sábado, 22 de outubro de 2022

REFLEXÃO PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 18,9-14:

 


A liturgia deste trigésimo domingo do tempo comum apresenta a continuidade do capítulo dezoito do evangelho de Lucas, com um texto muito desconcertante: a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14). Esta parábola apresenta em sua sentença final, uma provocação absolutamente questionadora que vai além da lógica humana, a qual tem a intenção de conduzir o leitor/ouvinte à uma mudança de mentalidade e no modo se relacionar com Deus – não o deus da religião, mas o Deus e Pai de Jesus – e com as pessoas. Nesse sentido, a pergunta inquietante para uns, desconcertante para outros se expressaria assim: “Seria possível continuar ou viver uma situação considerada pecaminosa pela religião ou pela moral, e ser igualmente amado por Deus?  É o caso do publicano que veremos nesta parábola, que o Senhor conta aos seus no caminho para Jerusalém. Caminho de formação dos discípulos no projeto do Reino.

A fim de compreender esta mudança radical na relação com Deus, Jesus narra a parábola do fariseu e do publicano, destinando-a àqueles que pensam ser perfeitos diante de Deus, graças aos seus esforços, ou, na linguagem do evangelista, “aqueles que confiavam na própria justiça” (v.9). A parábola começa assim: “Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos” (v.10). As personagens já são apresentadas. Um fariseu e um publicano. Duas pessoas com condutas opostas.

O fariseu era o observador zeloso da Lei, conhecendo-a nas suas minucias e em suas virgulas. Cumpria rigorosamente as 613 prescrições da lei de Moisés. Pessoas leigas e piedosas, profissionais do sagrado. Mais religiosas que os chefes da religião. Assim, considerava-se justo diante de Deus, e, com isso, separavam-se do povo. O publicano era um judeu que trabalhava para o Império, cobrando impostos de sua própria gente. Eram considerados como traidores do povo e, nesse sentido, piores pessoas e pecadores públicos, e transgressores dos mandamentos de Deus. Para estes, não haveria nenhuma esperança de salvação. Nesta personagem, Jesus apresenta uma pessoa, de cuja a situação não pode sair!

Jesus mostra a atitude e o conteúdo da oração do fariseu rezado: “O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo” (v. 11). Interessante, o fariseu rezava em pé (para ser visto) e em seu íntimo. A tradução grega é melhor, pois mostra com realismo o modo com que ele rezava, “voltado para si mesmo”. O fariseu se coloca diante do Senhor, mas permanece voltado para si, ainda que as palavras que saíssem de sua boca fossem direcionadas à Deus; um monólogo de sua própria santidade: fala para si mesmo e sobre si mesmo.

O fariseu, por sua vida separada, fazia da sua santidade a medida para julgar os outros: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos. Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda” (v.12).  Jesus denuncia a incoerência do fariseu, que através da sua mania de ostentar a sua justiça diante dos homens, na realidade serve somente para mascarar a profunda e real injustiça que existe diante de Deus. Ele, no templo, ao exaltar e glorificar a sua dignidade e santidade, ao incensar suas práticas, não faz outra coisa senão usurpar o lugar de Deus. É o pecado da idolatria, que na tradição religiosa de Israel, é o próprio pecado do adultério, porque o fariseu dava a si mesmo a glória que era devida a Deus: acredita que está cultuando a Deus, mas, na verdade, se coloca, idolatricamente, em Seu lugar. Tal é a convicção equivocada dele, que a sua atitude de lançar uma olhar de desprezo ao publicano lhe denuncia a insensatez e o desprezo: “não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos”.

