O quarto domingo do tempo quaresmal
continua a leitura do evangelho joanino. Fazendo uma retrospectiva das temáticas
oferecidas pela liturgia dominical desta quaresma, fomos provocados a vencer as
tentações com o Senhor (primeiro domingo); a rompermos com a desfiguração e a
transfigurarmos (segundo domingo); demolir e destruir os templos e os ídolos
equivocados que tomam o lugar de Deus e nos impedem de fazer uma experiência
autêntica com Ele; por fim, acolhermos a Jesus como Dom pleno e definitivo do
Pai, por meio do qual somos inseridos na Vida eterna. Esta é a proposta do
evangelho para este domingo. Para visibilizar e inculcar este convite, a liturgia
se serve do texto de Jo 3,14-21, o conhecido diálogo entre Nicodêmos e o
Senhor. Na verdade, o estilo literário desta perícope está mais para uma
meditação. É plausível que o diálogo entre os dois tenha acontecido, mas João o
tenha transformado numa grande homilia, pois o chefe dos fariseus dialoga muito
pouco com o Cristo.
O diálogo (homilia) contido em Jo 3, começou com a procura de Jesus por parte de Nicodêmos. Nos versículos iniciais, anteriores aos propostos pela liturgia dominical, o Senhor tocou no tema do novo nascimento (v.3), que se dá pelo Espírito (v.6-8), ou seja, através do dinamismo vital de Deus revelado por Jesus. Agora, portanto, o discipulo-leitor do Quarto Evangelho se depara com os versículos finais do capítulo, os quais contém uma revelação fortíssima acerca da verdade de Deus e de Seu agir.
O capítulo terceiro situa-se imediatamente após o primeiro sinal realizado por Jesus, em Caná, e depois das palavras ditas contra o templo. Ambos revelam e atestam-No como a novidade de Deus na história. Muitos elementos do texto apresentados pelo evangelista estão carregados de simbologia. Uma primeira delimitação que necessita ser feita é em relação a personagem Nicodêmos. Quem ele é? É mestre em Israel, chefe dos fariseus e versado nas Escrituras. No horizonte do texto, ele vai procurar Jesus após a purificação do Templo. A atitude e os gestos Dele deixam o rabino em profundo questionamento.
Nicodêmos interpreta corretamente a ação do Cristo: é um gesto profético. Ele consegue ver para além de uma ação desrespeitosa. Por isso, se torna simpático à Jesus. Há que se esclarecer o seguinte: nem todo o fariseu era hipócrita, rigorista, intransigente, como os que rivalizam com o Senhor. Pelo contrário, haviam muitos homens piedosos, sinceros e retos, que observavam corretamente a Torá, e dela viviam e ensinavam com coerência, ao interno daqueles anos 30. Mas o texto precisa ser contextualizado e encarnado na vida. Para isso, se utiliza a técnica da fusão de horizontes: o tempo narrado (anos 30 d.C) com o tempo da narração, em que a comunidade se situa (os anos 90 d.C). Por isso, para o evangelista João, a personagem Nicodêmos serve como imagem do fiel batizado, que iniciou o processo do discipulado a Jesus e sua vida de Fé. Em outras palavras, a personagem é um símbolo do discípulo iniciado, que procura conhecer o Senhor.
Nicodemos vai encontrar-se com Jesus a noite. Para o Quarto Evangelho este é o período cronológico que alude às trevas. Trevas e Luz desempenha um papel importante ao interno de toda a narrativa. Para João, a Luz é trazida por Jesus, o qual ilumina e insere no âmbito e na realidade de Deus a pessoa que se decide por Seu projeto de vida; que adere a Ele.
Contudo, era no período noturno que os rabinos tinham o costume de ler, rezar, meditar e estudar a Torá. Era uma hora propícia para interiorizar a mensagem divina contida na Palavra. Por exemplo, nos Salmos, encontramos constantemente o salmista que reza, se levanta pela noite para meditar a Palavra. Também Jesus é apresentado, constantemente nos evangelhos, durante a noite, em oração ao Pai. Ora, para o homem e para a mulher, a noite é, também, o ambiente em que emergem as interrogações e as inquietações mais profundas da existência que foram sufocados pelas preocupações, durante o dia. Assim sendo, a noite pode ter sua conotação negativa de uma realidade que precisa ser iluminada (liberada das trevas; de tudo o que é oposição à Deus), mas é, também, uma ocasião propícia para se fazer a experiência com Deus e sua Palavra. Estas duas compreensões não podem ser perdidas do horizonte da leitura e da meditação do texto. Considerações feitas, pode-se, pois, meditar a passagem evangélica.
No v.14, Jesus no diálogo/meditação retoma o texto de Nm 21,8, a narrativa da serpente de bronze confeccionada e elevada sobre uma haste (ou estandarte), que curava o povo das investidas das serpentes, durante a caminhada no deserto. “Do mesmo modo como Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado”. Palavras muito enigmáticas, que poderiam, inclusive, fazer com que Nicodemos deixasse a conversa. Mais emboladas ainda, porque o Senhor acrescenta ao episódio das serpentes, a personagem “Filho do Homem”. Uma figura simbólica presente na literatura sapiencial e apocalíptica, que aparece em Dn 7. É aquele – que sendo uma figura humana e também divina – se põe a realizar o querer de Deus na história.
João coloca na boca de Jesus um verbo muito importante: “levantar”. Mais precisamente, “enaltecido/elevado” (gr. ὑψωθῆναι / ypsothínai). Como o Quarto Evangelho é um escrito ruminado, o autor, conhecedor da tradição escrita de Israel, recuperando o ensinamento do Senhor, recorda-se de Is 52,13-15, o quarto cântico do Servo (sofredor) de YHWH, para ensinar para sua comunidade que o Senhor está a falar de si mesmo. Ao mesmo tempo, o evangelista prepara o seu leitor-discípulo para este momento da vida e da obra de Jesus, a “sua hora”, a qual já havia falado nas bodas de Caná (Jo 2,1-12). Esta, trata-se da revelação da glória – da presença - de Deus em Jesus. Através de seu enaltecimento, Ele revela a presença do Pai, e, este, por sua vez, revela-se todo no Filho. Para João, esta elevação se dá na hora da Cruz.
Esse Filho do Homem é Jesus, que, em amor “até o fim”, na entrega da vida, revelará a fidelidade e o amor do Pai pela humanidade. A hora da Cruz consistirá no momento de Seu enaltecimento, que mostra o agir e o revelar-se de Deus. Portanto, “enaltecimento/elevação” serão termos utilizados pelo evangelista para se referir à cruz. A serpente de bronze levantada prefigura o enaltecimento (a elevação) de Jesus, na Cruz. Se em Nm 21,8, aqueles que olhavam para a serpente, ficavam curados. Na intenção do evangelista, os que dirigem o olhar para Jesus enaltecido na cruz, com fé, possuem a vida eterna. Olhar (ver), no sentido bíblico significa a capacidade de se estabelecer uma experiência relacional com Deus. Este “ver” indica a atitude da adesão (decisão, opção) que o fiel-leitor e discípulo faz em relação à Jesus.
Os vv.16-21 comentam os vv. 14-15, porém com uma novidade. João substitui o termo “Filho do Homem” por Filho Unigênito (traduzido mais familiarmente por único (hbr. yahid), “o imensamente querido”). O catequista pretende mostrar a profundidade do mistério que está sendo evocado. Deus amou tanto a humanidade, que deu seu Filho unigênito (o seu imensamente querido), para salvá-la. Uma constatação importante: o verbo usado não é “entregou” (gr. παραδίδομη/paradidomi) mas “doou/deu” (gr. δίδωμι/didomein). A mensagem que o texto quer transmitir é clara e profunda: Deus não envia Jesus para sofrer e morrer; não o entrega para que pague com a última gota de sangue os pecados da história. Mas doa a vida de Seu Filho para que a humanidade, assimilando o sentido e a plenitude de Sua existência (missão e obra), seja recolocada no Seu horizonte divino. Deus não é um sanguinário que quer ser pago com sangue. Mas doador de vida e amor. João declara que o Pai doa a existência (a exemplaridade e o modelo da vida) do Filho para que a humanidade, através do sentido salvífico de Sua obra, tenha a mesma vida Dele.
O v.18 aprofunda o sentido do verbo “julgar/condenar”. Aquele que aceita o Dom de Deus, isto é, que adere a Jesus, não é condenado por Ele. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. Nesse sentido, ser condenado não depende de uma vontade ou de uma sentença do Pai ou de Jesus, mas é a consequência da opção do discípulo. Da parte de Deus, só há uma sentença e um julgamento: salvação e vida.
Os versículos 19-21, são uma explicação das consequências para aqueles que aderem a Jesus: são iluminados por Ele; tornam-se luzes. E manifestam que suas ações são conformes, isto é, são semelhantes às de Deus e de Cristo. O contrário daqueles que tomaram a decisão contraria a Jesus: estão nas trevas, rejeitam a luz; suas ações são más.
Diante do espelho do texto emergem algumas perguntas. 1) Com quais personagens nos identificamos: com Nicodemos, que ainda não fez sua opção/decisão por Jesus, ou com aqueles que aderiram ao Dom de Deus, em Jesus de Nazaré? 2) Temos acolhido, de fato, a Jesus como Dom por excelência de Deus em nossas vidas? 3) No caminho do discipulado, em qual hora da vida procuramos/aderimos a Jesus, durante a noite (na treva da escuridão, da indecisão, do descompromisso, do medo, da rejeição ao seu projeto) ou na hora da Luz (da decisão, da verdade, da fidelidade e do Amor a ele ao irmão)?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Paróquia São Judas Tadeu,
Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário