quinta-feira, 28 de março de 2024

QUINTA-FEIRA SANTA – MISSA DA CEIA DO SENHOR: Jo 13,1-15:

 


O Memorial da páscoa do Senhor começa a ser celebrado a partir da Quinta-feira santa da Ceia do Senhor. O caráter memorial desta noite, que perpassa os outros dois dias do Sagrado Tríduo Pascal reside no fato de se fazer memória, isto é, atualizar o evento fundador da fé cristã: a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Somos convidados, através desta solene e grande celebração a sermos contemporâneos ao acontecido com o Senhor. Ou seja, a partir da dinâmica memorial, com nossos pés teológicos (da fé), a ir para a ceia, para o calvário e para o sepulcro vazio, e, ao mesmo tempo eles virem até cada um de nós. Por isso, esta noite “é diferente das outras noites”.

A dinâmica memorial é apresentada pela primeira e pela segunda leitura da liturgia desta noite santa. Em Ex 12,1-8.11-14, o autor sagrado narra a pascoa-passagem do Senhor sobre a terra do Egito para libertar seu povo, este é convidado, através do sinal do cordeiro imolado, a celebrar esta passagem de YHWH como Memorial em honra à Ele, e, portanto, como instituição perpetua (v.14). Assim, todo os israelitas, ao celebrarem a páscoa, de geração em geração, deverão ver-se a si mesmos sendo libertados do Egito, passando pelas águas, a exemplo dos primeiros pais na fé. Na segunda leitura, através da memória que o Apóstolo Paulo transmite para a sua comunidade de Corinto (1Cor 11,23-26), a mesma dinâmica aparece na ordem de iteração “fazei isto em memória de mim”, ligada ao relato da Ceia do Senhor. Ou seja, todas as vezes que a comunidade de Jesus, isto é, a Igreja se reunir para celebrar a Eucaristia, que contém e conserva o sentido existencial de Sua vida, ela deverá se ver naquela Ceia, ouvindo as Suas palavras e assimilando a exemplaridade de sua existência. Precisamente esta Ceia ocupará a nossa reflexão, assumindo o texto de Jo 13,1-15.

A ceia, no Quarto Evangelho, não é de caráter pascal. É uma ceia comida às vésperas. A cronologia do evangelho joanino não bate com a de Mt, Mc e Lc. Há um motivo teológico que toca nas intenções do evangelista: ao narrar a ceia nas vésperas da páscoa, pretende lançar a narrativa da morte de Jesus para o dia de páscoa, justamente para o exato momento em que se imolavam os cordeiros pascais, no templo. Assim, a ceia joanina é um jantar de despedida. O que não enfraquece o sentido e a importância desta, pois será nela que o Senhor começará a entregar seu Testamento de amor.

Outra consideração importante a ser feita é a contextualização da narrativa da Ceia joanina. O leitor-discípulo encontra-se no capítulo treze. Ele se encontra na segunda parte do evangelho de João, o chamado livro da glória. Neste bloco (Jo 12 – 21), aquele que acompanhou a Jesus durante os sinais que realizou, e se abriu ao dom de Deus que se faz presente através de Sua obra, poderá contemplar a hora da glória (glorificação) que foi preparada pelos mesmos sinais. A ceia encontra-se dentro de um estilo literário chamado “discurso de despedida” ou “testamento”.  De 12 – 16, o Senhor entrega o seu bem mais precioso aos discípulos: sua vida e o mandamento do Amor. Esta entrega começa a ser feita através do gesto emblemático e questionador que meditaremos agora.

O evangelista situa a cronologia: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). João não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa celebrada pelo Senhor já não é mais a mesma do templo. A sua não exige ofertas e sacrifícios, pois será ele mesmo a se oferecer e doar-se. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto que na de Jesus com sua comunidade, se celebra o triunfo da vida na forma do serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há triunfo da morte sobre a vítima/oferta do sacrifício, há doação de vida por amor. Ele inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

O evangelista coloca o seu leitor diante de personagens que servirão de espelhos para a comunidade. Ele informa: “Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus” (v.2).  Uma vez mais aparece o traidor. O Diabo (o divisor; o opositor)” o havia seduzido para que entregasse Jesus (cf. Jo 13,2). João realiza a técnica literária do contraste, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) do discípulo traidor e a ação realizada pelo Senhor.

Judas pensa que tem o destino da vida do mestre nas mãos. Por outro lado, com habilidade, João faz questão de mostrar Jesus com a consciência livre e orientada para o projeto de Deus. Na perspectiva do Quarto Evangelho, o Senhor é um homem livre. Consciente, acima de tudo. Não é uma vítima das circunstâncias. Por isso, a atitude que chamará a atenção de todos é narrada com solenidade: “Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa (...)” (v.3-4). Ninguém tem poder ou autoridade sobre a vida de Jesus. Ele mesmo a doa! Realiza-se, assim, a confirmação do dito de Jo 10,11-30: “Ninguém tira a minha vida. Eu a dou por mim mesmo. Tenho autoridade para entregá-la e também para tomá-la de volta, pois foi isso que meu Pai ordenou”.

