sábado, 28 de janeiro de 2023

IV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 5,1-12:

 


A eucaristia dominical deste quarto domingo do tempo comum, propõe o texto bíblico de Mt 5 – 7. Na catequese mateana, esta seção apresenta o discurso inaugural de Jesus. Esta primeira catequese proposta pelo evangelista Mateus, que recorda as palavras do Senhor destinadas às multidões e aos discípulos, é de fundamental importância para a comunidade dos primeiros discípulos que está nascendo e para as próximas gerações de discípulos. Conforme os métodos e a pedagogia, próprias do autor, a saber, a recuperação das personagens históricas e da tradição religiosa de Israel, dos eventos e acontecimentos da história do povo, com maestria faz convergir todos estes elementos para sua personagem principal, Jesus. Através dele procura fazer uma releitura (reinterpretação) da Palavra de Deus, (a Torá). O evangelista, em seu propósito catequético e literário, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido novo, pleno e definitivo à Lei. Este sermão da montanha se abre com as chamadas bem-aventuranças. Elas são mais extensas em Mateus que em Lucas (cf. Lc 6), e fazem parte do gênero literário de profecia e de congratulações ou felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último alude à promessa da intervenção salvadora de Deus na história para libertar e salvar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve ao iniciar o seu primeiro discurso.

O texto já foi lido e meditado em outras ocasiões. Pode ser que ele ainda esteja bem vivo e presente em nossa memória. Por isso, procurarei concentrar a reflexão em torno de três pontos ou aspectos que o texto, na sua multiforme riqueza de sentido, oferece. Há que se ter presente que, uma das regras de interpretação é a de que o texto bíblico apresenta “setenta faces”, isto é, uma leitura e releitura sempre nova da mesma Palavra de Deus. Os três pontos por sobre os quais orbitaremos serão: 1) a reunião das multidões e discípulos ao redor de Jesus; 2) a primeira bem-aventurança acerca dos “pobres em espírito”, da qual originam-se as demais; por fim, 3) a exemplaridade de Jesus, como o realizador das bem-aventuranças. Isso posto, aproximemo-nos deste ensinamento.

Uma constatação a nível de contexto amplo do texto. O capítulo cinco inicia-se depois de haver retornado do deserto, após o batismo de João, e ter iniciado sua missão naquela Galileia das nações. Ali, chamou e reuniu um pequeno grupo de discípulos para segui-los, para, depois fazer deles pescadores de homens. Ocorre, em seguida, a transição de cenário. Não estão mais nas margens. Jesus e seus discípulos, seguidos de uma multidão (Mt 4,25), chegam a uma montanha no território da Galileia.

“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”.  Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar teológico). Ela remete o leitor-discípulo do primeiro evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH ofertou a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os seus fieis-discípulos que o que Jesus faz supera o gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado. O Senhor, ao subir a montanha, aparece como o novo Moisés. Ao sentar-se, assume a função privilegiada do mestre a ensinar. Portanto, o que virá a seguir é um ensinamento novo, que supera a lei e que a leva à sua superação. A autoridade de intérprete das escrituras está no colo e na boca de Jesus. Ele é o plenipotenciário autorizado para transmitir  e ensinar a Palavra de Deus.

Nesse sentido, abre-se espaço para o primeiro ponto da reflexão, as três categorias teológicas presentes na narrativa evangélica de Mateus, as quais percorrem a obra do começo ao fim: o grupo das multidões, dos discípulos e, embora não sejam mencionados aqui, se pode incluir o dos apóstolos, grupo que recolherá aqueles e aquelas que, enquanto discípulos, tomaram em sério as palavras e a vida de Jesus e se colocarão a vive-las.

A multidão. Esta, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre o grupo que apenas ouve falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá o passo decisivo e qualitativo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e a vida do Senhor.

Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderiram ao ensinamento de Jesus, saíram da multidão e deram o passo do discipulado, permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do Reino. No capítulo anterior, Jesus chamou os quatro primeiros colaboradores a segui-lo. Esta é a primeira tarefa do discípulo. O seguimento a um mestre, naquele tempo, implicava o início de uma nova vida na total convivência e permanência com ele, de modo a aprender e assimilar todos os seus costumes, seus hábitos, seu modo de vida, em síntese, a ética que move o mestre. Para, em seguida, receber o ensinamento teórico. Em primeiro lugar vem a assimilação do sentido da vida, para que o ensinamento ganhe força de sentido e possa ser impulso para se viver como o mestre. Com efeito, seguimento implica relação, constância, perseverança, proximidade com uma pessoa. Jesus não chama a segui-lo a fim de comunicar leis, normas, prescrições e decretos. Chama para uma experiência pessoal e relacional com sua pessoa. Somente a partir desta relação é que o discípulo poderá assumir a tarefa de pescar gente. Em primeiro lugar, deve ele fazer a experiencia com a vida e a missão de Jesus; compreendendo por onde sua vida passa. Sentar-se ao redor dele e ouvi-lo. A consequência desta atitude é a missão, ou seja, tornarem-se apóstolos. Enviados para pescar homens (cf. Mt 28,16: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei”). Mas esta condição de apóstolo/missionário não exclui a de discípulo. Para Jesus e Mateus, nada está garantido, pois o apóstolo sofre à tentação que lhe pode tirar do caminho do Reino, e, como consequência voltar para o grupo da multidão, recomeçando novamente o caminho. Por isso, deve cuidar de sempre estar ao redor das palavras e da vida do Mestre. Assimilar o sentido delas, bem como de sua vida.

Jesus começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Somos colocados diante do segundo ponto, a primeira bem-aventurança. Sabe-se que se trata de um gênero literário profético-sapiencial de felicitação. Comum na linguagem dos profetas de Israel. Em Mateus, elas são no total de oito sentenças que, ao todo, são compostas de setenta e duas palavras. Todos estes elementos simbólicos carregam de força e de sentido o texto. O número oito é utilizado ao interno das primeiras comunidades para fazer a memória da ressurreição, pois o primeiro dia da semana acaba sendo o oitavo. É o dia da nova criação estabelecida em Jesus, o ressuscitado. É uma forma de mateus dizer para a sua comunidade que o ensinamento contido nestas oito sentenças está repleto de plenitude de vida. A vida do ressuscitado se faz ver na comunidade quando ela se propões a viver as bem-aventuranças. O número setenta acena para a temática da universalidade da salvação. Esta proposta de vida, pautada pelas bem-aventuranças é aberta a todos. Cada pessoa humana pode dela participar e viver. Mas será somente a respeito da primeira que que meditaremos, visto que dela é que derivam as outras sete. As demais são um prolongamento contínuo desta aventura de se viver como pobre de espírito (de Deus).

Jesus declara serem felizes os “pobres em espirito”. É bem verdade que a tradução mais acertada desta primeira bem-aventurança, conforme nos mostra o texto grego, seria: “Bem-aventurados os pobres com o / no espírito...” Junção da preposição em + o, que resultaria na expressão “pobres no espírito”: aqueles que estão no Espírito de Deus; ou “pobres com espírito (de Deus)”. Esta categoria de pessoas pode-se admitir três interpretações: 1) São todos que, mesmo na condição da marginalização, estão em comunhão com o Espírito de Deus. São aqueles que vivem segundo o Espírito de Deus. Que estão imersos no dinamismo de vida que pertence ao próprio Deus. Isto é, vivem a partir do agir de Deus mesmo. 2) aquela pessoa dotada da virtude da humildade, (isso corresponde à interpretação dos textos de Qumran, (hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico-político). Porém, isso geraria a compreensão de que a pobreza seria condição exigida e agradável da parte de Deus. Não é isso. A pobreza não é da vontade de Deus. É fruto da injustiça humana. Por isso, qualquer interpretação desta natureza é descartada. Assim, chegamos uma outra interpretação, 3) “pobres pelo/a partir do espírito”, e aqui Jesus não estaria se referindo ao Espirito de Deus, mas ao espirito humano, isto é, o ser humano mesmo, que a partir de sua própria condição escolhem, voluntariamente entrar e assumir esta lógica de vida, nesta condição de pobreza. Mas não para se fazer mais um entre os que já existem, e, sim, ajudar a eliminar todas as causas de pobreza, marginalização, exclusão.

De uma forma mais simples: Jesus não estaria pedido para o discípulo se espoliar, mas ajudar a vestir o outro; é um convite ao discípulo a abaixar-se um pouco para ajudar o irmão a alcançar a sua condição. Promover e empoderar o outro! Mas isso só será possível mediante a abertura ao dinamismo de vida de Deus, o Seu Espírito. Assim, a primeira e a terceira interpretação desta bem-aventurança se unem e dão força de sentido uma a outra. Para poder agir “com seu próprio espírito”, a fim de ir ao encontro do outro que sofre, é necessário permitir-se ser pobre com o Espírito de Deus.  Ou seja, a partir do momento em que o discípulo permite ser pobre com o Espírito (habitar e ser habitado) de Deus, é que ele poderá ser pobre pelo seu espírito (sua vida e vontade impulsionadas pele graça de Deus) e colocar-se a serviço do outro que sofre as injustiças, marginalizações e exclusões.

 Mas, por que estes são declarados felizes por Jesus? Em virtude da atitude de se apresentarem diante de Deus com as mãos vazias, porque souberam abdicar da autossuficiência e do orgulho. Em outras palavras, são chamados, em razão de sua coragem e coerência com o querer de Deus, a cooperar com a construção do Reinado de Deus no já, no aqui e no agora; e, por isso, entrarão definitivamente, no mundo dos ressuscitados para a vida. Desta bem-aventurança emergem e se interconectam as outras sete.

