A eucaristia dominical deste quarto domingo do tempo comum, propõe o texto bíblico de Mt 5 – 7. Na catequese mateana, esta seção apresenta o discurso inaugural de Jesus. Esta primeira catequese proposta pelo evangelista Mateus, que recorda as palavras do Senhor destinadas às multidões e aos discípulos, é de fundamental importância para a comunidade dos primeiros discípulos que está nascendo e para as próximas gerações de discípulos. Conforme os métodos e a pedagogia, próprias do autor, a saber, a recuperação das personagens históricas e da tradição religiosa de Israel, dos eventos e acontecimentos da história do povo, com maestria faz convergir todos estes elementos para sua personagem principal, Jesus. Através dele procura fazer uma releitura (reinterpretação) da Palavra de Deus, (a Torá). O evangelista, em seu propósito catequético e literário, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido novo, pleno e definitivo à Lei. Este sermão da montanha se abre com as chamadas bem-aventuranças. Elas são mais extensas em Mateus que em Lucas (cf. Lc 6), e fazem parte do gênero literário de profecia e de congratulações ou felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último alude à promessa da intervenção salvadora de Deus na história para libertar e salvar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve ao iniciar o seu primeiro discurso.
O texto já foi lido e meditado em outras ocasiões. Pode ser que ele ainda esteja bem vivo e presente em nossa memória. Por isso, procurarei concentrar a reflexão em torno de três pontos ou aspectos que o texto, na sua multiforme riqueza de sentido, oferece. Há que se ter presente que, uma das regras de interpretação é a de que o texto bíblico apresenta “setenta faces”, isto é, uma leitura e releitura sempre nova da mesma Palavra de Deus. Os três pontos por sobre os quais orbitaremos serão: 1) a reunião das multidões e discípulos ao redor de Jesus; 2) a primeira bem-aventurança acerca dos “pobres em espírito”, da qual originam-se as demais; por fim, 3) a exemplaridade de Jesus, como o realizador das bem-aventuranças. Isso posto, aproximemo-nos deste ensinamento.
Uma constatação a nível de contexto amplo do texto. O capítulo cinco inicia-se depois de haver retornado do deserto, após o batismo de João, e ter iniciado sua missão naquela Galileia das nações. Ali, chamou e reuniu um pequeno grupo de discípulos para segui-los, para, depois fazer deles pescadores de homens. Ocorre, em seguida, a transição de cenário. Não estão mais nas margens. Jesus e seus discípulos, seguidos de uma multidão (Mt 4,25), chegam a uma montanha no território da Galileia.
“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”. Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar teológico). Ela remete o leitor-discípulo do primeiro evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH ofertou a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os seus fieis-discípulos que o que Jesus faz supera o gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado. O Senhor, ao subir a montanha, aparece como o novo Moisés. Ao sentar-se, assume a função privilegiada do mestre a ensinar. Portanto, o que virá a seguir é um ensinamento novo, que supera a lei e que a leva à sua superação. A autoridade de intérprete das escrituras está no colo e na boca de Jesus. Ele é o plenipotenciário autorizado para transmitir e ensinar a Palavra de Deus.
Nesse sentido, abre-se espaço para o primeiro ponto da reflexão, as três categorias teológicas presentes na narrativa evangélica de Mateus, as quais percorrem a obra do começo ao fim: o grupo das multidões, dos discípulos e, embora não sejam mencionados aqui, se pode incluir o dos apóstolos, grupo que recolherá aqueles e aquelas que, enquanto discípulos, tomaram em sério as palavras e a vida de Jesus e se colocarão a vive-las.
A multidão. Esta, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre o grupo que apenas ouve falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá o passo decisivo e qualitativo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e a vida do Senhor.
Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderiram ao ensinamento de Jesus, saíram da multidão e deram o passo do discipulado, permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do Reino. No capítulo anterior, Jesus chamou os quatro primeiros colaboradores a segui-lo. Esta é a primeira tarefa do discípulo. O seguimento a um mestre, naquele tempo, implicava o início de uma nova vida na total convivência e permanência com ele, de modo a aprender e assimilar todos os seus costumes, seus hábitos, seu modo de vida, em síntese, a ética que move o mestre. Para, em seguida, receber o ensinamento teórico. Em primeiro lugar vem a assimilação do sentido da vida, para que o ensinamento ganhe força de sentido e possa ser impulso para se viver como o mestre. Com efeito, seguimento implica relação, constância, perseverança, proximidade com uma pessoa. Jesus não chama a segui-lo a fim de comunicar leis, normas, prescrições e decretos. Chama para uma experiência pessoal e relacional com sua pessoa. Somente a partir desta relação é que o discípulo poderá assumir a tarefa de pescar gente. Em primeiro lugar, deve ele fazer a experiencia com a vida e a missão de Jesus; compreendendo por onde sua vida passa. Sentar-se ao redor dele e ouvi-lo. A consequência desta atitude é a missão, ou seja, tornarem-se apóstolos. Enviados para pescar homens (cf. Mt 28,16: “Ide e fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei”). Mas esta condição de apóstolo/missionário não exclui a de discípulo. Para Jesus e Mateus, nada está garantido, pois o apóstolo sofre à tentação que lhe pode tirar do caminho do Reino, e, como consequência voltar para o grupo da multidão, recomeçando novamente o caminho. Por isso, deve cuidar de sempre estar ao redor das palavras e da vida do Mestre. Assimilar o sentido delas, bem como de sua vida.
Jesus começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Somos colocados diante do segundo ponto, a primeira bem-aventurança. Sabe-se que se trata de um gênero literário profético-sapiencial de felicitação. Comum na linguagem dos profetas de Israel. Em Mateus, elas são no total de oito sentenças que, ao todo, são compostas de setenta e duas palavras. Todos estes elementos simbólicos carregam de força e de sentido o texto. O número oito é utilizado ao interno das primeiras comunidades para fazer a memória da ressurreição, pois o primeiro dia da semana acaba sendo o oitavo. É o dia da nova criação estabelecida em Jesus, o ressuscitado. É uma forma de mateus dizer para a sua comunidade que o ensinamento contido nestas oito sentenças está repleto de plenitude de vida. A vida do ressuscitado se faz ver na comunidade quando ela se propões a viver as bem-aventuranças. O número setenta acena para a temática da universalidade da salvação. Esta proposta de vida, pautada pelas bem-aventuranças é aberta a todos. Cada pessoa humana pode dela participar e viver. Mas será somente a respeito da primeira que que meditaremos, visto que dela é que derivam as outras sete. As demais são um prolongamento contínuo desta aventura de se viver como pobre de espírito (de Deus).
Jesus declara serem felizes os “pobres em espirito”. É bem verdade que a tradução mais acertada desta primeira bem-aventurança, conforme nos mostra o texto grego, seria: “Bem-aventurados os pobres com o / no espírito...” Junção da preposição em + o, que resultaria na expressão “pobres no espírito”: aqueles que estão no Espírito de Deus; ou “pobres com espírito (de Deus)”. Esta categoria de pessoas pode-se admitir três interpretações: 1) São todos que, mesmo na condição da marginalização, estão em comunhão com o Espírito de Deus. São aqueles que vivem segundo o Espírito de Deus. Que estão imersos no dinamismo de vida que pertence ao próprio Deus. Isto é, vivem a partir do agir de Deus mesmo. 2) aquela pessoa dotada da virtude da humildade, (isso corresponde à interpretação dos textos de Qumran, (hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico-político). Porém, isso geraria a compreensão de que a pobreza seria condição exigida e agradável da parte de Deus. Não é isso. A pobreza não é da vontade de Deus. É fruto da injustiça humana. Por isso, qualquer interpretação desta natureza é descartada. Assim, chegamos uma outra interpretação, 3) “pobres pelo/a partir do espírito”, e aqui Jesus não estaria se referindo ao Espirito de Deus, mas ao espirito humano, isto é, o ser humano mesmo, que a partir de sua própria condição escolhem, voluntariamente entrar e assumir esta lógica de vida, nesta condição de pobreza. Mas não para se fazer mais um entre os que já existem, e, sim, ajudar a eliminar todas as causas de pobreza, marginalização, exclusão.
De uma forma mais simples: Jesus não estaria pedido para o discípulo se espoliar, mas ajudar a vestir o outro; é um convite ao discípulo a abaixar-se um pouco para ajudar o irmão a alcançar a sua condição. Promover e empoderar o outro! Mas isso só será possível mediante a abertura ao dinamismo de vida de Deus, o Seu Espírito. Assim, a primeira e a terceira interpretação desta bem-aventurança se unem e dão força de sentido uma a outra. Para poder agir “com seu próprio espírito”, a fim de ir ao encontro do outro que sofre, é necessário permitir-se ser pobre com o Espírito de Deus. Ou seja, a partir do momento em que o discípulo permite ser pobre com o Espírito (habitar e ser habitado) de Deus, é que ele poderá ser pobre pelo seu espírito (sua vida e vontade impulsionadas pele graça de Deus) e colocar-se a serviço do outro que sofre as injustiças, marginalizações e exclusões.
Mas, por que estes são declarados felizes por Jesus? Em virtude da atitude de se apresentarem diante de Deus com as mãos vazias, porque souberam abdicar da autossuficiência e do orgulho. Em outras palavras, são chamados, em razão de sua coragem e coerência com o querer de Deus, a cooperar com a construção do Reinado de Deus no já, no aqui e no agora; e, por isso, entrarão definitivamente, no mundo dos ressuscitados para a vida. Desta bem-aventurança emergem e se interconectam as outras sete.
Jesus, na perspectiva de Mateus, é quem inaugura este modo de ser e de existir a partir de si mesmo. Sua missão será a de colocar em prática tudo aquilo que proclamou. Será o modelo para o discípulo que desejar viver este projeto. O Senhor será o manso por excelência, pois viverá com intensidade a lógica da não-violência. A exemplo do Servo de YHWH, “não levantará a voz. Nem se fará ouvir. Não quebrará a cana rachada, nem apagará o pavio que ainda fumega” (Is 42), dando o exemplo aos discípulos para, diante das vicissitudes, violências e injustiças da história, jamais compactuem ou se sirvam da linguagem da violência, da força e das armas. Será e viverá do testemunho constante da misericórdia, o misericordioso por excelência, que revelará através de suas atitudes e opções a palavra definitiva do Pai: amor e misericórdia. Será o fazedor da paz. Viverá da fome e da sede da justiça, ou seja, do desejo de realizar o querer de Deus nesta história. Por isso, será reconhecido como um Filho de Deus. Mas abrirá também o caminho para as consequências históricas de todas estas opções e atitudes pelas quais decidiu viver, através da fidelidade absoluta ao projeto do Reino e ao Deus que chama de Pai, ainda que que tenha de se deparar e confrontar com a eventual realidade de uma morte injusta. O senhor apontará ao seu discípulo, o modo de se viver e ser autêntico seguidor do Reino.
O Sermão da Montanha, para o
leitor-ouvinte do evangelho de Mateus funciona como um caminho programático que
deve tocar bem fundo na ética do discípulo do Reino; o modo de ser e agir,
propostos aos que são chamados ao discipulado/seguimento ao Deus do Reino, a
partir de Jesus, que, por primeiro, na concretude existencial de sua vida, se
empenha por vive-las. No discurso
inaugural, bem como em toda a sua vida, Ele não prega um moralismo desencarnado
da história humana. Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de
vida, que tem o Pai como fundamento e modelo, e que toca a concretude da
existência. As bem-aventuranças compreendem, nesse sentido, a síntese do
programa de vida de Jesus e dos discípulos e discípulas de todos os tempos e
lugares, de modo a viverem a plenitude da vocação recebida: seguir o Senhor e
com ele pescar gente. Nesse sentido, as bem-aventuranças correspondem ao modo
através qual os homens e as mulheres de todos os tempos e lugares poderão
vivenciar a pesca. Todos são, assim, chamados a sentar ao redor de Jesus, ouvir
suas Palavras de vida plena e salvação, tomar parte de sua vida e assimilar seu
projeto, a fim de viverem o discipulado-missionário a Jesus e ao Reino. Mas,
para isso, é preciso sair da multidão.
No hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado, assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Será que conseguimos reconhecer os bem-aventurados de hoje?
Pe. João Paulo Góes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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