domingo, 31 de dezembro de 2023

SOLENIDADE DE SANTA MARIA MÃE DE DEUS - Lc 2,16-21:

 


Durante oito dias, a Igreja permaneceu ao redor do menino de Belém. Hoje, concluindo a Oitava do Natal, a liturgia celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica, isto é, relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Sempre válido dizer e relembrar que tudo aquilo que se proclama acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que foi proclamado acerca de seu filho. Só se pode afirmar que ela é mãe de Deus porque Jesus, primogênito de Deus, e, portanto, Deus, se fez homem. Com a solenidade de Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais a realidade deste mistério, colocando acento, agora, na humanidade do Filho.

 

A proclamação de Fé eclesial sobre a maternidade divina de Maria, que já era celebrada pela tradição litúrgica da Igreja, possui seu contexto histórico e é importante recordá-lo. No século III, o bispo de Antioquia, Nestório, juntamente com seus companheiros acreditavam (de modo equivocado, é claro) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. Tal afirmação não era correta. Os primeiros concílios do cristianismo, começando por Nicéia (325 d.C) e culminando em Calcedônia (451 d.C), confessavam e professavam a unidade das naturezas (humana e divina) na pessoa Jesus. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou esta fé cristológica: em Jesus existe uma comunicação (de idiomas) tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo em sua totalidade, e não só de sua humanidade. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro e pleno Deus; verdadeiro e pleno homem.

 

O grande Ambrósio, bispo de Milão, refletia sobre a realidade da maternidade de Maria, afirmando que ela foi, primeiro, mãe de Jesus no coração conforme se tornava mãe de Deus na Carne. E isso, só foi possível mediante sua condição exemplar de discípula. É a segunda lição que o evangelho desta solenidade quer nos transmitir. Por isso, somos convidados a adentrar no seu horizonte.

 

A liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.

 

Lucas, após o parto narra o encontro dos pastores com a família de Nazaré em Belém (v.16), conforme fora dito pelo mensageiro celestial. Entra em cena o tema do evangelho destinado aos pobres e excluídos, os destinatários que o evangelista aprecia. Eles eram humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico.

 

Ao chegarem encontram tudo conforme lhes fora dito pelo anjo. O recém-nascido envolvido em faixas e posto numa manjedoura. É oportuna esta informação. Lucas quer enfatizar através da imagem do menino enfaixado, a Sua humanidade. Para que a comunidade e seus leitores nunca percam de vista a novidade que este acontecimento traz: Deus que se faz homem. O divino que se deixa envolver pelas faixas da humanidade. Aquela criança, cuidada e protegida, através de sua humanidade e fragilidade traz em si o divino.

 

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas (cf. v.19). Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (gr. συντηρέω/synterêo), que traduz o verbo Shemá, que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. “Guardar no coração” pode aludir a atitude da ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma.

 

Maria rumina o alimento da Palavra de Deus, bem como aqueles fatos carregados da força daquela mesma Palavra; rumina, como que em gradativo e necessário processo digestivo. A sua postura deve nos encorajar a aceitar os processos da vida e da história, de modo a compreender que nada é ou acontece num piscar de olhos, ou como que num passe de mágica. Ou mesmo, conforme a nossa vontade.

 

No esquema da obra lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu íntimo, ruminando-a, para, enfim, colocá-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é convidado e enxergar nela o modelo, a exemplaridade do discípulo de Jesus.

 

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula.

 

Mas a salvação que este menino-Deus e menino-homem trará será uma constante contradição. Será uma salvação que acolhe e reintegra a todos, sem distinções; uma salvação que atingirá a totalidade do ser humano e da história, isto é, que tocará todas as dimensões constitutivas deste cosmos, não sendo somente uma salvação do religioso, mas do humano, do social, do ético.

