sábado, 24 de setembro de 2022

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 16,19-31

 


O evangelho deste domingo segue na continuidade da narrativa anterior, a parábola do administrador desonesto (Lc 16,1-13). Ao final, Jesus censura a postura dos fariseus (v.14), os quais zombavam de Seu ensinamento acerca da impossibilidade de servir à Deus e ao dinheiro, pois eram “amigos do dinheiro”. O texto proposto para a meditação já parte do v.19, mas ainda dirigido aos fariseus, com a parábola do rico e do pobre Lázaro.

Versículos antes, Jesus declarou a impossibilidade de um rico entrar no Reino, sendo mais fácil e possível um camelo passar pelo buraco da agulha (v.15). Afirmação que deve ser mantida na sua originalidade, isto é, a de provocar o ouvinte-leitor. No Reino de Deus, segundo perspectiva de Lucas, há lugar para todos, inclusive para os “senhores”, mas não para os ricos. Qual a diferença? O rico é aquele que tem e detém para si. O senhor é aquele que dá e partilha com os outros. No evangelho lucano, os ricos são considerados doentes terminais de egoísmo para os quais não existiria, então, esperança.

Nesse sentido, Jesus conta a parábola de um homem rico, esbanjador, que não repartia, e de um pobre, que se sentava à porta dele e esperava as suas benesses. “Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias” (v.19). Note-se como o evangelista consegue, ao recuperar o ensinamento de Jesus, captar bem as dinâmicas psicológicas do rico. Ele exterioriza aquilo que lhe falta internamente através das roupas finas. Revela, ainda, a partir do detalhe dos banquetes dados cotidianamente, a fome, que nada mais seria do que a ausência de algo que pudesse preenche-lo. Ou seja, este rico é um homem completamente vazio e raso, superficial e pobre; que através das extravagancias revela aquilo que mais lhe falta. É pobre interiormente e necessita mostrar sua riqueza através da exterioridade. Necessita mostrar que tem algo. Não é por menos que Jesus direciona a parábola, em primeiro lugar, para os fariseus.

Quem muito precisa mostrar, aparentar, ostentar e fazer é porque muito lhe falta. Ou pode faltar tudo. Este dinamismo nada mais é do que uma forma/atitude compensadora para aquilo que lhe falta. Acabando por anestesiar-se nas compensações; passa a perder o senso da realidade a sua volta. Não consegue enxergar as reais necessidades das pessoas que estão ao seu lado. Miram e projetam-se a si mesmos.

A outra personagem, que, pela primeira vez no ensinamento em parábolas de Jesus recebe nome, é o pobre Lázaro (hbr. “Deus ajuda”). Muita atenção na forma em que ele é descrito por Jesus: “Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas” (v.20-21). Lázaro é pobre, está coberto de feridas, e vive das migalhas – das eventuais sobras – que caiam da mesa do rico. Esta personagem é descrita como sendo um pecador, conforme mentalidade da época. A pobreza e enfermidade (estar coberto de feridas) eram tidas como consequências do pecado cometido. Chama mais ainda a atenção, o fato dos cães que se aproximavam e lambiam suas feridas. Numa primeira análise, é possível pensar que a saliva dos cães servisse de curativo para as feridas do pobre Lázaro. Mas é verdade que também os cachorros eram tidos como animais impuros. Jesus carrega a mão ao descrever a condição deste pobre: impuro por sua pobreza e enfermidade, a ponto de atrair para si mais impurezas, simbolizadas pelas figuras dos cães. Talvez o exagero narrativo seja mais próprio do evangelista que gosta do recurso da hipérbole.

