sábado, 28 de maio de 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR – Lc 24,46-53:


O tempo pascal encaminha-se para sua conclusão. A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor, na qual a comunidade professa a plenitude da ressurreição do Senhor. Jesus Ressuscitado, ao retornar para o âmbito de Deus leva consigo a natureza humana. Ele não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade e a (re)orienta para o seu fim último e definitivo: a vida de Deus.

A liturgia nos propõe o texto de Lc 24,46-53. Estamos no último capítulo do evangelho segundo Lucas, que iniciou com o relato do anúncio da ressurreição às mulheres, seguido da manifestação do Senhor ressuscitado aos discípulos na estrada de Emaús (Lc 24,12); continuando, depois, a manifestação à Simão e à toda a comunidade (Lc 24,34ss), até chegar à conclusão narrativa que temos diante de nossos olhos para a meditação.

No v.46, o evangelista nos informa que Jesus explicou o sentido das escrituras aos discípulos, após comer com eles, recordando que o Messias/Cristo deveria sofrer e ressuscitar ao terceiro dia. Esta recordação/memória que o Ressuscitado realiza junto com os seus corrobora a fala do mensageiro celestial às mulheres logo na introdução do capítulo. Elas deveriam, juntamente com o grupo dos discípulos, recordar o que Jesus havia dito sobre o seu destino. Para se fazer a experiência com o ressuscitado, a comunidade deve fazer a memória atualizadora da vida e da missão de Jesus. Atualizar sua presença, assimilando na vida cotidiana a exemplaridade da vida de Jesus. Ainda que a existência e vida histórica do mestre e Senhor passe pela morte. O discípulo não pode ter medo de se deparar com esse fato. É necessário e, igualmente importante, que eles acolham o acontecido com Jesus – sua paixão e morte – como a realização e cumprimento das escrituras, para que possam proclama-lo como Messias.

Nos vv. 47-48, o Jesus de Lucas toca no tema da missão. A missão da comunidade consiste em oferecer e testemunhar a reconciliação realizada por Jesus a todos os povos. O evangelista trabalha aqui com um tema que lhe é muito caro, a universalidade da salvação: a salvação é para todos, indistintamente. Ninguém fica excluído dela. A missão consiste em testemunhar a misericórdia de Deus através do dom da vida de Jesus. Assim, a comunidade assimila, vive e testemunha a missão de Jesus quando ela mesma assume a exemplaridade da vida dele. O que Jesus fez deverão fazer seus discípulos.

Para que os discípulos e a comunidade vivam profundamente a existência de Jesus, devem ser revestidos da “força do Alto”: o Espírito Santo. O evangelista usa do termo grego dynamis / δύναμις. A força do Alto é o dinamismo de vida do próprio Deus e de Jesus que anima e move a vida dos discípulos e da comunidade para viver a missão, vivendo a vida mesma de Cristo. Ora, a vida de Jesus foi toda pautada e conduzida pelo Espírito de Deus. No Evangelho de Lucas, tudo o que Ele realiza e vive, o faz segundo o Espírito. No relato do Batismo, é o Espírito que o investe para missão. No deserto, é o Ele quem o conduz. Na Sinagoga de Nazaré, declara-se ungido pelo Espírito. É por este momento que os discípulos deverão esperar, pela vinda da força do Alto.

O evangelista descreve a cena da ascensão, narrando a atitude de Jesus de “levar para fora” da cidade os discípulos, próximo à Betânia. Dois detalhes devem chamar nossa atenção. Lucas emprega um termo que alude ao tema do Êxodo. No relato da transfiguração (Lc 9), as duas personagens Moisés e Elias conversam com Jesus sobre o êxodo que ele realizaria através do dom de Sua vida, de sua Páscoa. Agora, o evangelista mostra para a sua comunidade a realização deste Êxodo. Outro detalhe é a localização, perto de Betânia. Seguir na direção de Betânia significa tomar o caminho contrário à Jerusalém: o caminho da entrada triunfante de Jesus na cidade santa, na ocasião da Páscoa. Se, de Betânia Jesus marcha para sua paixão e morte de cruz, seu êxodo de morte e vida, agora, na direção contrária de Jerusalém ele marcha definitivamente para junto do Pai.