 

A vocação salvadora de Jesus emergirá de modo explosivo no capítulo 4 da catequese de Lucas, no episódio de Nazaré. A primeira palavra que sairá da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré será a de que seu projeto de vida e sua missão messiânica contemplará o anúncio da Boa Notícia aos pobres, a libertação aos cativos, a recuperação da visão aos cegos, e o ano favorável de YHWH, e, que para esta missão, o Espírito do Senhor estaria sobre ele com a unção (Lc 4,18). Mas esta modalidade de salvação deverá ser acolhida também por sua mãe. Por isso será sempre um exercício constante a atitude de “guardar” no coração e meditar sobre os fatos e acontecimentos que a rodeiam. Por isso, Maria é nossa mãe, modelo e companheira. Ela nos precede no discipulado e na missão.

 

O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

NATAL DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO – Missa do dia (Jo 1,1-18):


 

A liturgia deste dia santo, propõe para a nossa meditação Jo 1,1-18, a abertura do Quarto Evangelho, que recebe o nome de Prólogo. Qual a função dele? Ele serve, literariamente, como introdução e apresentação de uma obra. Nele, são tratados, de forma objetiva, os temas que serão desenvolvidos durante a leitura do livro, e as linhas de interpretação que poderão ajudar na compreensão do texto. Aplicando tudo isso ao Evangelho de João, esta solene abertura apresentará os temas e as ideias-chaves a serem trabalhadas pelo evangelista no decorrer de sua catequese. É bem possível que, na história da composição e da redação deste evangelho, os dezoito versículos deste primeiro capítulo tenham sido redigidos por último, quando o escrito já estava pronto.

 

Antes de meditá-lo, se faz necessário apresentar um pouco o evangelho de João. Ele foi redigido, por volta dos anos 90 do Sec. I. Provavelmente em Éfeso, por um discípulo identificado como João, a quem a tradição do primeiro século identifica como um dos apóstolos do Senhor. O texto começa a ser escrito depois de sessenta anos da Ressurreição de Cristo. Por que e para quem João escreve sua catequese?

 

A comunidade joanina dos anos 90, como a maioria das outras comunidades cristãs estão sofrendo a perseguição dos judeus e dos romanos. Da parte dos judeus, devido a dois motivos: 1) a fé em Jesus de Nazaré, confessado por seus discípulos como Senhor e Cristo. Para os judeus de Jerusalém isso era inaceitável, pois um crucificado não poderia ser o Messias esperado. Na concepção religiosa de Israel o Cristo não poderia morrer. Se este Jesus morreu – na forma mais vergonhosa – então não poderia ser quem eles esperavam. A fé destes seguidores deste Jesus era falsa e precisava ser combatida e eliminada; 2) após a guerra judaica contra os romanos, que destruiu Jerusalém e o templo, os judeus começaram a perseguir aqueles que não aderiram a guerra, ou que fugiram para a Síria a fim de se esconder. Ao terminar o conflito, com a destruição do templo, os lideres do judaísmo começaram um movimento de reforma religiosa. Um dos pensamentos desta reforma religiosa era a intolerância com aqueles que não se mostraram fiéis aos princípios do judaísmo formativo, e não participaram da luta armada contra os romanos. O extremismo chegou ao ponto de se expulsar dos meios judaicos, e, consequentemente das sinagogas todos os desviados e infiéis, após a assembleia de Jâmnia. Entre estes estavam os discípulos de Jesus e as primeiras comunidades cristãs. Isso gerou uma profunda crise de fé e de identidade.

 

