sábado, 26 de março de 2022

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA QUARESMA - Lc 15,1-3.11-32:


 

O quarto domingo do tempo quaresmal apresenta-nos o coração do evangelho segundo Lucas, o capítulo quinze, o qual contém as parábolas da misericórdia. Dos versículos 1-10, o evangelista recolhe duas parábolas que ilustram o agir misericordioso do Deus que Jesus chama de Pai: a ovelha e a moeda perdida. Ambas dão ênfase à alegria de Deus pelo encontro tanto da ovelha como da moeda que estavam perdidas, que são metáforas para as pessoas que se afastaram do projeto de Deus em face ao pecado. Diante delas, Deus age com misericórdia. A parábola que coroa esta seção é a do Pai misericordioso (comumente conhecida como a do “filho pródigo”). Este conjunto de ensinamentos de Jesus é original de Lucas, e ele o conservou da chamada fonte dos ditos (Fonte Q).

O evangelho segundo Lucas é conhecido como o evangelho da misericórdia. Jesus é a expressão da misericórdia de Deus. E no capítulo quinze, o evangelista concentra esta temática com toda a sua força e profundidade através das parábolas da misericórdia. A partir do dinamismo interno do texto, há que se contextualizá-lo. O capítulo situa-se no contexto da viagem de subida de Jesus para Jerusalém. Do capítulo 9-19, Lucas reúne o ensinamento de Jesus e o transmite no decorrer da caminhada/viagem para a cidade santa. Mais do que uma viagem ou deslocamento geográfico, o caminho para Jerusalém constitui-se um itinerário de formação para o discípulo diante do projeto de Deus. Neste sentido, o discípulo, através deste capítulo quinze, deverá aprender como agir na realidade, na história e nas relações humanas e interpessoais: deverá assimilar o agir de Deus misericordioso.

Misericórdia difícil de ser assimilada pelos que agiam pautados pelo legalismo, individualismo e autoritarismo, no caso, os chefes do povo. Eles demonstram resistências diante de Jesus. Tal é o estopim para Ele começar seu ensinamento, dirigindo a eles as parábolas, visando provoca-los, chamar-lhes a atenção e propor uma mudança de mentalidade. Mas torna-se tarefa difícil mudar a mentalidade de quem se encontra arraigado nas estruturas de dominação, de poder e de morte.

O texto de hoje focaliza a parábola do pai misericordioso. O autor do evangelho, recolhendo o ensinamento de Jesus, põe ênfase no agir do pai. Além dele, duas personagens não menos importantes emergem na cena: o filho mais novo e o mais velho. Três personagens, portanto. Isso posto, podemos adentrar na leitura do texto.

O evangelista nos dá uma informação inicial: “Os publicanos e pecadores aproximavam-se de Jesus para o escutar” (v.1). Por publicanos entenda-se os cobradores de impostos, os quais eram judeus que trabalhavam para o Império na coletoria dos impostos de sua própria gente para a maquina imperial. Eram considerados pecadores e traidores públicos; inimigos do povo. E, também os pecadores. As pessoas que se encontravam afastadas do amor e do projeto de Deus. Ambos representam a humanidade sofredora, marcada pelo pecado. Ora, eles escutam a voz de Jesus e este se lhes faz próximo. Com isso, Lucas trabalha com o tema da salvação universal. Estes, se põe a escutar a Jesus sem resistências ou melindres. Se encontram livres para abraçar o projeto de Deus. Isso se verifica na atitude de escutar a Jesus.

No v.2, Lucas nos mostra os antagonistas. Os chefes religiosos do povo, com atitudes e mentalidades diametralmente opostas às dos publicanos e pecadores: “Os fariseus, porém, e os mestres da Lei criticavam Jesus. 'Este homem acolhe os pecadores e faz refeição com eles”. A atitude dos mestres da Lei e dos fariseus, os teólogos do tempo de Jesus, é, ao mesmo tempo o fator chave que faz com que se dê o ensinamento em parábolas de Jesus acerca da misericórdia, a qual se revelará como antidoto para o comportamento e pensamento dos chefes. É interessante que eles nem mencionam o nome de Jesus; tratam-no como “este homem”, como que desdenhando e recusando dele. É depreciativa a forma com a qual se referem à Jesus. Mais ainda, criticam a atitude de tomar refeição com este grupo de pessoas. E é muito significativo que Jesus aceite fazer refeições com eles, pois a refeição no ambiente e para a sociedade do tempo Jesus, bem como ao interno da tradição religiosa judaica, se tornava o momento privilegiado para se fazer experiência com a vida de alguém; para se estabelecer relações interpessoais; para se firmar um propósito de comunhão.

Jesus, ao fazer refeição com os excluídos quer estabelecer com estes uma relação e comunicar-lhes a misericórdia e o amor do Pai. Isso desestabiliza os que detém o poder religioso. Por isso, o Senhor se torna passível de críticas e de descrédito. Motivado por essa atitude dos chefes, Ele lhes dirige a parábola do Pai exemplar. Que, na verdade, mostra uma dinâmica familiar que não funciona perfeitamente. Um pai, que não consegue manter nas rédeas os dois filhos, um mais jovem e outro mais velho. Dois filhos rebeldes e demasiado egoístas, que a seus modos desautorizam o pai. Cada um motivado por seus próprios interesses. Jesus não relaxa a mão no ensinamento.

