O
tempo pascal encaminha-se para sua conclusão. A liturgia da Igreja celebra
neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor. A comunidade eclesial professa
a plenitude da ressurreição do Senhor. O Senhor ressuscitado, ao retornar para
o âmbito (esfera e mundo) de Deus leva consigo a natureza humana. Ele não volta
sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade com Ele e a reorienta para seu
fim último e definitivo: a vida de Deus.
O
final do evangelho de Mateus reúne cinco versículos, através dos quais o
evangelista sintetiza toda a sua catequese. Interessante é que o catequista
bíblico não narra a ascensão de Jesus, como fazem Lucas e Marcos (ainda que
este seja um acréscimo ao final original do evangelho marcano). O evangelho de
Mateus tem como temática a teologia do Emanuel. Jesus manifesta a presença de
Deus-conosco. Desde o início de sua obra, o primeiro evangelista acena para
esta vocação-missão de Jesus, a de ser o Emanuel: a presença de Deus no meio da
humanidade.
A
pericope que solenidade da Ascensão nos apresenta para a nossa meditação é a
conclusão do Evangelho segundo Mateus. Apenas uma advertência acerca deste
texto. Para compreendê-lo, se faz necessário lançar um olhar para toda a
catequese mateana. O Primeiro Evangelho tem por finalidade “fazer
discípulos-missionários todos os povos”. Mas para que o discípulo possa
vivenciar a missão recebida por Jesus, ao final do Evangelho, deverá percorrer
o caminho do discipulado. E não poderá furtar-se ao fato de que este
discipulado-missionário é perpassado pela dinâmica da Cruz. Ora, a narrativa da
paixão, morte e ressurreição de Jesus, na perspectiva de Mateus funciona como
um dos eixos centrais de seu evangelho. O discípulo só poderá assumir a missão
depois de percorrer a vida de Jesus e tê-la como seu modelo.
Compreendida
esta peculiaridade do Evangelho segundo Mateus, por assim dizer, somos
mergulhados no horizonte do texto. O contexto amplo é o da experiência da
comunidade dos discípulos com o Senhor Ressuscitado. O contexto imediato é o do
discurso de comissionamento/envio: Jesus Ressuscitado envia os onze para
realizar o que ele já havia feito. Não se trata de um discurso de despedida,
porque Jesus não se vai, mas permanece com eles.
“Os
onze discípulos foram para a Galiléia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado”
(v.16). Os discípulos já não são Doze, mas onze. O número dos discípulos não
foi reconstituído. Doze, na simbologia do AT aludia ao antigo Israel, que
durante a pregação e missão de Jesus é chamado a se tornar o novo povo de Deus.
De fato, doze representava o novo Israel visibilizado pelos discípulos de
Jesus. Onze, significa que o Novo Israel não foi reconstituído ainda e,
portanto, a mensagem de Jesus se torna universal. Destina-se para toda a
humanidade. O indicativo da Galileia, mencionada por três vezes somente neste
relato pascal, representa a ruptura com Jerusalém. Jesus não se manifesta
ressuscitado na cidade santa, mas lá no lugar onde tudo começou. Uma oportunidade
de releitura, ressignificação da vida e da história, e de retorno à experiência
fontal com Deus, em Jesus.
Mateus
informa aos seus leitores duas coisas importantes. Primeiro, o lugar onde os
discípulos se encontram com Jesus: a montanha, na região da Galileia, que o
Senhor mesmo lhes havia indicado. E é interessante que o evangelista usa o
artigo definido “o” para indicar que não é qualquer monte. Mas Jesus não havia
indicado nenhum monte. Por que Mateus faz isto? Por que os discípulos se dirigem
para o monte? O significado não é topográfico, mas teológico.
O Monte, na
teologia bíblica é mais do que uma localização geográfica, mas um lugar
teológico, ou seja, um lugar para se fazer experiência com Deus. É o lugar da
manifestação (teofania) de YHWH. No AT Deus se manifestara muitas vezes sobre a
montanha. A Lei foi dada a Moisés na montanha do Sinai.