Jesus, na perspectiva de Mateus, é quem inaugura este modo de ser e de existir a partir de si mesmo. Sua missão será a de colocar em prática tudo aquilo que proclamou. Será o modelo para o discípulo que desejar viver este projeto. O Senhor será o manso por excelência, pois viverá com intensidade a lógica da não-violência. A exemplo do Servo de YHWH, “não levantará a voz. Nem se fará ouvir. Não quebrará a cana rachada, nem apagará o pavio que ainda fumega” (Is 42), dando o exemplo aos discípulos para, diante das vicissitudes, violências e injustiças da história, jamais compactuem ou se sirvam da linguagem da violência, da força e das armas. Será e viverá do testemunho constante da misericórdia, o misericordioso por excelência, que revelará através de suas atitudes e opções a palavra definitiva do Pai: amor e misericórdia. Será o fazedor da paz. Viverá da fome e da sede da justiça, ou seja, do desejo de realizar o querer de Deus nesta história. Por isso, será reconhecido como um Filho de Deus. Mas abrirá também o caminho para as consequências históricas de todas estas opções e atitudes pelas quais decidiu viver, através da fidelidade absoluta ao projeto do Reino e ao Deus que chama de Pai, ainda que que tenha de se deparar e confrontar com a eventual realidade de uma morte injusta. O senhor apontará ao seu discípulo, o modo de se viver e ser autêntico seguidor do Reino. 

O Sermão da Montanha, para o leitor-ouvinte do evangelho de Mateus funciona como um caminho programático que deve tocar bem fundo na ética do discípulo do Reino; o modo de ser e agir, propostos aos que são chamados ao discipulado/seguimento ao Deus do Reino, a partir de Jesus, que, por primeiro, na concretude existencial de sua vida, se empenha por vive-las.  No discurso inaugural, bem como em toda a sua vida, Ele não prega um moralismo desencarnado da história humana. Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de vida, que tem o Pai como fundamento e modelo, e que toca a concretude da existência. As bem-aventuranças compreendem, nesse sentido, a síntese do programa de vida de Jesus e dos discípulos e discípulas de todos os tempos e lugares, de modo a viverem a plenitude da vocação recebida: seguir o Senhor e com ele pescar gente. Nesse sentido, as bem-aventuranças correspondem ao modo através qual os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares poderão vivenciar a pesca. Todos são, assim, chamados a sentar ao redor de Jesus, ouvir suas Palavras de vida plena e salvação, tomar parte de sua vida e assimilar seu projeto, a fim de viverem o discipulado-missionário a Jesus e ao Reino. Mas, para isso, é preciso sair da multidão.

No hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado, assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Será que conseguimos reconhecer os bem-aventurados de hoje?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 21 de janeiro de 2023

III DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 4,12-23

 


O evangelho proposto para a leitura e meditação neste terceiro domingo do tempo comum é retirado do quarto capítulo do evangelho de Mateus, o qual a partir do v.12 apresenta o início da missão de Jesus após retornar da experiência do deserto, após a prisão do Batista: “Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia” (v.12).

Duas informações importantes que o evangelista oferece para seus leitores e para os discípulos das gerações seguintes: a missão de Jesus inicia-se após o evento da prisão de João Batista. Por que? O profeta João, por conta de sua fidelidade à missão de preparar a chegada do Reino, encontra-se preso. Herodes o colocou na prisão após sentir-se incomodado com a denúncia feita pelo Batista, no tocante à relação impura com a mulher de seu irmão, Filipe. Com essa informação da prisão de João, o autor do evangelho quer antecipar para os membros de sua comunidade o que acontecerá com Jesus. Por conta de sua fidelidade ao Pai, à missão e ao anúncio do Reino, terá ele o mesmo destino do profeta batizador. Assim como João Batista preparou o caminho para a vinda de Jesus, o Messias, ele também abrirá a estrada para a paixão e a morte, a partir de sua prisão e morte.

A segunda informação importante diz respeito à localização geográfica que Mateus oferece (comum aos outros dois evangelhos sinóticos, Mc e Lc): a Galileia, na cidade de Cafarnaum, território de Zabulon e Neftali, duas tribos do reino de Israel do norte, que já eram dadas por extintas. Quase não se ouviam falar delas. Nazaré, então, nem no mapa daquela época constava. A mentalidade do judeu piedoso, que residia no Sul (Judá – Jerusalém) acerca das pessoas que viviam no Norte era desdém, desprezo, de rechaço, porque aquela região não conservava mais um judaísmo e uma população puros, devido à invasão assíria em 722 a.C, que povoou a Samaria com outros povos. O que causou uma miscigenação naquela região. A pureza da raça não existia mais, e um judaísmo hibrido surgia ali. Assim, aquela terra foi sempre malvista pelos terrivelmente religiosos. Jesus começa lá a sua missão; num lugar em que, um líder que se prezasse, jamais pensaria em estar.

A informação geográfica que o autor oferece não tem a intenção apresentar um ponto turístico, mas um lugar teológico. Para compreendermos o sentido teológico desta localidade é preciso entender porque o evangelista se serve do recurso das citações de cumprimento do Antigo Testamento, precisamente Is 8,23: “Terra de Zabulon, terra de Neftali, caminho do mar, região do outro lado do rio Jordão, Galileia dos pagãos! O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz e para os que viviam na região escura da morte brilhou uma luz” (v.15-16). “Galileia dos pagãos”, diz o texto do profeta, do qual o evangelista se serve. Se o leitor permanecer somente no enunciado, não será capaz de assimilar a profundidade da mensagem que o texto traz. O termo “pagãos” deve ser traduzido por “nações” (gr. ἔθνος/etnos) por pagãos. Mateus fala de uma Galileia das nações porque, conforme sua intenção teológica, a Boa Notícia que Jesus vem proclamar é destinada à todas as pessoas, de todos os lugares, sem distinção. O desígnio divino de salvação é destinado a todos!

No v.17, Mateus recupera o conteúdo da missão de Jesus, precedido pelo convite à conversão: “Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. O convite/chamado à conversão precisa ser compreendido a partir da intenção do evangelista. Na língua grega existem duas formas para o verbo converter: a primeira, relacionada a ação de retorno para Deus, da parte do homem. Esta forma adquire um sentido e significado mais religioso. Porém, a segunda forma, mais utilizada pelo evangelista, se refere à atitude da mudança da mentalidade (gr. μετανοέω/metanoêo). Por que o autor prefere a segunda forma do verbo converter, ligado à mudança da mentalidade, e não a primeira relacionada à atitude da reorientação à Deus? Para Mateus, não há necessidade que o discípulo realize a reorientação da vida à Deus porque em Jesus, Deus se faz conosco. É o Emanuel. Deus que se dirige a cada pessoa humana. Esta é a grande revelação que o evangelista transmite: Jesus é o Deus-Conosco. Ora, se ele é Deus-Conosco, não há mais porque busca-lo. Antes, acolhê-lo. Se Jesus é Deus-Conosco, não necessitará mais com que o homem viva para Deus, mas em Deus e, a partir Dele e com Ele dirigir-se aos outros. É o que ilustra o evangelista com a cena, a seguir.

“Quando Jesus andava à beira do mar da Galileia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores” (v.18). Jesus, ao iniciar seu ministério na Galileia toma a atitude de constituir um pequeno grupo. Trata-se de um gesto institucional que marca o começo da missão. Ele chama dois pescadores, Simão e André, irmãos; e outros dois irmãos, Tiago e João, consertadores de redes. Evidentemente, os quatro exerciam a atividade da pesca. Estavam envolvidos neste contexto. A ação de Jesus diante destes quatro é ritmada pelo verbo “ver”, que é o mesmo verbo utilizado pelo autor do livro do Gênesis, que, ao narrar a criação, diz que “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). Igualmente, Jesus vê naqueles quatro homens a característica principal e indispensável para a sua comunidade: a capacidade para a fraternidade, isto é, serem irmãos.

A pesca também era um trabalho que marginalizava as pessoas, e isso, devido a duas razões: a pesca acontecia no lago ou no mar, e este ambiente era considerado impuro, porque o mar recolhia a força simbólica de tudo aquilo que era oposição e antagônico ao projeto de Deus. Por consequência produzia peixes bons e ruins; estes eram considerados impuros. O pescador acabava se contaminando com a impureza destes peixes, no processo da separação dos peixes. Os pescadores eram pessoas que via de regra também carregavam e pagavam o preço da impureza ritual, e, por isso, eram descriminados, conforme a mentalidade religiosa equivocada. Assim, ao chamar os quatro pescadores, Jesus os retira daquela situação de impureza, mas também pretende ensinar que aquela mentalidade era equivocada.

A missão messiânica de Jesus começa nas margens de um lago/mar, entre os que se encontravam nas margens da vida e da história, no intuito de mostrar que desta Boa Notícia de Salvação ninguém fica de fora; e que procura, chama e acolhe aqueles que se encontram nas margens da vida, com seus limites e suas imperfeições, para fazê-los participar de sua vida e missão. Isso precisa ser impactante para os leitores do evangelho de todos os tempos e lugares, porque ele poderia muito bem ter começado sua missão numa sinagoga, numa escola rabínicas da época, ou até mesmo no Templo de Jerusalém; e poderia ter reunido ao seu redor os mais exemplares religiosos da época. Ele escolheu quatro tipos de pessoas que nada tinham para lhe dar, e não os terrivelmente religiosos. Porque Jesus sabe que estas pessoas são totalmente refratárias ao convite à conversão, ao novo e à mudança da atitude; pensam-se superiores aos demais devido ao estilo de vida que levam. Creem-se já salvos e justificados. Outorgam para si a condição de senhores e ídolos dos outros.

“Jesus disse a eles: Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens”. A diferença do costume judaico, em que o discípulo escolhia o mestre, o Jesus de Mateus quebra esse costume, escolhe e chama para segui-lo, a fim de fazê-los pescadores de homens. Ele não convida a estudar a Lei/Torah, mas à uma ação prática que estava perfeitamente dentro do ambiente vital deles. Eram pescadores. Sabiam o que significava pescar o peixe: tirar este animal do seu habitat natural e traze-lo para terra, onde se encontram com a morte. Mas os seres humanos não sobrevivem na água, pelo contrário, correm risco de vida. Por isso, Jesus os chama para fazer o contrário: pescar homens. Ele está transmitindo aos discípulos a missão de salvar as pessoas que se encontram nas situações de morte (simbolizadas pela água, o mar), e transporta-las para a vida. A missão de trazer para a vida os vivos que podem se encontrar submersos nas situações de morte. Os quatro primeiros seguem-no. Deixam suas seguranças (as barcas, as redes e o conforto da casa, simbolizado pela figura do pai, no caso dos irmãos Zebedeu); o evangelista não narra uma só palavra deles a Jesus, não colocam suas condições, não pedem nada. 