Solenemente, os gestos de Jesus são narrados pelo evangelista: “tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (v.4-5). Após levantar-se, saindo da condição de homem livre (pois se assentavam à mesa as pessoas livres), e deixar a condição de mestre, o evangelista oferece uma pérola que só pode ser compreendida a partir do original grego. A tradução litúrgica diz que o Senhor tirou o manto. Mas não é correto. Pois o texto original diz que tirou a túnica. Ao traduzir a palavra manto, Jerônimo pode ter se confundido com a palavra túnica. Manto, no grego, é “imátio” (tón imatíon), e túnica, “imátia” (tha imátia). Mas feita esta constatação, o leitor discípulo precisa confrontar-se com a forma na qual Jesus está: ao retirar a túnica (imátia), ele ficou com a roupa mais inapropriada, surrada, sem acabamento que se usava por baixo daquelas outras, que recebia o nome de perisôma. Portanto, vestido como um escravo, ao cingir-se na cintura com a toalha. Mas era também a veste dos noivos, na ocasião das núpcias.

O gesto que Jesus realiza é paradoxal: “e começou a lavar os pés dos discípulos” (v.5). Aos olhos dos discípulos, e, de qualquer pessoa de bom senso a época, esta atitude é inapropriada e inadmissível. Porque esta purificação, geralmente, era feita por um escravo, em relação aos patrões; pelos filhos para com os pais; ou pela esposa, ao marido; e, numa demonstração de profunda estima por alguém, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões.

Jesus, despe-se de sua condição de mestre, de aparente homem livre, e assume a condição de um escravo, lavando os pés dos discípulos. Este é o sentido do v.1, “tendo amados os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. O gesto de lavar os pés é, portanto, sinal profético da forma que sua vida assumiu, e assumirá na entrega no alto da cruz. Ele é uma antecipação da doação de si, em amor fiel. Este gesto ilustra o sentido do verbo agapáo (gr. ἀγαπάω), Amor. O Amor de Jesus é qualitativamente mais profudo; é a capacidade da doação de si; é um amor sacrifical, e, portanto, oblatívo. Mas, acima de tudo, operativo. É um amor capaz de esvaziar-se para que o outro encontre vida e seja pleno. É isso que os discípulos precisam aprender, assimilar.

Chega a vez de Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para si e seus companheiros, aquela atitude era inconcebível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma que, por hora, eles não sabem o  seu significado (isto só acontecerá à luz da Ressurreição). Mas, para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior!

“Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. O que Pedro não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Impensável que um mestre, um rabino, um líder fizesse algo assim. Ainda pensa que é ele que deve levar o mundo nas mãos. Que tem que fazer tudo sozinho. Que é ele que tem que ser forte. Contudo, Jesus inverte as lógicas. Ele não veio para ser servido, mas para servir. Ele não veio para ser senhor da vida dos outros, mas para fazer-se servo de todos. Ele não veio impor sua lei, mas para doar a sua vida.

O Senhor responde, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). Em termos joaninos, “não ter parte” significaria não participar da plenitude e inteireza de Sua vida. Por outro lado, “ter parte” significaria ter em si a vida de Jesus e torná-la vivida de novo, através da existência do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará da Sua obra messiânica. Não contemplará a Sua glória. Ele está a mostrar que é necessário ser primeiro lavado por Ele, para poder lavar os pés dos outros.

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Aqui se encontra, pois, o nexo entre eucaristia e lava pés. O gesto profético que realiza Jesus é colocado durante a ceia pelo evangelista João. Isso é muito significativo. Mesmo não narrando as palavras sobre o pão e sobre o cálice, como fazem os sinóticos, o Quarto Evangelho se insere nesta lógica. A ceia, contém os gestos de comer do pão e beber do cálice. Jesus interpreta e identifica o sentido de sua vida e missão à semelhança do que acontece com o pão e o vinho: da mesma forma que o pão é partido, espedaçado, aniquilado, ao ser comido, e a uva, pisoteada aniquilada para produzir o vinho, sua carne (simbolizada pelo pão) e sua vida existencialmente histórica (vinho) terão o mesmo sentido. É, precisamente, neste contexto, que o gesto do lavar os pés encontra sua mesma força de significado. Por isso, não há “fazei isto em minha memória” sem “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz”. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical.  Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 16 de março de 2024

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA QUARESMA – Jo 12,20-33 (Ano B):

 


A liturgia deste quinto domingo do tempo quaresmal apresenta a leitura e a meditação do capítulo 12 do Quarto Evangelho. O texto apresenta a Jesus como doador da vida plena. Para isso, João recorda-se da imagem do grão de trigo que, ao cair na terra deve “morrer”, a fim de produzir fruto.