A concepção equivocada do fariseu em relação à Deus é ainda mais acentuada na parábola, quando elenca as suas atitudes: “Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda” (v.12). São elas centradas nas práticas da piedade judaica. Entretanto, nenhuma delas voltadas às relações com o próximo. Todas voltadas para o cumprimento do dever religioso em relação à Deus, mas totalmente desinteressadas do bem ao próximo. Por exemplo, ele elenca a prática do jejum. Na tradição de Israel, a prática era prescrita uma única vez ao ano, no chamado Yon Kippur (dia da expiação/perdão). Mas, a prática religiosa acrescentou mais quatro, aludindo ás quatro grandes catástrofes nacionais do povo. Mas, os fariseus, para destacarem-se dos demais, jejuavam às quintas e às segundas-feiras, porque a quinta-feira era o dia em que Moisés, conforme a tradição, havia subido ao Sinai, e a segunda-feira, o dia em que ele havia descido da montanha. Este jejum bi-semanal era o distintivo dos fariseus. Paga o dizimo de tudo o que possuía, e não somente sobre o que era exigido pela Lei, isso porque queria estar seguro de não transgredir nenhuma norma ou prescrição. Assim, fazia muito mais do que era estabelecido. Apresentava a lista de seus pretensos méritos diante de Deus.

Agora, é importante lançar o olhar para o publicano. Ele vai ao templo com a intenção de rezar, mas não arrisca em fazê-lo. Jesus mostra muito bem a discrepância existente entra as duas personagens. O cobrador de impostos está à distância, “O cobrador de impostos, porém, ficou à distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu” (v.13). Ele tem consciência de sua indignidade; sabe que não pode entrar numa casa comum de um judeu piedoso, quiçá no templo de Deus, e tornar impuro todos os que se aproximavam.

A forma e o conteúdo da oração do publicano é, por demais, reveladora, conforme narra Jesus: “batia no peito, dizendo: 'Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (v.13). Jesus apresenta duas personagens num contraste abissal entre si, mas com atitudes iguais em relação à Deus: o fechamento. O fariseu, enquanto ídolo e deus de si mesmo, se fecha ao Senhor, que pede amor e não sacrifício; o publicano, que convive cotidianamente com o engano e com o roubo. Mas somente este é consciente de sua impureza, de sua indignidade. Mais curioso ainda, ele não promete a Deus mudar de vida porque não lhe é possível. Mas roga a Deus para mostrar lhe, mesmo em sua impureza pecadora, a Sua misericórdia: “Senhor, veja a vida desgraçada que levo. não posso fazer outra coisa, não posso voltar atrás. Não obstante a isso, mostrai-me vossa misericórdia”.

A parábola, como dissemos no início, termina de uma forma inexplicável, com uma sentença desconcertante de Jesus, que faz refletir: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (v.14). O publicano retorna para a sua casa justificado, ou seja, em paz com Deus. Mas isso é inquietante: o que esse fariseu fez de errado? Por outro lado, o que fez o publicano ser justificado? O primeiro cumpria e realizava tudo o que ordenava a Lei, e muito mais. O segundo, não faz o propósito de mudar de vida, mas é destinatário da misericórdia de Deus.  O erro do fariseu foi o fato de ter se exaltado a si mesmo, isto é, tomou o lugar de Deus. Fez se Deus de si através da mercadoria de troca que seus méritos representavam. 

A parábola de Jesus pretende mostrar como é a lógica do Reino de Deus: nesta nova realidade que Ele propõe, o Reino, não se torna grande e amado por de Deus quem se apoia em seus próprios méritos, mas é amado por Deus devido às suas necessidades. Méritos, nem todos o tem, nem todos podem apresentar. Agora, necessidades, todos possuem. Então, a moral deste trecho precioso é esta: Deus ama, sem impor a mudança de vida; a comunhão com Deus não depende da conduta religiosa e dos méritos do homem, mas no acolhimento do amor Daquele que, como Lucas disse, é bondoso também com os ingratos e maus.

Quem somos, diante deste espelho do texto? O fariseu, mais religioso que os líderes (mais cristãos que o próprio Cristo; mais católicos que o papa; mais padres que os próprios padres)? Ou o publicano, consciente de ser indigno diante de Deus, ciente de não poder ter ou apresentar algum mérito? Como está nossa oração, dado que ela é o modo de se estabelecer uma relação com Deus: é uma relação que se baseia no mérito, enquanto “moeda de troca”; uma oração voltada a si? Ou uma relação que sabe ser grata e gratuita, e, portanto, livre diante de Deus, o qual nos ama livre e gratuitamente, sem esperar de nós os méritos?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 15 de outubro de 2022

REFLEXÃO PARA O XXIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 18,1-8:


O evangelho proposto para a meditação do vigésimo nono domingo do tempo comum, é retirado do capítulo dezoito da catequese de Lucas. Ao mesmo tempo que se inicia um novo capítulo, Jesus e Lucas encerram a seção acerca dos ensinamentos sobre o tema da fé dos discípulos, iniciado no capítulo anterior – Lc 17,1-10 – com o pedido dos discípulos para que Jesus lhes aumentasse a fé, seguido do relato da purificação dos dez leprosos, dentre os quais, um samaritano, que consegue honrar Jesus com sua fé (Lc 17,11-19). Por isso, o texto de hoje conclui este ensinamento acerca de como deve ser a fé dos discípulos: perseverante e orante.

A fé, nos mostrou o capítulo dezessete, é a capacidade de relação com Deus. É e sempre será a resposta que o homem e a mulher, o discípulo e a discípula de Jesus de todos os tempos e lugares oferece a Deus-Pai, diante de seu amor, sua misericórdia e seu perdão. Ela habilita o discípulo a se relacionar com Deus segundo a forma e a condição de Filho. Se o discípulo assimilar esta realidade relacional com Deus desta maneira, ele poderá ser reconhecido como discípulo verdadeiro do Reino. Mas esta relação-resposta deve ser sempre conservada a partir da perseverança e da constância, mesmo diante dos desafios e das dificuldades, inclusive no seguimento a Jesus. É o que o discípulo-leitor do evangelho deve procurar absorver do texto deste domingo, Lc 18,1-8, a parábola do Juiz iníquo e da viúva, os quais, de antemão já se adverte para a compreensão do texto, são personagens simbólicas – evidentemente, por se tratar de um gênero de parábola – a serem compreendidas e aplicadas à dois grupos.

Para compreender o texto de hoje é necessário compreender o contexto da comunidade de Lucas (e de todas as comunidades no Século I). Cresce e acirra-se a perseguição contra o movimento de Jesus por parte do Império, pelo imperador Domicianos, e da parte do judaísmo da época. A violência, o insulto, a rejeição, a exclusão e marginalização dos cristãos dos dois lados da sociedade estava gerando o desânimo nos primeiros cristãos e até desistências. Sob este clima é que Lucas tece o relato parabólico que inicia o capítulo dezoito, recuperando o ensinamento de Jesus. Digno de nota é que este episódio é exclusivo do evangelista, que soube redigir bem o texto, apropriando-se do ensino de Jesus e das personagens, articulando-as a fim de transmitir uma mensagem de ânimo, de encorajamento e de esperança para suas comunidades, a fim de fortalecer a sua Fé, mesmo em tempos de crise.

O texto começa apresentando a intenção do próprio Jesus, a qual revela-se a síntese e a finalidade do ensinamento que vem a seguir: “Jesus contou aos discípulos uma parábola, para mostrar-lhes a necessidade de rezar sempre, e nunca desistir...” (v.1). Na verdade, o Senhor já trabalhou o tema da oração com seus discípulos no capítulo 12 da catequese lucana. Por isso, este não pode ser considerado o tema central deste capítulo, embora apareça novamente. E, para que recordemos sempre: a repetição dos temas é um artifício do evangelista para mostrar as dificuldades que os discípulos-leitores estão apresentando na assimilação daquele tema. No entanto, se faz importante recorrer ao contexto da comunidade uma vez mais, ou seja, os anos 80. A comunidade de Lucas era composta, na sua maioria, por estrangeiros e pagão, os quais não tinham a prática e o costume da oração. Por serem de origem grega, a maioria estava habituada ao costume religioso grego dos sacrifícios apresentados nos templos, aos ritos, e não tinham práticas de oração pessoal.

A parábola é contada por Jesus. Nela, são apresentadas duas personagens absolutamente opostas. Um juiz e uma viúva. O mestre apresenta com muita precisão as características da personagem do magistrado: “um juiz que não temia a Deus, e não respeitava homem algum” (v.2). É um homem arrogante, autossuficiente, prepotente. Não temer a Deus significa que ele não o reverenciava. O temor bíblico não é sinônimo para o medo. Muito pelo contrário. É a atitude de reverência e de reconhecimento da dependência em relação ao divino. Este homem, mediante suas características, revela-se descomprometido com Deus e com outro (“não respeitava homem algum”).

A segunda personagem, que Lucas apresenta como contraste a ao juiz é a viúva. É importante relembrar que a viúva, dentro da tradição religiosa do povo de Israel, devia ser protegida pelo próprio povo. Mas isso não era feito. Quando a mulher ficava viúva, sem herdeiros, e, não tendo ninguém que a amparasse, todos os seus bens e propriedades podiam ser dados ao templo, aos sacerdotes. Com isso, corria o risco de ficar na miséria, na mendicância, vivendo na marginalização. Muito provavelmente, esta viúva da parábola ao apresentar-se com insistência diante daquele juiz, deveria estar com problemas desta natureza. A sua característica é a insistência; a perseverança. Mesmo sabendo que o juiz poderia ser injusto com ela. Via de regra, no AT, as figuras dos magistrados das cidades eram sempre denunciadas pelos profetas por deixarem se corromper por seus próprios privilégios e vantagens, desfavorecendo os pobres que iam a eles pedindo justiça.

Não é o que acontece. O juiz se incomoda com a insistência da viúva. Ele expressa bem sua intenção: “Eu não temo a Deus, e não respeito homem algum. Mas esta viúva já me está aborrecendo. Vou fazer-lhe justiça, para que ela não venha a agredir-me!” (v.4-5). A tradução está equivocada: o juiz não teme a agressão. Primeiro, porque Jesus jamais incentivaria essa atitude, tampouco os evangelistas inspirariam este comportamento para suas comunidades, que já sofriam por demais com a violência. A tradução literal é esta: “Vou fazer-lhe justiça, para que ela não me coloque os olhos negros”. Trata-se de uma figura de linguagem que pretende aludir para o medo de ter sua reputação manchada. Ora, é claro que o juiz injusto não estava pensado no bem daquela viúva ao lhe exercer justiça, mas na sua própria imagem, em sua reputação. Ele pensa em si mesmo, tão somente. Em seu próprio bem-estar e na sua conduta ilibada. Não pensa na justiça que pode fazer, porque sua preocupação não é o outro. Evidentemente, não é intenção do evangelista, tampouco de Jesus se deter sobre uma história. A intenção é uma catequese que visa chamar a atenção para as personagens simbólicas. Por isso, quem simbolizam estas personagens?

O juiz injusto é símbolo para a mentalidade e atitude do Império Romano, imbuídos de seus esquemas e sistemas de domínio, opressão, coação, injustiça, violência e morte. A viúva insistente se torna símbolo para a comunidade cristã, ameaçada nesta história. Mas ela se torna exemplar e modelo para os discípulos por sua perseverança na fé, mesmo em tempos difíceis; mesmo onde a crise e a dificuldade tomam conta e parecem reinar. É o exemplo da fé insistente e perseverante que a viúva tem que o discípulo precisa assimilar para o seu viver, e para ser reconhecido como verdadeiro discípulo do Reino. É, então, esta personagem que deve servir de modelo para a comunidade ou para o discípulo que balança na fé.

Jesus, conclui a parábola chamando a atenção dos discípulos para a conduta injusta deste juiz, para oferecer a eles a certeza de que ainda que aquele magistrado agisse assim, Deus agia diferente. Diferente do juiz injusto, Deus age com justiça, amor e misericórdia para salvar os seus. O Pai não é como este juiz, que se posiciona ao lado de suas próprias convicções e bem-estar, agindo por seus próprios interesses. Pelo contrário, através desta viúva, Jesus quer mostrar e ensinar que Deu-Pai toma um lado na história; se posiciona: sem sombra de dúvidas, o lado dos despossuídos, marginalizados e excluídos, ao lado das minorias. Jesus assegura ação e intervenção de Deus na história, de modo a animar e confortar os discípulos a fim de que recuperem e assumam de vez a esperança: “ânimo, Deus vai intervir porque a última palavra sempre é a Dele nesta história, mas precisamos cooperar com ele, fazendo nossa parte, sendo firmes, insistentes e perseverantes na relação com Ele”.

Jesus coloca uma pergunta: “Mas o Filho do homem, quando vier, será que ainda vai encontrar fé sobre a terra?” (v.9). Assim, encerra-se a seção que tratou acerca do tema da fé do discípulo. Diante do fato de Jesus assegurar constante ação de Deus em favor de todos os seus eleitos (o seu povo), Ele coloca a pergunta de modo a provocar os discípulos: diante da fidelidade de Deus, o homem permanecerá fiel à sua relação-em resposta à Deus? Será perseverante? Este será o desafio a ser vivido por aquele que deseja, de fato, seguir o projeto de Deus, tornar-se discípulo de Jesus.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 8 de outubro de 2022

REFLEXÃO PARA XXVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 17,11-19:

 


O texto proposto para a liturgia deste vigésimo oitavo domingo do tempo ordinário, continua a leitura e meditação do capítulo dezessete do evangelho de Lucas. Imediatamente a continuidade da narrativa do domingo anterior, cujo tema era a fé, resposta da parte dos discípulos, que os insere na condição de filhos, ou de servos. Agora, para ilustrar a dificuldade do discípulo que não consegue assimilar a Boa Notícia de Jesus, Lucas, dos vv.11-19, apresenta a figura simbólica de dez leprosos que são purificados.

Jesus, desde Lc 9,51 está em viagem, juntamente com seus discípulos, para Jerusalém. É um caminho/viagem que demonstra um deslocamento mais interior do que exterior para o discípulo porque trata-se de um itinerário de formação/catequese para que ele possa assimilar o projeto de Deus e o evangelho trazido e anunciado por Jesus. Nestes dez capítulos (9,51 – 19), Lucas concentra o ensinamento principal de Jesus que visa formar as pessoas no processo do discipulado, no seguimento. Todavia, se pode notar que os discípulos oferecem suas incompatibilidades, suas dificuldades e crises em face do programa de vida propostos por Jesus. É o que o evangelho de hoje, através desta narrativa quer apresentar para o leitor-discípulo de todos os tempos através do tema da lepra. Tendo contextualizado o texto, é possível adentrar no horizonte da narrativa que é permeada de simbolismos e chaves de leituras que permitem uma leitura e compreensão dinâmicas ao texto.

“Aconteceu que, caminhando para Jerusalém, Jesus passava entre a Samaria e a Galileia. Quando estava para entrar num povoado, dez leprosos vieram ao seu encontro” (v.11-12). Lucas elabora bem o caminho da viagem, por isso não se trata de uma informação histórica, a nível de crônica, mas um dado teológico, pois Jesus está caminhando desde o capítulo nove e já passara pela região da Samaria, localizada bem ao centro do país de Israel, com a região da Galileia mais acima do mapa. Deve chamar a atenção o povoado e não a viagem.

Sempre que no evangelho de Lucas aparece o termo povoado, ele traz consigo uma concepção muito negativa. O povoado é o lugar do tradicionalismo, da mentalidade atrofiada e equivocada, representa a resistência e a dureza do coração de quem não quer mudar (“aqui as coisas sempre foram assim”). Este termo sempre terá essa compreensão, por isso ele será uma chave de leitura a ajudar na compreensão do texto. Curioso é notar a incompatibilidade dos fatos: deste povoado (lugar da resistência, da mentalidade equivocada, atrofiada, do apego ao tradicionalismo), saem dez leprosos; vem ao encontro de Jesus que está do lado de fora, meio que se aproximando da entrada. Algo impossível de acontecer! Os leprosos não podiam sequer se aproximar de uma cidade ou povoado, devendo ficar de fora, morando em bosques ou grutas isoladas, uma vez que a lepra (e aqui se encaixam todas as doenças dermatológicas daquele período que careciam de cuidados médicos, dadas as dificuldades da época) era contagiosa e poderia atingir um povoado inteiro devido às condições sanitárias precárias daquele tempo. Um leproso era, portanto, alguém que vivia marginalizado socialmente. Trazia amarrada ao seu pescoço ou nas mãos um sininho, que avisava a chegada ou aproximação destas pessoas. A humilhação era ainda maior devido ao fato de que deveriam sempre gritar “impuro!”, a fim de afastar as pessoas.

Não era só do ponto de vista social que os leprosos eram marginalizados, mas também, e principalmente, do ponto de vista da religião. E este é o mais grave. A enfermidade era, de acordo com a mentalidade religiosa do tempo de Jesus, consequência do pecado. A lepra era a pior, pois devido ao aspecto ferido e horrendo em que a pele da pessoa ficava, era considerada como um morta-viva; alguém que, literalmente, vivia na morte. Alguns rabinos e livros religiosos daquela época do judaísmo diziam que a lepra era a mais terrível das enfermidades, e por isso, castigo, pois ela revelava, a partir da exterioridade machucada, ferida e, em certos casos, apodrecida o que haveria de podre, feio e horrível no interior da pessoa. O aspecto externo revelava o que internamente não estava bem naquela pessoa.

O evangelista diz que estes dez leprosos saiam da cidade, e foram ao encontro de Jesus, parando a distância. Diante do que foi dito, fica mais do que claro que estes leprosos são personagens simbólicas, uma vez que não podiam entrar ou estar no convívio de um povoado. Quem são, portanto, esses leprosos? Eles simbolizam a todos os discípulos de Jesus, que estão fazendo frente ao seu projeto, que apresentam dificuldades de assimilação à sua mensagem, que não querem deixar os esquemas do povoado. Ora, eles saem de dentro do povoado, lugar da mentalidade equivocada, do tradicionalismo cego, da resistência, isto é, de tudo aquilo que pode impedir a pessoa de viver o projeto de Deus. São em número de dez. Um número inteiro, que na tradição bíblica simboliza totalidade. São, de fato, todos os discípulos que apresentam dificuldades diante de Jesus, e que não querem mudar a mentalidade. Estão cobertos (simbolicamente) de uma lepra.

Prova de que se tratam de personagens simbólicas que se aplicam aos discípulos, que a própria forma com que se dirigem à Jesus já os entrega: “Jesus, Mestre, tem compaixão de nós!” (v.13). A tradução liturgia se equivoca com os termos. Ela traz o termo mestre, aplicado à Jesus, quando no texto grego a palavra é outra, e, por isso, manteremos o texto grego, mais original. O termo que aparece na versão grega aplicado à Jesus é “epistáta” (gr. ἐπιστάτα), literalmente, “chefe”. Somente aquele que não conseguiu ainda assimilar por onde passa o caminho de Jesus, sua vida doada, seu amor e sua misericórdia, em doação e serviço, se equivoca e, com razão, só consegue concebe-lo como chefe. Os discípulos ainda não conseguem compreender a Jesus como servo e doador de amor e de vida, e, ainda presos ao tradicionalismo proveniente do povoado que pensa e concebe o messias de Israel como dominador e chefe, se equivocam na compreensão acerca da identidade de Jesus.

Jesus não realiza um gesto sequer. Apenas dá uma ordem: “Ide apresentar-vos aos sacerdotes. Enquanto caminhavam, aconteceu que ficaram curados” (v.14) Jesus lhes ordena ir aos sacerdotes, porque somente eles, após um exame acurado do corpo da pessoa, poderiam atestar a cura da enfermidade, e firmavam um atestado de pureza. A cura de um leproso era algo considerado como intervenção de Deus. Mas é interessante que Jesus não faz nada, a não ser dizer para se afastarem do povoado. A medida em que se afastam do povoado, se cura, pois vão deixando para trás a lepra da mentalidade equivocada, da resistência, do tradicionalismo que atrofia e não gera vida, e, que portanto, pode matar; a compreensão errada acerca de Deus e de Jesus; tudo o que pode ser obstáculo para uma vivência e experiência livre de relação com Deus, seu amor e sua misericórdia.

Durante o percurso, somente um se deu conta que já estava purificado, e, portanto, livre daquilo que lhe impedia de seguir a Jesus enquanto discípulo. Era um samaritano. Isso é importante. Samaritanos e judeus não se relacionavam por motivos históricos e religiosos. A Samaria foi vista com preconceito após 722 a.C, devido a miscigenação ali existente, e, com isso, o judaísmo ali praticado sempre foi visto como falso pelos judeus piedosos do sul, Judá, cuja capital era Jerusalém. É uma fina ironia de Lucas mostrar que um samaritano se percebeu purificado e voltou glorificando a Deus, o que só seria aceitável se a atitude fosse de um judeu piedoso.

Por isso o fato narrado não é uma crônica do acontecido, mas uma mensagem simbólica; uma experiência de fé que se pretende relatar, a fim de que o leitor/discípulo faça seu exame e discernimento sobre sua conduta enquanto tal. O samaritano torna-se, pois, um exemplo a ser assimilado pelo leitor/ouvinte do tempo da comunidade de Lucas, e de todos os tempos e lugares. Ele, na narrativa, é o único que conseguiu se distanciar daquilo que o impedia, daquilo que era sua lepra, isto é, a dificuldade de aceitação ao projeto de Deus e de Jesus, representado pela enfermidade e pela figura simbólica do povoado.

O gesto de poder de Jesus vai se dando no caminho contrário ao povoado. Ou seja, a purificação se realiza no processo do distanciamento daquilo que pode ser sinal de enfermidade e obstaculizar a relação entre ele, Jesus, o Pai e o Reino: a hipocrisia religiosa travestida de zelosa piedade,  que pode gerar afastamento, segregação e exclusão; o tradicionalismo vazio, a resistência efetiva, as convicções equivocadas, as mentalidades atrofiadas e distorcidas acerca de Jesus e de Deus. É esta a purificação que a Palavra e vida de Jesus realizam e operam no discípulo, se este se permite ressignificar a vida. O samaritano alguém teoricamente de fora, que pode ensinar e reorientar a vida e a conduta dos discípulos acerca do modo de se relacionar com Deus e com Jesus. Ao colocar esta personagem, o evangelista também trabalha com um tema que lhe é muito caro, a salvação universal: ninguém pode permanecer de fora do projeto de amor, misericórdia e vida que Deus oferece através de Jesus. O samaritano se torna símbolo também para todos. Pois todos são associados a este projeto de Deus, a esta Boa Notícia de salvação.

Ao tomar distância do lugar que gerava a enfermidade, o samaritano pôde glorificar à Deus, isto é, restabelecer sua relação com o divino, e pode reconhecer a Sua presença em Jesus, o que se vê através da atitude da prostração diante do mestre. E recuperar a sua relação com Deus, lembrando que a fé, que salva o samaritano leproso é a capacidade da relação com Deus restabelecida: a fé é a relação-em-resposta que o homem e a mulher podem estabelecer com Deus. É o que o dialogo final entre Jesus e o ex-leproso quer ensinar (v.19). Fé/relação que sempre tem a potência de nos habilita para a condição de filhos.

Estejamos atentos para tudo aquilo que pode se tornar lepra em nossa vida de fé. E, principalmente, com os lugares que podem contribuir para que elas apareçam e tomem-nos a vida e a liberdade; a condição de filhos de Deus e de irmãos.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


REFLEXÃO PARA O XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 17,5-10

 

A boa leitura do texto bíblico sempre levará em conta a absorção do seu contexto amplo, isto é, o lugar onde a narrativa se encontra. Isso serve para iluminar a sua leitura, quando o texto parece trazer temáticas diversas. Como parece ser o caso do evangelho deste vigésimo sétimo domingo do tempo comum, retirado do capítulo dezessete do Evangelho segundo Lucas. O texto proposto para a liturgia deste domingo encontra-se em Lc 17,5-10. Todavia, é preciso retomar a leitura dos cinco versículos anteriores.

 

Nos v.v1-2, o evangelista começa o capítulo falando da eventualidade e inevitabilidade  dos escândalos no meio da comunidade. Mas escândalos aqui são todas as situações que impedem que o discípulo, que está iniciando na fé, cresça e progrida na vivência desta mesma fé, que é relação com Jesus e com o Pai. O evangelista usa o termo σκάνδαλον (gr. schândalon), que alude à impedimento, ou literalmente, obstáculo. Na comunidade dos discípulos não deve haver espaço para obstáculos que se interponham ao processo pessoal do individuo de se tornar discípulo do Reino e reconhecer-se filho de Deus. Jesus dirá que aquele que produz o escândalo, o obstáculo, que enfiasse uma pedra de moinho no pescoço e fosse atirado ao mar.

 

A pedra de moinho pesava mil e quinhentos quilos. O mar é símbolo, nas Escrituras, de tudo o que é contrário ao projeto de vida sonhado por Deus. “Ser lançado ao mar”, na verdade, é forma simbólica de se denunciar que a pessoa causadora do obstáculo e impedimento está na contramão do querer de Deus. Entendamos que o fato de Jesus dar essa ordem não significa que ele esteja fazendo apologia à exclusão. É preciso recordar que o mar é, também, o primeiro ambiente missionário de Jesus e dos primeiros discípulos. Ele convida Simão à vocação de pescar homens dos mares do mundo, fazendo-os começar a dinâmica do discipulado. Nesse sentido, “lançar ao mar” significa proporcionar à pessoa a tomada de consciência de que ela precisa recomeçar a caminhada. É, portanto, uma orientação e inciativa pedagógica que Jesus oferece à comunidade para que a pessoa recupere a sua condição de discípulo, e, mais ainda, reconheça-se filho de Deus.

 

Jesus toca no tema do perdão, nos vv.3-4, ensinado que o perdão deve ser constante e o distintivo da comunidade dos discípulos. A ordem de perdoar sete vezes não está ligada à quantidade, mas à qualidade. Sete na teologia bíblica indica plenitude/perfeição. O discípulo e a comunidade distinguem-se pelo perdão. Esta é a condição para ser reconhecido enquanto filho de Deus. Estes versículos, então, preparam o texto de hoje. Feitas estas considerações e contextualização inicial, agora podemos mergulhar na compreensão da narrativa de hoje e extrair dela o ensinamento que Jesus quer transmitir aos discípulos e à nós.

 

No v.5, após os ensinamentos anteriores de Jesus acerca do escândalo e da qualidade do perdão pedem algo: “aumenta a nossa fé”. Algo estranho. Pois a fé não é algo que Deus dá. Ela é uma resposta/atitude que parte do ser humano, e não de Deus. A fé não é algo que precisa ser aumentado, acrescentado, mas uma relação a ser vivida e trabalhada pelo ser humano. Por isso Jesus responde no v.6: “Se vós tivésseis fé, mesmo pequena como um grão de mostarda, poderíeis dizer a esta amoreira: Arranca-te daqui e planta-te no mar, e ela vos obedeceria”. A amoreira/sicômoro eram arvores que possuíam raízes tão profundas, que se tornavam difíceis de serem extraídas. O que o mestre pretende dizer? Que não importa a quantidade da fé, mas a qualidade dela. Ele a compara a um grão de mostarda, tão pequena semente. Jesus pretende ensinar seus discípulos que não importa uma fé gigante em termos de quantidade, mas da fé enquanto disponibilidade de relação. Se esta disponibilidade relacional, esta resposta existir da parte do homem e da mulher, eles podem se relacionar com Deus na condição de filhos.

 

Neste sentido, a fé, relação entre o homem e Deus, é o que habilita o ser humano para o horizonte da relação com Deus, a partir da condição de filho. E é interessante notar que a comparação da qual Jesus se serve, o grão de mostarda, que é aquela pequena semente, mostra para os discípulos que esta fé não uma fé ideal (grande, qualitativa, ou, mesmo perfeita), mas a fé real, perpassada pelos desafios, pelos obstáculos e dificuldades da vida. A fala de Jesus é uma denúncia: os discípulos não possuem a fé; não estão respondendo ao dom do amor de Deus; não estão se relacionando com Ele na forma e no modo de filhos, que abraçam ao amor e a misericórdia e frutificam este amor e esta misericórdia na relação com os outros.

 

Jesus propõe, pois, uma alternativa, através da parábola do patrão e do servo. Se os discípulos não acolhem a Sua oferta de se tornarem filhos à semelhança da vida e do amor do Pai, podem assumir a condição de servos. É o que as parábolas do servo e do patrão querem acenar (v.v. 7-10).

 

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.