O evangelho deste domingo segue na continuidade da narrativa anterior, a parábola do administrador desonesto (Lc 16,1-13). Ao final, Jesus censura a postura dos fariseus (v.14), os quais zombavam de Seu ensinamento acerca da impossibilidade de servir à Deus e ao dinheiro, pois eram “amigos do dinheiro”. O texto proposto para a meditação já parte do v.19, mas ainda dirigido aos fariseus, com a parábola do rico e do pobre Lázaro.
Versículos antes, Jesus declarou a impossibilidade de um rico entrar no Reino, sendo mais fácil e possível um camelo passar pelo buraco da agulha (v.15). Afirmação que deve ser mantida na sua originalidade, isto é, a de provocar o ouvinte-leitor. No Reino de Deus, segundo perspectiva de Lucas, há lugar para todos, inclusive para os “senhores”, mas não para os ricos. Qual a diferença? O rico é aquele que tem e detém para si. O senhor é aquele que dá e partilha com os outros. No evangelho lucano, os ricos são considerados doentes terminais de egoísmo para os quais não existiria, então, esperança.
Nesse sentido, Jesus conta a parábola de um homem rico, esbanjador, que não repartia, e de um pobre, que se sentava à porta dele e esperava as suas benesses. “Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias” (v.19). Note-se como o evangelista consegue, ao recuperar o ensinamento de Jesus, captar bem as dinâmicas psicológicas do rico. Ele exterioriza aquilo que lhe falta internamente através das roupas finas. Revela, ainda, a partir do detalhe dos banquetes dados cotidianamente, a fome, que nada mais seria do que a ausência de algo que pudesse preenche-lo. Ou seja, este rico é um homem completamente vazio e raso, superficial e pobre; que através das extravagancias revela aquilo que mais lhe falta. É pobre interiormente e necessita mostrar sua riqueza através da exterioridade. Necessita mostrar que tem algo. Não é por menos que Jesus direciona a parábola, em primeiro lugar, para os fariseus.
Quem muito precisa mostrar, aparentar, ostentar e fazer é porque muito lhe falta. Ou pode faltar tudo. Este dinamismo nada mais é do que uma forma/atitude compensadora para aquilo que lhe falta. Acabando por anestesiar-se nas compensações; passa a perder o senso da realidade a sua volta. Não consegue enxergar as reais necessidades das pessoas que estão ao seu lado. Miram e projetam-se a si mesmos.
A outra personagem, que, pela primeira vez no ensinamento em parábolas de Jesus recebe nome, é o pobre Lázaro (hbr. “Deus ajuda”). Muita atenção na forma em que ele é descrito por Jesus: “Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas” (v.20-21). Lázaro é pobre, está coberto de feridas, e vive das migalhas – das eventuais sobras – que caiam da mesa do rico. Esta personagem é descrita como sendo um pecador, conforme mentalidade da época. A pobreza e enfermidade (estar coberto de feridas) eram tidas como consequências do pecado cometido. Chama mais ainda a atenção, o fato dos cães que se aproximavam e lambiam suas feridas. Numa primeira análise, é possível pensar que a saliva dos cães servisse de curativo para as feridas do pobre Lázaro. Mas é verdade que também os cachorros eram tidos como animais impuros. Jesus carrega a mão ao descrever a condição deste pobre: impuro por sua pobreza e enfermidade, a ponto de atrair para si mais impurezas, simbolizadas pelas figuras dos cães. Talvez o exagero narrativo seja mais próprio do evangelista que gosta do recurso da hipérbole.
A intenção da parábola é mostrar que ambos vivem em mundos diferentes e separados. Todavia, o destino existencial dos dois foi o mesmo: morreram. Jesus tem uma perspicácia tremenda que o evangelista consegue captar e trabalhar ao seu modo, pois no v.22 se encontra a informação: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado”. Lázaro morre e vai para junto de Abraão; do rico, só se diz que foi enterrado. Recorde-se que Jesus destina a parábola aos fariseus, e, por isso, ele tem a necessidade de falar-lhes servindo-se do contexto deles. Havia um livro apócrifo chamado Livro de Enoc, o qual era lido pelos fariseus do tempo de Jesus. Nele continham descrições (frutos da imaginação do autor, obviamente) acerca do chamado “seio de Abraão”, localizado nos subterrâneos da terra. Os que estivessem mais acima, seriam os privilegiados, e os que se encontrassem nas profundezas dessa mansão, os mais desgraçados.