O leitor-discípulo, se chegou até aqui, está em vias de transição para a segunda parte do evangelho de João, o assim chamado Livro da Glória. O livro dos sinais, onde se situa o texto de hoje encerrou a apresentação dos sinais de Jesus com a vivificação de Lázaro (Jo 11). A cena de Jo 12,20-33 encontra-se imediatamente após a entrada em Jerusalém (Jo 12,12-19).

O evangelista situa a cronologia e as personagens: “havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa” (v.20). Entre a multidão que já aguardava a vinda de Jesus para a festa estavam alguns gregos. Mas para entender a entrada deles na narrativa, se faz necessário retomar os versículos anteriores, que concluem a cena da entrada na cidade santa. Os fariseus, que assistiam a recepção calorosa ao Mestre comentam entre si, “Estais vendo que nada conseguis? O mundo se foi atrás dele” (v.19). No vocabulário do Quarto Evangelho, o termo “mundo” refere-se à realidade, a história, que pode assumir uma atitude contrária ao projeto de Deus e, que, ao interno da narrativa vai sendo chamada a fazer uma opção em favor de Jesus. O mundo que vai atrás de Jesus é simbolizado pelos gregos que buscam vê-lo.

O v.21 informa que aqueles gregos se aproximaram de Filipe, e disseram que queriam ver Jesus. Ele conversa com André e os levam até o mestre. Parece confusa a cena. A responsabilidade em fazer ver o Senhor vai passando de um para o outro. Por que o próprio Filipe não os levou até Ele? Recorde-se, que os evangelistas não querem transmitir uma crônica dos fatos, mas uma experiência de fé. O fato de serem estes dois discípulos a conduzir os gentios/prosélitos para Jesus tem uma finalidade: somente o discípulo que abraça o projeto tem condições de apontar na direção de Jesus e de levar as pessoas à experiência com Ele. Por isso, o verbo empregado pelo autor é “oráo” (gr. ὁράω), que indica a visão aprofundada, isto é, a capacidade de fazer experiência com Deus.  

A cena enfoca no diálogo/meditação entre Jesus e os discípulos André e Filipe. O v.23 traz uma declaração solene do Senhor: “Chegou a Hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”. Colocando-se na cena, se poderia conjecturar que os gregos, ao ouvirem isso, se pusessem a pensar: “chegamos na hora certa: o Filho do Homem vai aparecer na terra com a glória que recebe de Deus" (cf. Jo 1,51). Contudo, com um solene “Amém, amém (Em verdade...)”, que tem a função de introduzir um ensinamento importante para seus discípulos (geralmente uma revelação), Jesus lhes mostra outra coisa. Ele fala da dinamicidade do grão de trigo, que cai na terra, morre e produz fruto. Banho de água fria? Vão para ver a glória do Filho do Homem e acabam escutando uma metáfora sobre vida e morte!

Todavia, o autor do evangelho pretende chamar a atenção de sua comunidade para a realidade de que a manifestação da Glória do Filho do Homem não será um espetáculo triunfalista, mas um mistério de morte e vida, perpassado pela plenitude da vida de Deus que despontará em Jesus. Ora, Jesus quer dizer que, mediante o dom de sua própria vida neste mundo brotará o fruto que Deus espera, o fruto do amor fraterno (cf. 15,8), gerador e doador de vida. Ora, para produzir o fruto da espiga, o trigo precisa morrer e destruir-se internamente. A semente precisa passar por uma transformação intensa para poder gerar o fruto. Com esta metáfora, Jesus quer dizer que através do mistério de Sua morte, de sua vida consumida, frutificará a vida para o ser humano.

No v.25, Jesus continua seu discurso, afirmando que “Quem ama sua vida (lit. alma) perde-a, e quem odeia sua vida neste mundo guarda-a para a vida eterna”. O texto original apresenta o termo alma (gr. ψυχή/psyche), e o verbo odiar (gr. μισέω/miséo). Eles devem ser bem compreendidos. Na linguagem do Quarto Evangelho, “alma” significa vida física, biológica, psicológica e material. E o verbo odiar, no contexto semítico, é o contrário de preferir. Este versículo deve ser entendido assim: quem prefere/apega-se à própria vida, perde-a; mas quem desapega-se de sua vida, segundo a lógica deste mundo, há de guardá-la para a vida eterna. Ninguém deve odiar sua vida, que é dom de Deus, mas preferir em sua vida, a Vida que Deus doa através de Jesus.