A comunidade do Quarto Evangelho recebe a catequese de João em meio a um ambiente de crise. Por um lado eram questionados e combatidos pela fé num messias crucificado, o que era inconcebível para época, e perseguidos por não terem sido fieis e lutados ao lado dos compatriotas contra os romanos. Por outro, perseguidos pelo império que não admitia uma nova religião, que cultuava um Deus semelhante ou superior ao imperador. Neste contexto, os discípulos da comunidade joanina começam a esfriar na fé, a desistir da caminhada e retornavam ao judaísmo. Para dar razão à esperança destes discípulos, João se propõe a escrever sua pregação sobre Jesus. Nasce, portanto o seu evangelho, a fim de animar os cristãos em crise. Para isso, o autor se serve das escrituras de Israel, da tradição sapiencial do povo, ou seja, todo o patrimônio das Sagradas Escrituras, para, através de um método de reinterpretação apresentar as Escrituras confirmando a missão de Jesus. Atenção! As escrituras! Não o sistema ritual do judaísmo, simbolizados pela lei de Moisés (613 prescrições que derivavam de interpretações do decálogo), o Templo e as práticas rituais. Estes, conforme a intenção e a interpretação do evangelista estão superados e substituídos pela vida, missão e obra de Jesus. Ele é a superação e a substituição de tudo o que é antigo. Através do recurso do retorno às Sagradas Escrituras, o evangelista mostrará para a sua comunidade que eles estão no caminho certo, que vale empenhar a vida e história por este Jesus. Que Ele é o Ungido de Deus, que inaugura uma nova forma de se relacionar com o Deus de Israel. Para João, Jesus é a novidade de Deus. E todas estas chaves de leitura encontram-se no prólogo e em toda sua obra.

 

Após esta contextualização, cabe a pergunta central: por que esta solene abertura do Quarto Evangelho, este prólogo, é utilizado pela liturgia da Igreja para celebrar este dia solene? Justamente porque estes primeiros dezoito versículos apresentam o sonho e o desejo definitivo de Deus para nós, que o evangelista soube entender e se pôs a transmitir. Isso fica muito claro já no primeiro versículo do texto que nos colocamos a meditar a partir de agora. Para a meditação bastam os versículos um, que ilumina e explica os vv.2-4; em seguida, passaremos para os vv.11-12, a fim de chegarmos ao ápice do texto, o v.14, depois o 16 e, por fim, o v.18.

 

“No princípio era a Palavra” (v.1). Quando se repensa esta primeira linha do prólogo, sob pano de fundo hebraico, é evidente que João pensa em Gênesis. Mas o evangelista toma certa distância da teologia do primeiro livro da Bíblia que começa com um “No princípio (Bereshit), Deus criou o céu e a terra”. Para ele, “no princípio,” antes ainda da criação existia a Palavra, que possuía um projeto que interpelava a Deus. Qual era esse projeto? Doar ao homem a condição divina. Assim, o catequista faz uma releitura do poema da criação do Gênesis (Gn 1,1-31). Ali se fala da Palavra que é efetiva, criadora e ordenadora. Esta Palavra é performativa: “Haja Luz, e houve luz”. Por isso, uma Palavra que cria possibilidades e horizontes.

 

No v.11, o autor do Quarto Evangelho afirma que a Palavra veio para os seus, mas os seus não a acolheram. Ou seja, o evangelista está chamando a atenção de sua comunidade para atitude das lideranças do povo de Israel, os quais não acolheram a Palavra, que veio para “os seus”, os de sua linhagem. Eles fizeram firme oposição à Palavra. Mas, no v.12 há um ensinamento importante: aqueles que acolheram esta Palavra se tornaram filhos de Deus. Tornando-se filhos no nome do Filho, e receberam, portanto, Graça por Graça.

 

O v.14 é explosivo, ao passo que é o versículo central deste prólogo: “A Palavra se fez Carne e (literalmente) armou sua tenda entre nós, e nós vimos a sua Glória” (gr. ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν / ho logos sarx egheneto kai eskenéhsen en ehmîn). Esta Palavra, geradora, criadora e ordenadora de Gn 1, da qual fala João se faz carne (gr. σὰρξ / sarx), ou seja, a estrutura mais frágil da condição humana. Ele não diz que ela se fez corpo ou homem, mas carne. O projeto de Deus não se realiza através de um super-homem a ser imitado ou contemplado, mas se realiza e toma forma na debilidade humana, isto quer dizer que Deus se manifesta na humanidade. Quanto mais o homem se torna humano, descobre o divino que existe em si.

João, ao declarar que a Palavra se fez carne, significa dizer que a Palavra se tornou humanidade precária já marcada para a morte. O caminho de toda a carne é a morte. Então, a encarnação de Jesus não é só seu natal, mas também sua sexta-feira da paixão, quando a encarnação é consumada e levada a Termo. Aqui, Jesus é carne ao extremo.