A intenção da parábola é mostrar que ambos vivem em mundos diferentes e separados. Todavia, o destino existencial dos dois foi o mesmo: morreram. Jesus tem uma perspicácia tremenda que o evangelista consegue captar e trabalhar ao seu modo, pois no v.22 se encontra a informação: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado”. Lázaro morre e vai para junto de Abraão; do rico, só se diz que foi enterrado. Recorde-se que Jesus destina a parábola aos fariseus, e, por isso, ele tem a necessidade de falar-lhes servindo-se do contexto deles. Havia um livro apócrifo chamado Livro de Enoc, o qual era lido pelos fariseus do tempo de Jesus. Nele continham descrições (frutos da imaginação do autor, obviamente) acerca do chamado “seio de Abraão”, localizado nos subterrâneos da terra. Os que estivessem mais acima, seriam os privilegiados, e os que se encontrassem nas profundezas dessa mansão, os mais desgraçados.

Jesus, ainda se servindo das categorias teológicas dos fariseus estabelece bem as diferenças: Lázaro, que antes era um amaldiçoado, impuro, metáfora para o pecador, encontra-se, agora, na luz, junto do patriarca Abraão; torna-se, portanto, um bendito. O rico, bem de vida, abençoado com a riqueza, passa, então, para o tormento, a ausência da paz. Mas é importante compreender que ele não se condenou por sua postura extravagante, mas pelo fato de não ter levado em consideração o pobre que se sentava em sua porta todo o dia. Foi a indiferença diante da situação de Lázaro que acentuou ainda mais a distancia abissal entre eles. Eram próximos fisicamente, mas viviam em mundos distantes. Um grande abismo já existia entre eles.

“Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas” (vv.23-24). Por fim, agora, na hora do aperto, o rico se dá conta da existência de Lázaro. Mas Jesus mostra que o comportamento e a atitude da personagem não mudaram. Ela pensa em seus próprios interesses; nutre a mentalidade de que todos lhe devem obrigações, que tudo deve ser para si, em primeiro lugar e acima de tudo. E, pior ainda, como se não bastasse, concebe relações de domínio e submissão: “manda (ordena) que Lázaro molhe o dedo com água, e venha me refrescar!” Agora que se recordou de Lázaro, o quer somente para sanar as suas necessidades. Não suplica, pretende; não pede, manda. Aquele comportamento típico dos ricos.

“Mas Abraão respondeu: Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós” (vv.25-26). Jesus fixa-se no diálogo entre Abraão e o rico. O patriarca denuncia então a atitude que levou o rico até aquele lugar: não dividiu seus bens; não partilhou; ignorou o pobre. E também o fato de que viviam em mundos distantes e que essa distância só era ainda mais acentuada em virtude do seu comportamento, é isso que Abraão quer dizer com a expressão “há um grande abismo entre nós”. Com isso, Jesus pretende dizer também para os fariseus que todo e qualquer tipo de divisão e de abismo que se cria e se alimenta no aqui e no agora, se prolonga depois. É um alerta para eles.

Mais uma vez, o rico, enfermo do egoísmo, pensa em si e no seu clã, e não nos outros, é o que emerge através desta sua fala na parábola: “Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28). Não pensa nos outros; olha para os seus, apenas. Não se abre a possibilidade de que o convite a uma mudança de vida e mentalidade pudesse ser interessante a todos. Está fixado em seus cinco irmãos; em sua família. Quer somente para si e para os seus. Isso basta. A resposta de Abraão na parábola é taxativa: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” (v.29). Moisés e os profetas sempre se posicionaram ao lado dos pobres. O primeiro, deixou muito claro que no meio do povo não deveria existir necessitados. Deus ordenara ao povo não reproduzir os mesmos sistemas de morte e desigualdade vividos na escravidão do Egito. Os profetas, em seus ministérios, sempre direcionavam suas pregações e denúncias contra os interesses egóicos dos ricos, que se apropriavam inclusive dos bens da gente simples, e chamavam a atenção do povo para o acolhimento aos pobres. A expressão “Moisés e os profetas” simbolizam aqui toda a Sagrada Escritura. Ela deve ser escutada!