Prosseguindo na leitura do texto, Jesus começa a parábola. Dos vv.12-20 Ele descreve a atitude do filho mais jovem, que pede a parte da herança de seu pai, vai embora de casa, gasta tudo, fica na miséria, busca emprego para poder se sustentar, e, depois de cair na mais profunda impureza (tratar de porcos e se tentar se alimentar da mesma comida deles, fato impensável para um judeu, uma vez que o porco é considerado um animal impuro; e Jesus carrega nesta ilustração justamente para mostrar a que nível tinha chegado a situação de indigência e abandono daquele jovem), acaba percebendo que na casa de seu pai as coisas vão bem, inclusive para os empregados. Após um frio cálculo decide-se voltar para casa, submetendo-se à sorte e ao destino de ser tratado como um empregado qualquer: “Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados” (v.19). O pensamento do jovem por muito foi visto na exegese antiga e na intepretação anterior como arrependimento e conversão. O que não é verdade. Tais atitudes não são encontradas na intenção do filho. Ele se revela matemático demais na arquitetação de seu  retorno, visando não o amor de seu Pai, mas a recuperação da sua zona de conforto, mesmo sendo a de um empregado. “Trata-me como a um de seus serventes”; ele ensaia tudo direitinho. E se põe a caminho.

Jesus, ao narrar o retorno do jovem, promove a reviravolta da parábola, a qual produz o efeito desejado, o de chamar a atenção dos ouvintes para a atitude do pai. Antes, porém, se deve fazer uma consideração. Amparado pela Lei, conforme Dt 21,18-21, o pai poderia entregar este jovem ao tribunal da cidade para ser sentenciado à pena de morte. Sintamos, na literalidade, o peso deste texto legislativo: “Se alguém tiver um filho rebelde, contumaz e indócil, que não aprende a obedecer ao pai e à mãe e não dá ouvidos aos bons conselhos, mesmo quando o corrigem e disciplinam, o pai e a mãe o conduzirão até aos anciãos e líderes de sua comunidade, à porta da cidade, e denunciarão às autoridades da cidade: ‘Este nosso filho é por demais teimoso e rebelde; não nos obedece, é devasso e vive embriagado!’ Então, diante desse depoimento, todos os homens da cidade o apedrejarão até a morte. Assim, portanto, eliminarás o mal do meio do teu povo; todo o Israel ficará sabendo o que ocorreu e ficará temeroso!” (Dt 21,18-21). Ora, o jovem da parábola, além de ser tipificado pela Lei como rebelde, também recebe a fama de assassino. Ao pedir a herança ao pai, no começo da parábola, o filho está, de verdade, matando-o; desejando a morte do pai. Rompendo com toda a possibilidade de relação. Mesmo que estivesse prevista na lei a divisão dos bens ainda em vida; mas tal não era preterido, para não ferir nem desonrar o pai. Porém, o filho mais novo, nesta parábola recebe do pai a parte maior, equivalente à do irmão mais velho. O pai abre mão de toda possibilidade de vida e de sua existência para seu filho. Diante desse cenário, teria o pai todo o direito de entregar o filho ao tribunal. É esta a atitude tomada por ele?

Deixemos Jesus responder: “Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe ao encontro, abraçou-o, e cobriu-o de beijos” (v.20). O evangelista utiliza o verbo splangkhnizomai (gr. σπλαγχνίζομαι), que se traduz por misericórdia. É o coração e as entranhas remexidas diante da condição humilhada e marginalizada em que o outro se encontra. As vísceras condoídas do pai, que o fazem mover-se na direção do filho em caminho, quebra inclusive o raciocínio matemático e esquematizado de ser tratado como empregado. O pai não dá lado para isso. E age, uma vez mais de forma diametralmente oposta ao estabelecido na lei. Dos v.v. 22-24, Jesus narra as atitudes restituidoras de vida que o pai toma. Faz festa, manda matar um novilho cevado, dá roupa, anel e sandálias: devolve-lhe a dignidade e a vida de filho (“Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado” (v.24)). O filho mais novo é imagem para todos os que vivem afastados do projeto amoroso de Deus.

Mas a família ainda está incompleta. Um irmão ainda precisa ser recuperado. É o mais velho. Sim, ele é imagem para aqueles que pensam estar vivendo o projeto de Deus, e, na verdade, não estão. Claramente, os fariseus e mestres da lei são chamados a se identificar nas atitudes do filho mais velho que, em última análise, recusa conviver com o irmão que errou, “Mas ele ficou com raiva e não queria entrar” (v.28a).

“O pai, saindo, insistia com ele” (v.28b). O pai sai do ambiente da festa para também ir ao encontro do filho. Ou seja, o pai, movido pela mesma compaixão vai recuperar este filho. Ele quer e deseja refazer e ressignificar o horizonte das relações esfaceladas e quebradas. Deseja que os filhos vivam novamente como irmãos, e se reconheçam como filhos do mesmo pai. Todavia, o filho mais velho resiste: “Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou esse teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado” (v.29). Reina a mentalidade do mérito. Mas para o pai, não é o mérito do dever cumprido que pauta a sua atitude diante dos filhos: é o amor e a misericórdia com ambos. A misericórdia, o perdão e o amor que se obtém do pai não é em virtude do que se fez nem do que se fará. Mas são eles dons gratuitos e imerecidos da parte deste pai, que é, em última análise, metáfora para o próprio Deus e Pai de Jesus.

Jesus, na parábola, não informa se o filho mais velho aceitou o convite do pai, ao final da parábola. Logo, não temos conhecimento desse fato. Mas o que Ele faz questão de enfatizar é a imagem do pai devolvedor e doador de vida e dignidade à seus filhos, fazendo o pai repetir o que disse aos empregados: “porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado” (v.32). Deixando assim, para cada ouvinte, tomar sua conclusão e sua decisão.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 19 de março de 2022

REFLEXÃO PARA O TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA - Lc 13,1-9:

 


A liturgia nos apresenta o capítulo treze do evangelho segundo Lucas para a meditação eclesial. Trata-se de um texto importante, e que necessita se contextualizado para ser bem compreendido, de modo a não deixar margens para equívoco, dado que o texto começa dando a impressão de pecado, sofrimento e castigo estão interligados ou são correlacionáveis, uma vez que na cultura e na tradição de fé do povo de Jesus, enfermidade e sofrimento eram consequências do pecado. Esta relação será totalmente desfeita por Jesus. Por isso, o texto não tem como ponto de interesse central a temática do sofrimento, mas a da conversão e da misericórdia. É o que veremos a seguir.

“Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam” (v.1). É importante que se substitua a expressão “Naquele tempo”, com a qual se inicia o texto litúrgico pela “naquele mesmo momento”. Qual seria este momento? Jesus, nos versículos e capítulos anteriores está debatendo com os fariseus. Ele estava ensinando ao povo e aos seus discípulos a cerca de não se deixarem levar pela conduta incoerente dos fariseus que impediam as pessoas de pensarem fora das linhas de seus ensinamentos. Ao contrário, Jesus insiste para que as pessoas possam atingir a autonomia e pensarem por si diante da Palavra e do projeto de Deus. Isso incomoda as lideranças do judaísmo. São precisamente elas que se dirigem a Jesus trazendo “notícias” dos galileus que o procurador romano ordenou matar. O texto litúrgico dá a entender que seriam outras personagens, mas o contexto próximo deixa claro que são os chefes do povo.

Jesus é interpelado pela notícia que chega até ele. O termo “Alguns galileus” soa pejorativo, uma vez que Jesus é galileu. Foram mortos por Pilatos e tiveram seu sangue misturado aos sacrifícios pagãos. Qual a intenção de se levar uma notícia como esta para Jesus? Simples: dar um recado. Da mesma forma que os “galileus” foram mortos, Jesus (galileu) também o será se não calar a boca e parar de interferir nos sistemas dos líderes do povo. Acontece, que a notícia sobre a morte dos galileus acaba caindo de forma equivocada nos ouvidos do povo e dos discípulos, que começam a polemizar o assunto para além das intenções dos chefes do povo, fazendo emergir a compreensão equivocada de que o sofrimento, a morte e a desgraça estivessem ligados ao pecado. Morreram porque eram pecadores, pensavam eles. Jesus vai desfazer esse mal-entendido e reordenar a discussão.

Dos vv.2-5, Jesus trata de desfazer esse pensamento equivocado. Tanto os galileus mortos pelas mãos de Pilatos como os judeus que, acidentalmente, morreram durante a construção da torre de vigia do quartel de Siloé, não morreram por serem pecadores punidos. Não há ligação para Jesus entre uma coisa e outra. O tema do sofrimento humano na Bíblia não pode ser encarado dessa forma, como se Deus tivesse prazer na morte de alguém. Tal ideia é equivocadíssima. O problema do mal e do sofrimento humano estão relacionados à liberdade humana. São frutos ou consequências das escolhas humanamente feitas em liberdade. Inclusive aquelas que são feitas pelos outros cujas consequências atingem um todo maior. Elas nada tem a ver com o querer de Deus.

Mas o que deve chamar a atenção do ouvinte de Jesus e do leitor do evangelho de Lucas é a constatação que o próprio Senhor faz duas vezes, quase como se fosse um refrão (e isso mostra que esta advertência feita por Ele é importante e deve ser levada à sério): “Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (v.3;5). O que Jesus quer dizer, que morrerão do mesmo modo catastrófico ou violento? Não! Mas que morrerão como pagãos, isto é, sem terem passado e assimilado o processo da conversão. “Morrereis do mesmo modo” significa morrer sem conversão. Jesus está fazendo, pois, o convite à conversão. O Evangelista usa o verbo grego Metanoêo (gr. μετανοέω) para expressar a urgência e a necessidade da conversão, enquanto mudança de mentalidade, de maneira de pensar, pois a conversão bíblica é a atitude da nova maneira de pensar (pensar diferente; um novo pensar). Esta mudança de mentalidade será a responsável pela mudança na e da atitude (agir). Abandonar a concepção ou convicção equivocada para deixar de lado o agir equivocado. Polêmica encerrada entre os fariseus e Jesus.

Todavia, o ensinamento continua. Se até agora Jesus falou da conversão, associada a esse convite está a misericórdia. Diante da tomada de atitude de conversão, por parte da pessoa, do discípulo e da discípula do Reino, Deus, de sua parte está sempre pronto para agir com misericórdia. É o que Jesus visibilizará através da parábola da figueira. Estejamos atentos, a parábola é um gênero literário próprio da sabedoria de Israel, que recolhe elementos simples e comuns da realidade histórica e concreta do povo e da sociedade para transmitir um ensinamento ou uma mensagem importante. Ela possui três finalidades, a de chamar a atenção do leitor-ouvinte, a de provoca-lo e a de gerar neste uma mudança de comportamento.

Dos vv.6-9, Jesus conta aos discípulos e a os que estão ao seu redor, a parábola da figueira. Um homem tinha uma figueira plantada no meio da vinha. Aquela não produzia mais frutos. Então, surge o desejo de arrancar da terra a figueira para não inutilizar o solo e enfraquece-lo, isso depois de três anos de inutilidade. O número três, na teologia bíblica, indica um período ou tempo completo e definitivo. O que uma figueira faz dentro de uma plantação de uvas? A figueira como a vinha (ou a videira), servem no AT de metáfora ou símbolo para o Povo de Israel.

Responde o vinhateiro, em protesto ao dono: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (v.8-9). O vinhateiro chama o patrão originalmente de Senhor (gr. κύριος / Κύριε), o nome divino. Logo, o leitor já ativará sua consciência de que este diálogo entre o empregado e o patrão, torna-se uma parábola, metáfora para a relação com Deus. Ora, Jesus, através da parábola, está repropondo uma nova imagem acerca do Deus que chama de Pai. Ao invés de um Deus punitivo e vingativo, Ele revela o agir misericordioso de Deus, que não corta a arvore e a lança ao fogo porque não produziu, mas dá e oferece sempre uma nova oportunidade. Não toma a vida mas oferece novamente condições de vida e de existência inclusive aos pecadores, vivificando-o, dando e oferecendo oportunidade de recuperar a existência.