 

A Palavra-verbo que se fez carne é o projeto de amor fiel de Deus, que se revela num homem bem concreto que se torna o único e o verdadeiro santuário através do qual a humanidade toda poderá se encontrar com Deus. Esta imagem evoca a Tenda da Reunião, nos livros de Êxodo e Números, a Shekiná. Por meio dessa imagem, João quer ensinar para a sua comunidade que a Palavra-Jesus é a nova Shekiná de Deus no meio de nós. E, por isso, sua Glória e seu amor se tornam visíveis para nós.

 

O v.14 acrescenta mais uma informação importante: “e nós vimos a Sua Glória”. Glória no Antigo Testamento não é sinônimo de Brilho. Em hebraico, a palavra Glória (hbr. Kabod) significa Peso, substância. Ora, o Judeu, que sabia lidar com ouro tinha a consciência de que este pode, enquanto polido irradiar sua glória e brilho. Mas mesmo opaco, sem nenhum tratamento, ele sabe que a importância do ouro não está no seu brilho, mas em seus quilates, portanto em seu peso.

 

O que está no Menino de Belém [Jesus] não é algo que brilha sobre o mundo, mas o Peso/presença de Deus (Kabod há YWHW) em meio à história. João quer ensinar à sua comunidade e ao leitor de seu evangelho que o lugar da manifestação da Glória (da presença) de Deus acontece na Carne, na vida e na história de Jesus de Nazaré.

 

“Pleno de Graça e de Verdade (gr. πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας / plêres cháritos kai Aletheías), nos informa, ainda o v.14. Estas duas palavras nos fazem retornar ao modo semítico de pensar. Em Hebraico, Graça corresponde a Hesed-Hem, amor. É aquela Benevolência fiel. Já, Verdade, corresponde ao hebraico Emet, que significa fidelidade. Esta expressão pode ser entendida por “Amor Leal” ou “Amor Fiel” (ou mesmo, Amor e Fidelidade). Graça e verdade são traduções muito aproximativas daquele Amor fiel (Hesed waEmet).

 

Amor e fidelidade (graça e verdade) são os atributos divinos em Ex 34,26, quando YHWH passa diante de Moisés e lhe proclama suas próprias qualidades. Então, é o mesmo Deus do Sinai que está presente neste Unigênito Filho, que outra coisa não é, senão a revelação e a manifestação de Deus.

 

O v.18 conclui a nossa meditação: “A Deus ninguém jamais viu. Mas o Unigênito de Deus, que está na intimidade do Pai, ele no-lo deu a conhecer” (v.18). Uma afirmação que contradiz até mesmo a própria bíblia, uma vez que os autores sagrados do A.T escreveram as experiências de Moisés com Deus. João não está de acordo. Deus, ninguém jamais O viu. Portanto, as descrições feitas por Moisés são conflitantes, incompletas e não expressam a plenitude da experiência com Deus. Todavia, “o Filho unigênito de Deus” que  está no seio mesmo do Pai, isto é, na plenitude da vida divina é quem O revela para a humanidade. Com esta afirmação, o evangelista conclui o prólogo de sua catequese, convidando, pois, a todos os discípulos-leitores a colocarem a atenção sobre a figura de Jesus. Tudo aquilo que vemos Nele, isto é Deus mesmo.

 

A solenidade do Santo Natal, que celebramos hoje, é a festa da glorificação de nossa Carne, através da Carne de Jesus de Nazaré, o Unigênito Filho de Deus. No mistério de sua Encarnação (Antróposis), Deus eleva a condição humana à Deificação (Théosis). Dizer que através da Carne do Filho se tem acesso à glória de Deus, significa dizer que a Carne (fragilidade, precariedade, finitude, debilidade) se torna lugar de Deus. O humano se torna lugar de Deus. A humanidade torna-se o lugar de Deus, que desejou ser cuidado também, na fragilidade de uma Criança. Como dizia acertadamente Fernando Pessoa: "Tão humano assim, só poderia ser Divino".

 

Feliz natal!

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

domingo, 24 de dezembro de 2023

NATAL DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO – Missa da noite (Lc 2,1-14):

 


A noite santa na qual a Igreja faz a memória da plenitude do mistério da Encarnação, a primeira vinda do Senhor, é iluminada por este riquíssimo texto de Lucas, Lc 2,1-15. A narrativa, mais do que transmitir uma crônica dos fatos deseja comunicar uma mensagem de salvação. A intenção do autor é teológica, ou, se se preferir, uma teologia da história. 

O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). Otaviano foi o primeiro imperador que outorgou a si o título de “Augustus”, isto é, “aquele que é digno de veneração; o poderoso; o divino”. O censo tinha, na verdade, a seguinte intenção: saber se a população havia aumentado para arrecadar mais impostos.

Uma nota importante: sempre que os reis de Israel ordenavam, da própria cabeça, os recenseamentos do povo, Deus os censurava através dos profetas, porque Ele era o único Senhor do povo, e não o rei. Ao fazerem isso, os reis se colocavam no lugar de Deus na vida do povo. Nesse sentido, a atitude do imperador anotada por Lucas indica a pretensão dele de ser senhor de tudo e estar acima de tudo. Esta ideia, o autor quer logo corrigir: se Cesar Otaviano “Augusto” quer elevar-se, Deus em seu mistério de amor subverte a lógica e se põe no mesmo nível da humanidade. Ele faz o movimento inverso, descendo até a humanidade marcada pela injustiça, pela dominação, pela morte. Diferentemente do imperador, que toma a vida e é sinal das estruturas de morte, Deus comunica a Sua vida mediante seu Filho. O catequista deseja mostrar precisamente isso: o contraste entre aquele que pretende ser divino, um salvador, e aquele que realmente o é.

Lucas nos informa os versículos seguinte (v.4-6) alguns dados importantes: José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, desposada com ele. Uma contextualização importante, para não cairmos em narrativas ou interpretações romantizadas acerca do fato: José e Maria já se encontravam na cidade de Davi, ao contrário do que muito se pensa, que ao chegar em Belém, a mãe teria dado à luz. Isso é impossível pois uma viagem de Nazaré à Belém era feita a pé, algo impensável para uma mulher no último mês de gestação. Na cidade de Belém ela dá à luz ao filho primogênito. Interessante, segundo a tradição Judaica, a cidade de Davi era Jerusalém, pois foi ali que ele, enquanto rei, se fixou. Lucas não concorda. Ele estabelece Belém como a cidade de Davi, porque ela remete ao seu passado de simples pastor. Uma vez mais o catequista pretende transmitir uma mensagem, que é a de mostrar para seus leitores e para a geração seguinte, “o que virá a ser o menino que nasce em Belém”, isto é, qual o sentido que sua vida e missão tomarão, quais serão os destinatários de sua ação salvadora.

O v.6 é carregado de densidade. Completaram-se os dias nos informa que Maria dá à luz ao seu primogênito (hbr. Ya’hid/meu único), o filho por excelência, aquele que, na tradição religiosa judaica deveria ser consagrado ao Senhor. A quem são reservados todos os direitos jurídicos.

No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas recorre ao Livro da Sabedoria: “Envolto em faixas fui criado no meio de assíduos cuidados; "porque nenhum rei teve outro início na existência; "para todos a entrada na vida é a mesma e a partida semelhante” (Sb 7,4-6). O evangelista pretende assinalar a humanidade de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade. As faixas simbolizam a condição frágil da humanidade.

O menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para eles na sala da hospedaria. Imaginemos o contexto social da época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas rochas. Dentro delas existiam galerias onde era possível arrumar um cantinho para ficar, enquanto que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na estrebaria. Mas nem um lugar nessas galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito provavelmente, tenham ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos pastores da região, como o resto da narrativa sugere. Lucas deseja mostrar que Jesus está entre os excluídos.

O autor resgata, para isso, a profecia de Isaias: “O boi reconhece o seu dono; o burro o estabulo (cocho) do seu dono. Mas Israel não reconhece; meu povo não compreende” (cf. Is 1,3). Jesus está entre os não acolhidos da história. Ora, se faz necessário recordar que quando a mulher dava à luz, segundo a Lei de Israel, ela ficava impura (por conta do contato com o sangue que saia dela) e, por isso, deveria ser afastada do convívio social até o momento de sua purificação no templo, quarenta dias depois. Assim, seria plausível o fato do casal não ter encontrado lugar na hospedaria e serem realocados para o lugar dos animais, e, portanto, da impureza. No recém-nascido de Belém, Deus faz seu repouso entre os impuros. E será para eles que dirigirá sua mensagem de Salvação.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Segundo o Talmud, nenhuma condição social poderia ser mais desprezada que a dessas pessoas. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, viviam muitas vezes de pequenos furtos para sobreviverem, pagãos. Para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente! Eles tornam-se símbolos para todos aqueles que se encontram na exclusão.

Os pastores recebem então uma manifestação divina (v.9). São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. Agora, o anjo do Senhor que, de acordo com a tradição judaica vem sempre com a espada nas mãos para exercer a justiça e castigar os pecadores e maus aparece aos pastores – símbolos dos pecadores. Não para julgar e castigar, mas para comunicar um evangelho de vida. Lucas quer ensinar para sua comunidade que o projeto de Deus, que se inaugura em Jesus envolve a todos; não exclui a ninguém; não condena os pecadores, mas os abraça. Os envolve. Por isso, o evangelista declara que a Glória (hbr. Kabod) do Senhor os envolveu. A Glória não é o brilho, o esplendor. Mas a presença real de Deus. A Presença (A Glória) de Deus (o Senhor) abraçou (envolveu) a todos, sem distinção. Isso é muito interessante: o anjo lhes exorta, primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve ser uma barreira.

Em segundo lugar, lhes dá um motivo: “nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor!” A palavra Salvador (gr. σωτήρ/Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Mas, ao mesmo tempo, era o título empregado ao imperador romano. Lucas quer assinalar que não é este o salvador. A salvação repousa no menino de Belém. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor do senhorio e da vontade de Deus. Tudo isso acontece na Cidade de Davi.

O mensageiro celestial lhes dá um sinal para encontrar o menino: deitado numa manjedoura, envolto em faixas! É encontrar, portanto, a criança colocada no lugar da exclusão! O sinal não é grandioso. Não se encontra na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Tampouco no esplendor do templo de Jerusalém. Muito menos entre os poderosos. Mas colocado em meio a paus trançados – a manjedoura. No recém-nascido, envolto em faixas encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feitas Carne. Na manjedoura de paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Porque ela torna-se, na verdade, o questionamento decisivo que o Deus de Jesus faz a cada pessoa, de todos os tempos e lugares: se desejais ver e buscar um Deus forte, potente, esplendoroso, glorioso, deveis procurar outro; este “não sou eu”. Na cidade de Belém já se vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz para dar vida ao mundo.

Na narrativa, imediatamente após o sinal dado pelo Valente  de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece uma multidão da corte celeste para proclamar que, a Glória (presença) de Deus, desde o mais alto dos Céus, agora se faz presente na terra, na história humana para inaugurar o Shalom, a paz destinada a todos. Porque todos são amados por Deus. Se quisermos ver o menino, deveremos lançar o olhar para a estrebaria e para a manjedoura. Ele está ali, com os últimos e excluídos. Está nas faixas da humanidade assumida, não nos panos luxuosos; encontra-se na casa do pão, porque é alimento de vida e salvação para todos. Estejamos entre os pastores que recebem este evangelho: Deus põe seu Agrado em nós, através de Jesus, seu Filho. Possamos estar onde o menino está; no lugar da opção feita por Deus. Eis o Mistério desta noite Santa.

Bom Natal!

