi, pois para o seu público judeu-cristão, o Messias deveria ser o descendente legítimo da estirpe de Davi – e legítimo, aqui, não quer dizer biológico. Jesus, conforme a lei judaica, era da casa de Davi porque José assim o era, e o pai da criança era o responsável em dar nome e transmitir-lhe a descendência. Mateus faz uma teologia narrativa acerca dos acontecimentos ao redor do nascimento do menino! Lucas, por sua vez, ao estilo grego faz um pequeno relato dos acontecimentos. O terceiro evangelista, como historiador que era, enquadra os eventos num momento histórico e tem pouca coisa em comum com Mateus. É verdade que existe uma tradição subjacente: subjaz ao relato dos dois catequistas bíblicos uma mesma tradição (aquilo que foi transmitido) antes que os dois evangelistas escrevessem seus evangelhos, e ela se refere ao nascimento de Jesus em Belém. Ou seja, Lucas faz uma teologia da história. O evangelho desta noite santa é permeado desta teologia.

O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). O evangelista possui uma visão ecumênica, ou melhor, inclusiva (universal, se preferir) na transmissão de seu relato.

O terceiro evangelista nos informa que José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, desposada com ele. Talvez essa palavra “desposada” já não cabe mais, pois no primeiro capitulo, Maria estava prometida em casamento a José, então casada com ele. Na cidade de Belém ela dá a luz ao filho primogênito: o Ya’hid (meu único), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os direitos jurídicos (v.5-6).

No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas, desde o nascimento delimita “o que virá a ser esse menino”, ou seja, a figura de Jesus que perpassará todo o evangelho. Mas isso, na ordem da narrativa, pois devemos evitar, aqui, todo e qualquer determinismo quanto à vida de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade.

O menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para ele na sala da hospedaria. Lucas que mostrar que Jesus está entre os excluídos. Imaginemos o contexto social da época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas rochas. Dentro delas haviam galerias onde era possível arrumar um cantinho para ficar, enquanto que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na estrebaria. Mas nem um lugar nessas galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito provavelmente, tenham ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos pastores da região, como o resto da narrativa sugere.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso se tornavam inaptos para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente! Os pastores tornam-se símbolos para todos aqueles que se encontram na exclusão.

Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. Interessante notar a composição lucana sempre mostrando o contraste entre escuridão e claridade, como que se Deus gostasse de se manifestar na escuridão (por exemplo, a nuvem escura que desce sobre a tenda da aliança no deserto) ou na luz da salvação predita pelo profeta Isaias em 9,1.

Os primeiros cristãos viram no nascimento de Jesus uma realização do que foi predito pelo Profeta Isaias no cap.9,1. Esta Luz aparece aqui aos pastores. Isso é muito interessante: não é uma luz que atinge as pessoas, mas que as envolve. Ficando eles envolvidos também por um certo temor religioso, o anjo, então, lhes exorta, primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve ser uma barreira. Em segundo lugar, lhe dá o motivo: um evangelho de alegria para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor!

A palavra Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor de uma função especial, como o rei e o sumo sacerdote. E isso, na Cidade de Davi.

O mensageiros celestial lhes dá um sinal para encontra-lo: encontrarão o menino deitado numa manjedoura, envolto em faixas! O sinal é encontrar, portanto, o menino colocado no lugar da exclusão! O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso. Não poderá ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Não está no esplendor do templo de Jerusalém. Não está entre os poderosos.

O sinal é um menino envolto em faixas e colocado em meio a paus trançados – a mangedoura. Porque não havia lugar para eles na hospedaria (Lc 2,7). Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feito Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos. Deus empodera os pequenos optando por eles.

Na manjedoura de paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Na cidade de Belém já se vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz. O sinal do menino envolto em faixas é sinal da inversão escatológica: Deus que inverte a lógica dos poderosos em favor dos pequenos.

Na narrativa, imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece uma multidão da corte celeste para anunciar o nascimento do messias: Glória a Deus, no mais alto dos Céus, e paz na terra... Hino celestial muito poético! Significa que o céu e a terra se unem num evento único: a Glória de Deus, que produz Paz (shalom) na terra. Isto é um reflexo do Sl 84. A plena realização (plenitude) – Shalom. Significa que Glória de Deus, ao encontrar-se entre a humanidade através da Carne do menino, está inaugurando o tempo messiânico, o tempo do Shalom, do “debito quitado”, da Paz.

Entramos aqui numa questão semântica: essas pessoas se agradam em Deus ou será que elas recebem o agrado dele? Alguém poderia seguir o exemplo dos fariseus do tempo de Jesus, que faziam de tudo para agradar a Deus. Entretanto, conhecendo a teologia de Lucas, podemos nos inclinar para o seguinte significado: estes, aos quais os anjos anunciam, são os que recebem o prazer ou agrado do coração e do olhar de Deus. Equivaleria dizer que o coração de Deus é oferecido às pessoas que tem um coração humilde. Assim, o agrado de Deus é a salvação do ser humano.

Que a festa do Natal do Senhor possa abrir as portas de nossos corações para a hospitalidade para com o irmão e a irmã que não encontram lugar em nosso meio.  Se quisermos ver o menino, deveremos lançar o olhar para a estrebaria e para a manjedoura. Ele está ali, com os últimos e excluídos. Se quisermos ver a Glória de Deus, deveremos olhar para a Carne assumida pelo Filho, e enxerga-lo envolto em faixas e colocado na manjedoura. Olhar para a Carne do Menino de Belém, e para a sua opção pelos últimos. Humano assim, só pode ser Deus.

 Possamos nós estarmos entre os pastores que recebem este evangelho: Deus põe seu Agrado em nós, através de Jesus, seu Filho. Possamos estar onde o menino está; no lugar da opção feita por Deus. Eis o Mistério desta noite Santa.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.


sábado, 19 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA O IV DOMINGO DO ADVENTO - Lc 1,26-38:



A liturgia deste quarto domingo do advento, propõe a narrativa do anúncio divino destinado à humanidade toda na pessoa da jovem de Nazaré. A cena é muito densa em toda a sua composição bem como em seu significado. O texto escolhido para a meditação eclesial é Lc 1,26-38, a continuação da narrativa anterior, a qual apresentou-nos o anúncio do nascimento de João. O terceiro evangelista em sua técnica narrativa gosta de trabalhar com o esquema do díptico: narrativas semelhantes com personagens distintos. Se na anterior, apresentou um personagem masculino como protagonista, agora trata de introduzir uma personagem feminina como protagonista da cena. 

