sábado, 30 de maio de 2020

HOMILIA DE PENTECOSTES – Jo 20,19-23 (ANO A):




O tempo pascal chega a sua plenitude com o a solenidade de Pentecostes. O Mistério Pascal do Senhor, que compreendem os eventos de sua paixão, morte e ressurreição, engloba a ascensão e o Pentecostes. Cumprindo sua promessa, o Senhor não nos deixa sozinhos. Envia seu Espírito para performar a vida dos discípulos e discípulas de todos os tempos e lugares, inscrevendo (escrevendo a partir de dentro) neles a Sua vida.

O Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da páscoa e das tendas. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas”, pois contavam-se sete semanas após a páscoa, mais um dia, o que totalizava cinquenta dias. Por isso, ganhou o nome de “pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecoste) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo dia (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32).

Como todas as festas judaicas, também pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo; era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus. Com o passar do tempo, ela foi perdendo sua relação com a agricultura, e adquiriu um novo significado, com uma conotação mais religiosa. O motivo da celebração passou, então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições, iam a Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei dada através de Moisés (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Lucas prefere coincidir o conferimento do Espírito de Jesus à comunidade dos discípulos com a cronologia histórica da festa judaica do Pentecostes, cinquenta dias após a festa da páscoa. O autor do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto como artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo. Para permanecer fiel a Jesus e ao seu Evangelho, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés, deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo. Conforme vislumbrado na primeira leitura desta solenidade.

Diversamente de João, que faz coincidir o dia da ressurreição de Jesus com o ato da doação de Seu Espírito aos discípulos, símbolo da comunidade que vai sendo ressuscitada paulatinamente, na medida em que vai compreendendo e relendo a vida e a missão do Senhor à luz de sua ressurreição, pautando-se naquele esquema que já nos é conhecido, a saber, a superação das instituições judaicas e levítico-cultuais a partir de Jesus de Nazaré e de sua obra. Ora, a finalidade do quarto evangelista é muito clara: enquanto os hebreus celebravam o dom da Lei, a comunidade cristã celebra o dom do Espírito. Com Jesus não existe mais uma lei externa ao homem a ser observada, mas uma força e dinâmica interna a acolher que irradia um dinamismo de vida e de amor. Este é o dom do Espírito. Agora podemos adentrar no horizonte do texto.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia. Note-se, no entanto, que já não se trata do amanhecer do primeiro dia, após o sábado, como foi descrito no começo da seção narrativa. Aquele indicativo temporal servia para ilustrar a condição da comunidade dos discípulos: ela não havia conseguido desvencilhar-se ainda dos costumes judaicos do repouso sabático e da Lei, e, portanto, não desfrutava da realidade da ressurreição.

A partir deste novo indicativo temporal (ao anoitecer ou “ao entardecer”), João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que ela já estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela venceu o sepulcro (cf. KONINGS, 2005, p. 354).

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor.

Eis, que Jesus põe-se no meio deles. É importante a informação dada pelo evangelista, pois ela indica que na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Na Memória do Ressuscitado celebrada pela comunidade ninguém é maior e todos estão referenciados – numa circularidade – ao Senhor.

Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada (CORNÉLIO, F. Homilia Dominical in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

“A paz esteja convosco (ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom de sua vida vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada (cf. KONINGS, 2005, p. 355).

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. Sua condição ressuscitada traz as marcas de sua Paixão. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o “lado”, que representa o coração é o sinal do amor.

“Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai; a deles, na incumbência de Jesus, que constitui com o Pai uma unidade. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, ἀποστέλλω; mas aqui é απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e causalidade, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem.

A ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos.  Ao enviá-los, ele sopra sobre eles o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus sopra nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Ressurreição de Jesus acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. O verbo soprar (em grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. Não é um simples carisma que recebem, algo que vem acrescentar-se à sua vida. É sopro divino; vida nova! É uma nova criação (cf. Sl 104,30). Sua vida tem outra força que antes. A ressurreição e o dom de Seu Espírito é, portanto, uma recriação através do Espírito do Ressuscitado.

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de todos os lugares em todos os tempos. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz.

A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo.

A comunidade cristã deve ser luz e irradiar esta luz de vida e amor para a humanidade, de acordo com a vida e o amor de Jesus. Todos aqueles que veem, recebem e assimilam a vida, o amor e o testemunho da comunidade e são atraídos pelo amor e pela vida de Jesus, refletido através da comunidade, tem o seu passado injusto cancelado. Aqueles que renegam este modo de vida e amor de Jesus irradiados pela comunidade permanecem nas traves e sobre o domínio do pecado. Mas os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade da vida e do testemunho da comunidade cristã.

Nesse sentido, o envio e o mandato que Jesus confere à comunidade não são para julgar ou condenar, mas oferecer a todas as pessoas uma proposta de plenitude de vida. Desta vida no Espírito de Jesus somos tornados participantes pelo batismo-crisma: fomos investidos pelo Espírito, que inscreve a letra de Cristo na página de nossa vida, para vivermos a própria vida do Senhor. O Espírito Santo inscreve (escreve a partir de dentro) Cristo em nós. A este Dom que o Senhor nos dá, chamamos Graça. A Graça é Cristo em nós através de seu Espírito, que nos faz filhos no Filho, a fim de vivermos como este mesmo Filho de Deus.

O texto nos questiona: 1) Estamos celebrando o Pentecostes. Já faz cinquenta dias que estamos envolvidos pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição interior: amedrontados e fechados, ou alegres e reedificados na Fé, pela virtude do Ressuscitado, que é seu Espírito em nós? 2) Nossas comunidades encontram-se ressuscitadas e animadas conforme o Espírito, ou seja, conseguem testemunhar Cristo Ressuscitado para o mundo, e, com isso, viver a missão confiada?

Pe. João Paulo Sillio
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 23 de maio de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Mt 28,16-20




O tempo pascal encaminha-se para sua conclusão. A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor. A comunidade eclesial professa a plenitude da ressurreição do Senhor. O Senhor ressuscitado, ao retornar para o âmbito (esfera e mundo) de Deus leva consigo a natureza humana. Ele não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade com Ele e a reorienta para seu fim último e definitivo: a vida de Deus.

O final do evangelho de Mateus reúne cinco versículos, através dos quais o evangelista sintetiza toda a sua catequese. Interessante é que o catequista bíblico não narra a ascensão de Jesus, como fazem Lucas e Marcos (ainda que este seja um acréscimo ao final original do evangelho marcano). O evangelho de Mateus tem como temática a teologia do Emanuel. Jesus manifesta a presença de Deus-conosco. Desde o início de sua obra, o primeiro evangelista acena para esta vocação-missão de Jesus, a de ser o Emanuel: a presença de Deus no meio da humanidade.

A pericope que solenidade da Ascensão nos apresenta para a nossa meditação é a conclusão do Evangelho segundo Mateus. Apenas uma advertência acerca deste texto. Para compreendê-lo, se faz necessário lançar um olhar para toda a catequese mateana. O Primeiro Evangelho tem por finalidade “fazer discípulos-missionários todos os povos”. Mas para que o discípulo possa vivenciar a missão recebida por Jesus, ao final do Evangelho, deverá percorrer o caminho do discipulado. E não poderá furtar-se ao fato de que este discipulado-missionário é perpassado pela dinâmica da Cruz. Ora, a narrativa da paixão, morte e ressurreição de Jesus, na perspectiva de Mateus funciona como um dos eixos centrais de seu evangelho. O discípulo só poderá assumir a missão depois de percorrer a vida de Jesus e tê-la como seu modelo.

Compreendida esta peculiaridade do Evangelho segundo Mateus, por assim dizer, somos mergulhados no horizonte do texto. O contexto amplo é o da experiência da comunidade dos discípulos com o Senhor Ressuscitado. O contexto imediato é o do discurso de comissionamento/envio: Jesus Ressuscitado envia os onze para realizar o que ele já havia feito. Não se trata de um discurso de despedida, porque Jesus não se vai, mas permanece com eles.

“Os onze discípulos foram para a Galiléia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (v.16). Os discípulos já não são Doze, mas onze. O número dos discípulos não foi reconstituído. Doze, na simbologia do AT aludia ao antigo Israel, que durante a pregação e missão de Jesus é chamado a se tornar o novo povo de Deus. De fato, doze representava o novo Israel visibilizado pelos discípulos de Jesus. Onze, significa que o Novo Israel não foi reconstituído ainda e, portanto, a mensagem de Jesus se torna universal. Destina-se para toda a humanidade. O indicativo da Galileia, mencionada por três vezes somente neste relato pascal, representa a ruptura com Jerusalém. Jesus não se manifesta ressuscitado na cidade santa, mas lá no lugar onde tudo começou. Uma oportunidade de releitura, ressignificação da vida e da história, e de retorno à experiência fontal com Deus, em Jesus.

Mateus informa aos seus leitores duas coisas importantes. Primeiro, o lugar onde os discípulos se encontram com Jesus: a montanha, na região da Galileia, que o Senhor mesmo lhes havia indicado. E é interessante que o evangelista usa o artigo definido “o” para indicar que não é qualquer monte. Mas Jesus não havia indicado nenhum monte. Por que Mateus faz isto? Por que os discípulos se dirigem para o monte? O significado não é topográfico, mas teológico. 

O Monte, na teologia bíblica é mais do que uma localização geográfica, mas um lugar teológico, ou seja, um lugar para se fazer experiência com Deus. É o lugar da manifestação (teofania) de YHWH. No AT Deus se manifestara muitas vezes sobre a montanha. A Lei foi dada a Moisés na montanha do Sinai. 

O monte, neste evangelho é o monte das bem-aventuranças, onde Jesus inaugurou sua mensagem de salvação, as bem-aventuranças. A versão mateana apresenta oito ditos de Jesus. O número oito é o número da ressurreição do Senhor: o primeiro dia da semana, depois do sábado, era, na verdade o oitavo dia, que na tradição das comunidade cristãs foi reinterpretado como o Primeiro dia, o dia da nova criação realizada por Deus através da obra de Jesus, que culmina na ressurreição.

O evangelista diz que os discípulos sobem a montanha. Ele pretende ensinar à sua comunidade que a experiência com Jesus Ressuscitado não é uma realidade exclusiva de um determinado grupo, num determinado lugar. Não se trata de um privilegio concedido dois mil anos atrás à um pequeno grupo. Mas uma oportunidade para todos, de todos os tempos e lugares. Basta situar-se sobre o monte das bem-aventuranças, isto é, acolher a sua mensagem de salvação que foi formulada e assumida nas bem-aventuranças.

O autor informa que, ao verem o Senhor, os discípulos se prostraram. Aqui, o verbo ver não indica uma capacidade física e biológica, mas uma experiência que se dá desde a profundidade do coração do homem. Mateus relata a ainda a o gesto da prostração. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo que tinha usado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em Belém (cf. Mt 2,2): prostrar-se em adoração (gr. proskinêo). O verbo indica adoração e sujeição a alguém.

Mas o v.17 informa que alguns duvidavam. Mas de que coisa duvidam? Não de que Jesus tenha ressuscitado, pois o veem. Nem que Ele esteja na condição divina, uma vez que se prostram. Compreendamos: o evangelista usou o verbo duvidar somente uma vez, na narrativa da caminhada sobre as águas, que indica a condição e a realidade divina de Jesus, onde Pedro pede-Lhe que conceda também a si caminhar sobre as águas, isto é, obter a condição divina. Naquela ocasião Jesus consente, mas no decorrer do caminho, o discípulo sucumbe e começa a afundar ao se dar conta das dificuldades. Pensava ele que a condição divina seria um dom concedido por Deus, e não sabia por quais dificuldades passaria. Naquela ocasião, Jesus o reprovou, chamando-o de homem de pouca fé. E o questionava: “Por que duvidastes?”. Então, esta dúvida que o evangelista menciona toca a consciência dos discípulos porque agora eles sabem por quais dificuldades passou Jesus, a morte infame do mestre, como desprezado e amaldiçoado por ter morrido suspenso na cruz, e, por isso, duvidam de si mesmos. São convidados a assumirem a condição divina, mas não sabem se serão capazes de afrontarem a perseguição e, também, a morte. Eis, porque duvidam.

A dúvida não faz mal à comunidade. Mesmo que Jesus os tenha reprovado na atitude de duvidar. Podemos dizer que o Jesus mateano apresenta uma característica necessária para a sua comunidade. Para a solidez da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas a atitude do amor. Portanto, quanto mais se duvida, mais necessidade se tem de amar. Ora, o amor, assim como a fé, é uma aposta, uma decisão. Quanto maiores forem as dúvidas, tanto maior a necessidade de apostar, de decidir-se. De amar. Podemos dizer que a dúvida e a fé são companheiras inseparáveis na vida da comunidade, porque engendram ao seu interno a capacidade de amar.

Jesus, então, diz-lhes: “Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra”. Aqui, o evangelista faz eco a Daniel, que retrata a personagem “Filho do Homem”, o qual recebeu de Deus todo o poder, no céu e na terra. Mas o poder/autoridade que Jesus recebe não é para servir-se a si mesmo, mas para colocar-se à serviço de todos. E ao interior da comunidade de Mateus, a autoridade é a de Jesus, e não mais a do legalismo da lei mosaica.

Jesus continua: “ide e fazei discípulos meus todos os povos”. O evangelista resgata o imperativo de “Ide”. É uma ordem, um mandato. Que se destina a todos os povos (lit. todas as nações, que alude aos pagãos). Deteremos-nos um pouco sobre este dito de Jesus. “Fazer discípulos”, significa transmitir a todos (sem excessão) o novo modo de viver e de relacionar-se com Deus, através do modo de vida de Jesus. Batizar significa imergir, mergulhar, ou seja, inserir as pessoas na vida, na realidade mesma de Deus, é o que significa “em nome do Pai, do Filho e do Espírito”. A palavra “Nome” indica a realidade mais profunda e a identidade do ser. Ou seja, fazer experimentar a realidade profunda de Deus e de quem é Deus.

“ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” (v.20). Pela primeira vez aparece no evangelho de Mateus o termo mandamento, através da locução “tudo o que vos ordenei”. Jesus havia chamado seus discípulos para serem pescadores de homem. Pescar homens significa tirar da água, símbolo da morte, das situações nocivas e dar-lhes a vida. Jesus lhes indica como se tornar pescador de homens: imergindo-os no Espírito do Senhor, na realidade mais profunda do amor de Deus.

Os discípulos não são enviados a transmitir uma doutrina acerca de Deus, mas uma experiência pessoal, através do Amor e da prática da fraternidade indicadas pelas Bem-aventuranças, as quais foram assumidas pelo próprio Jesus. É importante enfatizar e insistir nisso: Jesus não envia apregoar doutrinas metafisicas. O Senhor envia sua comunidade de discípulos-missionários para que ela dê testemunho da experiência de ter sido mergulhada, imergida, entranhada (batizada) no íntimo da vida amorosa do Pai. As pessoas que se encontrarem e aderirem ao Evangelho de Jesus deverão fazer a experiência de imergir, mergulhar, entranhar-se em Deus mesmo, em seu Amor.

O evangelista pretende, com as últimas palavras de Jesus, “Estarei convosco todos os dias até que o tempo esteja pleno”, indicar uma qualidade da presença de Jesus, e não indicar um período cronológico ou determinado da presença. Jesus, na verdade, está assegurando à sua comunidade que se ela colocar em prática as bem-aventuranças, fazendo com que outros tenham igualmente acesso a elas e as pratiquem, fazendo experiência de Deus como fonte de vida e de Amor, Sua presença ao interno da comunidade será garantida. Mateus assume, novamente, o fio condutor de sua catequese, o tema do Emanuel, Deus-Conosco, realidade revelada por Jesus: através do dom de sua existência e missão, Deus está com a humanidade, caminha com ela. Deus está conosco.

O evangelista conclui seu evangelho com certa semelhança com o último livro da bíblia hebraica, 2Crônicas, com a ordem dada por Ciro, rei da Pérsia, ao povo de Israel para que retornasse e reconstruísse o Templo. Também Jesus envia os seus. Mas para irem, saírem, romperem com as mentalidades e as estruturas religiosas do judaísmo antigo, e não para construírem um templo. Porque, de acordo com a perspectiva de Mateus, o novo templo não será mais um templo estático, mas a própria comunidade Cristã, único e verdadeiro Santuário, por meio da qual se irradiam Amor, Misericórdia, Compaixão e a Ternura do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP

sábado, 16 de maio de 2020

HOMILIA PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 14,15-21:




No tempo pascal, o discípulo (leitor-ouvinte) de Jesus é recolocado na pedagogia do Senhor ressuscitado. Neste quinto domingo do tempo pascal, a liturgia nos oferece como texto para nossa meditação, a continuidade do capítulo catorze do Quarto Evangelho, dos versículos 15 à 21.

O capítulo catorze encontra-se no segundo bloco do Evangelho de João, o Livro da Glória. O discípulo que trilhou os passos no seguimento à Jesus durante a primeira parte do evangelho joanino, contemplando os sinais que Ele realizava, os quais atestavam visibilizava a ação de Deus na história através de seu Filho, e, tendo feito a opção pela pessoa de Jesus, pode tomar parte da hora da glória de Jesus, que é a revelação da presença de Deus ao mundo a partir do crucificado.

Antes, porém, o discípulo é convidado a tomar parte do ensinamento de Jesus acerca do dom / entrega de si e da vida, e do mandamento do amor. Estes ensinamentos soam como que um discurso de despedida da parte de Jesus. O bloco literário que começou no capítulo catorze se estende até o dezesseis, e é conhecido como o “Testamento” de Jesus. Ora, o testamento consiste, em essência, naquele conjunto de bens e pertences mais preciosos que alguém pode deixar para quem se ama. Assim, o evangelista João concentra neste bloco de 14 – 16 o conjunto de ensinamentos importantes de Jesus: a explicitação do dom da própria vida e o mandamento do amor. Mas é verdade que Ele não deixa de alertar seus discípulos sobre as dificuldades de se viver este testamento, este modo de ser e de existir no mundo amparada pela força (dinamismo) do Espírito do Ressuscitado.

“Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (v.15), declara Jesus. Pela primeira vez no evangelho joanino, Ele toca no tema do amor, agora relacionado a si mesmo, o qual depois deverá se manifestar no amor aos outros. Ora, o gesto realizado por Jesus no lava-pés (Jo 13), tornou os discípulos capazes de assimilarem o seu amor, e de serem capazes de amar. O mandamento do qual ele se refere é único: “eu vos dou um novo mandamento: “que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei”. É o mandamento do amor. Ele é novo na medida que supera os demais. Novidade significa, aqui, últimidade, perfeição, meta. Interessante, o mandamento que Jesus se refere, ele o considera como seu. Não são os de Moisés.

“E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Defensor” (v.16). O evangelista João usa um termo de difícil tradução. No original grego temos o termo Parakletos (gr. Παρακλητον), que tentou ser traduzida por consolador, não exprimindo ainda a profundidade da intenção e da tradução. É preferível a transliteração do termo. Parakletos significa “aquele que foi chamado em socorro”, “em defesa”; talvez a tradução mais acertada seria “socorredor”. Este termo é exclusivo do Quarto Evangelho. Atenção: Parakletos não é o nome do Espírito de Jesus, mas a sua função, isto é, aquilo que ele realiza: a ação de socorrer.

Jesus dá uma indicação importante e preciosa: “para que permaneça sempre convosco” (16b). O Espírito de Jesus, doado por Ele para socorrer os seus não é um dom passageiro ou temporário. Tampouco vem somente nos momentos de desespero ou de necessidade, quando invocado. Mas a Sua presença é permanente na comunidade. O amor de Deus não vai ao encontro do individuo e da comunidade quando estes necessitam, somente, mas está já ali. Os precede!

Jesus o chama de “Espírito da Verdade (gr. το πνευμα της αληθειας / tô pneuma thes aletheias) (v.17)”. Este Espírito faz conhecer a verdade sobre Deus, e sobre quem é Deus. Mas não se deve pensar na “verdade” como se ela fosse um conceito abstrato como a dos filósofos. Essa não é função do Espírito de Jesus, nem faz parte da intenção do autor do Quarto Evangelho. Este Espírito da Verdade revela quem é Deus: é amor que se doa e se mostra visível à humanidade. Um amor que está sempre em socorro e a favor do homem. Este é o Espírito da Verdade, que é o Espírito mesmo de Jesus, que revela o Pai e seu amor.

Todavia, diz Jesus, “o mundo não é capaz de receber, porque não o vê nem o conhece” (v.17b). O termo “mundo”, utilizado muitas vezes no Quarto Evangelho, se refere ao ambiente hostil e antagonista (opositor) à Jesus e suas Palavras. Nem Ele, nem o evangelista querem “demonizar” o mundo, como uma realidade maléfica e imperfeita. Mas alude aos sistemas injustos, e, em particular, ao poder religioso da época, o “mundo” das autoridades judaicas, que opõem-se firme e decididamente a Jesus. Em outras palavras, quando João se refere fala de “mundo” em caráter negativo, ele está se referindo à realidade e à situação hostil e opositora que Jesus e o discípulo podem (e vão) encontrar. Mas que devem ser iluminadas e convertidas a fim de que se reorientem ao fim último e definitivo que é o horizonte mesmo de Deus. Ora, a missão discípulo de Jesus, animado pelo Seu Espírito, se dá no mundo, na realidade.

Por que este “mundo” não pode receber o Espírito da Verdade? Porque, precisamente, o Espírito de Jesus revela o amor do Pai, que está sempre a favor do homem. O “mundo”, representado pelas instituições religiosas do tempo de Jesus e todo o sistema hostil à sua pessoa, pensam somente de acordo com suas próprias conveniências. Sustentam o bem e mal de acordo com suas próprias conveniências, e, por isso, não podem recebê-lo. Jesus insiste nesta permanência do Espírito da Verdade: “Vós o conheceis, porque ele permanece junto de vós e estará dentro de vós” (v.17c). Como o Espírito desceu sobre Jesus e permaneceu Nele, assim o Espírito de Jesus permanecerá na Comunidade.

“Não vos deixarei órfãos. Eu virei a vós” (v.18). O órfão, no ambiente bíblico, é aquele que não goza de nenhuma proteção; que não tem ninguém que lhe possa vir aos cuidados. Jesus assegura que isso não acontecerá, reafirmando a sua presença em meio a comunidade. “Eu virei a vós” se torna, portanto, a segurança para o discípulo e para a discípula de que Sua morte não será uma ausência, mas presença; não será distanciamento, e, sim, proximidade.

“Pouco tempo ainda, e o mundo não mais me verá, mas vós me vereis, porque eu vivo e vós vivereis” (v.19). Jesus não está falando da capacidade biológica / física do sentido da visão, mas da capacidade da percepção, que emerge da profundidade do coração do discípulo. O “ver” bíblico é, na verdade, a oportunidade e a capacidade que o discípulo tem de fazer a experiência com Deus.

Na afirmação “eu vivo e vós vivereis”, o evangelista usa um termo que se refere à vida que se vive para sempre: a vida inextinguível, do âmbito de Deus. Não se trata de uma vida biológica que precisa ser nutrida para crescer. Trata-se de outra vida, a interior, que para crescer necessita ser nutrida. Nesse sentido, aquele que reorienta a sua própria vida, dando-a como nutrimento aos outros, coloca-se em sintonia com Aquele que é o Vivente por excelência.

Naquele dia sabereis que eu estou no meu Pai e vós em mim e eu em vós” (v.20). A quê dia Jesus se refere? Ao de sua morte. Para o catequista bíblico, Jesus antecipa aos seus o dom do Espírito no momento da entrega de sua vida nas mãos do Pai. O evangelista antecipa o que se desenvolverá nos capítulos seguintes acerca da comunhão plena entre Jesus e o Pai e Jesus e o discípulo e a comunidade. O que pretende dizer o autor do Quarto Evangelho para a sua comunidade? Na comunidade dos fiéis, Deus assume seu rosto humano, e, da sua parte, o homem e a comunidade assumem o rosto divino. Fazendo existir uma comunhão entre Deus e o homem. É um Deus que deseja ser acolhido na vida do indivíduo, de se fundir com ele, dilatando a sua capacidade de amar e tornando a mesma comunidade naquele espaço onde todos podem fazer aquela experiência de amor, de misericórdia e compaixão. A presença de Jesus no Pai e do Pai em Jesus se realiza também na vida dos discípulos, eliminando, assim, toda distância entre o humano e o divino. A comunidade cristã aberta ao Espírito da Verdade é, portanto, morada de Jesus e do Pai, tornando-se profeta capaz de expressar com sua vida aos fiéis, a verdadeira presença do Senhor.

“Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama. Ora, quem me ama, será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele” (v. 21). Literalmente, o evangelista escreve “Quem tem os meus mandamentos”. Ora, os mandamentos de Jesus não são as imposições da lei antiga, ou normas externas ao homem. Mas é o Seu dinamismo vital interior, que, quando se manifestam liberam toda a sua força. A observância do mandamento de Jesus, o amor, não diminui o homem, antes o potencializa para a vida. É o que realiza o Espírito da Verdade, Espírito de Jesus, no fiel. A este Espírito que inscreve o amor – a grafia, a vida – de Cristo em nós, chamamos Graça.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu / SP.

sábado, 2 de maio de 2020

HOMILIA PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 10,1-10:




A liturgia deste Quarto Domingo do tempo pascal nos apresenta o texto de Jo 10,1-10, o qual abre a alegoria do pastor exemplar, ou “Belo Pastor”, dos vv.11-18. Através da mistagogia deste tempo pascal, o fiel é convidado, agora, a “sair dos limites do sepulcro”, já tendo feito a experiência com o Senhor ressuscitado. O mistagogo – aqueles que introduzem os fiéis nos mistérios da vida de Jesus, como é o caso do autor do Quarto Evangelho – trata de fazer sair o leitor-discípulo do evangelho das imediações do sepulcro vazio para outro lugar: o lugar da pastagem, do pasto viçoso, que alimenta e sustenta. Faz sair da escravidão da vida sem sentido (morte) para o lugar da liberdade. É o que o texto evangélico deste domingo pretende fazer refletir.  

Se faz necessário contextualizar Jo 10, bem como fazer emergir o pano de fundo do Antigo Testamento inerente a ele. O capítulo décimo do Quarto Evangelho apresenta a temática do Pastoreio. Este tema era muito presente na vida do povo de Israel. É importante, primeiramente, saber que o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado ao povo de Israel. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer da história do povo, foi sendo atribuída às lideranças do povo, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores do povo. Mas, a história mostrou que esta função não desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças.

O texto, em seu contexto próximo, situa-se imediatamente após o sinal realizado por Jesus devolvendo a visão ao cego de nascença. O Sinal em Jo 9 consiste na revelação de Jesus como sendo o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz para o mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual Jesus revela a Glória de Deus e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, recusando conscientemente ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré, e, cegadas, igualmente pelo poder, pelos privilégios e pela mentalidade mundana. Tal é corroborado pela postura destas lideranças judaicas. Ao invés de cuidar, acolher, promover-lhes a vida e a dignidade, acabavam expulsando de seu meio a gente simples do povo; aqueles que lhes representavam alguma ameaça (entre estes, os seguidores do Nazareno), ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37).

O contexto imediato do texto – onde a cena encontra-se situada – é o da festa da Dedicação. É verdade que há uma mudança de cenário e de festa religiosa. O evangelista situa Jesus nos arredores do templo. Essa festa foi estabelecida por Judas Macabeu em 165 a.C, para celebrar a vitória dos macabeus sobre a dominação grega e a nova dedicação do templo e do altar, já que esse tinha sido profanado pelos gregos (cf. 1 Mc 4,36-59). Acontecia em Jerusalém e durava uma semana; o texto profético utilizado na liturgia dessa festa era o capítulo 34 de Ezequiel, onde o profeta denuncia os maus pastores de Israel, os quais apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). De acordo com o profeta, Deus tomaria a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidaria, ele mesmo, do rebanho (cf. Ez 34,11).

O Jesus joanino começa, dizendo: “Em verdade, em verdade vos digo, quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas” (vv.1-2). João inicia o discurso com um solene “Em verdade, em verdade”, literalmente, “amém, amém”. O autor quer mostrar ao discípulo leitor do evangelho que as palavras que virão a seguir contém um ensinamento importante para os ouvintes-leitores, e, que, por isso, devem estar atentos. A formula literária “Amém, amém (em verdade, em verdade)” significa, “o que será dito é verdadeiro, é seguro; te digo com firmeza”. Mas o ensinamento é direcionado às lideranças judaicas, os fariseus. Responsáveis pela exclusão das pessoas simples do povo dos ambientes judaicos, bem como daqueles que não aderem ao seu modo de vida e de pensar. Qual é o conteúdo desta declaração? “Quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas”.

O evangelista usa o termo recinto – e não redil, como a tradução litúrgica sugere. Com o termo recinto, ele se refere ao recinto do átrio do templo. Ora, como dissemos acima, Jesus está nos arredores do templo ensinando. A alegoria serve das categorias pastor/ovelha e rebanho/redil para ilustrar as relações entre a instituição religiosa e o povo. O templo, bem como todas as instituições religiosas do judaísmo serão superadas e substituídas pelo dom da vida Jesus, que será o novo lugar e modo através dos quais o homem poderá se relacionar com Deus

Jesus é muito claro: quem não entra pela porta, mas por outro lugar é ladrão e assaltante. Ele está falando dos chefes do povo, os fariseus, que usurparam o lugar de Deus, enquanto único e verdadeiro Pastor do povo. Mas fala também em relação ao templo, sede de ladrões e assaltantes, uma vez que os chefes do povo usavam da instituição religiosa e da religiosidade para subjugar e espoliar as pessoas. Fica claro que o redil/rebanho de que Jesus fala não se trata do templo e das instituições religiosas do judaísmo de seu tempo. A porta e o redil transcendem e superam essas instituições. É evidente que Jesus tem como pano de fundo para sua fala, as palavras do profeta Ezequiel, no capítulo 34, através das quais ele deixava bem clara a insatisfação de Deus com os que foram constituídos pastores para conduzir o povo, uma vez que pensavam unicamente em si mesmos e no próprio bem-estar.

Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. A esse o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora (v.2-3). Por que as ovelhas escutam sua voz? Elas reconhecem e encontram na voz de Jesus a resposta para os seus anseios de vida que toda pessoa traz dentro de si. É bonito notar o nível da relação que Jesus estabelece com os seus: não é uma relação massificante. Para Ele ninguém é um número, senão uma pessoa bem concreta e real. Jesus estabelece com aqueles que fazem uma experiencia com Ele, uma relação pessoal e individual. Tal nível de relação faz com que a ovelha-discípulo seja “conduzida para fora”. O verbo utilizado pelo evangelista é exagei (gr. εξαγει, levar para fora, sair) o mesmo usado no livro do Êxodo, para indicar a libertação da terra da escravidão para a terra da liberdade e da vida nova.

E, depois de fazer sair todas as que são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz (v.4). Jesus, depois de fazer sair suas ovelhas do interno da instituição religiosa, não as aprisiona em outro recinto, mas as conduz para a plena liberdade. No v. 5, “Mas não seguem um estranho, antes fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”, Jesus não faz uma constatação. Na verdade, ele dá um conselho. É necessário fugir daqueles que se apresentam como pretensos pastores, que, como se verá mais adiante, serão lobos disfarçados. Curioso: Jesus, conhecedor da realidade de seu tempo e da sua cultura observa que as ovelhas não escutam a voz de um estranho, e, ainda, fogem deste. O Jesus joanino afirma que as ovelhas só escutam e reconhecem a voz Daquele que as ama; e não daqueles que desfrutam e usufruem de suas vidas. Elas deverão reconhecer na voz dos falsos pastores a ânsia pelo poder e pelo domínio.

Continua o versículo 6, Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o que ele queria dizer. Qual o motivo da incompreensão dos fariseus? Isso se deve ao fato de não pertencerem ao rebanho de Jesus. Antes, fazem-lhe uma obstinada e firme oposição. Angariam, no entanto, seus próprios rebanhos; seu próprio gado, para aproveitarem-se de sua lã e de seu couro.

No v.7, “Então Jesus continuou: “Em verdade, em verdade vos digo, eu sou a porta das ovelhas”. O evangelista usa uma formula de revelação, “Eu sou”, que alude à revelação de Deus no Êxodo, e ao seu nome divino “YHWH”, que, na intenção do autor do Quarto Evangelho, pretende revelar à sua comunidade a condição divina que se revela em Jesus. Continua o tom solene, o qual pretende revelar algo importante aos ouvintes-leitores: “Eu sou a porta das ovelhas (gr. εγω ειμι η θυρα των προβατων)”.

“Todos aqueles que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os escutaram (v.8). Jesus direciona a acusação “ladrões e assaltantes” às lideranças do povo, os fariseus e os sacerdotes, que exerciam o domínio sobre o povo, tomando o lugar de Deus, verdadeiro pastor; e de tê-lo submetido através da violência. Mas, constata Jesus, as ovelhas não os escutaram. O povo havia sido submetido, é claro, pela violência e pelo medo, e não por escolha própria e livre.

“Eu sou a porta. Quem entrar por mim será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem (v.9). Jesus declara-se, novamente, como sendo a porta através da qual se adentra e se pode tomar parte do novo rebanho de Deus. O evangelista usa dois verbos, “entrar” e “sair” para enfatizar que Jesus não encerra – encarcera – suas ovelhas, mas as conduz para a liberdade. A porta, que é Jesus, não se encontra fechada. O fechamento, ao contrário, se deve a sede de domínio e de poder dos líderes religiosos do judaísmo da época. Ora, seguindo a Jesus, se encontra plenitude e liberdade, pode “entrar e sair”.

Ao entrar e sair, a ovelha-discípula de Jesus encontra pastagem. Qualidade e liberdade de vida. A esta altura, o evangelista realiza um jogo com a língua grega através do termo pastagem, nomén (gr.νομην), tem o mesmo radical que Lei, (Nômos / νόμος). Com Jesus não se encontra uma Lei a seguir, mas uma pastagem, isto é, um alimento que dá vida.  

No v.10, “O ladrão só vem para roubar, matar e destruir”, Jesus reinterpreta a profecia de Ezequiel 22,27, “As autoridades são como lobos que despedaçam os animais que mataram. Matam para enriquecer”, identificando esses pastores com os lobos que só vem para roubar, matar e destruir”. Nesse sentido, as verdadeiras vítimas do culto do templo são as pessoas, de acordo com a denúncia feita por Jesus.

Jesus declara, enfim: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (v.10). Trata-se de um convite de Jesus às pessoas para que tenham vida plena, ou seja, a emancipar-se dessas relações de poder e domínio; a libertarem-se desses pastores que impõem e obrigam, e acolherem o dom da vida plena e inextinguível que Jesus oferece, incondicionalmente, a todos aqueles que escutam sua voz.

Nesta alegoria do Bom Pastor, o evangelista opera um contraste entre as lideranças do povo, que agiam na contramão do projeto de Deus, e Jesus, que age segundo o coração (de pastor) de Deus, mostrando-se exemplar; que realiza aquilo que as lideranças do povo deveriam fazer, e não faziam: apontar e conduzir para a vida que Deus dá, agora, através do dom da vida de Jesus de Nazaré, o pastor ideal. 

Nesse sentido, o papel do verdadeiro pastor, de acordo com o evangelho joanino, não consistirá em carregar ninguém ao colo – símbolo da dependência, domínio, paternalismos infantilizadores, que não geram vida nem fazem crescer mas apontar caminhos, conduzir (ir com) e caminhar junto (ou em meio) aos seus.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.