No v.26, Jesus deixa bem claro em que consiste o seguimento. João modifica, com liberdade, mas sem alteração substancial, o tema do seguimento, presente nos evangelhos sinóticos. Se em Mt e Mc o tema do discipulado se dá através do seguimento a Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir, no Quarto Evangelho o seguimento/discipulado é diaconia (serviço ao Senhor). No entanto, quando o Cristo fala de serviço a ele, não está se referindo a uma atitude individual, privada ou restrita a sua pessoa, mas à sua Comunidade. Então, o serviço ao Senhor consiste no serviço à comunidade que ele reuniu. Quem for fiel à diaconia a Ele na comunidade se encontrará aí onde Ele está.

“Agora sinto-me angustiado. E que direi? Pai, livra-me desta hora!? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim” (v.27). João não tem medo de mostrá-lo em sua humanidade. A angustia de Jesus é em virtude da iminência de Sua morte. Esta será uma intensa luta que travará com o chefe deste mundo, Satanás. A luta consiste em permanecer fiel até o fim ao projeto do Pai, isto é, a Sua obra. A cena recorda a passagem de Lc 22,42, “Pai, se queres, afasta de mim este cálice”. Porém, na perspectiva de João, o Cristo não pede o afastamento desta hora, pois tem consciência de que foi para ela que viveu toda a sua missão. Mas pede “Pai, glorifica o teu nome!” Em outras palavras, “revela a tua glória”. O tema da Glória no Quarto Evangelho significa a presença de Deus em Jesus. Assim, Ele está suplicando a presença do Pai, para que o ajude ser fiel até as últimas consequências. Ouve-se uma voz. “Então, veio uma voz do céu: "Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!” (v.28). Para João existe uma plena identificação e comunhão de vontades entre Aquele que traz em si o Nome divino e o próprio YHWH. Por isso, Deus glorificou Seu nome (manifestou sua presença) em todo desenrolar da vida e das obras de Jesus, inclusive na hora da cruz. E o fará novamente na obra da ressurreição.

O final do texto de hoje revela esse momento. A melhor explicação para essa glorificação é o v.33: “Quando eu for elevado (enaltecido) da terra, atrairei todos a mim”. O Enaltecimento de que o Jesus joanino fala é, na verdade, a maneira pela qual morrerá: a Cruz. Ali, na crucificação, ou melhor, no Crucificado, o Pai revelará todo o seu poder de amor e de vida; a sua Glória. Ela não é algo que vem depois da cruz; ela está na cruz como revelação do amor de Deus através do Filho. Amor que vai até às últimas consequências.

O Texto atinge sua utilidade: revelar e ensinar qual será a dinâmica da vida de Jesus, a quem O desejar ver – fazer uma experiência profunda e radical com Ele. Os gregos,  que representam todos os que abraçam a fé devem estar preparados para a dinâmica existencial da entrega da vida, em serviço e em amor, até o fim, como Jesus, a semelhança do grão que morre para produzir fruto (gerar vida); assimilar o serviço a Jesus (e aos irmãos/comunidade) como expressão da existência de uma vida; compreender que a exaltação e a glória de Jesus revelam o amor incondicional do Pai pela humanidade inteira.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 9 de março de 2024

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA QUARESMA (Ano B) – Jo 3,14-21:

 


O quarto domingo do tempo quaresmal continua a leitura do evangelho joanino. Fazendo uma retrospectiva das temáticas oferecidas pela liturgia dominical desta quaresma, fomos provocados a vencer as tentações com o Senhor (primeiro domingo); a rompermos com a desfiguração e a transfigurarmos (segundo domingo); demolir e destruir os templos e os ídolos equivocados que tomam o lugar de Deus e nos impedem de fazer uma experiência autêntica com Ele; por fim, acolhermos a Jesus como Dom pleno e definitivo do Pai, por meio do qual somos inseridos na Vida eterna. Esta é a proposta do evangelho para este domingo. Para visibilizar e inculcar este convite, a liturgia se serve do texto de Jo 3,14-21, o conhecido diálogo entre Nicodêmos e o Senhor. Na verdade, o estilo literário desta perícope está mais para uma meditação. É plausível que o diálogo entre os dois tenha acontecido, mas João o tenha transformado numa grande homilia, pois o chefe dos fariseus dialoga muito pouco com o Cristo.

O diálogo (homilia) contido em Jo 3, começou com a procura de Jesus por parte de Nicodêmos. Nos versículos iniciais, anteriores aos propostos pela liturgia dominical, o Senhor tocou no tema do novo nascimento (v.3), que se dá pelo Espírito (v.6-8), ou seja, através do dinamismo vital de Deus revelado por Jesus. Agora, portanto, o discipulo-leitor do Quarto Evangelho se depara com os versículos finais do capítulo, os quais contém uma revelação fortíssima acerca da verdade de Deus e de Seu agir.

O capítulo terceiro situa-se imediatamente após o primeiro sinal realizado por Jesus, em Caná, e depois das palavras ditas contra o templo. Ambos revelam e atestam-No como a novidade de Deus na história. Muitos elementos do texto apresentados pelo evangelista estão carregados de simbologia. Uma primeira delimitação que necessita ser feita é em relação a personagem Nicodêmos. Quem ele é? É mestre em Israel, chefe dos fariseus e versado nas Escrituras. No horizonte do texto, ele vai procurar Jesus após a purificação do Templo. A atitude e os gestos Dele deixam o rabino em profundo questionamento.

Nicodêmos interpreta corretamente a ação do Cristo: é um gesto profético. Ele consegue ver para além de uma ação desrespeitosa. Por isso, se torna simpático à Jesus. Há que se esclarecer o seguinte: nem todo o fariseu era hipócrita, rigorista, intransigente, como os que rivalizam com o Senhor. Pelo contrário, haviam muitos homens piedosos, sinceros e retos, que observavam corretamente a Torá, e dela viviam e ensinavam com coerência, ao interno daqueles anos 30. Mas o texto precisa ser contextualizado e encarnado na vida. Para isso, se utiliza a técnica da fusão de horizontes: o tempo narrado (anos 30 d.C) com o tempo da narração, em que a comunidade se situa (os anos 90 d.C). Por isso, para o evangelista João, a personagem Nicodêmos serve como imagem do fiel batizado, que iniciou o processo do discipulado a Jesus e sua vida de Fé. Em outras palavras, a personagem é um símbolo do discípulo iniciado, que procura conhecer o Senhor.

Nicodemos vai encontrar-se com Jesus a noite. Para o Quarto Evangelho este é o período cronológico que alude às trevas. Trevas e Luz desempenha um papel importante ao interno de toda a narrativa. Para João, a Luz é trazida por Jesus, o qual ilumina e insere no âmbito e na realidade de Deus a pessoa que se decide por Seu projeto de vida; que adere a Ele.

Contudo, era no período noturno que os rabinos tinham o costume de ler, rezar, meditar e estudar a Torá. Era uma hora propícia para interiorizar a mensagem divina contida na Palavra. Por exemplo, nos Salmos, encontramos constantemente o salmista que reza, se levanta pela noite para meditar a Palavra. Também Jesus é apresentado, constantemente nos evangelhos, durante a noite, em oração ao Pai. Ora, para o homem e para a mulher, a noite é, também, o ambiente em que emergem as interrogações e as inquietações mais profundas da existência que foram sufocados pelas preocupações, durante o dia. Assim sendo, a noite pode ter sua conotação negativa de uma realidade que precisa ser iluminada (liberada das trevas; de tudo o que é oposição à Deus), mas é, também, uma ocasião propícia para se fazer a experiência com Deus e sua Palavra. Estas duas compreensões não podem ser perdidas do horizonte da leitura e da meditação do texto. Considerações feitas, pode-se, pois, meditar a passagem evangélica.

No v.14, Jesus no diálogo/meditação retoma o texto de Nm 21,8, a narrativa da serpente de bronze confeccionada e elevada sobre uma haste (ou estandarte), que curava o povo das investidas das serpentes, durante a caminhada no deserto. “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado”. Palavras muito enigmáticas, que poderiam, inclusive, fazer com que Nicodemos deixasse a conversa. Mais emboladas ainda, porque o Senhor acrescenta ao episódio das serpentes, a personagem “Filho do Homem”. Uma figura simbólica presente na literatura sapiencial e apocalíptica, que aparece em Dn 7. É aquele – que sendo uma figura humana e também divina – se põe a realizar o querer de Deus na história.

João coloca na boca de Jesus um verbo muito importante: “levantar”. Mais precisamente, “enaltecido/elevado” (gr. ὑψωθῆναι / ypsothínai). Como o Quarto Evangelho é um escrito ruminado, o autor, conhecedor da tradição escrita de Israel, recuperando o ensinamento do Senhor, recorda-se de Is 52,13-15, o quarto cântico do Servo (sofredor) de YHWH, para ensinar para sua comunidade que o Senhor está a falar de si mesmo. Ao mesmo tempo, o evangelista prepara o seu leitor-discípulo para este momento da vida e da obra de Jesus, a “sua hora”, a qual já havia falado nas bodas de Caná (Jo 2,1-12). Esta, trata-se da revelação da glória – da presença -  de Deus em Jesus. Através de seu enaltecimento, Ele revela a presença do Pai, e, este, por sua vez, revela-se todo no Filho. Para João, esta elevação se dá na hora da Cruz.