O texto se conclui com um breve sumário da atividade do Senhor: “Jesus andava por toda a Galileia, ensinando em suas sinagogas, pregando o Evangelho do Reino e curando todo tipo de doença e enfermidade do povo” (v.23). Trata-se de uma ação libertadora de Jesus. Pela primeira vez o evangelista utiliza o termo evangelho, isto é, Boa Notícia. Ela é anunciada numa sinagoga, lugar do estudo e da proclamação da Palavra. É uma forma muito sutil de Mateus ensinar que aquele lugar já não correspondia ao projeto de Deus. Ali, Jesus ensina e prega, e nunca será visto rezando ou estudando a Palavra naquele lugar. Mas lá, ao proclamar e ensinar a Boa Notícia, realiza, através de seu ensinamento a libertação das pessoas do peso da lei, e da imagem equivocada de Deus, que as lideranças e a instituição religiosa transmitiam. É interessante perceber a fineza do evangelista nesta polêmica: ele ensina através desta cena que Jesus está eliminando, com sua missão, a enfermidade da visão e da experiência equivocadas a respeito de Deus.

Permitamos que o Senhor passe pelas nossas margens, ressignifique sempre e constantemente nossas vidas, a fim de que possamos recuperar e ressignificar a vida dos que se encontram nas situações contrárias de vida, à margem da história e da realidade.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 14 de janeiro de 2023

II DOMINGO DO TEMPO COMUM – Jo 1,29-34:

 


O segundo domingo do tempo comum, apresenta para a leitura e meditação eclesial o primeiro capítulo do evangelho segundo João. Há poucos dias, a Igreja celebrava o Batismo do Senhor, e as personagens do Batista e de Jesus retornam, mas sob a perspectiva do Quarto Evangelho.

A narrativa de Jo 1,29-34, encontra-se no Livro dos Sinais – a primeira sessão do Quarto Evangelho – e corresponde à semana inaugural do ministério de Jesus. O autor se põe a narrar os acontecimentos do segundo dia da missão do Senhor, a partir do testemunho do profeta João Batista. O tema do testemunho é muito importante nos escritos joaninos. Testemunhar (gr. μαρτυρέω/Martirêo) significa atestar, dar fé sobre algo ou alguém. Todavia, só pode dar testemunho, e ser considerada uma testemunha qualificada, aquele que fez uma experiência de vida com Jesus, de acordo com o evangelista. Qual o conteúdo do testemunho de João, o Batista? O v.29 responde: Jesus como o Cordeiro que tira o pecado do mundo. Esta afirmação revela duas dimensões da identidade de Jesus: cordeiro e Filho de Deus, porque batiza com o Espírito de Deus.

O evangelista se apropria do ambiente levítico-cultual dos sacrifícios de expiação dos pecados, realizados no templo de Jerusalém. Os judeus costumavam oferecer, diariamente, no Templo, bois, cordeiros, touros para expiar os pecados. As vítimas oferecidas em sacrifícios tinham função expiatória e finalidade reconciliadora. Esta era a mentalidade religiosa do judaísmo vivido por Jesus. O autor do Quarto Evangelho, ao transmitir sua catequese para sua comunidade, se serve do texto de Is 53,4-12, no qual o profeta fala da ação do Servo Sofredor de YHWH, que carrega sobre si os pecados do povo. Tentando entrar no horizonte de sentido que o autor deseja transmitir, uma pessoa que fosse capaz de reconciliar as pessoas com Deus poderia ser comparada ao cordeiro do sacrifício. Mas a imagem do cordeiro pode lembrar também o cordeiro pascal (cf. “Cristo, nossa páscoa”, i. é, cordeiro pascal, em 1Cor 5,7; Jo 19,14.33.37), para as comunidades cristãs nascentes. Não se pode perder os dois horizontes de leitura e de interpretação do texto: o tempo narrado e o tempo da comunidade.

As duas imagens – Servo sofredor e cordeiro do sacrifício – serviram de base para que o evangelista, através do testemunho do profeta Batista, dissesse para sua comunidade e para as gerações seguintes algo acerca da identidade do Cristo. Ele eliminou o pecado do mundo. Mais ainda, para o evangelista João, Jesus é o Salvador não somente por tirar o pecado da realidade do mundo, mas por torna-se solidário com aqueles sobre os quais pesa o pecado. Ele mesmo sofre debaixo desse peso, não como culpado, pecador ou castigado em lugar da humanidade, mas como pessoa que, por sua fidelidade ao Pai, ainda que passando pela morte, abre um novo modo de existir.