Que o evangelho deste terceiro domingo da quaresma nos desperte para a conversão, e nos faça a abertos para experimentar a misericórdia do Pai que tudo revivifica.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 12 de março de 2022

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA QUARESMA - Lc 9,28b-36:

 


O evangelho que meditaremos hoje encontra-se no capítulo nono da catequese de Lucas. Para compreende-la bem, se faz necessário conhecer seu contexto. A transfiguração situa-se entre três importantes momentos: 1) a confissão de fé de Pedro, suscitada pela pergunta de Jesus acerca de sua identidade (Lc 9,18); 2) o primeiro anúncio da paixão (Lc 9,22); e, 3) as exigências quanto ao discipulado (Lc 9,23-27). Depois da resposta de Pedro, que confessara Jesus como Messias – resposta certa, mas ainda passível de equívocos – ele trata de mostrar qual o caminho percorrerá em sua missão messiânica, para coibir e evitar qualquer concepção errônea acerca de si. Importante frisar que o texto evangélico de hoje, antecede também o segundo anuncio da paixão, ao mesmo tempo que prepara a viagem de subida para Jerusalém (Lc 9,51).

Jesus, no primeiro anúncio da paixão deixou claro por qual caminho optou por seguir e conduzir sua missão: o sofrimento e a entrega da vida. Mas isso enquanto consequência de toda uma vida e não como destino fatalista ou chancelado. Ali (Lc 9,22), Ela fala da morte. Mas morte enquanto liberação plena da potência da vida que existe em cada pessoa humana, e não como destruição da existência. Por isso, a cena que a liturgia nos faz meditar hoje, acontece, segundo cronologia lucana, oito dias após o primeiro anúncio da paixão. O número oito é importante para as primeiras comunidades, pois ele faz referência ao oitavo dia, o dia da Ressurreição. Lucas pretende ensinar para sua comunidade que, ainda que o caminho de Jesus possa ser marcado pela morte, Ele faz questão de mostrar aos discípulos a sua vida ressuscitada. A transfiguração é, na verdade, uma antecipação da glória da ressurreição. Jesus quer mostrar aos seus qual será o destino ou efeito daquele que passa pela morte: não será destruição ou esgotamento, mas vida plena.

Agora se torna possível saborear o texto. O Evangelista informa sua comunidade-discípula, que Jesus levou para a montanha três sujeitos: Pedro, Tiago e João (os irmãos trovão). Ao interno do grupo dos Doze, os três eram os mais difíceis de se lidar. Pedro, explosivo, impulsivo e cabeça dura sempre se adiantava nas atitudes e nas respostas, e, por isso, se expunha muito, sofrendo muitas correções. Tiago e João, inflamados e ambiciosos tentaram lançar fogo contra os samaritanos por não terem acolhido a Boa Nova de Jesus. Inflamados, explosivos, ambiciosos e cabeças-duras, Pedro, Tiago e João são os que Jesus leva para a montanha consigo não porque são privilegiados, mas porque tinham uma necessidade mais profunda de uma experiência com Jesus. Uma bela lição de Jesus, que visa ensinar que Ele não desiste da humanidade, apesar de suas debilidades. Não contente com a (falta de) compreensão dos discípulos, Jesus toma consigo três testemunhas (que dão veracidade ao fato, na função de testemunhas qualificadas), Pedro, Tiago e João, e sobe para uma montanha, a fim de rezar.

Lucas informa que Jesus subiu a montanha a fim de orar. A oração é um traço característico Seu, no Terceiro Evangelho. Ele ora ao Pai antes de cada atitude ou gesto; antes de decidir-se ou ensinar: na escolha dos Doze (Lc 6,12); antes da pergunta relacionada a sua identidade (Lc 9,18); durante o caminho de subida para Jerusalém (Lc 11,1); e antes de sua paixão (Lc 22,39). Onde reza? Na montanha. Todavia, o evangelista usa o pronome “uma” para referenciar a montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de sua manifestação (as teofanias). Por isso,  não se trata de um lugar geográfico/topográfico, e sim teológico. Ora, todo a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo um “subir a montanha”. A montanha é o lugar privilegiado da esfera divina. Nesse sentido, é preferível não identificar a montanha com o Tabor. Esta identificação surgiu com Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia. É melhor manter a sua localização anônima, tomando-a somente como a possibilidade e um encontro com Deus.

Em seguida, Lucas nos informa que, enquanto rezava, as roupas de Jesus ficaram brancas e brilhantes, e sua aparência mudou. As roupas brancas e brilhantes são símbolos da realidade divina, do mundo celeste; daquilo que pertence ao âmbito de Deus. Através da atitude orante de Jesus, seu rosto mudou de aparência. Com esta imagem, o evangelista pretende ensinar para a sua comunidade que Jesus, mesmo sendo homem, pertence ao âmbito do divino; transfigura-se: ou seja, o Seu rosto reflete a glória do Pai. Nesse sentido, a transfiguração não é apenas uma antecipação da ressurreição de Jesus, mas a grande revelação acerca da identidade de Jesus. Através da transfiguração, o Pai mostra quem Jesus é desde seu interior, através da oração.

O texto nos informa que, junto a Jesus apareceram Moisés e Elias. Primeiramente, ambos são aquelas figuras associadas ao tempo da vinda do Messias, no fim dos tempos. São, também, a síntese de todo o Antigo Testamento, ou seja, a Lei (Moisés) e a Profecia (Elias). Mas, ao mesmo tempo, representam todas as esperanças e expectativas bíblicas em relação ao Messias. Também eles, segundo Lucas, aparecem revestidos de glória. Indicativo de que já participam da esfera divina. O conteúdo da conversa é o que importa para Lucas, para a comunidade, e para a geração posterior. “e conversavam sobre a morte, que Jesus iria sofrer em Jerusalém” (v.31). Na verdade, o original grego não fala de morte, e sim de Êxodo (gr. ἔξοδος /êxodos). Ou seja, o caminho (saída) de Jesus, que se consumará em Jerusalém. Ora, Moisés e Elias haviam cumprido suas missões em meio a grandes sofrimentos, perseguições e tribulações. Moisés foi o líder do primeiro êxodo. Elias, em contexto de perseguição defendeu a fé no Deus libertador do Êxodo. O evangelista quer ensinar que Jesus é o novo Moisés, e que com Ele começa um novo êxodo, através de sua morte e ressurreição. Nesse sentido, Jesus supera as figuras de Moisés e de Elias, porque Ele não vai para Jerusalém apenas para morrer, mas para abrir e fazer um caminho e um processo de libertação.

Os discípulos que acompanhavam a Jesus se distraem. Caem no sono. Dormem e não participam da conversa entre Jesus e aquelas duas personagens. Na verdade, o evangelista está denunciando a falta de perseverança na oração por parte da comunidade, a partir da distração dos discípulos. A distração da comunidade na prática da oração priva-a da experiência com Jesus. Mais ainda, isso mostra que ela não compreendeu o projeto de Jesus, quando Pedro revela a intenção de armar ali três tendas: para Jesus, Moisés e Elias.

Na fala de Pedro revela-se no seguinte: ao dizer sua intenção de construir tendas para Jesus, Moisés e Elias, ele coloca Moisés ao centro, entre Jesus e Elias. Isso revela que Jesus ainda não é o centro da vida deles, muito menos da comunidade dos discípulos. Eles ainda continuam dando preferência e importância a Moisés e para o que ele representa, a lei judaica. Com isso, o evangelista denuncia a incoerência de sua comunidade que coloca a lei acima do Evangelho. Isso foi um problema para as comunidades cristãs no início, que Paulo e Lucas trataram de combater. Onde o Evangelho não é o centro, não há discipulado nem missão, muito menos Igreja, comunidade dos discípulos. Construir tendas revela a tentação do comodismo; a manutenção dos esquemas e dos modelos antigos e descomprometidos com a novidade que Jesus apresenta. O desejo de permanecer na montanha – sob o verniz da oração – pode revelar, inclusive, o desejo da fuga da realidade ou mesmo o descomprometimento para com ela. É preciso, sim, subir a montanha para reabastecer-se de Deus, para poder descer à realidade concreta.

O Pai, então, intervém, falando de uma nuvem, símbolo da presença divina (assim como no Batismo): “Este é o meu filho, o Escolhido (o eleito). Escutai o que Ele diz” (v.35). Lucas modifica a versão de Mt e Mc, quem mantém o adjetivo “amado”. Na concepção da salvação universal, muito apreciado pelo evangelista, a humanidade toda é amada por Deus. Mas o adjetivo “o escolhido” tem maior profundidade: aponta para a unicidade da missão de Jesus, o autorizado pleno da parte do Pai para anunciar a Palavra da salvação digna de toda a atenção. Por isso, a ordem: “escutai o que Ele diz”. A filiação não consiste na identidade biológica tão somente no mundo bíblico. Se torna filho quem também assimila e se assemelha em tudo, principalmente, no comportamento do pai. Diante disso, já não são necessárias as presenças de Moisés e Elias; eles se retiram porque não tem mais nada de Novo para dizer. Agora será somente o Evangelho de Jesus (Ele mesmo) o parâmetro para a vida e o agir da comunidade. Este é a plenitude da Lei e dos Profetas, ao mesmo tempo que é diferente e novidade.

Após a experiência na montanha, os discípulos ficaram calados e não contaram a ninguém acerca do acontecido. É preciso anunciar o Evangelho de maneira coerente e certa. Nesse sentido, deve-se calar e silenciar para não anunciar a Boa Nova do Reino de modo equivocado. Ora, o anúncio distorcido resulta da experiência e da escuta superficial da Palavra de Jesus.

O Evangelho que meditamos cumpre sua finalidade quando propõe à comunidade de todos os tempos “escutar o Filho escolhido”. Nesta perspectiva, três perguntas se fazem necessárias, fazendo do texto um espelho para a nossa vida e discipulado: 1) tenho, de fato, me exercitado na escuta da Palavra do Filho Escolhido, Jesus? 2) Tenho vivenciado o convite à oração para fazer uma experiência de transfiguração? 3) Ou venho escutando outras vozes e palavras, permitindo-me instalar nos comodismos dos esquemas e projetos já fixos e endurecidos, ou mesmo fazendo destes uma rota de fuga da realidade concreta?

Que o evangelho deste II Domingo da Quaresma nos ajude a transfigurarmos através da escuta da Palavra do Filho escolhido e a descer da montanha para transfigurar os irmãos e as realidades ainda enrijecidas pelo comodismo e pelos esquemas de morte.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 5 de março de 2022

REFLEXÃO PARA O I DOMINGO DA QUARESMA – Lc 4,1-13:

 


O evangelho deste primeiro domingo do tempo quaresmal nos narra as tentações de Jesus, ao longo dos quarenta dias que ficou no deserto, após o seu batismo. O termo tentação pode ser cambiável para “sedução”. Tentação daria a ideia de uma força ou dinâmica que impulsionaria o homem a cometer algo de mal. Mas, com a narrativa de hoje, a personagem do diabo não se apresenta como um inimigo propriamente dito, tampouco tenta a Jesus a fazer algo de mal, ou pecar, ou qualquer coisa horrenda que se possa imaginar. Pelo contrário, se apresenta como uma espécie de colaborador (duvidoso, é verdade) que mostra um caminho alternativo para Jesus realizar seu projeto, através das seduções que apresenta, diferente do que Ele se decide a assumir e viver em sua vida.