Antes de lançarmos olhos para a narrativa em si, convém direcionar o olhar para as personagens tanto deste texto proposto pela liturgia para a nossa meditação, quanto da perícope anterior. Eles ajudam a Lucas em seu projeto redacional, ou seja, para a sua catequese comunitária. É importante ter presente que o evangelista trabalha com temas que atravessam todo o seu evangelho. Um dos temas é a misericórdia. Ela apresenta-se do princípio ao fim da catequese evangélica. Na intenção do autor, as personagens Maria, Isabel e Zacarias, já neste mini-evangelho, que convencionamos chamar as narrativas da infância de Jesus, são expressões do agir de Deus na história humana, até manifestar-se plenamente no rosto, na história e na missão de Jesus de Nazaré.

O Deus e Pai de Jesus, na intenção do evangelista, recorda-se (atualiza) de sua Aliança com a humanidade sofredora, mostrando seu agir em favor dos últimos, dos desprezados, dos espoliados da história, dos quais Maria, Isabel e Zacarias são símbolos, através de Sua atuação em favor destas personagens, retirando-as da condição humilhante e desprotegida em que viviam. Isabel era estéril e, juntamente com Zacarias, de idade avançada viviam uma situação que chamamos abraâmica. A jovem Maria de Nazaré representa todos os homens e mulheres que se encontram na situação da indigência e do sofrimento. O que o Deus de Israel faz é, precisamente inverter o sentido da realidade histórica, servindo destes excluídos para serem protagonistas de seu projeto de amor e de salvação. Protagonistas de sua Misericórdia – de seu agir-em-amor em vista da humanidade sofredora.

A cena muda de personagens e de localização. De Jerusalém, Lucas direciona seu leitor-discípulo para a depreciada Nazaré. A expressão inicial “Naqueles dias” (v.1) indica não somente um marco temporal, mas uma afirmação teológica: é o dia pleno. Neste dia, informa-nos o evangelista, que o valente de Deus (hbr. Gehber / Gabriel), foi enviado a uma jovem da Galileia, residente em Nazaré. O anjo na tradição bíblica é símbolo para a ação do próprio Deus. A jovem, estava prometida em casamento a um homem chamado José. A promessa de casamento, segundo tradição religiosa judaica, já configurava casamento. O autor informa-nos o nome da moça: Maria.

O autor usa o gênero literário de anúncio, seguindo o esquema: apresentação do mensageiro, a mensagem, a confusão da personagem, e a conclusão. A cena se desenvolve em três momentos progressivos, em que a mensagem é retomada e aprofundada. Primeiro, uma saudação rica de significado.  Anjo a saúda: “Alegra-te, tu que recebeste Graça (gr. κεχαριτωμένη / agraciada)”. O convite à alegria messiânica é, agora, plenamente justificado. Maria, com efeito, é eleita pelo amor misericordioso e benévolo de Deus; escolhida pela Graça, para uma missão excepcional que os profetas antigos prenunciavam. “O senhor está contigo”, mais do que um desejo do anjo, é uma garantia Divina para o novo compromisso salvífico. O texto lucano mostra (v.29) que ela também fica com um certo temor. O anjo a tranquiliza, exortando-a para não ter medo, pois encontrou ela Graça diante de Deus (mais uma vez aparece a palavra Graça-misericordia).

A expressão “Encontrar graça” servia para traduzir a situação de um servo diante de seu senhor ou de uma serva diante de sua senhora (Ex 33,12-17; 34,9; 2Sm 15,25). Na maioria das vezes, o servo ou a serva permaneciam inquestionavelmente no seu lugar e na sua função, sem qualquer direito, mudança de situação. Por isso, quando uma pessoa nesta condição encontrava graça, era porque o coração de seus senhores se fazia complacente e favorável. A graça nunca é um pedido ou mérito, mas é graça porque é de graça. Em Maria, Deus demonstrou graça à humanidade, de graça e não por mérito. 

Dirá o anjo que ela conceberá um filho, que será chamado de Jesus (hbr. Ieshua / Deus Salva - salvador). Nele se realiza a promessa feita a Davi em 2Sm 7,15, no tempo dos antigos. Neste menino se cumprirá todas as promessas de Deus; mais uma maneira de se dizer que esta boa nova ultrapassava de longe as expectativas judaicas. Uma realização do referido texto de 2Rs, acima. Realiza-se, em certo sentido, a profecia de Isaías (Is 11,1-9): da raiz de Jessé, pai de Davi, Deus suscitaria um rebento para governar o mundo, não pela espada, mas pelo Espírito. Ele estará cheio do Espírito de YHWH e não julgará pelas aparências, nem pelo ouvir dizer, mas julgará os fracos com justiça e pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra. O nascituro terá um nome significativo: “O Senhor salva”, Jesus: ele será grande, será Filho do Altíssimo e reconhecido como tal. Estes dois vocativos convidam o leitor-discípulo a reconhecer no filho de Maria, uma personalidade que assume as feições próprias de Deus. Na linguagem tradicional da Bíblia, o vocábulo “Grande”, em sentido absoluto, refere-se unicamente à Deus.

Maria pede alguma coisa para ter certeza, assim como Zacarias. E no seu caso isso não é considerado uma afronta ou descrença, pois ela não conhece a José no sentido sexual. Lucas já apresentou Maria numa atitude atenta, reflexiva e pronta para entender o sentido e as consequências da Palavra de Deus. Ora, sua objeção revela a mesma atitude espiritual. O Anjo dirá – introduzindo a segunda parte do anúncio acerca da identidade do filho de Maria – que o Ruah YHWH (Espírito de Deus = dinamismo de vida do próprio Deus) realizará isso. Uma expressão poética, mas que na verdade que dizer muito: uma maneira de se ilustrar a relação íntima do casal. Aplicado à Maria, pretende dizer que a concepção e geração de seu filho será uma atitude de Deus.  Ele resolverá o problema. Por isso, aquele que nascer será Filho de Deus e não de José.

Desde suas origens humanas, Jesus é Filho de Deus. Isso não é questão biológica, mas de pertença e autoridade divina. Mesmo se Jesus tivesse sido suscitado fisicamente por José, ele não o pertenceria, mas a Deus somente: ele é totalmente Filho de Deus.  E o sinal de que Deus é capaz de muita coisa, é aquilo que acontece com Elisabeth, que concebeu um filho na velhice: pura graça de Deus.

Então dirá Maria o seu “faça-se” (gr. γένοιτό μοι κατὰ τὸ ῥῆμά σου / genoitô moí katá tô rêmá soú)”. Ela dá através desse sim o seu assentimento à Palavra transformadora e performativa; e se torna a servidora desta Palavra já assumida. Só então tem sentido o que virá a seguir: partir para junto de sua prima para servi-la. Ao se tornar serva da Palavra encarnada, ela se torna serva dos mais debilitados. Serva dos excluídos. Encarna em disposições concretas o serviço a Deus, prestando sua ajuda à sua prima. Dirigindo-se apressadamente para socorrer sua parente Elisabeth, idosa, frágil e gestante. E então parte para Ayim Karin.