O pecado para João é a atitude de rejeição a Jesus a ao projeto de Deus, enquanto resposta definitiva ao Seu amor. Desse “pecado fundamental” é que nascem os demais pecados, que são frutos da rejeição de Jesus e sua prática libertadora enquanto cordeiro e servo. Quem não o reconhece está no pecado e nas trevas (cf. 1,10). Por isso, o “pecado” que o Cordeiro-Jesus retira não deve ser entendido no sentido individualista e moralista (os pecados da listinha). É o pecado “do mundo”. Mundo entendido, aqui, enquanto realidade contrária ao querer de Deus; tudo aquilo que possa indicar um projeto oposto ao amor de Deus, que gera sempre uma realidade pecaminosa (ruptura) que parece dominar a convivência humana e a relação com Deus; um projeto destrutivo, que desde a origem da humanidade é obra do “príncipe deste mundo” — o qual, porém, é vencido por Jesus (cf. 14,30; 16,11.33). A vitória do Senhor se prolonga na sua comunidade a partir da Páscoa, quando é dado o Espírito para tirar o pecado do mundo (20,19-23).

O evangelista e o Batista querem ensinar, com isso, que, Jesus é o substituto e a superação de todo um sistema religioso-ritual do judaísmo antigo. Será Ele, através do dom de sua vida e obra, o encarregado de levar para fora do mundo, isto é, a realidade criada e a existência humana (o sonho original que Deus tem para seus filhos), toda a logica da ruptura, da descomunhão; aquilo que pode separar a pessoa humana de uma autêntica e profunda relação com Deus. Jesus, na perspectiva do autor do evangelho e do profeta João, será definitivamente aquele que retirará da história tudo aquilo que pode separar o ser humano e Deus, em suas relações. Mas isso só pode acontecer porque este Jesus age através do Espirito de Deus, e é seu portador.

O Batista declara, testemunhando, “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele” (v.32). A descida do Espírito sobre ele representa sua unção como Messias. O simbolismo da pomba que desce e permanece em Jesus tem este significado: Jesus é a morada do Espírito, seu lugar natural e querido.

O testemunho de João é mais profundo ainda. O Espírito de Deus “permanece” sobre Jesus. Ou seja, não se trata de um dom passageiro. O verbo permanecer (gr. μένω/mêno) é outro termo forte do vocabulário do Quarto Evangelho, porque ele abre espaço para o tema da habitação de Deus em Jesus, e, como consequência, a Sua “in-habitação” – mediante o Espírito – em cada pessoa humana, que se abre ao dom de Deus. Jesus, na condição de cordeiro, carrega o pecado para fora do mundo, para depois  poder levar consigo toda pessoa à condição de filho de Deus.

A intenção do evangelista, ao colocar este testemunho nos lábios de João, o Batista é a de ensinar à sua comunidade às gerações futuras que não são mais os ritos do sistema da antiga lei capazes de levar o homem à uma experiencia autêntica com Deus, mas, agora, a vida de Jesus de Nazaré, que através de sua existência e práxis histórica, libertadora e salvífica religa a humanidade com o projeto de Deus.

Que Jesus temos testemunhado? Corresponde, Ele, com o mesmo testemunho de João? Ou temos testemunhado um Jesus dissonante do Evangelho e da fé das primeiras comunidades? Minha vida tem sido o lugar por sobre o qual o Espírito de Deus e de Jesus paira e permanece, assim como aconteceu com o Senhor? Tenho permitido com que ele carregue para fora de mim tudo aquilo que pode ser obstáculo para que o amor e o querer de Deus em mim tenha espaço? Tenho cooperado com Ele na missão de retirar o pecado  da realidade e da história humana, das relações?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 7 de janeiro de 2023

SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR - Mt 2,1-12:


O evangelho proposto para a solenidade da Epifania do Senhor é retirado da catequese mateana, Mt 2,1-12. O texto bíblico situa-se ao interno das narrativas da infância de Jesus. Os textos referentes à infância de Jesus não possuem a finalidade de ser uma crônica exata dos acontecimentos e dos fatos. Portanto, são teologias (cristologias, soteriologia) acerca de Jesus. Isso posto, torna-se seguro afirmar que a narrativa proposta para a liturgia de hoje é uma teologia narrativa muito bem elaborada por Mateus. O autor, através dos versículos de hoje, pretende responder para a comunidade quem é esse Jesus, a fim de iluminar lhes o sentido da fé e da vida.

Mateus, ao escrever o seu Evangelho, serve-se de todo o patrimônio religioso e histórico do povo de Israel. Adotando as técnicas rabínicas de escrita e de explicação, opera uma releitura das tradições religiosas e históricas do povo. Este método recebe o nome de midrash (a reinterpretação dos textos legislativos e narrativos da Torah). Para o evangelista, Jesus assume e revive, através de sua vida, ensinamento e missão, toda a história e toda a tradição de seu povo. O catequista Mateus faz incidir sobre a sua personagem principal, Jesus, todas as personagens, as tradições e as história de Israel na intenção de fazer crescer em sua comunidade a convicção de Ele é o Messias enviado por Deus.

O texto proposto para hoje enquadra-se naquele estilo dito acima e nas intenções do evangelista. A narrativa apresenta a visita de certos viajantes inusitados, os quais, conforme o pensamento religioso da época, não eram bem vistos: magos. Sábios estrangeiros, provenientes do Oriente pagão.

Mateus, para construir esta narrativa, se serve de um texto do Antigo Testamento, a visita da rainha de Sabá ao sábio rei Salomão, o descendente de Davi, em 1Rs 10 (// 2Cr 9). Ela se dirige à Judá para colocar a prova a sabedoria de Salomão. A sabedoria de Deus, da qual Salomão compartilhava, atraia até mesmo os estrangeiros. Com estes textos do AT, seus autores querem reforçar a ideia de a Sabedoria do Deus de Israel não conhecia limites. Não haveria fronteiras para ela. Mas, em sua narrativa evangélica, o evangelista opera uma superação em relação aos textos de 1Rs 10 e 2Cr 9): na visita dos estrangeiros do Oriente, são eles que se deixam interpelar e se render pela sabedoria de Deus revelada naquele pequeno recém-nascido. Isto posto, podemos contemplar narrativa bíblica.

“Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’” (v. 1-2). Os dois primeiros versículos introduzem a narrativa no tempo e no espaço. Mateus bebe da mesma tradição de Lucas e confirma o nascimento de Jesus, em Belém, no período de Herodes Antípas (rei asmoneu; um usurpador). Mas o que deve chamar a nossa atenção é a chegada de três estrangeiros de profissão duvidosa, o que já surpreenderia os leitores do evangelho, provocando certa inquietação, por ser a comunidade mateana composta de judeus-cristãos. O evangelista usa o termo “mago” (gr. μάγος). Pessoas relacionadas com esse “mundo” e estas “práticas” não eram bem vistos segundo a Lei de Israel. A magia e quem a praticava eram reprovadas ao interno do povo. Deveriam ser banidos da vida social quem a praticasse, de acordo com a prescrição de Lv 19, e no Talmud ainda se lê, “aquele que aprende qualquer coisa relacionado à magia deverá morrer”.

Os primeiros a receberem a boa notícia do nascimento de Jesus Messias são os estrangeiros, pagãos e de profissão duvidosa. Há aqui uma mensagem importante a ser retida do texto. A salvação, que representa todo o projeto de vida e bênçãos que Deus oferece em primeiro lugar ao povo de Israel, não é um privilégio exclusivo a este, mas inclusivo, e destinado a todos, sem distinção.

Ora, Mateus identifica os visitantes como forasteiros, estrangeiros. Estes, no tempo e na sociedade de Jesus, e na qual encontra-se inserida a comunidade de Mateus, não eram bem vistos. Eram pessoas a serem temidas. Todavia, ao interno dos Evangelhos, os estrangeiros não são vistos sob perspectivas negativas, antes, positiva pois são destinatários do projeto salvífico de Deus. Eles não devem ser vistos como aproveitadores e usufruidores, que só retiram e tomam dos outros, como nossa sociedade atual pensa e teme, mas como pessoas que podem oferecer algo. E o que estas três personagens oferecem é o testemunho de uma boa noticia de salvação, que se estende a todos. Esta é a luz salvadora de Deus, que os atrai, ilumina seus caminhos e os envolve. Estão iluminados por esta luz salvadora e dela se fazem testemunhas!

Mas, diante de tal notícia, Herodes, o rei posto, se perturba. “O rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém” (v.3) Mateus acrescenta que também Jerusalém compartilha do mesmo estado de ânimo. O tetrarca e a cidade santa são símbolos do poder, da dominação, da tirania. Se perturbam porque sentem-se ameaçados em sua zona de conforto. Pressentiam o surgimento de um novo tempo, que novas formas de relações estavam sendo gestadas, uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus estava começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer.

Acontece que esta salvação não reside em Jerusalém, centro do poder religioso e político do povo. Consultando as elites religiosas, os peritos nas Escrituras Sagradas, obtém-se a informação sobre o lugar do nascimento do novo rei: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo” (v.6). Mateus se serve da profecia antiga de Miqueias, a qual situa em Belém o acontecimento. Fora de Jerusalém, portanto. Chama-nos a atenção o fato de que o medo e a perturbação foram tantas para Herodes e seus cortesãos, que eles precisam consultar as escrituras, como se nada soubessem a esse respeito. Na verdade, preferem ignorar. Deixam-se envolver pela sombra do poder a qualquer preço e inescrupuloso. Por isso, encontram-se na escuridão. Ali a estrela não brilha; não encontram o novo rei e sua luz. Só encontram a falsidade, a tirania, o poder e as trevas. Interessante. Mateus não informa que a luz que havia guiado os visitantes pagãos continuava brilhando sobre a cidade santa. Ao contrário, somente quando eles se afastam de Jerusalém e da influência de Herodes é que podem novamente contemplar a luz que lhes havia atraído. Seguiram, então, o caminho.

Ao retomarem a viagem, a estrala/luz volta a brilhar e a atraí-los. A alegria os assalta novamente (v.9-10). Somente afastando de toda a estrutura de um poder viciado pela dominação, pelas forças de morte e de trevas, e, colocando-se distantes das realidades que exalam uma experiência equivocada de Deus, perpassada pela escuridão, conseguem, pois, contemplar novamente aquela luz que os atraia e chegam ao lugar indicado. O evangelista descreve a atitude dos visitantes: “Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra” (v.11). O autor utiliza o verbo “adorar” (gr. προσκυνέω / proskinêo), aplicado somente para a atitude do homem em relação à Deus. Ele quer ensinar para a sua comunidade que os magos, estudiosos e estrangeiros pagãos reconheceram no menino a presença de Deus. Fizeram, ali, uma nova experiência com o divino. Contemplaram naquela criança uma sabedoria que não se apaga com o tempo. Experimentaram uma nova forma e um novo lugar de relacionamento com o divino: a humanidade. Viram, sentiram e experimentaram algo de totalmente novo naquela cena, que nunca haviam experimentado antes.

Os visitantes apresentam seus dons àquela família: ouro, incenso e mirra. Uma correta interpretação se faz necessária. Muitas vezes se romantizou demais a oferta dos magos, aludindo aos sofrimentos inerentes a vida de Jesus, ou mesmo sua divindade ou realeza. Os presentes não querem aludir ao destino de Jesus. Eles simbolizam a vocação que Israel não consegui responder, de acordo com Mateus. O ouro está ligado à realeza de Deus, e, na tradição de Israel, o povo é vocacionado a se tornar um “povo de reis”. O incenso, é a oferta que os sacerdotes oferecem no templo; as Escrituras afirmam que Israel é convocado por YHWH a ser um “povo sacerdotal”. A mirra é um perfume utilizado nas núpcias do casal; segundo a tradição profética, Israel é a figura da esposa desposada por Deus, o marido. De acordo com o evangelista, este projeto de “povo de reis, sacerdotal, e esponsal”, não pertence mais tão somente à Israel, mas, nos magos que trazem estas ofertas, encontra-se aberto a todas as nações. É uma vocação dirigida a toda a humanidade através da manifestação que Deus realiza em Jesus. É a missão e história que Jesus assumirá através da exemplaridade de sua vida. Ele será o pleno realizador da missão que o Israel antigo não conseguiu cumprir.

“Avisados em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho” (v. 12). Os visitantes são avisados em sonho, um lugar privilegiado para sentir o que Deus quer comunicar, é o âmbito da revelação do querer do projeto de Deus, conforme ensina a tradição bíblica. Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com o próximo. Para viver bem a nova relação com Deus é necessário desviar-se das antigas rotas e estruturas. Os viajantes não retornam pelo caminho de Herodes, isto é, não compactuam com sua mentalidade apegada, idolátrica em relação ao poder e as estruturas de dominação e de morte. A luz e a presença da Sabedoria de Deus com que tiveram contato através daquele menino, os fez ver que a sabedoria de Herodes não leva a lugar nenhum. O caminho da sabedoria divina, que é um novo modo de ser, de existir e de se relacionar com Deus e com os irmãos, este sim, leva para um outro caminho, ou seja, para a constante conversão. Este é o “outro caminho” para o qual o evangelista acena através da atitude dos magos, a retomarem a viagem.

O texto se aplica à vida do discípulo e da comunidade. Por isso, ao celebrar a epifania, o mistério de Deus que se revela e a sua salvação, para todos, sem exclusão, devem o discípulo e a comunidade crescerem na consciência de que esta salvação e este amor misericordioso de Deus através de Jesus, deve ser manifestado, agora, através da vida de cada discípulo e de cada comunidade. A vida do discípulo e da Igreja devem ser o espaço da epifania do amor e da misericórdia de Deus para todos. A comunidade não é apenas chamada a ser uma igreja para todos, mas uma Igreja que não exclua ninguém de seu meio. O discípulo não pode se contentar em revelar o amor Deus através de Jesus somente aos seus iguais, ao seu restrito círculo intelectual ou ideológico, ao clubinho. Não pode haver espaço no coração e na mentalidade do discípulo para a mentalidade/caminho de Herodes, que vê o outro como ameaça; que somente seu espaço ou zona de domínio, influência e poder (a qualquer custo) é o que vale e o que garante segurança. O caminho deste é a autossuficiência, a arrogância, a prepotência, a intolerância e, por fim, exclusão, a opressão, a morte (quer seja de um ou de todos). Há que se trilhar outro caminho.

Dentre os ensinamentos que o evangelho da solenidade da Epifania oferece, chamo a atenção para três: 1) A salvação não é um privilégio exclusivo de poucos, mas inclusivo para todos. 2) É possível aprender sobre Deus – realizar uma experiência com Ele – também com os que são de fora; com os que pensam e vivem de modo diverso ao meu, ou que concebo ser “correto”. O outro que pensa e vive diferente não é um inimigo a ser vencido, um oponente a ser derrotado, um adversário ou “herege” a ser combatido. O outro é um irmão. E, comigo, chamado igualmente a participar deste projeto de vida plena revelado integralmente a todos. Indistintamente. E, como irmãos, tomarem sempre um outro e novo caminho. Por fim, 3) sempre há o convite para percorrer a caminhada por outro caminho, o Deus em Jesus, e não o de Herodes.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.