Lucas, pele primeira vez mostra abençoando os seus, enquanto sobe para junto do Pai, e este gesto coincide com sua exaltação à direita de Deus, sua ascensão. A benção bíblica é, primeiramente, uma “bendizência”, ou seja, o ato de bendizer à Deus recordando seus feitos, aquilo que realizou em favor dos seus, para tornarem-se lugar da presença de Deus. Ela assume uma dinâmica performativa, ou seja, realiza aquilo que diz, transmitindo uma força eficaz e irrevogável. A benção bíblica (que a Liturgia eclesial assumiu em seu dinamismo celebrativo-litúrgico) comunica a essência daquele que abençoa nos que são abençoados. Assim, os discípulos, que são abençoados, difundirão a bênção e, através dela, farão novos discípulos.

Depois de abençoar os discípulos, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus. É âmbito divino e expressa a condição divina. Aplicando essa imagem a Jesus, o evangelista pretende ensinar que Jesus cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a essa missão, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu e o justificou, ao entronizá-lo a sua direita. Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai (“foi levado para os céus” encontra-se na voz passiva, que indica que a ação em relação ao Filho foi realizada por Deus-Pai), assim como a ressurreição. A sua elevação não é outra coisa que o retorno ao âmbito do divino. Aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto pelas lideranças religiosas e políticas, agora está à Direita de Deus. Porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence a esfera da divindade.

“Eles o adoraram. Em seguida voltaram para Jerusalém, com grande alegria. E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (vv.52-53). Adorar é a atitude típica do reconhecimento da soberania de Jesus. Os Seus discípulos sabem que Ele é realmente o salvador, e, por isso, da mesma forma que no início do Evangelho lucano os pastores se alegraram com o anúncio do nascimento do Messias (cf. Lc 2,10), os discípulos expressam uma “grande alegria”. A alegria é uma característica essencial do discipulado, na perspectiva de Lucas. Ela já foi antecipada no início da catequese também por Maria (cf. 1,47) e pelos anjos (cf. 2,8-20). E agora toca aos discípulos comunica-la ao mundo.

O Evangelho de Lucas começa e termina no Templo de Jerusalém. De fato, após o prólogo, encontramos Zacarias oficiando no Templo (Lc l,5ss): é o tempo de Israel que, aos poucos, dá lugar ao tempo do Espírito que anima a comunidade cristã, a fim de que ela saiba atuar na mesma perspectiva libertadora de Jesus, segundo o Seu Espírito que inscreve no homem a vida do Senhor.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP

 

sábado, 21 de maio de 2022

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 14,23-29:


Adentramos no sexto domingo do tempo pascal, seguindo com a leitura do testamento de Jesus no Quarto Evangelho, o qual constitui o Seu grande ensinamento sobre o mandamento (dinamismo) do amor, e sobre a entrega da própria vida. A liturgia propõe para a nossa meditação o texto de Jo 14,23-29. O texto situa-se no livro da glória, a segunda parte do Quarto Evangelho, onde Jesus revela aos discípulos que chegou a hora da glorificação do Filho do Homem. Esta hora decisiva revela-se na Cruz. Ali, Jesus leva a termo a sua Obra, a obra que recebeu do Pai, que através do gesto livre da doação da vida do Filho revela, pois, todo o seu Poder, seu ser e seu agir. Há que se recordar também que este “testamento” é transmitido pelo Senhor ao redor da mesa, o lugar da comunhão da vida e da relação mais profunda com o mestre.

Qual a finalidade de Jo 14, 23-29 para a comunidade dos discípulos, para a geração posterior e para nós, hoje? Fundindo os horizontes da comunidade dos discípulos (tempo narrado, os anos trinta) e o da comunidade de joanina (a geração posterior dos fieis, na qual inclui-se todo o fiel-discípulo e leitor do Evangelho, pelos idos dos anos noventa), a intenção do texto atinge seu ápice quando a comunidade cristã lê, assimila e adere ao testamento/ensinamento de Jesus como sendo seu modo de vida, pautando o seu agir e sua identidade no modo de vida de Jesus, em seu ensino e em sua missão. Assim, o discurso de despedida que Jesus deixa aos seus serve para que eles e a geração seguinte possa balizar seu ser, viver e agir quando da ausência do mestre. Nesta perspectiva, a comunidade teria as ferramentas (os meios) para viver constantemente o convite e a realidade de uma vida ressuscitada garantida pelo dom do amor do Senhor e por seu Espírito, isto é, viver segundo o Filho de Deus.

Antes de tomarmos o texto de hoje, se faz necessário que nos versículos anteriores, Jesus prometeu o Espírito Santo aos discípulos. O Espírito Santo é o espírito de Jesus (Espírito do Ressuscitado) e do Pai. É o dinamismo de vida do Pai e do Filho, que, doado por ambos comunica vida, filiação e amor. É aquele que garante a continuidade da vida e a presença de Jesus para a comunidade, através da vivência do mandamento do Amor. Jesus prometeu manifestar-se à quem ama como ele ama. Isso posto, podemos entrar no horizonte do texto.

Jesus continua seu discurso, dizendo: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e o meu Pai o amará, e nós viremos e faremos nele a nossa morada. Quem não me ama, não guarda a minha palavra. E a palavra que escutais não é minha, mas do Pai que me enviou”(vv.23-24). Jesus afirma a importância do amor e de guardá-lo como mandamento/Palavra. O Pai e Jesus se manifestam na vida daqueles que amam do mesmo modo de Jesus. Todavia, é necessária uma condição para receber e participar deste amor, de acordo com o evangelista João: amar a Jesus para receber o amor do Pai. O amor é a plena adesão e identificação a Jesus.

Mas amar a Jesus e, por conseguinte, viver a mesma vida dele, é também o critério para saber se a Sua Palavra é, de fato, guardada, ou seja, vivida. O verbo guardar (hbr. Shama) não significa reter para si, mas observar, no sentido de cumprir/viver o mandamento e a Palavra de Deus. Só o amor pode motivar a adesão à Palavra/mandamento de Jesus.

Jesus assegura uma segunda vez: “o defensor, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ele ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (v.25). Na teologia do Quarto Evangelho, o Espírito é o defensor; tem a função de ensinar e recordar. O termo que João emprega é παράκλητος/paraklétos (gr. Pará = junto de, ao lado de / kalein (kaleo) =  chamar), que significa “estar junto de”, ou “ser chamado para ficar ao lado de”. Ao lado, enquanto presença ativa e viva do próprio Senhor junto do discípulo. Nesse sentido, o Espírito de Jesus está ao lado do fiel para que ele possa assumir o modo de vida de Cristo.

Outras duas funções são apresentadas pelo Jesus joanino, a de ensinar e renovar. Ambas as funções querem dizer a mesma coisa: atualizar. Ora, o verbo “recordar”, na fé e tradição do Antigo Testamento remente à atitude da memória bíblica significa tornar presente no hoje o ensinamento, a missão e a vida mesma de Jesus. O ensinar/recordar são duas atitudes imprescindíveis para a vida da comunidade. São as atitudes daqueles e daquelas que vivem a novidade do convite à vida ressuscitada de Jesus, e dela dão testemunho. O Espírito Santo é aquele que inscreve (escreve a partir de dentro) a vida mesma de Jesus em nós. Ele é a letra de Cristo que escreve no livro da vida humana a vida de Jesus. 

“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; mas não a dou como o mundo. Não se perturbe o vosso coração” (v. 27). Jesus fala da paz. É preciso entender de quê paz ele fala. É daquela que, no Antigo Testamento está associada à posse da terra prometida. Como consequência da posse da terra da promessa, o povo conquista a paz. Mas ela é dom e garantia do tempo do Messias. Significa que a espera acabou e que a promessa foi cumprida. Todavia, no Novo Testamento, a paz não se dá em virtude da conquista de um lugar geográfico como a posse da terra da promessa, no AT. A Paz se dá através da relação com Jesus. Nesse sentido, Jesus é a terra prometida. Ele é a promessa cumprida. Então, para os discípulos de Jesus, a Paz é um modo de ser e de existir. É ela uma qualidade de vida. Por isso, a paz que Jesus dá é Ele mesmo. Um modo de ser e de existir que é superior à “pax romana” (se queres paz, prepara-te para a guerra), aquela que visa oprimir, dominar, subjugar para manter a ordem, principalmente contra as minorias. A paz judaica é aquele típico bem-estar. E a Paz que Jesus dá, supera estas ideologias.