No evangelho segundo Lucas, o modelo para o discípulo do Reino é Maria, porque ela conserva em si as virtudes características do discipulado: Ouvir a Palavra de Deus; acolher esta Palavra de vida e Salvação; e realizar (cumprir / frutificar) a Palavra de Deus através da vida colocada em doação e serviço aos homens e mulheres de todos os tempos, lugares e condições. Maria, como modelo do discípulo que assumiu a Palavra de Deus como seu projeto de vida, colocou-se ao lado dos marginalizados da história. Ao escutar, acolher (ruminar/confrontar) e realizar a Palavra de Deus, Maria vai tecendo em seu ser Jesus-Palavra.

Neste tempo do advento, qual vem sendo a atitude diante da Palavra que Deus dirige também a nós, como fez à Maria? Também a nós Deus dirige seu favor, chamando-nos de agraciados. Qual vem sendo nossa resposta? Nossa vida e missão tem sido um frutificar da Palavra de Deus? Ao lado de quem nos colocamos, enquanto discípulos e discípulas do Reino? Que neste quarto domingo do advento, o Deus e Pai de Jesus Cristo possa encontrar em nossas vidas o mesmo espaço que Ele encontrou na jovem de Nazaré para o acontecimento de seu querer.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 5 de dezembro de 2020

HOMILIA PARA O II DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Mc 1,1-8:



 A liturgia do segundo domingo do advento, apresenta o início do primeiro Evangelho da comunidade cristã, o evangelho segundo Marcos. Situamo-nos na introdução da catequese do evangelista, a qual apresenta, desde o começo algumas notas que serão norteadoras para a leitura e meditação da primeira catequese comunitária.

O texto começa da seguinte maneira: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v.1). Só esta primeira linha introdutória é repleta de significados que merecem ser saboreados. Este título traz consigo, segundo o interesse de Marcos, uma série de referências acerca de Jesus e de um certo “evangelho”.

Em primeiro lugar, o termo “evangelho” (gr. εὐαγγέλιον / euanghelion), literalmente significa “boa notícia”. Uma alegre notícia, que no contexto do mundo bíblico é, primeiro, um anúncio importante provindo da corte do rei (p.e. nascimento de um membro da família real), ou mesmo anúncio de vitória sobre os inimigos. No campo religioso, o termo estava sempre relacionado ao agir libertador de Deus, sua intervenção sempre salvífica em favor do povo. No mundo extra-bíblico, no contexto do império romano, um evangelho continha sempre o anúncio feliz da ascensão de um novo imperador, o nascimento de um novo príncipe, ou mesmo a vitória de Roma sobre alguma potência estrangeira na época. Mas, para os autores do Novo Testamento, ou seja, os primeiros catequistas da comunidade, esta “Boa Notícia” estava relacionada à narrativa da vida, missão e obra de Jesus, em seu mistério de paixão, morte e ressurreição, bem como acerca da própria pessoa de Jesus. Em simples palavras, o evangelista, através deste termo, “evangelho”, quer fazer crescer sua comunidade e as gerações seguintes na consciência de que a Boa Noticia é uma pessoa, Jesus de Nazaré, e o sentido histórico salvífico que sua vida atinge.

Em segundo lugar, os complementos nominais que se seguem só nesta primeira linha do v.1, “Cristo” (sem o artigo definido), e “Filho de Deus”, funcionam como genitivos restritivos. Eles tem a função de acenar para a identidade deste Jesus, evangelho por excelência, mas que precisa ser amadurecida. Cristo é a tradução grega da palavra hebraica “messias”. Note-se, aqui, mais uma vez, que ela não vem acompanhada do artigo definido. Marcos não quer identificar a Jesus com “o Messias” davidico, aquele esperado pelo povo e pelas elites como sendo o valente guerreiro político e revolucionário que deveria libertar o povo de Israel da opressão dos dominadores e restaurar a realeza davídica. O evangelista concebe o messianismo de Jesus de outra forma, a qual se desenrolará no decorrer da narrativa evangélica. Filho de Deus é outro genitivo restritivo que precisa ser compreendido bem, mas que só o será na medida em que o leitor-discípulo vai avançando na compreensão e no conhecimento de Jesus. Ele só será revelado como Filho de Deus através da proclamação do oficial romano, aos pés da cruz. Marcos aplica esse adjetivo a Jesus para comunicar uma mensagem à sua comunidade: o messias, o ungido, e Filho de Deus não é o Cesar de Roma (ideológica e falsamente reconhecido como divino), mas este Jesus de Nazaré.

A boa notícia que vem através da vida, missão e obra de Jesus é a nova realidade de um modo totalmente novo e diferente de relação entre o homem e Deus. Relacionamento este que não se dará mais por intermédio da Lei (termo que não aparecerá mais no evangelho marcano), mas através da acolhida e da assimilação de Seu amor, através da vida de Jesus.

No v.2, Marcos se serve de uma passagem contida no Segundo Isaias, Is 40, que, começa com um convite de ânimo e de consolação para o povo sofrido e exilado em Babilônia. O texto do qual o evangelista usa é daquele período. E faz, portanto, sua releitura daquele “consolai o meu povo! Consolai!”, pois “O vosso Deus chega com poder”. Mas para que ela venha, se faz necessária atitude próprias. Ouvir a voz que grita no deserto, e acolher o convite à segunda atitude, “preparar os caminhos do Senhor”. Na perspectiva do evangelho é João.

O evangelista apresenta o primeiro personagem de seu evangelho. Um tal João, cujo nome hebraico significa “Deus é Misericórdia (Deus é Graça)”, que batiza no deserto. Em João, o povo simples reconhece a vinda do profeta verdadeiro, esperado por quatro séculos. Por quatrocentos anos o povo viveu sem profetas, uma vez que as autoridades do templo haviam proibido o exercício da profecia em Israel, no pós-exílio, o que se pode verificar na profecia de Zacarias 13. O templo pretendeu abafar a profecia porque não a suportava. O evangelista apresenta esse homem vestido com pele de camelo, que se alimenta de gafanhotos e mel silvestre. É retratado como figura e símbolo do grande profeta do povo, Elias.

O que significa este batismo? Sem recorrer ao significado litúrgico propriamente, “batizar” significa imergir/mergulhar. Era um rito conhecido já do povo, com o qual se indicava uma nova realidade na pessoa. Por exemplo, um escravo, para indicar sua liberdade passava pelas águas para representar sua liberdade, ao sair da água. Nesse sentido, o batismo era uma forma de morte para o passado a fim de se iniciar uma vida nova. Na perspectiva de João, o batismo que pregava e realizava era destinado à conversão.