O monte, neste
evangelho é o monte das bem-aventuranças, onde Jesus inaugurou sua mensagem de
salvação, as bem-aventuranças. A versão mateana apresenta oito ditos de Jesus.
O número oito é o número da ressurreição do Senhor: o primeiro dia da semana,
depois do sábado, era, na verdade o oitavo dia, que na tradição das comunidade
cristãs foi reinterpretado como o Primeiro dia, o dia da nova criação realizada
por Deus através da obra de Jesus, que culmina na ressurreição.
O
evangelista diz que os discípulos sobem a montanha. Ele pretende ensinar à sua
comunidade que a experiência com Jesus Ressuscitado não é uma realidade
exclusiva de um determinado grupo, num determinado lugar. Não se trata de um
privilegio concedido dois mil anos atrás à um pequeno grupo. Mas uma
oportunidade para todos, de todos os tempos e lugares. Basta situar-se sobre o
monte das bem-aventuranças, isto é, acolher a sua mensagem de salvação que foi
formulada e assumida nas bem-aventuranças.
O
autor informa que, ao verem o Senhor, os discípulos se prostraram. Aqui, o
verbo ver não indica uma capacidade física e biológica, mas uma experiência que
se dá desde a profundidade do coração do homem. Mateus relata a ainda a o gesto
da prostração. Prostrar-se é sinal de adoração e de convicção na ressurreição e
na divindade de Jesus. Aqui, o evangelista emprega o mesmo verbo que tinha
usado para indicar a atitude dos magos quando visitaram Jesus recém-nascido em
Belém (cf. Mt 2,2): prostrar-se em adoração (gr. proskinêo). O verbo indica
adoração e sujeição a alguém.
Mas
o v.17 informa que alguns duvidavam. Mas de que coisa duvidam? Não de que Jesus
tenha ressuscitado, pois o veem. Nem que Ele esteja na condição divina, uma vez
que se prostram. Compreendamos: o evangelista usou o verbo duvidar somente uma
vez, na narrativa da caminhada sobre as águas, que indica a condição e a
realidade divina de Jesus, onde Pedro pede-Lhe que conceda também a si caminhar
sobre as águas, isto é, obter a condição divina. Naquela ocasião Jesus
consente, mas no decorrer do caminho, o discípulo sucumbe e começa a afundar ao
se dar conta das dificuldades. Pensava ele que a condição divina seria um dom
concedido por Deus, e não sabia por quais dificuldades passaria. Naquela ocasião,
Jesus o reprovou, chamando-o de homem de pouca fé. E o questionava: “Por que
duvidastes?”. Então, esta dúvida que o evangelista menciona toca a consciência
dos discípulos porque agora eles sabem por quais dificuldades passou Jesus, a
morte infame do mestre, como desprezado e amaldiçoado por ter morrido suspenso
na cruz, e, por isso, duvidam de si mesmos. São convidados a assumirem a
condição divina, mas não sabem se serão capazes de afrontarem a perseguição e,
também, a morte. Eis, porque duvidam.
A
dúvida não faz mal à comunidade. Mesmo que Jesus os tenha reprovado na atitude
de duvidar. Podemos dizer que o Jesus mateano apresenta uma característica
necessária para a sua comunidade. Para a solidez da fé, a dúvida se faz
necessária, pois o seu antídoto não é a certeza, mas a atitude do amor.
Portanto, quanto mais se duvida, mais necessidade se tem de amar. Ora, o amor,
assim como a fé, é uma aposta, uma decisão. Quanto maiores forem as dúvidas,
tanto maior a necessidade de apostar, de decidir-se. De amar. Podemos dizer que
a dúvida e a fé são companheiras inseparáveis na vida da comunidade, porque
engendram ao seu interno a capacidade de amar.