Na certeza de que Jesus e o Pai fazem morada em quem vive o mandamento do amor, cabe aos discípulos e discípulas de todos os tempos o esforço para que tudo isso seja manifestado também ao mundo.

 

Pe. Joao Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 14 de maio de 2022

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 13,31-35:


 

O evangelho deste Quinto Domingo do tempo pascal retoma a narrativa da ceia de despedida de Jesus, no Quarto Evangelho (Jo 13,1-38). Estamos ao interno do chamado Livro da Glória. O texto de Jo 13,31-35 situa-se após o gesto profético do lava-pés, o gesto simbólico da vida de Jesus levada até as últimas consequências; do anúncio da traição de Judas e do prenúncio da negação de Pedro.

Mas, no contexto da catequese joanina, o texto de hoje encontra-se no bloco denominado testamento de Jesus (Jo 13 – 17), sendo quatro capítulos narrados ao redor da ceia, evento que não pode ser visto como ocasião para consumo de alimentos, muito menos resume-se na vivência de um rito, tampouco uma mera confraternização. A ceia é o lugar da partilha e da comunhão de vida entre o anfitrião e os hospedes. Por isso, o testamento que Jesus deixa aos seus se dá ao interno desta ceia.

O que seria este testamento que Jesus entrega aos seus? O testamento é o ensinamento e a exemplaridade da vida do mestre destinado ao discípulo que se decidiu por ele. O seu conteúdo é a revelação de Deus através da Sua vida, mediante a sua entrega, e o mandamento do Amor. É sobre este conteúdo que a comunidade de João e as gerações futuras deverão se debruçar. Por isso, a nível de catequese litúrgica, a Igreja oferece este texto para a meditação, a fim de que as comunidades de todos os tempos, tendo feita a experiência com Jesus ressuscitado, possam pautar a vida ressuscitada nos seus ensinamentos e no Seu modo de vida. Somente vivendo a partir do modo de vida de Jesus a comunidade continuará a experiência da ressurreição e prolongará sempre na história a vida do Senhor. Vamos ao texto.

No v.31 temos uma delimitação importante: a saída de Judas. Ele se decidiu por romper com Jesus, com seu projeto e com o grupo dos Doze. Optou em não aceitar a dinâmica do lavar os pés. Escolheu as trevas (por isso João situa estes acontecimentos finais da vida de Jesus no período noturno). Somente após a saída deste discípulo é que o mestre entrega o seu testamento aos demais. Só pode tomar parte, receber e assumir o testamento de Jesus aquele que estabelece uma comunhão com o Seu modo de vida. Ao mesmo tempo, no horizonte do evangelho segundo João, a saída de Judas do grupo é o que desencadeia o ensinamento de Jesus sobre a Hora da Glória.

O v.32 toca precisamente no tema da Glória (da glorificação) de Jesus, a qual é o lugar tenente da Glória de Deus. O tema da Glória no Quarto Evangelho é importante e perpassa a obra joanina do começo ao fim. Glória, aqui, não significa brilho/esplendor. O evangelista serve-se do pano de fundo do Antigo Testamento, trabalhando com o termo hebraico Kabod, o qual se traduz por Glória, mas no sentido de “presença”. Assim, a Glória de Deus outra coisa não é que a sua presença na história. Na teologia do evangelho de João, a vida de Jesus torna-se o lugar no qual se dá a presença de Deus. Com efeito, a Glorificação do Filho do Homem, da qual fala Jesus é o ato de manifestar a presença de Deus através do dom da sua própria vida na Cruz. Por isso, é na Cruz que Deus revela todo o seu poder, sua presença e seu Ser no Crucificado.

