A liturgia nos apresenta o capítulo treze
do evangelho segundo Lucas para a meditação eclesial. Trata-se de um texto importante,
e que necessita se contextualizado para ser bem compreendido, de modo a não
deixar margens para equívoco, dado que o texto começa dando a impressão de
pecado, sofrimento e castigo estão interligados ou são correlacionáveis, uma
vez que na cultura e na tradição de fé do povo de Jesus, enfermidade e
sofrimento eram consequências do pecado. Esta relação será totalmente desfeita
por Jesus. Por isso, o texto não tem como ponto de interesse central a temática
do sofrimento, mas a da conversão e da misericórdia. É o que veremos a seguir.
“Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam” (v.1). É importante que se substitua a expressão “Naquele tempo”, com a qual se inicia o texto litúrgico pela “naquele mesmo momento”. Qual seria este momento? Jesus, nos versículos e capítulos anteriores está debatendo com os fariseus. Ele estava ensinando ao povo e aos seus discípulos a cerca de não se deixarem levar pela conduta incoerente dos fariseus que impediam as pessoas de pensarem fora das linhas de seus ensinamentos. Ao contrário, Jesus insiste para que as pessoas possam atingir a autonomia e pensarem por si diante da Palavra e do projeto de Deus. Isso incomoda as lideranças do judaísmo. São precisamente elas que se dirigem a Jesus trazendo “notícias” dos galileus que o procurador romano ordenou matar. O texto litúrgico dá a entender que seriam outras personagens, mas o contexto próximo deixa claro que são os chefes do povo.
Jesus é interpelado pela notícia que chega até ele. O termo “Alguns galileus” soa pejorativo, uma vez que Jesus é galileu. Foram mortos por Pilatos e tiveram seu sangue misturado aos sacrifícios pagãos. Qual a intenção de se levar uma notícia como esta para Jesus? Simples: dar um recado. Da mesma forma que os “galileus” foram mortos, Jesus (galileu) também o será se não calar a boca e parar de interferir nos sistemas dos líderes do povo. Acontece, que a notícia sobre a morte dos galileus acaba caindo de forma equivocada nos ouvidos do povo e dos discípulos, que começam a polemizar o assunto para além das intenções dos chefes do povo, fazendo emergir a compreensão equivocada de que o sofrimento, a morte e a desgraça estivessem ligados ao pecado. Morreram porque eram pecadores, pensavam eles. Jesus vai desfazer esse mal-entendido e reordenar a discussão.
Dos vv.2-5, Jesus trata de desfazer esse pensamento equivocado. Tanto os galileus mortos pelas mãos de Pilatos como os judeus que, acidentalmente, morreram durante a construção da torre de vigia do quartel de Siloé, não morreram por serem pecadores punidos. Não há ligação para Jesus entre uma coisa e outra. O tema do sofrimento humano na Bíblia não pode ser encarado dessa forma, como se Deus tivesse prazer na morte de alguém. Tal ideia é equivocadíssima. O problema do mal e do sofrimento humano estão relacionados à liberdade humana. São frutos ou consequências das escolhas humanamente feitas em liberdade. Inclusive aquelas que são feitas pelos outros cujas consequências atingem um todo maior. Elas nada tem a ver com o querer de Deus.
Mas o que deve chamar a atenção do ouvinte de Jesus e do leitor do evangelho de Lucas é a constatação que o próprio Senhor faz duas vezes, quase como se fosse um refrão (e isso mostra que esta advertência feita por Ele é importante e deve ser levada à sério): “Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo” (v.3;5). O que Jesus quer dizer, que morrerão do mesmo modo catastrófico ou violento? Não! Mas que morrerão como pagãos, isto é, sem terem passado e assimilado o processo da conversão. “Morrereis do mesmo modo” significa morrer sem conversão. Jesus está fazendo, pois, o convite à conversão. O Evangelista usa o verbo grego Metanoêo (gr. μετανοέω) para expressar a urgência e a necessidade da conversão, enquanto mudança de mentalidade, de maneira de pensar, pois a conversão bíblica é a atitude da nova maneira de pensar (pensar diferente; um novo pensar). Esta mudança de mentalidade será a responsável pela mudança na e da atitude (agir). Abandonar a concepção ou convicção equivocada para deixar de lado o agir equivocado. Polêmica encerrada entre os fariseus e Jesus.
Todavia, o ensinamento continua. Se até agora Jesus falou da conversão, associada a esse convite está a misericórdia. Diante da tomada de atitude de conversão, por parte da pessoa, do discípulo e da discípula do Reino, Deus, de sua parte está sempre pronto para agir com misericórdia. É o que Jesus visibilizará através da parábola da figueira. Estejamos atentos, a parábola é um gênero literário próprio da sabedoria de Israel, que recolhe elementos simples e comuns da realidade histórica e concreta do povo e da sociedade para transmitir um ensinamento ou uma mensagem importante. Ela possui três finalidades, a de chamar a atenção do leitor-ouvinte, a de provoca-lo e a de gerar neste uma mudança de comportamento.
Dos vv.6-9, Jesus conta aos discípulos e a os que estão ao seu redor, a parábola da figueira. Um homem tinha uma figueira plantada no meio da vinha. Aquela não produzia mais frutos. Então, surge o desejo de arrancar da terra a figueira para não inutilizar o solo e enfraquece-lo, isso depois de três anos de inutilidade. O número três, na teologia bíblica, indica um período ou tempo completo e definitivo. O que uma figueira faz dentro de uma plantação de uvas? A figueira como a vinha (ou a videira), servem no AT de metáfora ou símbolo para o Povo de Israel.
Responde o vinhateiro, em protesto ao dono: “Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás” (v.8-9). O vinhateiro chama o patrão originalmente de Senhor (gr. κύριος / Κύριε), o nome divino. Logo, o leitor já ativará sua consciência de que este diálogo entre o empregado e o patrão, torna-se uma parábola, metáfora para a relação com Deus. Ora, Jesus, através da parábola, está repropondo uma nova imagem acerca do Deus que chama de Pai. Ao invés de um Deus punitivo e vingativo, Ele revela o agir misericordioso de Deus, que não corta a arvore e a lança ao fogo porque não produziu, mas dá e oferece sempre uma nova oportunidade. Não toma a vida mas oferece novamente condições de vida e de existência inclusive aos pecadores, vivificando-o, dando e oferecendo oportunidade de recuperar a existência.
Que o evangelho deste terceiro domingo da quaresma nos desperte para a conversão, e nos faça a abertos para experimentar a misericórdia do Pai que tudo revivifica.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré /
Arquidiocese de Botucatu-SP.
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