Jesus,
então, diz-lhes: “Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra”. Aqui,
o evangelista faz eco a Daniel, que retrata a personagem “Filho do Homem”, o
qual recebeu de Deus todo o poder, no céu e na terra. Mas o poder/autoridade
que Jesus recebe não é para servir-se a si mesmo, mas para colocar-se à serviço
de todos. E ao interior da comunidade de Mateus, a autoridade é a de Jesus, e
não mais a do legalismo da lei mosaica.
Jesus
continua: “ide e fazei discípulos meus todos os povos”. O evangelista resgata o
imperativo de “Ide”. É uma ordem, um mandato. Que se destina a todos os povos
(lit. todas as nações, que alude aos pagãos). Deteremos-nos um pouco sobre este
dito de Jesus. “Fazer discípulos”, significa transmitir a todos (sem excessão)
o novo modo de viver e de relacionar-se com Deus, através do modo de vida de
Jesus. Batizar significa imergir, mergulhar, ou seja, inserir as pessoas na
vida, na realidade mesma de Deus, é o que significa “em nome do Pai, do Filho e
do Espírito”. A palavra “Nome” indica a realidade mais profunda e a identidade
do ser. Ou seja, fazer experimentar a realidade profunda de Deus e de quem é
Deus.
“ensinando-os
a observar tudo o que vos ordenei!” (v.20). Pela primeira vez aparece no
evangelho de Mateus o termo mandamento, através da locução “tudo o que vos
ordenei”. Jesus havia chamado seus discípulos para serem pescadores de homem.
Pescar homens significa tirar da água, símbolo da morte, das situações nocivas
e dar-lhes a vida. Jesus lhes indica como se tornar pescador de homens:
imergindo-os no Espírito do Senhor, na realidade mais profunda do amor de Deus.
Os
discípulos não são enviados a transmitir uma doutrina acerca de Deus, mas uma
experiência pessoal, através do Amor e da prática da fraternidade indicadas
pelas Bem-aventuranças, as quais foram assumidas pelo próprio Jesus. É
importante enfatizar e insistir nisso: Jesus não envia apregoar doutrinas
metafisicas. O Senhor envia sua comunidade de discípulos-missionários para que
ela dê testemunho da experiência de ter sido mergulhada, imergida, entranhada
(batizada) no íntimo da vida amorosa do Pai. As pessoas que se encontrarem e
aderirem ao Evangelho de Jesus deverão fazer a experiência de imergir,
mergulhar, entranhar-se em Deus mesmo, em seu Amor.
O
evangelista pretende, com as últimas palavras de Jesus, “Estarei convosco todos
os dias até que o tempo esteja pleno”, indicar uma qualidade da presença de
Jesus, e não indicar um período cronológico ou determinado da presença. Jesus,
na verdade, está assegurando à sua comunidade que se ela colocar em prática as
bem-aventuranças, fazendo com que outros tenham igualmente acesso a elas e as
pratiquem, fazendo experiência de Deus como fonte de vida e de Amor, Sua
presença ao interno da comunidade será garantida. Mateus assume, novamente, o
fio condutor de sua catequese, o tema do Emanuel, Deus-Conosco, realidade revelada
por Jesus: através do dom de sua existência e missão, Deus está com a
humanidade, caminha com ela. Deus está conosco.
O
evangelista conclui seu evangelho com certa semelhança com o último livro da
bíblia hebraica, 2Crônicas, com a ordem dada por Ciro, rei da Pérsia, ao povo
de Israel para que retornasse e reconstruísse o Templo. Também Jesus envia os
seus. Mas para irem, saírem, romperem com as mentalidades e as estruturas
religiosas do judaísmo antigo, e não para construírem um templo. Porque, de
acordo com a perspectiva de Mateus, o novo templo não será mais um templo
estático, mas a própria comunidade Cristã, único e verdadeiro Santuário, por
meio da qual se irradiam Amor, Misericórdia, Compaixão e a Ternura do Senhor.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu – SP
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