Jesus, ainda se servindo das categorias teológicas dos fariseus estabelece bem as diferenças: Lázaro, que antes era um amaldiçoado, impuro, metáfora para o pecador, encontra-se, agora, na luz, junto do patriarca Abraão; torna-se, portanto, um bendito. O rico, bem de vida, abençoado com a riqueza, passa, então, para o tormento, a ausência da paz. Mas é importante compreender que ele não se condenou por sua postura extravagante, mas pelo fato de não ter levado em consideração o pobre que se sentava em sua porta todo o dia. Foi a indiferença diante da situação de Lázaro que acentuou ainda mais a distancia abissal entre eles. Eram próximos fisicamente, mas viviam em mundos distantes. Um grande abismo já existia entre eles.
“Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas” (vv.23-24). Por fim, agora, na hora do aperto, o rico se dá conta da existência de Lázaro. Mas Jesus mostra que o comportamento e a atitude da personagem não mudaram. Ela pensa em seus próprios interesses; nutre a mentalidade de que todos lhe devem obrigações, que tudo deve ser para si, em primeiro lugar e acima de tudo. E, pior ainda, como se não bastasse, concebe relações de domínio e submissão: “manda (ordena) que Lázaro molhe o dedo com água, e venha me refrescar!” Agora que se recordou de Lázaro, o quer somente para sanar as suas necessidades. Não suplica, pretende; não pede, manda. Aquele comportamento típico dos ricos.
“Mas Abraão respondeu: Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós” (vv.25-26). Jesus fixa-se no diálogo entre Abraão e o rico. O patriarca denuncia então a atitude que levou o rico até aquele lugar: não dividiu seus bens; não partilhou; ignorou o pobre. E também o fato de que viviam em mundos distantes e que essa distância só era ainda mais acentuada em virtude do seu comportamento, é isso que Abraão quer dizer com a expressão “há um grande abismo entre nós”. Com isso, Jesus pretende dizer também para os fariseus que todo e qualquer tipo de divisão e de abismo que se cria e se alimenta no aqui e no agora, se prolonga depois. É um alerta para eles.
Mais uma vez, o rico, enfermo do egoísmo, pensa em si e no seu clã, e não nos outros, é o que emerge através desta sua fala na parábola: “Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento” (vv. 27-28). Não pensa nos outros; olha para os seus, apenas. Não se abre a possibilidade de que o convite a uma mudança de vida e mentalidade pudesse ser interessante a todos. Está fixado em seus cinco irmãos; em sua família. Quer somente para si e para os seus. Isso basta. A resposta de Abraão na parábola é taxativa: “Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!” (v.29). Moisés e os profetas sempre se posicionaram ao lado dos pobres. O primeiro, deixou muito claro que no meio do povo não deveria existir necessitados. Deus ordenara ao povo não reproduzir os mesmos sistemas de morte e desigualdade vividos na escravidão do Egito. Os profetas, em seus ministérios, sempre direcionavam suas pregações e denúncias contra os interesses egóicos dos ricos, que se apropriavam inclusive dos bens da gente simples, e chamavam a atenção do povo para o acolhimento aos pobres. A expressão “Moisés e os profetas” simbolizam aqui toda a Sagrada Escritura. Ela deve ser escutada!
O
rico da parábola protesta uma vez mais, dizendo que se um morto voltar e
advertir seus irmãos, talvez possam se converter e não passar pelo mesmo
tormento. E eis a sentença final de Jesus dirigida aos fariseus: “Mas Abraão lhe disse: Se não escutam a
Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos
mortos” (v.31). Jesus denuncia a atitude deles: eles não escutam a Moisés e
os profetas. Tampouco crerão na ressurreição dos mortos. Mas como compreender esse
dito? Enquanto não forem capazes de dividir e partilhar o pão com os famintos
não conseguirão crer no Cristo ressuscitado, que no evangelho de Lucas se faz reconhecível
no partir do Pão com os discípulos de Emaús (Lc 24). Somente quem é generoso em
vida poderá fazer a experiência do Senhor Ressuscitado em sua existência.
Pe.
João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário