sábado, 23 de maio de 2020

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Mt 28,16-20




O tempo pascal encaminha-se para sua conclusão. A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor. A comunidade eclesial professa a plenitude da ressurreição do Senhor. O Senhor ressuscitado, ao retornar para o âmbito (esfera e mundo) de Deus leva consigo a natureza humana. Ele não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade com Ele e a reorienta para seu fim último e definitivo: a vida de Deus.

O final do evangelho de Mateus reúne cinco versículos, através dos quais o evangelista sintetiza toda a sua catequese. Interessante é que o catequista bíblico não narra a ascensão de Jesus, como fazem Lucas e Marcos (ainda que este seja um acréscimo ao final original do evangelho marcano). O evangelho de Mateus tem como temática a teologia do Emanuel. Jesus manifesta a presença de Deus-conosco. Desde o início de sua obra, o primeiro evangelista acena para esta vocação-missão de Jesus, a de ser o Emanuel: a presença de Deus no meio da humanidade.

A pericope que solenidade da Ascensão nos apresenta para a nossa meditação é a conclusão do Evangelho segundo Mateus. Apenas uma advertência acerca deste texto. Para compreendê-lo, se faz necessário lançar um olhar para toda a catequese mateana. O Primeiro Evangelho tem por finalidade “fazer discípulos-missionários todos os povos”. Mas para que o discípulo possa vivenciar a missão recebida por Jesus, ao final do Evangelho, deverá percorrer o caminho do discipulado. E não poderá furtar-se ao fato de que este discipulado-missionário é perpassado pela dinâmica da Cruz. Ora, a narrativa da paixão, morte e ressurreição de Jesus, na perspectiva de Mateus funciona como um dos eixos centrais de seu evangelho. O discípulo só poderá assumir a missão depois de percorrer a vida de Jesus e tê-la como seu modelo.

Compreendida esta peculiaridade do Evangelho segundo Mateus, por assim dizer, somos mergulhados no horizonte do texto. O contexto amplo é o da experiência da comunidade dos discípulos com o Senhor Ressuscitado. O contexto imediato é o do discurso de comissionamento/envio: Jesus Ressuscitado envia os onze para realizar o que ele já havia feito. Não se trata de um discurso de despedida, porque Jesus não se vai, mas permanece com eles.

“Os onze discípulos foram para a Galiléia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado” (v.16). Os discípulos já não são Doze, mas onze. O número dos discípulos não foi reconstituído. Doze, na simbologia do AT aludia ao antigo Israel, que durante a pregação e missão de Jesus é chamado a se tornar o novo povo de Deus. De fato, doze representava o novo Israel visibilizado pelos discípulos de Jesus. Onze, significa que o Novo Israel não foi reconstituído ainda e, portanto, a mensagem de Jesus se torna universal. Destina-se para toda a humanidade. O indicativo da Galileia, mencionada por três vezes somente neste relato pascal, representa a ruptura com Jerusalém. Jesus não se manifesta ressuscitado na cidade santa, mas lá no lugar onde tudo começou. Uma oportunidade de releitura, ressignificação da vida e da história, e de retorno à experiência fontal com Deus, em Jesus.

Mateus informa aos seus leitores duas coisas importantes. Primeiro, o lugar onde os discípulos se encontram com Jesus: a montanha, na região da Galileia, que o Senhor mesmo lhes havia indicado. E é interessante que o evangelista usa o artigo definido “o” para indicar que não é qualquer monte. Mas Jesus não havia indicado nenhum monte. Por que Mateus faz isto? Por que os discípulos se dirigem para o monte? O significado não é topográfico, mas teológico. 

O Monte, na teologia bíblica é mais do que uma localização geográfica, mas um lugar teológico, ou seja, um lugar para se fazer experiência com Deus. É o lugar da manifestação (teofania) de YHWH. No AT Deus se manifestara muitas vezes sobre a montanha. A Lei foi dada a Moisés na montanha do Sinai. 

O monte, neste evangelho é o monte das bem-aventuranças, onde Jesus inaugurou sua mensagem de salvação, as bem-aventuranças. A versão mateana apresenta oito ditos de Jesus. O número oito é o número da ressurreição do Senhor: o primeiro dia da semana, depois do sábado, era, na verdade o oitavo dia, que na tradição das comunidade cristãs foi reinterpretado como o Primeiro dia, o dia da nova criação realizada por Deus através da obra de Jesus, que culmina na ressurreição.

O evangelista diz que os discípulos sobem a montanha. Ele pretende ensinar à sua comunidade que a experiência com Jesus Ressuscitado não é uma realidade exclusiva de um determinado grupo, num determinado lugar. Não se trata de um privilegio concedido dois mil anos atrás à um pequeno grupo. Mas uma oportunidade para todos, de todos os tempos e lugares. Basta situar-se sobre o monte das bem-aventuranças, isto é, acolher a sua mensagem de salvação que foi formulada e assumida nas bem-aventuranças.

O autor informa que, ao verem o Senhor, os discípulos se prostraram. Aqui, o verbo ver não indica uma capacidade física e biológica, mas uma experiência que se dá desde a profundidade do coração do homem. Mateus relata a ainda a o gesto da prostração. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo que tinha usado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em Belém (cf. Mt 2,2): prostrar-se em adoração (gr. proskinêo). O verbo indica adoração e sujeição a alguém.

