sábado, 10 de setembro de 2022

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 15,1-32:


 A liturgia deste domingo apresenta-nos o coração do evangelho segundo Lucas, o capítulo quinze, o qual contém as parábolas da misericórdia. Dos versículos 1-10, o evangelista recolhe duas parábolas que ilustram o agir misericordioso do Deus que Jesus chama de Pai: a ovelha e a moeda perdida. Ambas dão ênfase à alegria de divina pelo encontro tanto da ovelha como da moeda que estavam perdidas, metáforas para as pessoas que se afastaram em face ao pecado. Diante delas, Deus age com misericórdia. A parábola que coroa esta seção é a do Pai misericordioso, de 12-32 (comumente conhecida como a do “filho pródigo”). Este conjunto de ensinamentos de Jesus é original de Lucas, e ele o conservou da chamada fonte dos ditos (Fonte Q). O autor do evangelho, recolhendo o ensinamento de Jesus, põe ênfase no agir do pai nas três parábolas. E a temática da perda, reencontro e da festa aparece nas três.

O capítulo quinze situa-se no contexto da viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Ele possui uma finalidade, que é a de ensinar o discípulo acerca da misericórdia de Deus. Neste sentido, o leitor-discípulo, através deste capítulo deverá aprender como agir na realidade, na história e nas relações humanas: assimilar o agir de Deus que é misericordioso. 

O evangelho segundo Lucas é conhecido como o evangelho da misericórdia. Para ele, Jesus é a expressão da misericórdia de Deus. Todavia, uma  misericórdia difícil de ser assimilada pelos que agiam pelo legalismo, individualismo e autoritarismo: os chefes do povo. Eles demonstram resistências diante de Jesus. Por isso, as parábolas são dirigidas, em primeiro lugar, a eles, visando provoca-los, chamar-lhes a atenção e propor lhes uma mudança de mentalidade. Mas torna-se tarefa difícil mudar a mentalidade de quem se encontra arraigado nas estruturas de domínio, de poder e de morte.

O evangelista nos dá uma informação inicial: “Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar” (v.1). Por publicanos entenda-se os cobradores de impostos, os quais eram judeus que trabalhavam para o Império na coletoria dos impostos de sua própria gente. Eram considerados pecadores e traidores públicos; inimigos do povo. E, também os pecadores. As pessoas que se encontravam afastadas do amor e do projeto de Deus. Ambos representam a humanidade sofredora, marcada pelo pecado. Ora, eles escutam a voz de Jesus e este se lhes faz próximo. Com isso, Lucas trabalha com o tema da salvação universal. Estes, se põe a escuta-Lo sem resistências ou melindres. Se encontram livres para abraçar o projeto de Deus.

No v.2, Lucas nos mostra os antagonistas. Os chefes religiosos do povo, com atitudes e mentalidades diametralmente opostas às dos publicanos e pecadores: “Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. 'Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. A atitude dos mestres da Lei e dos fariseus, os teólogos do tempo de Jesus, é, ao mesmo tempo o fator chave que faz com que se dê o ensinamento em parábolas acerca da misericórdia, a qual se revelará como antidoto para o comportamento e pensamento dos chefes. É interessante que eles nem mencionam o nome de Jesus; tratam-no como “este homem”, como que desdenhando e recusando dele. Mais ainda, criticam a atitude de tomar refeição com este grupo de pessoas. E é muito significativo que Jesus aceite fazer refeições com eles, pois a refeição no ambiente e para a sociedade do tempo Jesus, bem como ao interno da tradição religiosa judaica, se tornava o momento privilegiado para se fazer experiência com a vida de alguém; para se estabelecer relações interpessoais; para se firmar um propósito de comunhão.

Jesus, ao fazer refeição com os excluídos quer estabelecer com estes uma relação e comunicar-lhes a misericórdia e o amor do Pai. Isso desestabiliza os que detém o poder religioso. Por isso, o Senhor se torna passível de críticas e de descrédito.