Na língua grega existem duas maneiras de indicar a conversão. A primeira, indica o retorno (hbr. Shub(v)) à religião, à Deus, ao rito, à oração. Pois bem, o evangelista não fala deste tipo de conversão, porque com Jesus não há que se retornar à Deus, mas acolhe-Lo e com ele e através Dele voltar-se para os outros. Marcos usa outro termo que indica um profundo movimento de mudança interior que comporta uma mudança de comportamento.

O efeito da conversão é o perdão dos pecados. Na mentalidade do judeu piedoso, o perdão para os pecados se dava mediante o seu comparecimento no Templo, no cumprimento dos sacrifícios e dos holocaustos previstos pela Lei e pelo culto levítico. O batizador João, através deste rito, está dando as costas para o sistema religioso, inutilizando-o, por assim dizer. E se coloca no deserto. Qual a respostas das pessoas que ouviam falar desta iniciativa do profeta batizador? Iam para o deserto, nas margens do Jordão, e passavam pelo batismo de João.

O evangelista sublinha o lugar geográfico do rio Jordão. Ele não é só uma localização espacial, mas um lugar teológico também. Na tradição do Pentatêuco, o Jordão era tido como o último lugar de travessia por onde o povo teria que passar para entrar, conquistar e possuir a terra prometida, saindo da vida da escravidão e passando para uma vida de liberdade e totalmente nova. Interessante que os que acorrem à João, no deserto, a fim de serem batizados, não são somente os da região da Judeia, mas todos os habitantes de Jerusalém. Outro aspecto para o qual Marcos nos chama a atenção é o caminho contrário que os habitantes de Jerusalém assumem. Eles vão na direção oposta à capital, que, na tradição religiosa é o lugar sagrado, a terra prometida. É uma forma de se dizer que aquela terra de promessa havia se transformado numa terra de escravidão, da qual se deve sair. No ato de sair de Jerusalém, se reconhece que a conversão e o perdão para os pecados não podem estar encerrados nos sacrifícios, nas prescrições da Lei, mas no profundo e sincero movimento interior de mudança de vida, e, por isso, acorrem à João.

Mas, de verdade, o que faz João; ou, de outro modo, o que não faz? O que ele faz é explicitado no v.8a: “Eu vos batizei com água”. Ou seja, o batizador é um instrumento para a mudança de vida e de mentalidade. O que ele não pode fazer é outra coisa: batizar com o Espírito Santo. Ou seja, João não pode comunicar o dinamismo de vida de Deus que é capaz de fazer com que o ser humano viva esta nova realidade iniciada pela conversão e pelo perdão dos pecados. Este é, portanto, o anúncio da vida de Jesus, que é aquele que batizará com o Espírito Santo, aquele que insere o homem e a mulher no horizonte da vida mesma de Deus, e esta será a atividade e a missão de Jesus.

O evangelho deste segundo domingo do advento nos dá três lições-atitudes que devemos procurar assimilar. Escutar a voz: ela orienta, segundo o texto de hoje, a acabar com todas as dificuldades, a deixar um caminho livre e aberto, para que Ele possa chegar. Chegará na estrada que cada homem e mulher se propõe a preparar. Na verdade, Ele vem ao encontro nesta estrada. No caminho que deixamos prontos para encontrarmos com Ele, ou seja, a atitude do “aplainar/preparar os caminhos”. A fim de se acolher o convite à conversão, que é atitude interior da mudança de mentalidade e de vida. Só assim se pode participar da vida e da missão Daquele que batiza com o Espírito Santo, o qual nos insere na vida e no horizonte todo de Deus.

Nossos ouvidos estão atentos a este apelo? Que caminho/estrada temos preparado para o Senhor que vem; e que via podemos a ele apresentar como lugar de encontro entre ele e nós?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP. 

sábado, 28 de novembro de 2020

HOMILIA PARA O I DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Mc 13,33-37:

 


O ciclo litúrgico que se inaugura na Igreja a partir deste primeiro domingo do advento abre a leitura do Evangelho segundo Marcos. Para a meditação eclesial, a liturgia propõe o texto de Mc 13,33-37, a conclusão do seu sermão escatológico. Antes, porém, de nos colocarmos no horizonte do texto é importante que compreendamos três pontos: a especificidade dos dois primeiros domingos do advento, que se inserem no primeiro ciclo deste tempo litúrgico, que se encerra em dezessete de dezembro. Em seguida, compreender o contexto amplo do capítulo treze da catequese marcana, e, por fim, o contexto imediato do texto, a fim de colher e saborear sua mensagem.

O tempo do advento divide-se em dois momentos. O primeiro, que se estende até o dia dezessete do corrente mês, apresenta a temática do advento escatológico de Jesus. Ou seja, a liturgia faz com que o fiel, através dos textos bíblicos se abra para o horizonte da segunda vinda do Senhor. Já os domingos seguintes, são marcados pela temática simbólico-sacramental, ou se preferir memorial, da primeira vinda, celebrada com o santo natal. Ora, o Advento não é a espera de Alguém que ainda deve vir, mas é uma renovação do compromisso de tornar manifesto o Cristo que já veio e permaneceu com os seus. Portanto, o papel da comunidade cristã é tornar sempre mais visível a presença do Senhor através do amor. É o tempo para se abrir os olhos e reconhecer Deus no pequenino; no último. Compreendidas as especificidades do tempo do advento, principalmente situando-nos no horizonte do advento escatológico do Senhor, que prepara, portanto, sua segunda vida, e nos convida a estar vigilantes, é que se pode avançar na compreensão do evangelho dominical.

O contexto amplo do capítulo treze da catequese marcana situa-se no sermão escatológico concentrado pelo evangelista neste capítulo. Ele é chamado “apocalipse de Marcos”. Apocalipse significa revelação. Não se trata de tragédia ou catástrofe, mas da consolação do fiel, do povo, da humanidade por Deus. Este gênero literário serve-se de um vasto campo simbólico para transmitir uma mensagem de ânimo e de esperança em tempos de crise e de desolação. Na realidade, a literatura apocalíptica é essencialmente uma literatura de resistência, e a promessa de uma mudança radical para breve alimenta a força de resistência para a comunidade.

Importante consideração: o gênero literário apocalíptico não é uma futurologia, mas leituras da História, que está nas mãos de Deus em última análise. Fala do sofrimento do tempo presente, mas anunciam a intervenção decisiva de Deus, mantendo assim no povo oprimido a esperança, a vigilância e a firmeza. É este também o objetivo do discurso de Mc 13.

O texto que abre o tempo do advento situa-se na conclusão deste sermão escatológico. Imediatamente após estes ditos de Jesus (13,33-37), segue-se a narrativa de sua Paixão, Morte e ressurreição, segundo Marcos. Ora, os momentos finais da vida Jesus mostram o desfecho histórico de sua primeira vinda. Mas o mistério da Ressurreição abre a expectativa para a segunda vinda, a parusia – a plenitude do tempo novo inaugurado pelo anúncio do Reino proclamado por Jesus. Todavia, na incerteza do tempo, do momento em relação a esta volta do Senhor. Certo é, sem dúvida, o acontecimento. Incerto é o “quando”. Diante desta tensão, caberá ao discípulo acolher o convite de Jesus à vigilância.

Duas são as formas de ler o texto de hoje, unindo-as num mesmo horizonte; de acordo com o horizonte do texto, ao interno da narrativa de Marcos, o discípulo deverá tirar as pistas para superar o momento da tribulação pela qual passará o mestre, e saber se comportar diante dos eventos de sua paixão, morte e ressurreição; e a segunda forma é a da assimilação deste convite à vigilância frente a demora e da espera paciente da segunda vinda. A constante vigilância do cristão é toda ela um programa de ação. Mc 13 ensina a vigilância com vistas à nova vinda de Jesus, que quer encontrar os seus ocupados com as coisas do Reino, sobretudo a caridade fraterna.

Ao interno do texto, Jesus está com seus quatro mais próximos, Pedro, André, Tiago e João, sobre o monte das Oliveiras, olhando para Jerusalém e o templo. Nas narrativas anteriores, Jesus fez ver aos discípulos a oferta da pobre viúva no Templo; eles também se maravilhavam com os ornamentos do recinto. Fora dele, podem ver e contemplá-lo, uma vez que não sobrará pedra sobre pedra, conforme dissera anteriormente. Com esse panorama, os discípulos se inquietam e perguntam a Jesus “quando será?” “Qual o sinal de que tudo isso vai acontecer?”  Agora podemos adentrar no horizonte do texto e meditarmos sobre esta atitude. 

Dos vv.33-36, Jesus fala novamente em parábolas. Emergem, aqui, imagens que a comunidade cristã primitiva tinha acerca da parusia inaugurada pela ressurreição de Jesus. Os primeiros cristãos comparavam a ressurreição do Senhor a uma viagem para receber a glória de Deus Pai e seu retorno como a completude do Reino que ele inaugurou, com o ajuste final para todos de acordo com suas obras.

Alguns elementos da parábola merecem destaque. A figura do porteiro e dos servos refletem a imagem das comunidades cristãs às quais o evangelista Marcos escreve, mas também são símbolos dos discípulos que acompanham a Jesus no curso de sua vida pública. É o que o catequista bíblico pretende dizer, ao recuperar o dito do Senhor: “o que vos digo, digo a todos” (v.37a). Encarrega ao porteiro de vigiar, o que talvez represente a imagem dos líderes. O porteiro e os servos (incumbidos cada qual de seus afazeres) devem vigiar, pois não sabem quando virá o senhor da casa. Senhor da casa pode ter o sentido cotidiano de pai de família, dono, proprietário. A casa lembra, em Mc, a comunidade dos discípulos. Logo, o Senhor da casa alude ao próprio Jesus. De ambos se exige a mesma atitude: vigilância.

O termo vigilância aprece só nesta perícope por três vezes, juntamente com um sinônimo do verbo vigiar, “ficai atentos”. A exortação inicial “Cuidado! Ficai atentos” (gr. βλέπετε ἀγρυπνεῖτε / Blépete agrypneîte) é carregada de sentido. O verbo βλέπω (Blepo/Blépen) significa “ver”. Ele indica a capacidade do discernimento, da percepção; o termo ἀγρυπνέω (agrypnéo) significa ficar atento, estar acordado. Durante a narrativa os termos vão variando entre “Cuidado! Ficai atentos” (βλέπετε ἀγρυπνεῖτε), “vigiai, portanto” (γρηγορεῖτε οuν), e, vigiai (γρηγορεῖτε).

A vigilância bíblica não significa “não dormir”, “não cair (ou pegar) no sono”; também não é uma espera passiva. Pelo contrário. A vigilância é uma espera atuante, operativa. É a espera que se vive na atitude. É a capacidade de sempre estar de prontidão. Pois não se sabe a hora noturna em que o Senhor virá. Esta exortação de Jesus pode ser lida na realidade da primeira geração dos discípulos, que mesmo após a ressurreição esperavam a volta iminente – para já – do Senhor; como pode ser lida como uma exortação para as gerações seguintes dada a demora do retorno de Jesus, a parusia. Esta exortação (ordem – convite) de Jesus à vigilância serve de antidoto contra a tentação de ficar dormindo.

Jesus e Marcos se servem da imagem do sono (dormir) para ilustrar a condição do discípulo que não está respondendo ao projeto de Deus através de uma vida empenhada e frutificada nas boas obras, no serviço e no amor fraterno, que constituem a espera ativa e sempre pronta que é a vigilância. Devido ao “atraso” da volta do Senhor, as comunidades ficavam tentadas a abandonar tudo, a esfriar na vida Fé – na relação com Deus e no trato fraterno com os outros. Ainda, pensamentos e atitudes da seguinte ordem também eram perceptíveis ao interno das comunidades: bastava ter aderido à fé e viver descomprometido com a realidade, ou mesmo, como se não houvesse mais nada a fazer. Este é o sono, a dormência, que a comunidade dos discípulos de todos os tempos deve combater e evitar através do dinamismo da vigilância.  Quer diante da demora ou da iminência do acontecimento, cada momento é “o hoje de Deus”. Não devemos nos empenhar somente em vista de um fim próximo; devemos nos empenhar como se o Fim estivesse chegando sempre. O discípulo é chamado à “abrir os olhos” e não esperar que outros resolvam os problemas para si; ou mesmo realizem aquilo que cada um tem a capacidade de fazer. A comunidade é esta casa de servos, onde cada um deve realizar aquilo que recebeu para fazer, enquanto espera a vinda do dono.

O Fim ao qual queremos aludir é o próprio Senhor. E não ao fim enquanto término. Mas enquanto termo, completude, plenitude. Jesus é o Fim, a ultimidade, a plenitude para a qual tudo e todos se encaminham. O Fim, nesse sentido, é Jesus vindo sempre e a todo instante para cada um de nós. Com o advento do Cristo, O Fim, delimita-se o fim da história de injustiças, opressão e luta. Assim, é o fim deste mundo. Todavia, o “Fim” não se identifica com o fim da humanidade, mas sim com a instauração da comunhão definitiva entre a humanidade e sua história com Deus: o novo mundo, o novo céu e a nova terra, o reinado de Deus.

São tempos difíceis e de incerteza que todos e cada um vivemos; tempos estes em que foram nos tiradas todas as programações e certezas. Mas ainda nos resta a Esperança, que se enquadra neste horizonte da vigilância. Como nos encontramos ao final/recomeço deste tempo sempre novo? Vigilantes ou no perigo da sonolência, ou mesmo dormindo?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP


sábado, 21 de novembro de 2020

SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO - Mt 25,31-46:

 


Ha três domingos, o Senhor falava dos mistérios do Reino. A partir de três parábolas refletíamos sobre a ausência de alguém: o dono da casa, que havia saído; o noivo, que tardava em chegar; o patrão viaja e deixa seus bens em forma de talentos. E agora, na conclusão deste discurso escatológico segundo Mateus, o mesmo evangelista nos desafia e nos diz: aquele que pensávamos ausente, sempre esteve presente. O Filho do Homem sempre esteve presente em nosso meio, mais ainda tínhamos dificuldades em reconhecê-lo. Não conseguíamos ver a sua gloria porque ele se deixava ver através dos últimos, dos pequenos, dos desprezados e marginalizados; naqueles que tinham fome, sede; não tinham roupa nem terra; inclusive naqueles que estavam presos. Ele sempre esteve presente, mas, ao invés de vermos sua glória, enxergávamos tão somente sua pobreza.

A solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, apresenta a conclusão do discurso escatológico de Mateus (Mt 24 – 25), a última catequese que o evangelista reuniu a partir do ensinamento de Jesus, que antecede, por assim dizer, os momentos finais da missão pública do mestre, os julgamentos religioso e político e sua morte. É provocativo meditar o evangelho desta solenidade a partir do simbólico contido na parábola que mostra os critérios pelos quais se pautam o Filho do Homem glorificado. A realeza, se é que alguma vez Jesus tenha pretendido essa condição para si – o que vemos em sua vida e em seu agir é diametralmente contrário a esta ideologia régia – se pauta, acima de tudo, no serviço, na entrega e na doação de si para aqueles que se encontram na marginalização. O fio condutor, que será como que um baixo contínuo a ressoar será o dito “todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!”. O texto proposto para a liturgia deste último domingo do ano litúrgico é longo. Por isso deteremos nossa leitura sobre alguns versículos para podermos beber e saborear a mensagem contida neste texto.

Jesus continua seu ensinamento, ao interno do discurso escatológico, recorrendo a uma imagem muito presente na tradição de Israel contida no Talmud. Ali se lê “Na outra vida, o Santo, que bendito seja, tomará um rolo da Torá, o repousará sobre os joelhos e dirá, ‘os que estiverem trabalhando, venham, pois receberão a sua recompensa’”. Como mestre autorizado, Jesus muda o conteúdo deste pano de fundo da tradição de Israel para mostrar o seguinte aos seus discípulos: aquilo que determinará a vida do individuo não será a relação que estabeleceu com a Lei, mas a relação que ele estabeleceu com o seu irmão, porque, conforme dissera Mateus no início do seu evangelho, Jesus é Deus-conosco – Emanuel. Assim, com Ele, a relação da humanidade não se dirige unicamente à Deus, mas com Deus e como Deus ao homem. De modo que não existe relação com Deus que não passe pelas relações humanas. O Deus de Jesus não pedirá contas ao homem se este honrou-O com sua fé, mas se foi capaz de amar como Ele.

O Jesus de Mateus apresenta-se como o “Filho do Homem” glorificado. Esta personagem bíblica, aparece desde a literatura apocalíptica de Daniel, em Dn 7. É uma figura misteriosa, simbólica, que pode, por um lado aludir à condição humana da personagem em questão. De outra parte, representa aquele que foi escolhido e investido por Deus para a tarefa de executar o agir, o senhorio, o querer (justiça) de Deus mesmo na história. É dessa personagem que Jesus se serve também para conceber sua ação e seu ministério. Qual a atitude desta figura escatológica?

“Todos os povos da terra serão reunidos diante dele, e ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos” (v.32). Reunirá todos os povos da terra, separará as ovelhas dos cabritos. Interessante que Mateus se serve da expressão literal “todas as nações pagãs” (πάντα τὰ ἔθνη – panta tá Ethne), para indicar que a imagem do juízo não será aplicado a Israel, mas a todas as nações pagãs, isto é, que não fazem parte do povo israelita. Na perspectiva de Mateus, o povo já recebeu seu juízo ao recusar a ação de Deus em Jesus. A ação deste Filho do Homem será a saber separar, como um pastor, as ovelhas dos cabritos (lit. bodes). Sabe separar porque conhece bem aqueles que empenharam sua vida para o bem, daqueles que não assumiram este caminho. As ovelhas são símbolos para os que deram o passo ao discipulado. É importante notar que o julgamento se dá ao interno do rebanho.

Qual caminho é este? Jesus elenca seis atitudes. Estas atitudes não estão voltadas para o campo da religiosidade, da observância ritual. Mas no horizonte das relações humanas. Estas seis atitudes estão voltadas para as necessidades e pelas situações de sofrimento humano. Na perspectiva de Jesus, o que salva o homem não é um comportamento religioso. E sim um comportamento humano.

Dar de comer e de beber significa restituir as necessidades básicas e vitais aos empobrecidos. É recuperar a dignidade humana e o direito de cada um, já assegurado no decálogo, no código da Aliança em Ex 19 – 24. A Lei de Israel já previa também o auxílio ao estrangeiro, uma vez que o próprio povo fora estrangeiro no Egito. Receber o estrangeiro, era, ainda, uma forma de se fazer experiência com Deus; a hospitalidade para com o estrangeiro era a oportunidade de acolher o próprio Deus que visitava seu povo. Basta recordar a experiência de Abraão, junto do Carvalho de Mambré (Gn 18,1-15).

Nos chama a atenção, duas categorias que o narrador da parábola enfoca: os enfermos e os encarcerados. Os enfermos eram, no tempo da sociedade de Jesus excluídos da vida social e religiosa, uma vez que a enfermidade era concebida como castigo, como consequência de algum pecado que a pessoa tivesse cometido ou, como equivocadamente se pensava, alguém de sua família o tivesse feito. A visita ao enfermo, nesse sentido, se torna um gesto de ruptura com aquela mentalidade. Significa recuperar a dignidade da pessoa através do cuidado para com ela, O prisioneiro era, no tempo e na cultura de Jesus, alguém que não suscitava compaixão ou piedade dos outros. Suscitava desprezo. Ir visitar um prisioneiro exigia também alimentá-lo, uma vez que os carcereiros não executavam essa tarefa. Via de regra, os encarcerados eram aqueles que o Império rotulava como subversivo, perigoso, revolucionário. Mas, todas as vezes em que se menciona a situação do cárcere no NT, este se deve ao Evangelho. Nesse sentido, visitar os prisioneiros seria, da parte dos discípulos do Reino, uma tomada de posição e de atitude. Significava voltar-se contra a ideologia imperial e optar pelo Evangelho.   

Depois destas atitudes descritas pelo Filho do Homem – no caso, o próprio Jesus que narra a parábola –, segue-se o questionamento daqueles que foram contados e separados como justos: “Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos como estrangeiro e te recebemos em casa, e sem roupa e te vestimos? Quando foi que te vimos doente ou preso, e fomos te visitar?” Segue-se a resposta da personagem apocalíptica: “Em verdade eu vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a mim que o fizestes!” (v.40). O menor, ao interno da parábola, é aquele é colocado como o último, o desprezado, marginalizado e excluído. São todos aqueles que, no tempo de Jesus, não eram contados como pessoas.

O outro lado da moeda também é descrito pelo narrador-personagem da parábola. “Afastai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos” (v.41-46). O adjetivo “maldito” não pode ser entendido como uma sentença de Deus dada ao homem. Deus não amaldiçoa o ser humano. Este dito contido na parábola recorda o fratricídio de Abel, por Caim. Assim, Jesus é muito severo: não oferecer ajuda, não responder às necessidades mais elementares do ser humano, não socorrer o irmão em seus sofrimentos, equivale cometer a mesma falta de Caim. É o mesmo que um homicídio. São considerados malditos não da parte de Deus, mas devido ao seu egoísmo, ao fechamento diante das necessidades dos irmãos, se tornam malditos. A estas pessoas, Jesus não reprova por terem feito algo mal, mas por não terem empenhado a vida pelo bem do irmão, tornando-se instrumento de morte para o próximo.

Diante deste belíssimo texto, possamos fazer a revisão de nossa vida e de nossa missão.

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 14 de novembro de 2020

HOMILIA PARA O XXXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Mt 25,14-30:


O evangelho deste trigésimo terceiro domingo do tempo comum segue na leitura e meditação do discurso escatológico de Mateus. Os capítulos 24 à 25 abarcam o último dos grandes discursos do evangelho segundo Mateus. Jesus, através desta catequese, dá instrução a seus discípulos a respeito da consumação da história e do destino da humanidade. O catequista bíblico recolheu este ensinamento do Senhor para a sua comunidade, visando oferecer as balizas para que o discípulo possa compreender como será julgado: a partir do modo como tratou, em suas necessidades, os irmãos mais fragilizados; frutificando a vida em boas obras..

Uma vez mais Jesus se serve do recurso das parábolas para ensinar seus discípulos. Conhecida como “dos talentos”, ela tem a intenção de ilustrar como a existência humana é o tempo oportuno e definitivo de fazer frutificar os dons recebidos de Deus e, assim, se preparar para o encontro com o Senhor. A parábola serve-se da realidade de um patrão que antes de sair de viagem confia a três de seus empregados uma soma de dinheiro. Note-se o seguinte: ele reuniu seus servos e confiou a cada um deles uma parte de seus bens. Ele não dá para reaver mais tarde; mas dá na gratuidade. É interessante, ainda, que Jesus mostra uma qualidade deste chefe: ele dá a cada um de seus empregados segundo suas capacidades. Ou seja, é alguém que conhece profundamente os seus. Sabe da capacidade que cada um possui.  

A um deu cinco talentos de ouro – unidade de medida da época. Cada talento equivalia a 34 quilos de Ouro. O primeiro recebeu o equivalente à 170 quilos de ouro. O segundo recebeu dois talentos – 68 quilos de ouro. Por fim, o terceiro recebeu um talento somente. Em seguida, o homem saiu de viagem. 

Os vv.16-17 narram a atitude dos dois primeiros, os quais conseguem lucrar cem por cento. O v.18, por sua vez, relata a atitude do terceiro empregado que decidiu-se por enterrar a quantia confiada a ele pelo patrão. Jesus realça o contraste existente entre os dois primeiros e este último: cem por cento contra zero de lucro.

Segundo a parábola, o dia do acerto chegou com a volta do patrão (v.21-23). O primeiro empregado apresentou-se com os seus talentos lucrados. De cinco talentos (170kg), devolveu ao patrão mais cinco (340kg). Foi elogiado pelo patrão, e recebendo a administração de muito mais, foi convidado a tomar parte da alegria do patrão. O segundo apresentou-se com mais dois talentos lucrados, dos dois que havia recebido (136kg); sendo elogiado pelo seu senhor, igualmente recebendo mais para frutificar e participando de sua alegria.

A quem se aplica a imagem dos dois servos que lucraram as somas recebidas? No tempo narrado, ou seja, no horizonte de Jesus e de sua missão, os dois servos são símbolos daqueles que aderiram ao Senhor e suas palavras, se tornaram discípulos e estão labutando no discipulado. Já no horizonte da comunidade de Mateus, os dois que participam do banquete escatológico já não são mais tratados como servos, mas os crentes comprometidos na fidelidade e que frutificaram em boas obras.

Por fim, chegou aquele que havia enterrado a soma de ouro que o patrão lhe concedeu cuidar. Ele veio logo se desculpando: “Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. Por isso fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence” (v.24-25). O patrão indignou-se com a postura do empregado, motivado por covardia, medo e acomodação. A sua postura frente ao terceiro empregado segue descrita pelo Jesus de Mateus, nos vv. 26-30. E será sobre ela que o relato parabólico se deterá. 

A personagem do terceiro empregado se aplica a quem? No horizonte da vida e da missão de Jesus, o terceiro servo é metáfora para as autoridades e chefes do povo, que através da atitude de enterrar a soma recebida, estão, na verdade recusando o projeto de Deus realizado por Jesus. A imagem é polissêmica – pode atingir vários significados. São certamente os observantes da lei que considerando ter cumprido, ponto por ponto, a vontade de Deus expressa nos mandamentos, e com isso se contentavam. E acabavam desconhecendo a exigência fundamental expressa na missão de Jesus. De fato, fechados na sua mentalidade mesquinha, rejeitaram o Messias, mostrando-se servos infiéis.

Todavia, no nível da comunidade de fé, os terceiros empregados são aqueles que, no ato de enterrar o talento recebido, não empenharam a vida para mais além do que aquilo que se é esperado; são aqueles que não perseveram ou não realizam a vida através da entrega ao projeto de Deus em Jesus, não frutificando nas boas obras. 