O rico da parábola protesta uma vez mais, dizendo que se um morto voltar e advertir seus irmãos, talvez possam se converter e não passar pelo mesmo tormento. E eis a sentença final de Jesus dirigida aos fariseus: “Mas Abraão lhe disse: Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos” (v.31). Jesus denuncia a atitude deles: eles não escutam a Moisés e os profetas. Tampouco crerão na ressurreição dos mortos. Mas como compreender esse dito? Enquanto não forem capazes de dividir e partilhar o pão com os famintos não conseguirão crer no Cristo ressuscitado, que no evangelho de Lucas se faz reconhecível no partir do Pão com os discípulos de Emaús (Lc 24). Somente quem é generoso em vida poderá fazer a experiência do Senhor Ressuscitado em sua existência.

  

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.  


sábado, 10 de setembro de 2022

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 15,1-32:


 A liturgia deste domingo apresenta-nos o coração do evangelho segundo Lucas, o capítulo quinze, o qual contém as parábolas da misericórdia. Dos versículos 1-10, o evangelista recolhe duas parábolas que ilustram o agir misericordioso do Deus que Jesus chama de Pai: a ovelha e a moeda perdida. Ambas dão ênfase à alegria de divina pelo encontro tanto da ovelha como da moeda que estavam perdidas, metáforas para as pessoas que se afastaram em face ao pecado. Diante delas, Deus age com misericórdia. A parábola que coroa esta seção é a do Pai misericordioso, de 12-32 (comumente conhecida como a do “filho pródigo”). Este conjunto de ensinamentos de Jesus é original de Lucas, e ele o conservou da chamada fonte dos ditos (Fonte Q). O autor do evangelho, recolhendo o ensinamento de Jesus, põe ênfase no agir do pai nas três parábolas. E a temática da perda, reencontro e da festa aparece nas três.

O capítulo quinze situa-se no contexto da viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Ele possui uma finalidade, que é a de ensinar o discípulo acerca da misericórdia de Deus. Neste sentido, o leitor-discípulo, através deste capítulo deverá aprender como agir na realidade, na história e nas relações humanas: assimilar o agir de Deus que é misericordioso. 

O evangelho segundo Lucas é conhecido como o evangelho da misericórdia. Para ele, Jesus é a expressão da misericórdia de Deus. Todavia, uma  misericórdia difícil de ser assimilada pelos que agiam pelo legalismo, individualismo e autoritarismo: os chefes do povo. Eles demonstram resistências diante de Jesus. Por isso, as parábolas são dirigidas, em primeiro lugar, a eles, visando provoca-los, chamar-lhes a atenção e propor lhes uma mudança de mentalidade. Mas torna-se tarefa difícil mudar a mentalidade de quem se encontra arraigado nas estruturas de domínio, de poder e de morte.

O evangelista nos dá uma informação inicial: “Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar” (v.1). Por publicanos entenda-se os cobradores de impostos, os quais eram judeus que trabalhavam para o Império na coletoria dos impostos de sua própria gente. Eram considerados pecadores e traidores públicos; inimigos do povo. E, também os pecadores. As pessoas que se encontravam afastadas do amor e do projeto de Deus. Ambos representam a humanidade sofredora, marcada pelo pecado. Ora, eles escutam a voz de Jesus e este se lhes faz próximo. Com isso, Lucas trabalha com o tema da salvação universal. Estes, se põe a escuta-Lo sem resistências ou melindres. Se encontram livres para abraçar o projeto de Deus.

No v.2, Lucas nos mostra os antagonistas. Os chefes religiosos do povo, com atitudes e mentalidades diametralmente opostas às dos publicanos e pecadores: “Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. 'Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. A atitude dos mestres da Lei e dos fariseus, os teólogos do tempo de Jesus, é, ao mesmo tempo o fator chave que faz com que se dê o ensinamento em parábolas acerca da misericórdia, a qual se revelará como antidoto para o comportamento e pensamento dos chefes. É interessante que eles nem mencionam o nome de Jesus; tratam-no como “este homem”, como que desdenhando e recusando dele. Mais ainda, criticam a atitude de tomar refeição com este grupo de pessoas. E é muito significativo que Jesus aceite fazer refeições com eles, pois a refeição no ambiente e para a sociedade do tempo Jesus, bem como ao interno da tradição religiosa judaica, se tornava o momento privilegiado para se fazer experiência com a vida de alguém; para se estabelecer relações interpessoais; para se firmar um propósito de comunhão.

Jesus, ao fazer refeição com os excluídos quer estabelecer com estes uma relação e comunicar-lhes a misericórdia e o amor do Pai. Isso desestabiliza os que detém o poder religioso. Por isso, o Senhor se torna passível de críticas e de descrédito.

Prosseguindo na leitura do texto, Jesus começa a ensinar em parábolas. As duas primeiras têm a função didática de preparar a terceira, mas nem por isso são privadas de valor. Na primeira (vv. 3-7), da “ovelha perdida e reencontrada”, o mestre inicia: “Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la? Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida! Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão”. Elementos muito tradicionais e comuns à tradição cultural do povo de Jesus emergem na primeira parábola, o pastor, a ovelha e o rebanho. Uma constatação importante: a ovelha é chamada de perdida, diferentemente da extraviada do evangelho de Mateus (Mt 18). Há diferenças. A ovelha perdida simboliza a pessoa que livremente toma outro caminho e se afasta do projeto de Deus. A extraviada é aquela pessoa sai do caminho por interferência ou influencia de terceiros. Isso posto, chama a atenção, agora, a atitude do pastor: o cuidado para com a ovelha perdida. Ele deixa as noventa e nove no deserto (v. 4) para ir atrás dela, correndo inclusive o risco de colocar aquelas que ficaram no deserto em perigo; isso não significa que o pastor as amasse menos; quer dizer que o amor comporta riscos. E, para Deus, simbolizado pela imagem do pastor, as pessoas não são números, mas cada um é importante. Não se pode pensar na quantidade. Quem ama intensamente arrisca-se, como o pastor arriscou perder as noventa e nove para recuperar aquela que se perdeu. Sua atitude é ainda mais paradigmática, pois ele a carrega nos ombros, numa demonstração extraordinária e de amor e cuidado. Esta é a primeira ilustração do agir de Deus através de Jesus.

Na segunda parábola (vv. 8-10), da “moeda perdida e achada”: “E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la? Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: 'Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!' Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte". Deus é apresentado a partir da figura de uma mulher. Talvez, Lucas queira enfatizar ainda mais o protagonismo feminino ao interno de sua comunidade, e, nesse sentido, emitir uma advertência para as comunidades cristãs em todos os tempos. A parábola descreve uma mulher ativa que preside, inclusive, a economia da casa. 

A mulher serve de imagem para Deus e a casa serve de símbolo para a realidade do Reino. Através da atitude da mulher, Jesus e Lucas desejam mostrar que neste Reino (casa) não se permite que ninguém esteja perdido (a moeda). Deus e Jesus não querem ninguém fora desta grande casa que é o Reino. Uma nota ainda importante, é que o cuidado da mulher na segunda parábola prepara a temática da terceira, através da atitude do pai.

Dos vv.12-20 Ele descreve a atitude do filho mais jovem, que pede a parte da herança de seu pai, vai embora de casa, gasta tudo, fica na miséria, busca emprego para poder se sustentar, e, depois de cair na mais profunda impureza (tratar de porcos e se tentar se alimentar da mesma comida deles, fato impensável para um judeu, uma vez que o porco é considerado um animal impuro; e Jesus carrega nesta ilustração justamente para mostrar a que nível tinha chegado a situação de indigência e abandono daquele jovem), acaba percebendo que na casa de seu pai as coisas vão bem, inclusive para os empregados. Após um frio cálculo decide-se voltar para casa, submetendo-se à sorte e ao destino de ser tratado como um empregado qualquer: “Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados” (v.19). O pensamento do jovem por muito foi visto na exegese antiga e na intepretação anterior como arrependimento e conversão. O que não é verdade. Tais atitudes não são encontradas na intenção do filho. Ele se revela matemático demais na maquinação de seu  retorno, visando não o amor de seu Pai, mas a recuperação da sua zona de conforto, mesmo sendo a de um empregado. “Trata-me como a um de seus serventes”; ele ensaia tudo direitinho. E se põe a caminho.

Jesus, ao narrar o retorno do jovem, promove a reviravolta da parábola, a qual produz o efeito desejado, o de chamar a atenção dos ouvintes para a atitude do pai. Antes, porém, se deve fazer uma consideração. Amparado pela Lei, conforme Dt 21,18-21, o pai poderia entregar este jovem ao tribunal da cidade para ser sentenciado à pena de morte. Sintamos, na literalidade, o peso deste texto legislativo: “Se alguém tiver um filho rebelde, contumaz e indócil, que não aprende a obedecer ao pai e à mãe e não dá ouvidos aos bons conselhos, mesmo quando o corrigem e disciplinam, o pai e a mãe o conduzirão até aos anciãos e líderes de sua comunidade, à porta da cidade, e denunciarão às autoridades da cidade: ‘Este nosso filho é por demais teimoso e rebelde; não nos obedece, é devasso e vive embriagado!’ Então, diante desse depoimento, todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. Assim, portanto, eliminarás o mal do meio do teu povo; todo o Israel ficará sabendo o que ocorreu e ficará temeroso!” (Dt 21,18-21). Ora, o jovem da parábola, além de ser tipificado pela Lei como rebelde, também recebe a fama de assassino. Ao pedir a herança ao pai, no começo da parábola, o filho está, de verdade, matando-o; desejando a morte do pai. Rompendo com toda a possibilidade de relação. Mesmo que estivesse prevista na lei a divisão dos bens ainda em vida; mas tal não era preterido, para não ferir nem desonrar o pai. Porém, o filho mais novo, nesta parábola recebe do pai a parte maior, equivalente à do irmão mais velho. O pai abre mão de toda possibilidade de vida e de sua existência para seu filho. Diante desse cenário, teria o pai todo o direito de entregar o filho ao tribunal. É esta a atitude tomada por ele?

Deixemos Jesus responder: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v.20). O evangelista utiliza o verbo splangkhnizomai (gr. σπλαγχνίζομαι), que se traduz por misericórdia. É o coração e as entranhas remexidas diante da condição humilhada e marginalizada em que o outro se encontra. As vísceras condoídas do pai, que o fazem mover-se na direção do filho em caminho, quebra inclusive o raciocínio matemático e esquematizado de ser tratado como empregado. O pai não dá lado para isso. E age, uma vez mais de forma diametralmente oposta ao estabelecido na lei. Dos v.v. 22-24, Jesus narra as atitudes restituidoras de vida que o pai toma. Faz festa, manda matar um novilho cevado, dá roupa, anel e sandálias: devolve-lhe a dignidade e a vida de filho (“Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v.24)). O filho mais novo é imagem para todos os que vivem afastados do projeto amoroso de Deus.

Mas a família está incompleta. Outro irmão precisa ser recuperado. É o mais velho. Sim, ele é imagem para aqueles que pensam estar vivendo o projeto de Deus, e, na verdade, não estão. Claramente, os fariseus e mestres da lei são chamados a se identificar nas atitudes do filho mais velho que, em última análise, recusa conviver com o irmão que errou, “Mas ele ficou com raiva e não queria entrar” (v.28a).

“O pai, saindo, insistia com ele” (v.28b). O pai sai do ambiente da festa para também ir ao encontro do filho. Ou seja, o pai, movido pela mesma compaixão vai recuperar este filho. Ele quer e deseja refazer e ressignificar o horizonte das relações esfaceladas e quebradas. Deseja que os filhos vivam novamente como irmãos, e se reconheçam como filhos do mesmo pai. Todavia, o filho mais velho resiste: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (v.29). Reina a mentalidade do mérito. Mas para o pai, não é o mérito do dever cumprido que pauta a sua atitude diante dos filhos: é o amor e a misericórdia com ambos. A misericórdia, o perdão e o amor que se obtém do pai não é em virtude do que se fez nem do que se fará. Mas são eles dons gratuitos e imerecidos da parte deste pai, que é, em última análise, metáfora para o próprio Deus e Pai de Jesus.

Jesus, na parábola, não informa se o filho mais velho aceitou o convite do pai, ao final da parábola. Logo, não temos conhecimento desse fato. Mas o que Ele faz questão de enfatizar é a imagem do pai devolvedor e doador de vida e dignidade à seus filhos, fazendo o pai repetir o que disse aos empregados: “porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado” (v.32). Deixando assim, para cada ouvinte, tomar sua conclusão e sua decisão. 

Nestas parábolas, a alternância entre homem e mulher, enquanto personagens principais acena para a igualdade existente entre homem e mulher; como imagem e semelhança do criador, são as melhores imagens para representar um Deus que é pai e mãe, como o que Jesus revela. Mais ainda, o amor e a misericórdia do Deus de Jesus é universal (parábola da ovelha e da moeda perdidas) e incondicional (parábola do pai misericordioso). Por isso, Lc 15,1-32 é um verdadeiro manual catequético de Jesus para quem deseja ser discípulo do Reino e caminhar com Ele pelo itinerário da misericórdia. Nesse sentido, 1) Nossas comunidades tem sido espaço de misericórdia? 2) Nossas atitudes, enquanto discípulos-missionários e ouvintes da Palavra, refletem o interesse, o amor, a disponibilidade e o cuidado do Pai e de Jesus para com os que estão fora? 3) Ou nossas atitudes refletem nossos próprios interesses e mentalidades, como as dos fariseus e mestres da lei no tempo de Jesus?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 3 de setembro de 2022

REFLEXÃO PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Lc 14,25-33:


 

O evangelho deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum, continua a leitura do capítulo quatorze da catequese segundo Lucas. O texto proposto para a meditação da Igreja é Lc 14,25-33. Numa contextualização imediata, situa-se após o banquete dado pelo chefe dos fariseus à Jesus. O mestre, novamente, retoma o caminho para Jerusalém, e isso fica evidente através da informação que o evangelista oferece utilizando o verbo “acompanhar”, que se encontra referido às multidões em relação à Jesus. O caminho que Ele trilha com seus discípulos, já bem se sabe, não é tanto geográfico; é, antes, um itinerário físico-espiritual, e, portanto, teológico e de fé. Visa a formação correta do discípulo do Reino. Neste bloco da grande viagem de subida de Jesus para Jerusalém (Lc 9,51 – 19), o evangelista concentra todo o ensinamento principal do Senhor destinado ao discípulo que com Ele caminha, para que aprenda a ser e viver diante do projeto de Deus que se realiza em Jesus. Mas esse caminho representa também duas realidades importantes.

A primeira, é a existência de um contraste que se estabelece entre a casa e o caminho e a sinagoga do século I, que Lucas introjeta para o tempo narrado dos anos 30. Jesus e os discípulos, vez ou outra param, fazem experiência da casa, refazem-se, mas continuam a caminhada. Não é mais a sinagoga, ambiente de estudo da Palavra e do ensino dela o lugar para se fazer a experiência com Deus, mas na casa e no caminho. A segunda realidade é a de considerar o caminho como parte integrante e fundamental da comunidade dos discípulos de Jesus dos anos oitenta do século I, bem como das gerações seguintes. Indica seu estado permanente de saída, de missão, conforme a descrição que o livro dos Atos dos Apóstolos oferece. Ilustra, pois, a realidade em que vive e deve viver a comunidade, isto é, a Igreja de todos os tempos e lugares. Por isso a insistência do evangelista de mostrar Jesus juntamente com os seus em caminho. 

O texto de hoje, Lc 14,25-33, trata-se de uma advertência que Jesus faz aos que o acompanham no caminho acerca das exigências do discipulado. A narrativa se estrutura da seguinte forma: uma constatação (v.25), seguida de duas exigências importantes sobre o discipulado (v.26-27), e duas parábolas (v.28-31) que preparam a terceira, ultima e importante exigência de Jesus para seus discípulos. Quem não as levar à sério, “não pode ser meu discípulo”, dirá Jesus por três vezes. Com essas contextualizações podemos mergulhar na leitura e meditação da narrativa evangélica.

O versículo 25, que serve de introdução para a narrativa nos informa que Jesus e os discípulos já estão em movimento; já estão em caminho acompanhados de uma multidão. Muito importante esta nota que o evangelista oferece. Estejamos atentos, “grandes multidões acompanhavam Jesus (v.25a)”. Interessante notar que o autor utiliza um verbo diferente, “acompanhar” (gr. συμπορεύομαι/symporeuomai), e não o verbo “seguir” sempre empregado aos discípulos, o qual mostra a atitude do seguimento, do discipulado. A intenção do catequista é a seguinte, mostrar para sua comunidade que há uma diferença muito grande entre os que simplesmente acompanham a Jesus, daqueles que realmente O seguem. Ao mesmo tempo, é uma chamada de atenção para os fieis-discípulos das comunidades para não caírem no mesmo comodismo e descompromisso daqueles que somente acompanham a Jesus. Muito provavelmente a comunidade de Lucas esteja passando por esse processo de comodismo ou de esfriamento da fé e da adesão ao Reino e à vida de Jesus, e abandonando o caminho.

A multidão que procura Jesus é um grupo muito diversificado. Ao seu interno apresentam-se pessoas que vão se comprometendo com sua palavra, ensinamento, modo de viver e com sua pessoa, e que conseguem dar o passo na direção do discipulado, mas há aquelas pessoas que o procuram somente para satisfazer as próprias conveniências, procurando milagres; sentindo-se seduzidas pelo bem-estar que sua pessoa pode oferecer; outras, e perigosas tanto quanto as demais, se achegam a Jesus devido a imagem equivocada de messias possuem, a do messias nacionalista, guerreiro, opressor, violento. Estes simplesmente acompanham a Jesus, não o seguem. Não comprometem a vida com Ele. Por isso, Jesus, consciente deste perigo que ronda a multidão e também os discípulos estabelece três condições essenciais para segui-lo, sendo que a terceira vem após duas parábolas que servem de apoio para as três exigências.

“Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua própria vida, não pode ser meu discípulo (v.26)”. A primeira exigência é a mais radical que Jesus expõe. Mas que tem que ser bem entendida, sem rigorismos e sem amenidades. É importante compreender o seguinte, a família, na sociedade do tempo de Jesus representa um núcleo de pertencimento, segurança social e posição. Romper com esse circulo significa correr o risco de perder a identidade e os privilégios. Jesus coloca essa condição ao que deseja segui-lo. Romper com a família representava um grande desafio e consistia num processo doloroso. Para se ter noção do quão exigente é esta exigência, é importante tomar o texto original que traz literalmente o verbo “odiar (gr. μισέω/missêo)” ao invés de “desapegar”. Mas o dito de Jesus deve ser bem entendido para não gerar equívocos.

O verbo “odiar” para a cultura do povo de Jesus não tem o mesmo sentido para a nossa. Entenda-se “odiar” como “amar menos (com menor intensidade)”. O Senhor não está dizendo ou incitando as pessoas ao ódio, da forma como pensamos ou concebemos este sentimento. Ele está pondo a seguinte exigência para ser Seu discípulo: o Reinado Deus e Seu projeto devem ser prioridades para aquele que desejar segui-lo. Significa recolocar e reordenar as relações (pais, irmãos, esposos, esposas, filhos, e a sua própria vida) em vista do Reino e do discipulado. Da mesma forma que Jesus não quer que as relações se esfacelem ou sejam vividas com hipocrisia.

Não adianta fazer a opção pelo Reino e pelo projeto de Jesus e, dentro da própria casa ou das próprias relações, viver incoerências. Não viver e exercitar a compreensão, a empatia, a igualdade das dignidades. Não acolhendo quem necessita, inferiorizando e oprimindo os outros; vivendo desarmonia. O horizonte familiar e a própria pessoa devem ser colocados em relação ao projeto de Deus e não ocupar Lhe o lugar. Essa é a primeira exigência para poder ser discípulo. De modo que esta relação com Jesus e o Reino possa moldar e transformar a relação com os outros, com os de casa, com os que estão à sua volta. Caso contrário, a pessoa será mero acompanhante de Jesus.

A segunda exigência que Jesus estabelece é a seguinte: “Quem não carrega a sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27). A cruz no contexto da sociedade e do tempo de Jesus representa medo, tortura, vergonha e exclusão social e religiosa. Era a máxima condenação que o Império Romano impunha aos adversário e inimigos políticos, que representavam perigo social para Roma. Neste contexto da narrativa ela não pode ser entendida como sinônimo de sofrimento, apenas. Ela deve ser tomada em seu sentido real, ou seja, a eventualidade e a realidade da perda (entrega) da própria vida em vista da fidelidade ao Reino, ao Pai e a Jesus. Só pode ser Seu discípulo quem entende que a vida também pode ser perdida por causa do horizonte e da fidelidade ao projeto de Jesus. A capacidade de dar e de gastar a vida, é o que significa tomar a cruz e seguir a Jesus, em todo o seu realismo e consequência.

A terceira exigência, “renunciar a tudo o que tem”, toca na capacidade e na maturidade exigidas do discípulo na relação que possui com os seus bens. Mais uma vez Jesus toca no tema do desapego como condição de liberdade para que a pessoa possa ser autêntico servidor do Reino e seu discípulo. Agora, ele é chamado a colocar o que possui em relação às necessidades dos outros. Amar menos o que se tem para coloca-los a serviço dos que não possuem.

As duas parábolas que se encontram no meio do texto, nos vv.28-32, são tomadas de ambientes distintos, mas possuem a mesma intenção e finalidade. A primeira, a do construtor que deseja começar a construir deve saber se terá o suficiente para concluir a obra. Caso contrário será alvo da chacota alheia. A segunda, serve-se do exemplo de um rei que está preste a sair em batalha, com seu reduzido exército em face a outro que apresenta um exército mais numeroso, e que deve discernir bem sua estratégia. Ambas as parábolas tocam no tema do discernimento diante de uma tomada de decisão e de suas consequências. Elas servem para iluminar o discípulo no discernimento, na tomada de decisão e leva-lo a pensar nas consequências de sua decisão/adesão ao discipulado. Jesus não quer que o discípulo seja inconstante. Para se tornar seguidor é necessário que a pessoa pese, discirna e tome consciência da escolha que está fazendo. O discípulo, portanto, não pode ser inconsequente. Assim como o construtor e o rei têm que ser conscientes das decisões e consequências que podem ter, tanto mais aquele que se dispõe a assumir o discipulado ao Reino e a Jesus. Este é o sentido das duas parábolas que reforçam as exigências que o Senhor faz para quem quiser segui-lo.

No horizonte da comunidade, o evangelista e serve destas parábolas para fixar o ensinamento de Jesus aos seus discípulos-leitores e integrantes da comunidade, de modo a evitar qualquer pensamento equivocado sobre o discipulado, suas exigências e acerca da pessoa de Jesus. O fiel-discípulo não pode conceber um seguimento/discipulado de acordo com suas conveniências, mas conforme a radicalidade da vida do mestre, e não se afaste do ideal de vida de Jesus mesmo diante das dificuldades, das exigências e das crises suscitadas pelo próprio evangelho. A comunidade, se ela quiser ser fiel ao projeto de Jesus, deve procurar viver estas exigências que Ele mesmo viveu por primeiro: tudo reordenar, recolocar e ressignificar no horizonte do projeto de Deus; ser consciente de que tomar a cruz é configurar sua vida ao mistério da entrega e da doação até as últimas consequências; e viver, por isso, uma vida em liberdade e gratuidade diante do que se possui.

Quem somos neste “espelho” do texto: 1) acompanhantes ou seguidores de Jesus? 2) Temos colocado o projeto de Jesus e do Reino em primeiro lugar ou temos amado mais nossos próprios projetos e convicções? 3) Temos discernido sobre a nossa condição e vocação de discípulos e discípulas?

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.