Mas o v.17 informa que alguns duvidavam. Mas de que coisa duvidam? Não de que Jesus tenha ressuscitado, pois o veem. Nem que Ele esteja na condição divina, uma vez que se prostram. Compreendamos: o evangelista usou o verbo duvidar somente uma vez, na narrativa da caminhada sobre as águas, que indica a condição e a realidade divina de Jesus, onde Pedro pede-Lhe que conceda também a si caminhar sobre as águas, isto é, obter a condição divina. Naquela ocasião Jesus consente, mas no decorrer do caminho, o discípulo sucumbe e começa a afundar ao se dar conta das dificuldades. Pensava ele que a condição divina seria um dom concedido por Deus, e não sabia por quais dificuldades passaria. Naquela ocasião, Jesus o reprovou, chamando-o de homem de pouca fé. E o questionava: “Por que duvidastes?”. Então, esta dúvida que o evangelista menciona toca a consciência dos discípulos porque agora eles sabem por quais dificuldades passou Jesus, a morte infame do mestre, como desprezado e amaldiçoado por ter morrido suspenso na cruz, e, por isso, duvidam de si mesmos. São convidados a assumirem a condição divina, mas não sabem se serão capazes de afrontarem a perseguição e, também, a morte. Eis, porque duvidam.

A dúvida não faz mal à comunidade. Mesmo que Jesus os tenha reprovado na atitude de duvidar. Podemos dizer que o Jesus mateano apresenta uma característica necessária para a sua comunidade. Para a solidez da fé, a dúvida se faz necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas a atitude do amor. Portanto, quanto mais se duvida, mais necessidade se tem de amar. Ora, o amor, assim como a fé, é uma aposta, uma decisão. Quanto maiores forem as dúvidas, tanto maior a necessidade de apostar, de decidir-se. De amar. Podemos dizer que a dúvida e a fé são companheiras inseparáveis na vida da comunidade, porque engendram ao seu interno a capacidade de amar.

Jesus, então, diz-lhes: “Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra”. Aqui, o evangelista faz eco a Daniel, que retrata a personagem “Filho do Homem”, o qual recebeu de Deus todo o poder, no céu e na terra. Mas o poder/autoridade que Jesus recebe não é para servir-se a si mesmo, mas para colocar-se à serviço de todos. E ao interior da comunidade de Mateus, a autoridade é a de Jesus, e não mais a do legalismo da lei mosaica.

Jesus continua: “ide e fazei discípulos meus todos os povos”. O evangelista resgata o imperativo de “Ide”. É uma ordem, um mandato. Que se destina a todos os povos (lit. todas as nações, que alude aos pagãos). Deteremos-nos um pouco sobre este dito de Jesus. “Fazer discípulos”, significa transmitir a todos (sem excessão) o novo modo de viver e de relacionar-se com Deus, através do modo de vida de Jesus. Batizar significa imergir, mergulhar, ou seja, inserir as pessoas na vida, na realidade mesma de Deus, é o que significa “em nome do Pai, do Filho e do Espírito”. A palavra “Nome” indica a realidade mais profunda e a identidade do ser. Ou seja, fazer experimentar a realidade profunda de Deus e de quem é Deus.

“ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!” (v.20). Pela primeira vez aparece no evangelho de Mateus o termo mandamento, através da locução “tudo o que vos ordenei”. Jesus havia chamado seus discípulos para serem pescadores de homem. Pescar homens significa tirar da água, símbolo da morte, das situações nocivas e dar-lhes a vida. Jesus lhes indica como se tornar pescador de homens: imergindo-os no Espírito do Senhor, na realidade mais profunda do amor de Deus.

Os discípulos não são enviados a transmitir uma doutrina acerca de Deus, mas uma experiência pessoal, através do Amor e da prática da fraternidade indicadas pelas Bem-aventuranças, as quais foram assumidas pelo próprio Jesus. É importante enfatizar e insistir nisso: Jesus não envia apregoar doutrinas metafisicas. O Senhor envia sua comunidade de discípulos-missionários para que ela dê testemunho da experiência de ter sido mergulhada, imergida, entranhada (batizada) no íntimo da vida amorosa do Pai. As pessoas que se encontrarem e aderirem ao Evangelho de Jesus deverão fazer a experiência de imergir, mergulhar, entranhar-se em Deus mesmo, em seu Amor.

O evangelista pretende, com as últimas palavras de Jesus, “Estarei convosco todos os dias até que o tempo esteja pleno”, indicar uma qualidade da presença de Jesus, e não indicar um período cronológico ou determinado da presença. Jesus, na verdade, está assegurando à sua comunidade que se ela colocar em prática as bem-aventuranças, fazendo com que outros tenham igualmente acesso a elas e as pratiquem, fazendo experiência de Deus como fonte de vida e de Amor, Sua presença ao interno da comunidade será garantida. Mateus assume, novamente, o fio condutor de sua catequese, o tema do Emanuel, Deus-Conosco, realidade revelada por Jesus: através do dom de sua existência e missão, Deus está com a humanidade, caminha com ela. Deus está conosco.

O evangelista conclui seu evangelho com certa semelhança com o último livro da bíblia hebraica, 2Crônicas, com a ordem dada por Ciro, rei da Pérsia, ao povo de Israel para que retornasse e reconstruísse o Templo. Também Jesus envia os seus. Mas para irem, saírem, romperem com as mentalidades e as estruturas religiosas do judaísmo antigo, e não para construírem um templo. Porque, de acordo com a perspectiva de Mateus, o novo templo não será mais um templo estático, mas a própria comunidade Cristã, único e verdadeiro Santuário, por meio da qual se irradiam Amor, Misericórdia, Compaixão e a Ternura do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP

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