Esse Filho do Homem é Jesus, que, em amor “até o fim”, na entrega da vida, revelará a fidelidade e o amor do Pai pela humanidade. A hora da Cruz consistirá no momento de Seu enaltecimento, que mostra o agir e o revelar-se de Deus. Portanto, “enaltecimento/elevação” serão termos utilizados pelo evangelista para se referir à cruz. A serpente de bronze levantada prefigura o enaltecimento (a elevação) de Jesus, na Cruz. Se em Nm 21,8, aqueles que olhavam para a serpente, ficavam curados. Na intenção do evangelista, os que dirigem o olhar para Jesus enaltecido na cruz, com fé, possuem a vida eterna. Olhar (ver), no sentido bíblico significa a capacidade de se estabelecer uma experiência relacional com Deus. Este “ver” indica a atitude da adesão (decisão, opção) que o fiel-leitor e discípulo faz em relação à Jesus.

Os vv.16-21 comentam os vv. 14-15, porém com uma novidade. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (hbr. yahid), “o imensamente querido”). O catequista pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus amou tanto a humanidade, que deu seu Filho unigênito (o seu imensamente querido), para salvá-la. Uma constatação importante: o verbo usado não é “entregou” (gr. παραδίδομη/paradidomi)  mas “doou/deu” (gr. δίδωμι/didomein). A mensagem que o texto quer transmitir é clara e profunda: Deus não envia Jesus para sofrer e morrer; não o entrega para que pague com a última gota de sangue os pecados da história. Mas doa a vida de Seu Filho para que a humanidade, assimilando o sentido e a plenitude de Sua existência (missão e obra), seja recolocada no Seu horizonte divino. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue. Mas doador de vida e amor. João declara que o Pai doa a existência (a exemplaridade e o modelo da vida) do Filho para que a humanidade, através do sentido salvífico de Sua obra, tenha a mesma vida Dele.

O v.18 aprofunda o sentido do verbo “julgar/condenar”. Aquele que aceita o Dom de Deus, isto é, que adere a Jesus, não é condenado por Ele. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. Nesse sentido, ser condenado não depende de uma vontade ou de uma sentença do Pai ou de Jesus, mas é a consequência da opção do discípulo. Da parte de Deus, só há uma sentença e um julgamento: salvação e vida.

Os versículos 19-21, são uma explicação das consequências para aqueles que aderem a Jesus: são iluminados por Ele; tornam-se luzes. E manifestam que suas ações são conformes, isto é, são semelhantes às de Deus e de Cristo. O contrário daqueles que tomaram a decisão contraria a Jesus: estão nas trevas, rejeitam a luz; suas ações são más.

Diante do espelho do texto emergem algumas perguntas. 1) Com quais personagens nos identificamos: com Nicodemos, que ainda não fez sua opção/decisão por Jesus, ou com aqueles que aderiram ao Dom de Deus, em Jesus de Nazaré? 2) Temos acolhido, de fato, a Jesus como Dom por excelência de Deus em nossas vidas? 3) No caminho do discipulado, em qual hora da vida procuramos/aderimos a Jesus, durante a noite (na treva da escuridão, da indecisão, do descompromisso, do medo, da rejeição ao seu projeto) ou na hora da Luz (da decisão, da verdade, da fidelidade e do Amor a ele ao irmão)?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 2 de março de 2024

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA QUARESMA (ANO B) - Jo 2,13-25:

 

O evangelho deste terceiro domingo da quaresma é retirado do Quarto Evangelho, Jo 2,13-25, o qual apresenta a famosa cena da purificação do templo de Jerusalém realizada por Jesus. A liturgia, como sábia pedagoga, propõe esta narrativa em forma de provocação dentro deste tempo quaresmal: convidar e instigar os fieis discípulos e as comunidades a destruírem as formas equivocadas de se relacionar com Deus, as noções e ideias deturpadas em relação a Ele, simbolizadas pelo templo que o Senhor “purifica”, para acolhê-lo como novo e definitivo Santuário,  por meio do qual se poderá fazer uma experiência nova com Deus. Para se compreender este texto, se faz necessário situa-lo em seu contexto amplo e imediato.

Jo 2,13-25, se encontra na primeira parte do evangelho joanino, no nível do contexto amplo, no chamado livro dos sinais, os capítulos 1,28 – 12,51, através dos quais o autor sagrado trata de ensinar aos que estão dando os primeiros passos na fé, bem como aos já evangelizados a identidade de Jesus. O contexto imediato da narrativa é aquele após as núpcias de Caná, onde o Senhor havia revelado o vinho novo; a novidade do tempo messiânico  que se inaugura com as núpcias entre Deus e a humanidade. No relato do primeiro sinal é revelada novidade da ação de Deus na história através de Jesus. Na narrativa que se segue, isto é, a purificação do templo, se reforça este ensinamento sob uma nova perspectiva. Portanto, o trecho evangélico de Jo 2,13-25 só pode ser compreendido a partir dos doze primeiros versículos anteriores, as bodas de Caná. Feitas estas contextualizações, já é possível mergulhar no mar do texto bíblico de hoje.

“No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados” (v.13). Jesus vai ao Templo para páscoa por três vezes no Quarto Evangelho. Esta é a primeira. Há um detalhe importante na informação que o evangelista transmite. Ele se refere à festa solene como “páscoa dos judeus”, e não “páscoa do seu povo, da qual participa”. O autor poderia muito bem redigir desta forma a informação. Mas este detalhe é para despertar a atenção do fiel discípulo para a seguinte mensagem: a páscoa do Senhor é profundamente distinta daquela. A dele consiste na doação da vida e da salvação ao homem, ao passo que a páscoa dos chefes do povo não realiza mais essa função. Ao contrário, é cumplice dos sistemas de morte que envolvem o povo simples.

A narrativa dá a entender – a quem não está familiarizado com a arquitetura do templo de Herodes – que as atitudes de Jesus que se desdobram, a seguir, teriam acontecido num único lugar. Todavia, não foi assim. E isso não precisa gerar pânico no leitor-ouvinte do evangelho, porque o autor sagrado não deseja transmitir uma crônica dos fatos, mas uma mensagem de salvação que toque a fé do discípulo.  Mergulhemos numa breve descrição que historiadores antigos, e a prova arqueológica oferece acerca da arquitetura do templo. Para acessá-lo se fazia necessário passar por uma escadaria de dezessete metros de altura em dois lances de degraus, em L. Na base delas é que ficavam os vendedores de bois, pois não podiam entrar no templo. Ali, muito provavelmente, Jesus teve contato com estes vendedores e tomado aquela atitude. Depois de se passar pela porta régia, entrada principal para as dependências do espaço religioso, então se podia ter acesso ao pátio. Todos podiam entrar ali. Neste lugar, ficavam as mesas de câmbio, para a troca das moedas romanas que não podiam entrar no Santuário por possuírem a imagem do imperador Tibério gravada nelas. A Lei proibia quaisquer imagens que pudessem ser associadas à Deus ou à ídolos pagãos. Ora, ofertar uma moeda na qual se vinha cunhada a expressão “Divus Caesar (Cesar, o divino)” sob a figura  não ficava nada bem. Por isso, o câmbio monetário. Provavelmente, ali tenha se desenrolado a outra parte da narrativa. Avançando na descrição, para se chegar no recinto do Santuário, precisava atravessar uma balaustrada. Mas, ainda existiam limites. Ao interno do pátio, somente os homens podiam entrar. O Santuário era divido em Santo, recinto sagrado em que só os sacerdotes podiam ficar, e “Santo dos Santos”, onde somente ao Sumo Sacerdote era lhe permitido entrar. Imagine: todo este caminho era percorrido para poder entrar no Templo.

O evangelista João utiliza dois termos para delimitar cada um dos espaços. Para templo, ele utiliza Iéros (gr. ἱερός), referindo a todo o complexo religioso. E Naós (gr. ναός), para santuário, o lugar mais sagrado. Descrevemos o caminho percorrido para entrar no Templo, no intuito de se fazer captar a seguinte mensagem: o templo de Jerusalém no tempo e na sociedade de Jesus, de lugar de encontro com Deus, havia se tornado inacessível; para poucos e, pior ainda, cumplice e promotor de desigualdade social e religiosa. Mais grave ainda: transmitia-se uma falsa imagem de Deus.

Na compreensão do judeu piedoso da época, a relação com Deus era embasada na troca. Recebia a benção e a prosperidade de Deus porque havia sido fiel ao preceito. Quem não procedesse assim, por sua vez, receberia a maldição. Quanto maior a benção recebida, maior o animal a ser oferecido em sacrifício. Gerando uma maneira equivocada de se relacionar com Ele.

Agora estamos prontos para olhar a cena na com os olhos de Jesus. Ao chegar neste lugar, Ele se depara com a subversão da fé de Israel, e com um ambiente repleto de desigualdade. Vê bois, ovelhas e pombas. Animais para o sacrifício. O gado gordo era destinado a gente rica; as pombas, eram a matérias do sacrifício dos pobres. Constata-se uma religiosidade promotora de desigualdade e segregação.

João concentra num único versículo as atitudes de Jesus contra este cenário e narra este episódio com um certo colorido. “Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas” (v.15). Neste versículo, o autor aponta um pormenor especial: o chicote de corda e os animais expulsos. Esta característica não se encontra nos evangelhos sinóticos. Muito provavelmente, o evangelista conhecia o relato de Marcos. Uma constatação importante: em Mc, Mt e Lc a ira de Jesus se desencadeia contra o comercio e não contra os animais dos sacrifícios. E aí está a diferença característica de João: o detalhe da expulsão dos animais para sacrifício, às vésperas da pascoa para, na verdade, mostrar e ensinar que os sacrifícios do templo ficam impossibilitados, abolidos e superados. Na intenção do evangelista, Jesus é a superação de todo o sistema religioso levítico-cultual antigo. Nele, têm fim todos os sacrifícios. Deus revela, através da vida do Filho, que nunca quis ou desejou sacrifícios. A obra do Cristo supera e acaba com todo sistema religioso e com o Templo. O autor sagrado pretende ensinar que o Senhor é o novo e definitivo Santuário através do qual homem poderá se relacionar com Deus, e de se revelar à humanidade.  

No v.18, os judeus entram em cena: “Que sinal nos mostras para agir assim?” Evidentemente, a palavra Sinal, alude a um sinal de autoridade, como Moisés (sinais no Egito) e os profetas. Estes eram as credenciais que os autorizavam enquanto enviados por Deus. Todavia, a credencial de Jesus é bem dura. Na verdade, uma resposta: "Destruí, este Templo, e em três dias o levantarei” (v.19). Interessante, Ele não mostra aquilo que já fez, mas aponta para o que vai fazer.

Outra nota importante, o Jesus joanino não diz que destruirá todo o templo (com a esplanada e adjacências), mas, literalmente, “este santuário” (gr. ναός / naós). Mas o diz com o verbo no imperativo. Trata-se, pois, de uma ordem que o Senhor dá aos chefes religiosos do povo: destruí este santuário que não tem mais seu sentido; eliminai aquilo que é causa de afastamento entre Deus e as pessoas; acabai com os vossos ídolos de poder, de domínio, de alienação; destruir o templo das convicções e ideias equivocadas acerca de Deus, e em relação ao Seu agir. Voltemos ao dito de Jesus, precisamente ao verbo “erguer” (gr. ἐγείρω / egheíro), o qual é aplicado por João ao corpo humano do Mestre.  A expressão “eu o reerguerei em três dias” significaria a ressurreição de Jesus no terceiro dia.

Ora, Jesus não veio para reformar ou purificar. Mas para eliminar as situações injustas e os sistemas de morte, os quais não revelavam mais a presença e amor de Deus. Na perspectiva de João, o Senhor propõe um novo modo de relacionamento: assimilar o Seu amor livre e gratuito e o serviço às pessoas. O amor e o serviço são geradores da vida de Deus. O Cristo mostra um Deus completamente diferente, que não pede, mas doa; um Pai que não suga ou absorve a força de vida de seus filhos, mas que comunica a eles o Seu próprio dinamismo vital.

João quer ensinar, portanto, que esta é a novidade comunicada por Jesus: o Deus que ele chama de Pai não está distante nos céus, muito menos preso ao interno do Templo, mas presente em Sua pessoa, existência, vida e obra. O novo templo de Deus é Jesus. Mais ainda, se o novo Templo de Deus é a vida de seu Filho na história, a humanidade toda, através de sua carne, se torna o a morada de Deus.

O v.22 é importante para o desfecho deste episódio: “Quando Jesus ressuscitou, os discípulos lembraram-se do que ele tinha dito e acreditaram na Escritura e na palavra dele”. Um bom judeu acredita piamente na Escritura e procura nela tudo aquilo que é valioso para crer. João coloca, aqui, em pé de igualdade as Escrituras judaicas e as palavras de Jesus.  A Palavra e a vida vivida de Jesus fazem descobrir o sentido profundo das Escrituras de Israel. A sua compreensão é, portanto, exercício pós-pascal, mediante a luz do evento da Ressurreição e da força do Espírito. Entretanto, até que o Senhor não tenha realizado sua obra, o discípulo não terá o parâmetro para compreender a Palavra de Deus. Somente quando ele abre o coração e os ouvidos para a palavra de Jesus (sua vida, missão e obra, a assimila) e à Palavra de Deus, poderá destruir os templos equivocados que outrora construiu.

O Quarto Evangelho é o evangelho ruminado. Deve ser meditado e relido pela comunidade dos Leitores. O Discípulo-leitor, diante da novidade escatológica apresentada por Jesus, deverá decidir-se: optar pelo sistema levítico-cultual Judaico ou aderir à Jesus e à novidade messiânica-escatológica Nele presentes.

Mas o texto deve despertar algumas provocações. Quais são os templos ou ídolos que existem e persistem em nós, que precisam ser destruídos por Jesus, a fim de experimentarmos a força renovadora de sua Páscoa? Como se encontra o templo que somos nós, a partir da graça batismal? Se Jesus aparecesse hoje às portas do santuário da nossa vida, como ele reagiria? E em nossas comunidades? Como Ele se comportaria diante delas, com o chicote e a ira por terem subvertido Seu projeto de vida e de amor, ou as tomaria pela mão e as tornaria sempre mais sua cooperadora na missão?

Peçamos a graça de o Senhor purificar, neste tempo quaresmal, o templo da nossa vida, destruindo e eliminando tudo o que é nocivo e equivocado em nós em relação ao Pai, a Ele, e à Seu projeto, para que sejamos sempre verdadeiros santuários, lugares de sua morada, a fim de revelarmos o Seu agir e seu amor.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.