Jesus assume para si a missão e identidade da personagem apocalíptica do Livro de Daniel (Dn 7,10), que na época de Jesus evocava um ser glorioso e potente. Geralmente, Jesus relaciona essa imagem ao seu sofrimento, tanto no Quarto Evangelho, quanto nos evangelhos sinóticos (cf. Mt 17,22; 20,18; Mc 9,12.31; 10,33; Lc 9,22.44), contradizendo o uso recorrente no seu tempo. Em João, glória e paixão estão intrinsecamente relacionadas.

O evangelista, no texto grego serve-se da voz passiva, a qual indica Deus como o agente  realizador da ação (“passivo teológico ou divino”). O termo “glorificar” pode ser entendido, ainda, no sentido de “manifestação da glória”, revelação da presença divina: “Foi glorificado o filho do Homem, e Deus foi glorificado nele”. Ora, a glória de Jesus, enquanto Filho consiste em realizar o querer e a obra do Pai. A glória do Pai, por sua vez, é ver o Filho amando até o fim, isto é, plenamente. E sendo-lhe fiel. Mas só poderá tomar parte da glorificação de Deus em Jesus os que são tidos como “filhinhos”, ou seja, aqueles que aderiram e aderem ao projeto e à vida de Jesus: os iniciados na Fé. É a linguagem do Mestre para com os discípulos. Mas “filhinhos” é também o termo que 1Jo 2,1.12.28 usa para se dirigir aos fiéis. Jesus fala agora aos fiéis como se já constituíssem uma comunidade eclesial, por que o Jesus joanino é o Jesus da comunidade, o Jesus eclesial.

Os filhinhos recebem, pois, uma novidade de vida: um Novo mandamento. “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (v.34). Existem dois adjetivos que correspondem a “novo”: o primeiro deles, “néos” (gr. νέος) significa algo novo que se soma ou acresce-se ao que já existe, no sentido da quantidade; o segundo, kainós (gr. καινός) significa algo que substitui o que é velho, superando-o e fazendo-o desaparecer. É esse segundo termo que João se serve aqui. Portanto, o mandamento novo dado por Jesus não vem a ser um acréscimo à antiga Lei, mas a sua completa superação, no sentido de leva-la à plenitude. Uma vez que o termo Lei (gr. nômos) não é uma tradução boa para o termo Torá. Esta poderia muito bem conservar o sentido original da tradução que ela recebe do original hebraico, como “instrução/caminho”.

Jesus ao comunicar um “mandamento novo”, está a dizer para seus discípulos (e à nós) que sua vida e o modo do Seu amor superam (plenificam, conferem plenitude e cumprimento/realização) a Instrução/caminho, a Torá de Deus. O amor tem a capacidade de superar uma Lei; de aperfeiçoar um “caminho” (Torá/instrução). Quer dizer que, vivendo esse mandamento, a comunidade não necessita de nenhum outro. É esse o modelo de amor que ela deve assimilar e reproduzir. O interessante é que Jesus não dá como testamento para sua comunidade um conjunto de normas ou ritos somente. Sim, é verdade que no "tomar e comer, e no tomar e beber", Ele nos dá a ordem de iteração "fazei isto em memória de mim", para que celebre-se sempre a sua vida através dos dons sacramentais. Mas a liturgia e o rito só adquirem a real eficácia quando verificados através do modo de vida de Jesus. E, ao mesmo tempo, os sacramentos atingem sua finalidade a partir do momento que inscrevem a vida de Cristo em nós. Por isso, seu testamento não é só delimitado pelo rito ou pelo preceito. Ele nos deixou um Mandamento novo, um modo de ser, agir e existir. 

Somente em João o mandamento do amor é dado com essa radicalidade e com este exemplo, ou seja, o amor de Jesus. Diante disso, a novidade apresentada pelo evangelista se torna ainda mais evidente, pois Jesus não reivindica nada para si e nem para Deus, o Pai; pede apenas amor recíproco entre os membros da comunidade: “amai-vos uns aos outros”; nesse amor recíproco entre os discípulos, obviamente, estará o amor a Deus, pois é Ele a fonte do amor e, consequentemente,  Jesus, o revelador do amor do Pai. O critério do amor que deve ser vivenciado na comunidade é o seu: “como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros”. Que não é um amor qualquer, mas é aquele capaz de dar a vida pelo próximo, cuja expressão visível é o serviço (cf. Jo 13,15).

A vivência deste Amor de Jesus torna-se o critério para reconhecer as comunidades e os discípulos de Jesus, “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (v. 35). Assim, se faz necessário questionar-nos um pouco: 1) Será que poderemos nos reconhecer entre os filhinhos ou estamos ainda na dinâmica existencial de Judas, que rompeu com a comunhão e com projeto de vida e amor de Jesus? 2) Poderemos ser distinguidos e identificados através do Amor de Jesus que deve permear e performar a nossa vida? 3) Nossas comunidades se alimentam e se balizam pelo mesmo amor de Jesus, sendo sinais e testemunhas deste Amor?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


domingo, 8 de maio de 2022

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 10,27-30:


O texto que a liturgia do quarto domingo da páscoa nos propõe encontra-se em Jo 10,27-30. O capítulo décimo do Quarto Evangelho apresenta a temática do Pastoreio, com destaque para a alegoria do Pastor Exemplar, ou “Belo Pastor”, dos vv.11-18. Este tema era muito presente na vida de Israel. A imagem do pastor/pastoreio e do rebanho nutria a fé e o imaginário religioso do povo de Deus, bem como alimentava as expectativas acerca da manifestação do Messias. Primeiramente, o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado ao povo. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer da história foi sendo atribuída às lideranças, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores (guias). Mas, a história mostrou que esta função não foi desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças. No nível do contexto próximo (lugar literário onde o texto se encontra situado) é que também se deve lançar o olhar, a fim de compreender o discurso de Jesus. Por isso, devemos voltar para o capítulo nono, o sinal realizado por Jesus na cura do cego de nascença. 

O Sinal em Jo 9 consiste na revelação de Jesus como o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz para o mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual Jesus revela a Glória de Deus, e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, optando conscientemente em não querer ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré. Isso é atestado pela mesma postura destas lideranças judaicas. Elas, que deveriam cuidar, acolher, promover-lhes a vida e a dignidade, acabavam expulsando do meio deles a gente simples do povo, aqueles que representavam-lhes alguma ameaça, ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37).

O contexto imediato do texto é o da festa da Dedicação. Ocorre uma mudança de cenário e de festa religiosa. Isso é importante para a compreensão do capítulo de forma global. O evangelista situa Jesus nos arredores do templo, num clima de inverno, por ocasião da festa da dedicação do templo. Ela foi estabelecida por Judas Macabeu no ano 165 a.C., para celebrar a vitória dos macabeus sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, já que todo o templo havia sido profanado pelos gregos (cf. 1 Mc 4,36-59). A festa acontecia em Jerusalém e durava uma semana. Ela encontra seu substrato bíblico no texto profético de Ezequiel, no qual o profeta faz uma enfática denúncia aos maus pastores de Israel, que apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, de acordo com o profeta, Deus toma a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidar ele mesmo do rebanho (cf. Ez 34,11).

Neste sentido, na alegoria do Bom Pastor, o evangelista opera um contraste entre as lideranças do povo, que agiam na contramão do projeto de Deus, e Jesus, que age segundo o coração (de pastor) de Deus, mostrando-se um pastor exemplar, que realiza aquilo que as lideranças do povo deveriam fazer, e não faziam.

Antes de tomarmos os versículos em questão é importante recapitular, pelo menos, três ditos de Jesus. O primeiro é o contido no v.7: “Amém, amém, eu vos digo: eu sou a porta das ovelhas”. Jesus, após contar a parábola do redil das ovelhas, declara ser ele mesmo a porta pela qual devem passar as ovelhas. Ele quer dizer que para pertencer ao rebanho (ser discípulo) e possuir a vida eterna, isto é, do dom de Deus oferecido por meio Dele é necessário, primeiro, passar (aderir) à sua pessoa.