Prosseguindo na leitura do texto, Jesus começa a ensinar em parábolas. As duas primeiras têm a função didática de preparar a terceira, mas nem por isso são privadas de valor. Na primeira (vv. 3-7), da “ovelha perdida e reencontrada”, o mestre inicia: “Se um de vós tem cem ovelhas e perde uma, não deixa as noventa e nove no deserto, vai atrás daquela que se perdeu, até encontrá-la? Quando a encontra, coloca-a nos ombros com alegria, e, chegando a casa, reúne os amigos e vizinhos, e diz: Alegrai-vos comigo! Encontrei a minha ovelha que estava perdida! Eu vos digo: Assim haverá no céu mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão”. Elementos muito tradicionais e comuns à tradição cultural do povo de Jesus emergem na primeira parábola, o pastor, a ovelha e o rebanho. Uma constatação importante: a ovelha é chamada de perdida, diferentemente da extraviada do evangelho de Mateus (Mt 18). Há diferenças. A ovelha perdida simboliza a pessoa que livremente toma outro caminho e se afasta do projeto de Deus. A extraviada é aquela pessoa sai do caminho por interferência ou influencia de terceiros. Isso posto, chama a atenção, agora, a atitude do pastor: o cuidado para com a ovelha perdida. Ele deixa as noventa e nove no deserto (v. 4) para ir atrás dela, correndo inclusive o risco de colocar aquelas que ficaram no deserto em perigo; isso não significa que o pastor as amasse menos; quer dizer que o amor comporta riscos. E, para Deus, simbolizado pela imagem do pastor, as pessoas não são números, mas cada um é importante. Não se pode pensar na quantidade. Quem ama intensamente arrisca-se, como o pastor arriscou perder as noventa e nove para recuperar aquela que se perdeu. Sua atitude é ainda mais paradigmática, pois ele a carrega nos ombros, numa demonstração extraordinária e de amor e cuidado. Esta é a primeira ilustração do agir de Deus através de Jesus.

Na segunda parábola (vv. 8-10), da “moeda perdida e achada”: “E se uma mulher tem dez moedas de prata e perde uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e a procura cuidadosamente, até encontrá-la? Quando a encontra, reúne as amigas e vizinhas, e diz: 'Alegrai-vos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!' Por isso, eu vos digo, haverá alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte". Deus é apresentado a partir da figura de uma mulher. Talvez, Lucas queira enfatizar ainda mais o protagonismo feminino ao interno de sua comunidade, e, nesse sentido, emitir uma advertência para as comunidades cristãs em todos os tempos. A parábola descreve uma mulher ativa que preside, inclusive, a economia da casa. 

A mulher serve de imagem para Deus e a casa serve de símbolo para a realidade do Reino. Através da atitude da mulher, Jesus e Lucas desejam mostrar que neste Reino (casa) não se permite que ninguém esteja perdido (a moeda). Deus e Jesus não querem ninguém fora desta grande casa que é o Reino. Uma nota ainda importante, é que o cuidado da mulher na segunda parábola prepara a temática da terceira, através da atitude do pai.

Dos vv.12-20 Ele descreve a atitude do filho mais jovem, que pede a parte da herança de seu pai, vai embora de casa, gasta tudo, fica na miséria, busca emprego para poder se sustentar, e, depois de cair na mais profunda impureza (tratar de porcos e se tentar se alimentar da mesma comida deles, fato impensável para um judeu, uma vez que o porco é considerado um animal impuro; e Jesus carrega nesta ilustração justamente para mostrar a que nível tinha chegado a situação de indigência e abandono daquele jovem), acaba percebendo que na casa de seu pai as coisas vão bem, inclusive para os empregados. Após um frio cálculo decide-se voltar para casa, submetendo-se à sorte e ao destino de ser tratado como um empregado qualquer: “Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados” (v.19). O pensamento do jovem por muito foi visto na exegese antiga e na intepretação anterior como arrependimento e conversão. O que não é verdade. Tais atitudes não são encontradas na intenção do filho. Ele se revela matemático demais na maquinação de seu  retorno, visando não o amor de seu Pai, mas a recuperação da sua zona de conforto, mesmo sendo a de um empregado. “Trata-me como a um de seus serventes”; ele ensaia tudo direitinho. E se põe a caminho.

Jesus, ao narrar o retorno do jovem, promove a reviravolta da parábola, a qual produz o efeito desejado, o de chamar a atenção dos ouvintes para a atitude do pai. Antes, porém, se deve fazer uma consideração. Amparado pela Lei, conforme Dt 21,18-21, o pai poderia entregar este jovem ao tribunal da cidade para ser sentenciado à pena de morte. Sintamos, na literalidade, o peso deste texto legislativo: “Se alguém tiver um filho rebelde, contumaz e indócil, que não aprende a obedecer ao pai e à mãe e não dá ouvidos aos bons conselhos, mesmo quando o corrigem e disciplinam, o pai e a mãe o conduzirão até aos anciãos e líderes de sua comunidade, à porta da cidade, e denunciarão às autoridades da cidade: ‘Este nosso filho é por demais teimoso e rebelde; não nos obedece, é devasso e vive embriagado!’ Então, diante desse depoimento, todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. Assim, portanto, eliminarás o mal do meio do teu povo; todo o Israel ficará sabendo o que ocorreu e ficará temeroso!” (Dt 21,18-21). Ora, o jovem da parábola, além de ser tipificado pela Lei como rebelde, também recebe a fama de assassino. Ao pedir a herança ao pai, no começo da parábola, o filho está, de verdade, matando-o; desejando a morte do pai. Rompendo com toda a possibilidade de relação. Mesmo que estivesse prevista na lei a divisão dos bens ainda em vida; mas tal não era preterido, para não ferir nem desonrar o pai. Porém, o filho mais novo, nesta parábola recebe do pai a parte maior, equivalente à do irmão mais velho. O pai abre mão de toda possibilidade de vida e de sua existência para seu filho. Diante desse cenário, teria o pai todo o direito de entregar o filho ao tribunal. É esta a atitude tomada por ele?

Deixemos Jesus responder: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v.20). O evangelista utiliza o verbo splangkhnizomai (gr. σπλαγχνίζομαι), que se traduz por misericórdia. É o coração e as entranhas remexidas diante da condição humilhada e marginalizada em que o outro se encontra. As vísceras condoídas do pai, que o fazem mover-se na direção do filho em caminho, quebra inclusive o raciocínio matemático e esquematizado de ser tratado como empregado. O pai não dá lado para isso. E age, uma vez mais de forma diametralmente oposta ao estabelecido na lei. Dos v.v. 22-24, Jesus narra as atitudes restituidoras de vida que o pai toma. Faz festa, manda matar um novilho cevado, dá roupa, anel e sandálias: devolve-lhe a dignidade e a vida de filho (“Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v.24)). O filho mais novo é imagem para todos os que vivem afastados do projeto amoroso de Deus.

Mas a família está incompleta. Outro irmão precisa ser recuperado. É o mais velho. Sim, ele é imagem para aqueles que pensam estar vivendo o projeto de Deus, e, na verdade, não estão. Claramente, os fariseus e mestres da lei são chamados a se identificar nas atitudes do filho mais velho que, em última análise, recusa conviver com o irmão que errou, “Mas ele ficou com raiva e não queria entrar” (v.28a).

“O pai, saindo, insistia com ele” (v.28b). O pai sai do ambiente da festa para também ir ao encontro do filho. Ou seja, o pai, movido pela mesma compaixão vai recuperar este filho. Ele quer e deseja refazer e ressignificar o horizonte das relações esfaceladas e quebradas. Deseja que os filhos vivam novamente como irmãos, e se reconheçam como filhos do mesmo pai. Todavia, o filho mais velho resiste: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (v.29). Reina a mentalidade do mérito. Mas para o pai, não é o mérito do dever cumprido que pauta a sua atitude diante dos filhos: é o amor e a misericórdia com ambos. A misericórdia, o perdão e o amor que se obtém do pai não é em virtude do que se fez nem do que se fará. Mas são eles dons gratuitos e imerecidos da parte deste pai, que é, em última análise, metáfora para o próprio Deus e Pai de Jesus.

Jesus, na parábola, não informa se o filho mais velho aceitou o convite do pai, ao final da parábola. Logo, não temos conhecimento desse fato. Mas o que Ele faz questão de enfatizar é a imagem do pai devolvedor e doador de vida e dignidade à seus filhos, fazendo o pai repetir o que disse aos empregados: “porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado” (v.32). Deixando assim, para cada ouvinte, tomar sua conclusão e sua decisão. 

Nestas parábolas, a alternância entre homem e mulher, enquanto personagens principais acena para a igualdade existente entre homem e mulher; como imagem e semelhança do criador, são as melhores imagens para representar um Deus que é pai e mãe, como o que Jesus revela. Mais ainda, o amor e a misericórdia do Deus de Jesus é universal (parábola da ovelha e da moeda perdidas) e incondicional (parábola do pai misericordioso). Por isso, Lc 15,1-32 é um verdadeiro manual catequético de Jesus para quem deseja ser discípulo do Reino e caminhar com Ele pelo itinerário da misericórdia. Nesse sentido, 1) Nossas comunidades tem sido espaço de misericórdia? 2) Nossas atitudes, enquanto discípulos-missionários e ouvintes da Palavra, refletem o interesse, o amor, a disponibilidade e o cuidado do Pai e de Jesus para com os que estão fora? 3) Ou nossas atitudes refletem nossos próprios interesses e mentalidades, como as dos fariseus e mestres da lei no tempo de Jesus?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP

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