Este episódio das seduções/tentações se encontra  nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). O que confirma que esta narrativa tem grande importância para as comunidades primitivas. A fonte original deste relato, o Evangelho segundo Marcos, não dá nenhum detalhe sobre o nível e a modalidade das tentações; apenas diz que “Jesus esteve no deserto durante quarenta dias sendo tentado por Satanás” (Mc 1,13). Lucas, a seu modo e interesse comunitário, "coloriu” a história que meditamos na liturgia, assim como Mateus o fez (cf. Mt 4,1-11). Mas para que este texto não seja mal interpretado como uma crônica exata dos fatos ocorridos na vida de Jesus, devemos nos ater à simbologia e tipologia teológicas que o relato nos apresenta.

O texto começa dizendo que “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão, e, no deserto, ele era guiado pelo Espírito” (v.1). A narrativa situa-se após o batismo de Jesus. No Jordão, depois de ter descido às águas, o céu se abriu, o Espírito de Deus (sua força, dinamismo e capacidade de amar) investiu Jesus para a missão e foi confirmado como “Filho Amado” do Pai. Este episódio tem, pois, a intenção de mostrar o programa de vida de Jesus: como ele realizará o projeto de amor do Pai à humanidade. Muito importante é o fato de Lucas explicitar a ida de Jesus para o deserto movido pelo Espírito. Do início ao fim, a vida e a missão de Jesus serão marcadas pela presença do Espírito Santo.

Uma primeira constatação sobre a ida ao deserto. Jesus toma o caminho contrário: das margens do Jordão, ele retrocede para o deserto. Na intenção de Lucas, Jesus refaz o caminho do povo de Israel, que para tomar posse da terra prometida passou pelo deserto e cruzara o Jordão para adentrar e conquistar aquela  promissão de Deus. O evangelista pretende ensinar para sua comunidade que Jesus é símbolo do povo de Israel, e, enquanto tal, assume e refaz a história de seu povo. Todavia, Ele a supera, porque permanece fiel a Deus durante as seduções do diabo, coisa que os israelitas não foram. Uma segunda compreensão acerca do “deserto”. Ele não é somente uma localização geográfica e espacial. Antes, é um lugar teológico. É um lugar de provação, mas também de refazimento da Aliança com Deus; um bom lugar para se relacionar com Ele. Quando o povo demonstrava infidelidade, os profetas apresentavam a necessidade de retornar ao deserto para voltar a viver o ideal da aliança (cf. Os 2,14; 9,10; 13,5; Am 2,10; 5,25). Uma vez que o deserto também é sinônimo de provação e perigo, os evangelistas relatam com concretude que Jesus passou pelas adversidades humanas; ele viveu em tudo a realidade da história humana. Uma humanidade levada a sério.

Mas por que Jesus faz o caminho contrário da terra prometida (Israel e Jerusalém), indo para o deserto? Porque Jerusalém havia se tornado, desde muito tempo, uma terra de escravidão e opressão. O povo e suas lideranças (político-religiosas) reproduziam os mesmos sistemas e mecanismos injusto e opressores do Egito. Jesus não quer compactuar com isso; Ele deseja apontar o caminho contrário a todo tipo de sistema de morte e de opressão, reproduzidas também pela própria religião de seu tempo.

Então, Jesus é guiado pelo Espírito no deserto para começar o seu caminho (literalmente, o seu êxodo). Ali, no deserto, fora-lhe proposto outro caminho pelo sedutor diabólico durante “quarenta dias”. É um tempo simbólico. O número 40 na teologia bíblica indica a existência de uma geração; uma vida inteira (quarenta anos). Portanto, significa que toda a vida de Jesus foi marcada pela prova.

No v.3, o diabo (lit, divisor e opositor) empreende sua primeira sedução/tentação. “Se tu és Filho de Deus...” O texto grego é melhor traduzido quando se coloca a frase no afirmativo “Já que és o Filho de Deus”. Ora, já no momento do batismo fora confirmada a sua identidade pelo próprio Pai. O diabo quer propor a Jesus que, uma vez sendo verdadeiramente Filho do Altíssimo,  use todas as suas capacidades em benefício próprio! Esta é a lógica das tentações/seduções a seguir.

A primeira tentação/sedução que se apresenta sob a imagem da necessidade e da fome física, diz respeito a maneira de relacionar-se com as coisas. “Se és Filho de Deus, manda que esta pedra se mude em pão. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Não só de pão vive o homem” (vv. 3-4). Embora faminto, Jesus percebe que não é suficiente saciar-se de pão naquele momento, pois a vida pede muito mais que isso. Embasado na Escritura (cf. Dt 8,3), Ele não dispensa o pão, mas diz que o homem não pode viver “somente” dele. Esta primeira sedução tenta mostrar o perigo de se conceber a missão de Jesus (e da comunidade) a partir da lógica do messias milagreiro. ao que Jesus se opõe radicalmente.

‘Eu te darei todo este poder e toda a sua glória, porque tudo isso foi entregue a mim e posso dá-lo a quem eu quiser. Portanto, se te prostrares diante de mim em adoração, tudo será teu’. Jesus respondeu: “A Escritura diz: ‘Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (v. 5-8). Esta segunda sedução/tentação relaciona-se com o próximo, quanto à maneira de conceber e exercer o poder. Esta tentação não vem precedida de “Já que és Filho de Deus”, porque a tentação do poder relaciona-se a todos homens, porque Deus já o tem. O evangelista Lucas declara a esta altura que o poder possui uma natureza diabólica. Jesus, de sua parte, o rejeita. Aquele que detém e retém poder e riqueza é porque o recebeu do diabo. Deus não dá poder a ninguém; dá seu Amor, que se faz serviço. Uma constatação importante: o evangelista não quer descrever o diabo como dono do mundo; mas está denunciando que o poder marcado pela exploração, injustiça e opressão, segue uma lógica diabólica, à qual o Evangelho se contrapõe com o Reino de Deus, marcado pelo amor, pelo serviço, a justiça e a fraternidade.

A terceira tentação/sedução acontece narrativamente em Jerusalém. O diabo leva Jesus até o alto do templo. Havia uma tradição popular que apregoava que o messias, desconhecido de todos, subitamente apareceria no alto do Templo de Jerusalém. O evangelista usa o termo Jerusalém para identificar tod o judaísmo – a instituição religiosa – do tempo de Jesus. Nessa perspectiva, a terceira tentação/sedução de Jesus se dá na ordem de sua relação com o Deus que ele chama de Pai. “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo! Esta tentação/sedução entende-se na ordem do “faça o que o povo quer ver”, ou, “dê ao povo o que ele quer”. Faça um gesto espetacular ou qualquer coisa de extraordinária. Mas Jesus não irá ao encontro das expectativas das pessoas, mas as tornará livres destas expectativas.

Jesus possui uma grande fidelidade ao Deus que chama de pai, sem qualquer necessidade de requerer para si ou exigir de Deus gestos extraordinários. Esta tentação serve também para mostrar que Ele não é um inconsequente que não mede suas atitudes e sua relação com Deus. Assim também para o discípulo do Reino: este, na missão, não poderá ser um inconsequente, porque a obra não é sua, e sim de Deus. Para Jesus e para seus discípulos não vale a lógica do “Deus nos acuda”.

O diabo replica como um bom conhecedor das escrituras ao citar o Sl 91, que expressa a firme consciência e confiança do justo em Deus: “Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado!’ E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra”.  Curioso, o diabo usa as escrituras como um teólogo perito de seu tempo, um escriba ou fariseu. Mais interessante ainda é o fato de que o tentador frequente muito os locais sagrados para a fé israelita (conhece muito bem a Jerusalém; e a parte alta do templo, por exemplo). Jesus, porém, respondeu: “A Escritura diz: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus” (v. 9-12). Jesus reivindica a plena fidelidade ao Senhor sem necessidade de gestos extraordinários que o confirmasse na missão.

As seduções acabam com uma afirmação enigmática de Lucas: Terminada toda a tentação, o diabo afastou-se de Jesus, para retornar no tempo oportuno” (v.13). O momento oportuno é aquele momento em que Ele estará suspenso na cruz. Ali, as tentações/seduções voltam novamente através da multidão e dos lideres religiosos, dos soldados e do malfeitor, que, insultando a Jesus crucificado provocam-no a agir em benefício próprio (“Já que sois o Cristo, salva-te; desça da cruz (Lc 23)”. Na cruz, ultima tentação de sua missão recusará uma vez mais as seduções e mostrará a sua fidelidade ao projeto de seu Pai e do Reino que anunciou.

As seduções aqui apresentadas pelo evangelista acenam para as convicções e as aspirações do povo em relação ao messias: 1) o messias popular (do pão); 2) o messias do poder (do reino e da riqueza); 3) o messias religioso (a imagem do templo). Mas Jesus recusa estas interpretações durante toda sua vida e ministério públicos. O modo pelo qual ele se decide por viver baseia-se na dinâmica do servo sofredor de YHWH, com uma conotação toda sapiencial e profética muito bem encarnada e inserida na história. Eis, pois, uma das finalidades do texto bíblico de hoje: mostrar que as tentações não foram um episódio isolado de sua vida, mas que elas o acompanharam no decorrer de sua  missão, sempre propondo tomar um caminho alternativo ao do amor, do serviço aos irmãos, e da fidelidade ao Pai e ao Reino. Durante toda a sua existência fora oferecido a Ele uma forma alternativa de viver sua missão e seu messianismo diferentes da lógica do Messias Servo de YHWH e justo-sofredor. Outra finalidade do texto é a de ser um aviso para a comunidade cristã, para que ela não caia na ilusão de que, tendo assimilado e assumido o projeto de Jesus, estaria imune das seduções do anti-reino. A resistência de Jesus, recorrendo sempre à Palavra de Deus é uma indicação para as comunidades cristãs de todos os tempos: a perseverança e a fidelidade ao projeto do Pai dependem, essencialmente, da atenção à Palavra. Ao mesmo tempo, há uma clara denúncia ao perigo do uso fundamentalista das Escrituras e tradições religiosas, pois também os argumentos do diabo são fundamentados na Palavra de Deus.

Que estejamos dispostos a percorrer com Jesus seus mesmos caminhos e dinamismos, pois como Ele, também não nos encontramos imunes. Como Ele, também somos convidados a deixar-nos conduzir pelo Espírito de Deus, a Força, condição e dinâmica de Amor servidor, que habilita-nos a viver-em-amor (rompendo com as seduções/tentações do reter e dominar). A partir dele, somos chamados a reorientar nossas relações com as coisas, com os outros (também na ordem do bem comum), e a nossa relação com Deus.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré; Arquidiocese de Botucatu-SP

quarta-feira, 2 de março de 2022

REFLEXÃO PARA A QUARTA-FEIRA DE CINZAS – Mt 6,1-6.16-18:

 


O capítulo sexto do evangelho de Mateus está inserido no bloco do discurso inaugural de Jesus, o Sermão da Montanha, que compreende os capítulos 5,1 – 7. Este discurso adquire o status de programa de vida do discípulo de Jesus, e consequentemente, do Reino. Para o primeiro evangelista, Jesus é o novo Moisés, que dá e reinterpreta a nova lei para o novo Israel. Com efeito, a questão de fundo desta sessão está formulada em Mt 5,20, o tema da Justiça – a vontade de Deus para o discípulo do Reino.

O capítulo sexto começa com uma exortação de Jesus aos discípulos, “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens, só para serem vistos por eles (v.1)”. A justiça, na teologia bíblica, entende-se como sendo a vontade soberana de Deus. Dito de outra maneira: é o senhorio (vontade) de Deus acontecendo na história e na vida do discípulo do Reino, que através de sua vida conformada com o querer de Deus tende a ser a expressão histórica do agir divino.

Mateus, recuperando o ensinamento de Jesus, quer ensinar que a prática do discípulo deve ser discreta, como o sal que não é visto, mas, mesmo assim, encontra-se ali presente. Contudo, há um princípio importante a ser observado: a religiosidade do discípulo do Reino não é exibicionista, e nem a religião deve se sujeitar a isso.

No v.2-4 tem-se a orientação para a esmola: “Quando deres esmola não façais como os hipócritas... em público para serem vistos e elogiados”. As obras de caridade, a Lei e o culto eram consideradas os três pilares do mundo judaico. Daí a importância da esmola (Tb 4,7-11.16-17; 12,9). O discípulo, porém, é exortado a não fazer como os hipócritas que dão esmola pelas ruas e nas sinagogas, onde se reúne muita gente, de modo a chamar a atenção sobre si e granjear elogios. Esta já seria a recompensa deles. Os hipócritas de que o Jesus de Mateus fala são aqueles atores gregos que usavam mascaras nas apresentações teatrais das tragédias e das comédias gregas. A exortação de Jesus à comunidade dos discípulos orienta-a a não travestir ou mascarar-se atrás de gestos ou atitudes exteriores e falsas.

Em todas as cidades de Israel havia, no tempo de Jesus, os encarregados para recolher e distribuir a ajuda para os pobres, os órfãos e as viúvas. A instituição caritativa tinha inegáveis méritos, mas, para muitos, era também uma ocasião para se exibir. Era hábito, durante a solene celebração litúrgica do sábado na sinagoga, elogiar publicamente aquele que havia dado uma oferta maior: era convidado a levantar-se e ficar de pé no centro da sinagoga, era indicado a todos como exemplo, acompanhavam-no ao posto de honra, faziam-no sentar-se ao lado dos rabinos e presidente da celebração. Jesus assistiu muitas vezes a essa cena, e teve a impressão de assistir a uma peça teatral - de fato, chama de "hipócritas" (atores), aqueles que se prestam a esses espetáculos (v. 2). Aos seus discípulos Jesus pede que não se deixem envolver em semelhantes "comédias". A esmola seja dada "em segredo", evitando francamente a autocomplacência pela boa ação praticada: "Que tua mão esquerda não saiba o fez a direita" (v. 3).

Na antropologia bíblica, a mão responsável por fazer o bem é a direita. A mão esquerda, o mal. A esmola, nesse sentido, deve torna-se discreta. O que a caracteriza como sendo um gesto autêntico de piedade, porque se pautou unicamente pela gratuidade. A esmola dada ocultamente é testemunhada apenas pelo Pai, que recompensará de maneira adequada. A esmola (caridade) coloca, então, o discípulo na relação com o próximo.

Os v.5-6 tratam da oração: a oração deve ser do mesmo modo. Na intimidade e no silêncio. O discípulo do Reino não deve rezar de maneira teatral, performática, espetacular, como os hipócritas. Eles, nas sinagogas e nas esquinas das praças, rezam para serem vistos por quem passa. A oração do discípulo deve ser feita com simplicidade e discrição, no oculto do próprio quarto (2 Rs 4,33), de modo a ser visto apenas pelo Pai. O próprio Jesus rezava solitário (Mt 14,23; Mc 1,35; 6,46).Com isto, não está proibindo a oração em comum (Mt 18,20), prática muito antiga das comunidades cristãs. Ele mesmo participava das orações na sinagoga (Mc 1,21; Lc 4,16). Jesus questiona aquela atitude equivocada por parte de quem reza. Nesse sentido, a oração coloca o discípulo na relação com Deus. Não é uma forma de mudar a vontade de Deus em relação às minhas expectativas, mas a minha vida ser performada através da assimilação de Sua vontade.

Já os v.16-18, tratam do tema do Jejum. O Jejum é uma prática de controle contra as desordens interiores. É a possibilidade da integração relacional consigo mesmo. A maneira hipócrita de jejuar consiste ficar com a cara pálida de modo a ser percebido e, por isso, ser louvado pelos demais. Se assim for, então este jejum não servirá, porque visará mostrar o exterior (a cara pálida de coitadinho), e não corrigir o interior.

Com estes ensinamentos de Jesus, Mateus visa mostrar que o modo de ser homem e mulher, discípulo e discípula do Reino, presente no Sermão da montanha consiste na compreensão do ser humano como ser de relação: relação com o Pai através da Oração, que nos orbita a Deus; relação com sigo mesmo, mediante a prática coerente do Jejum, que reorganiza o homem interiormente a si; e, por fim, com o irmão e com as criaturas através da doação de si aos outros. Uma relação, portanto, Paternal, filial e Fraterna. Ora, a salvação na Bíblia é a salvação do humano e de suas relações.

Que este novo tempo quaresmal nos sintonize com o projeto de Deus. Que as práticas que o evangelho de hoje nos propõe possa ajudar-nos a nos orbitarmos na nossa relação com o outro, através da esmola (caridade) concreta e radical; na nossa relação com Pai, através da oração cotidiana, a fim de assumir e compreender Seu querer; e, por fim uma relação conosco mesmos, através do jejum. Homens e mulheres livres para outro, para Deus e para si.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré; Arquidiocese de Botucatu-SP.