Outro dito encontra-se no v.11, onde Jesus declara, “Eu sou o Bom (gr. Kalós / Belo ou ideal) pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. Ora, só quem passa pela porta que é Jesus pode ser do seu rebanho e viver do dom da vida que Ele dá. O terceiro dito é o que nos coloca no horizonte do texto: “Vós, porém, não me acreditais, porque não sois das minhas ovelhas” (Jo 10, 26). Jesus diz estas palavras aos líderes do judaísmo (fariseus e sacerdotes), dada a recusa de aceitar a novidade escatológica da presença de Deus Nele. Contextualizado o texto de hoje, então podemos meditá-lo.

No v. 27, Jesus declara: “As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem”. Ele indica aqui a condição para ser “ovelha” (discípulo) de Jesus: ouvir e segui-lo. Ao dizer as condições necessárias para ser discípulo e, portanto, participar do redil, Jesus denuncia que os líderes do povo não fazem parte de seu rebanho, porque não aceitam nem querem escutar, tampouco segui-lo.

Escutar e seguir são dois verbos importantes para a compreensão da mensagem de Jesus. O verbo “escutar”, no ambiente bíblico, não significa simplesmente a capacidade ou faculdade biológico-física da percepção de um som ou ruído, mas é acima de tudo dar adesão completa àquele que fala, deixar-se transformar e, consequentemente, conduzir-se pelas suas palavras. A atitude da escuta orienta para outra ação do discípulo, o seguimento. O seguimento a Jesus, como consequência da escuta, significa seguir os mesmos caminhos dele, com liberdade e disposição.

No v.28, Jesus garante que as suas ovelhas recebem o supremo dom que Ele pode doar, a “vida eterna”, a garantia de que elas jamais se perderão e que ninguém poderá tirá-las de suas mãos. O que seria esta vida eterna da qual fala Jesus? A vida que pertence ao âmbito de Deus. Não é a continuação desta mesma vida, mas um dom superior em qualidade e em dinamicidade que está em Deus mesmo. Todavia, ela não é um prêmio dado àquelas pessoas boas no futuro. A opção por Jesus e ao seu Evangelho simbolizada pela escuta da sua voz e o seguimento à sua pessoa, eterniza a vida. Não é uma vida pós-morte, mas é uma vida tão plena, tão cheia de sentido e autêntica, que se torna indestrutível. Logo, vida eterna é a vida de todo homem e toda mulher que escuta a voz de Jesus e abraça o seu seguimento, a sua vida, o seu projeto. Tem-se, em Jesus, e, a partir dele, a oportunidade de se viver uma vida em tons de eternidade, e, portanto, ressuscitada, desde já!

“Meu Pai, que me deu estas ovelhas, é maior que todos, e ninguém pode arrebatá-las da mão do Pai. Eu e o Pai somos um” (29-30). Nestes dois versículos Jesus declara que o que vale em relação ao Pai vale também em relação a si, ou seja, os dois constituem uma única realidade. Por isso, ninguém consegue arrancar as ovelhas da mão de Jesus (cf. v 28b) pois tudo o que está em suas mãos, está, igualmente, nas mãos do Pai. A mão, conforme a antropologia bíblica, é metáfora do poder e do agir protetor de Deus, de Sua força e dos Seus cuidados enquanto pai e mãe.

Ora, o Pastor exemplar (melhor tradução para o termo kalós / καλός, Belo) do Quarto Evangelho não carrega ninguém ao colo. Pelo contrário, ele sai ao encontro das ovelhas, convive com elas, existindo um conhecimento mútuo entre eles; por isso, as conduz e aponta caminhos! Da outra parte, os que aderem a Jesus, assumindo a condição de ovelhas devem apresentar a característica da escuta e manifesta-la através do seguimento a Jesus. 

Por isso, o evangelho de hoje nos questiona: 1) Somos verdadeiras ovelhas de Jesus? 2) Temos ouvido (aderido) à voz (evangelho e vida) de Jesus e, portanto, seguido a exemplaridade da vida do Pastor Ideal?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.