Aqui exige-se acurada atenção, pois pode-se conceber equivocadamente que o terceiro empregado possa ser aquele que não tenha aderido a Jesus e feito resistência a ele tão somente. Pelo contrário, este terceiro servo pode ser inclusive aquele se diz fiel de carteirinha, mas que se acomodou no trivial; com o habitual; ou mesmo com o superficial da vida e experiência de fé. É para isso que Jesus se serve desta parábola, de modo a alertar os seus para tal perigo. De igual modo, Mateus a transmite para a sua comunidade.

A finalidade última é de caráter moral; exortar a comunidade a viver o presente na fidelidade e com empenho. E, nesse sentido, a vigilância se torna mais uma vez necessária, e atinge, aqui, seu alto caráter de concretização. Ela consiste na operosidade fiel e incansável, que põe a frutificar a palavra de Jesus deixada como dom aos seus. A lógica do Reino dos Céus é esta: quem soube frutificar, ao longo da vida o talento (os dons recebidos e colocados no horizonte de Deus e de seu Reino), obterá ainda mais quando for julgado pelo Pai. Ao contrário, quem não soube fazer frutificar os dons recebidos, na hora do juízo, ficará privado até mesmo do pouquinho que pensava possuir.

Quem Somos diante da parábola deste trigésimo terceiro domingo do tempo do comum? O que temos feito do talento gratuito que Deus nos deu, de acordo com nossas próprias capacidades? Que imagens temos de Deus: a de um deus patrão e carrasco ou aquela verdadeira de um Pai que dá o todo necessário para poder frutificar a vida, crescer e ser mais. 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 7 de novembro de 2020

HMILIA PARA O XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 25,1-13:

 


O capítulo vinte e cinco do evangelho de Mateus abre o quinto e último discurso de Jesus em que subdivide-se a catequese mateana. Vale lembrar que o primeiro evangelho foi estruturado pelo seu catequista/autor em cinco grandes discursos a exemplo da Torah, que contém os cinco primeiros livros da tradição de Israel. Neste capitulo, pela última vez aparece o termo Reino dos Céus – que em última análise é o mesmo Reinado de Deus, isto é, sua atuação histórico-salvífica através de Jesus de Nazaré.

Mateus, inicia o chamado discurso escatológico, o qual trata da ultimidade/novidade e plenitude da ação de Deus em Jesus, recuperando e transmitindo à sua comunidade uma parábola contada pelo mestre, a qual trabalha o tema da vigilância. A parábola apresenta elementos inerentes a uma festa de casamento. Sabemos que as parábolas possuem três intenções: 1) servindo-se de elementos conhecidos da realidade, chamar a atenção do leitor-ouvinte; 2) provoca-lo; e estimulá-lo a mudar de atitude. Como vemos esses elementos presente na parábola de hoje?

Jesus opera mudanças significativas nos costumes da festa de casamento, ao iniciar a narrativa da parábola das dez virgens. De acordo com o costume, era o noivo que ia ao encontro das virgens. Aqui, Jesus subverte a lógica do costume, e diz que são as virgens que correm ao encontro do noivo. Outra subversão contida no ensino do mestre é a ideia do fechamento das portas, após a entrada do noivo. Uma festa de casamento, no tempo de Jesus, como bem sabe-se, era um evento aberto para todo o povoado. Jesus usa destas hipérboles, justamente para chamar a atenção do leitor-ouvinte para a mensagem que ele quer transmitir.

Quem são as dez virgens, das quais Jesus se serve para a parábola? Virgens, são aquelas que ainda não se casaram, nem foram ainda prometidas em casamento, no tempo da sociedade de Jesus. Mas que estão à espera do noivo. Segundo Jesus, elas tomam suas lâmpadas. No entanto, a melhor tradução seria “tochas”, em lugar de lâmpadas. A atitude delas foi a de sair ao encontro do esposo. Mateus serve-se da imagem preferida do profeta Oséias, na qual a imagem do esposo é aplicada à Deus. Ele seria o esposo e o povo, a esposa.

Das dez virgens, cinco eram prudentes, e as outras, imprudentes. Porém, Mateus utiliza um termo que Jesus proibiu de ser usado ao interno da comunidade dos discípulos, o termo morós (gr. μωραὶ/μωρός), o qual define uma pessoa tola, descrente, ímpia. Uma ofensa muito grande, que aparece já no Sermão da Montanha, em 5,22. As outras cinco eram inteligentes, prudentes e sábias. Mateus opera aqui uma inclusão, uma delimitação textual, como que fechando e amarrado os cincos discurso, ao relembrar através destes termos utilizados na parábola por Jesus, o Discurso inaugural em Mt 7,21-24, na parábola do homem sábio que construiu sua casa sobre rocha, em contraste com o imprudente que construiu sua casa sobre a areia. Neste capítulo vinte e cinco, bem como em Mt 7, considera-se sábio quem tem a capacidade de realizar o querer de Deus; cooperar com seu projeto criador e gerador de vida.

As virgens sábias (prudentes, inteligentes), segundo a parábola de Jesus, trazem consigo mais azeite. Ao contrário das virgens tolas. O óleo é também um símbolo para as boas obras do ser humano. As boas obras, nesse sentido, são o óleo que não pode ser dado ou emprestado. No que tocam as obras de justiça, as boas obras, cada um deve empenhar a vida nesse caminho.

O v.11 chama a nossa atenção. A cinco virgens tolas, ao voltarem com o óleo que saíram comprar, dão com as portas fechadas. De súbito, começam a chamar pelo noivo: “Senhor! Senhor! Abre-nos a porta”. Senhor é o título divino com o qual o judeu piedoso, ortodoxo, se dirige à Deus. A resposta contida no v.12 é muito importante: “Ele, porém, respondeu: Em verdade eu vos digo: Não vos conheço!” Ela está relacionada ao mesmo dito de Jesus em 7,22-23, “Não vos conheço. Afastai-vos de mim, vós, que praticais a iniquidade”.

Jesus quer mostrar aos discípulos que não basta uma verdadeira convicção ou confissão de fé, se ela não se traduz na vida, através da atitude de colocar-se no cumprimento do querer e da vontade de Deus, mediante as boas obras. Nisto consiste a vigilância evangélica para a qual o Senhor nos convida a permanecermos e perseverarmos.  Por isso, a vigilância bíblica não está ligada ao estar acordado, ou ao fato de não dormir. 

A vigilância bíblica indica uma atitude operativa. Ou seja, a capacidade de estar consciente de que se deve fazer algo. Logo, falta da vigilância indica a decisão de não fazer nada. Assim, a vigilância para a qual Jesus convida ao final do evangelho, consiste na atitude, na capacidade operativa de cooperar com o projeto criador e gerador de vida de Deus.

Quem somos diante desta parábola? Quais atitudes temos trazido conosco? Temos estado vigilantes diante do querer e do projeto de Deus, para o qual Jesus nos direciona?

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família. Arquidiocese de Botucatu - SP