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 23 de dezembro de 2023

IV DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Lc 1,26-38:


A liturgia do quarto domingo do advento, propõe para a meditação eclesial a narrativa do anúncio divino à Maria, e, nela, à humanidade toda, contido em Lc 1,26-38. A cena é muito densa em toda a sua composição bem como em seu significado. O texto situa-se imediatamente após o anúncio do nascimento de João. Traço característico do terceiro evangelista, é a sua técnica do díptico: narrativas semelhantes com personagens distintos. Se na anterior, apresentou um personagem masculino como protagonista, agora trata de introduzir uma personagem feminina.

A cena muda de personagens e de localização. De Jerusalém, na cena anterior, Lucas direciona seu leitor-discípulo para a depreciada Nazaré. A expressão inicial “Naqueles dias” (v.26) indica não somente um marco temporal, mas uma afirmação teológica: é o dia pleno. Neste dia, informa-nos o evangelista, que o valente de Deus (hbr. Gehber / Gabriel), foi enviado a uma jovem virgem da Galileia. Vale sempre lembrar que o anjo, na tradição bíblica, é símbolo para a ação do próprio Deus.

Por que Lucas informa a respeito da virgindade da personagem? Para mostrar a condição social desta jovem. A virgem não era bem vista na sociedade, pois não havia ainda atraído os olhares dos homens de seu tempo. A virgindade era muito depreciada. A jovem que assim vivesse era considerada arvore seca. A maternidade era o status que garantia prestigio. O evangelista pretende mostrar a precariedade e a insignificância de uma mulher nestas condições. No entanto, assim como Deus olhou para a vergonha da madura Isabel, estéril, impossibilitada de conceber e gerar filhos, olhou para a jovem virgem, que ainda não dera à luz. O catequista deseja ensinar para a sua comunidade que é em meio a estas pessoas, e, através delas, que Deus começa a realizar a sua obra. Que a partir de uma situação de humilhação, de vergonha pública, de precariedade, se realizará o impossível. A jovem estava ainda na primeira fase do casamento, a promissão; não havia passado para as núpcias, a segunda fase. A promessa de casamento, segundo tradição religiosa judaica, já configurava casamento. O autor informa-nos o nome da moça: Maria (lit. “a amada”)

O anúncio começa com uma saudação rica de significado: “Alegra-te, ó amada por Deus”. O convite à alegria messiânica, na verdade é uma ordem. O verbo está no imperativo. Se trata de uma expressão solene que o autor escolheu com muito cuidado. O verbo rôni, no hebraico, é bem conhecido do israelita piedoso, pois ele lembra as promessas de alegria, de bem e de esperança, que os profetas disseram em nome de Deus. O evangelista pretende dizer que, através de Maria, Deus começa cumprir todas as promessas feitas à jovem filha de Sião, desde o A.T.

A expressão “Amada/favorecida por Deus (gr. κεχαριτωμένη / agraciada)”, pode ser entendida dessa maneira: “Alegra-te, ó mulher, que fostes preenchida gratuitamente por Deus, de todos os Seus bens”. Através de Maria, esta declaração é direcionada à Sião e à toda a humanidade. Através dela, a toda humanidade se diz: “és amada por Deus, mesmo que a sua história seja marcada por guerras, violência. Alegra-te, porque o amor de Deus por ti é incondicional, gratuito! O texto transmite a compreensão da graça como favor, misericórdia. Para isso, se pode servir do contexto das relações senhor/servo. Na maioria das vezes, os servos permaneciam inquestionavelmente no seu lugar e na sua função, sem qualquer direito a mudança de situação. Por isso, quando uma pessoa nesta condição encontrava graça diante do seu patrão, era porque o coração daqueles se fazia complacente e favorável.

O versículo pode ser entendido da seguinte maneira: alegra-te, porque Deus se voltou gratuitamente a ti com Sua Graça, e, em ti à toda a humanidade sofredora. Alegra-te, pois, da parte de Deus serás sempre amada, ó humanidade. Em Maria, Deus demonstrou Sua graça, misericórdia e amor à humanidade de graça e não por mérito. O anúncio continua: “O senhor está contigo”. Mais do que um desejo do anjo, é uma garantia Divina para a missão a ser vivenciada, como a todos os profetas do A.T.

O texto lucano mostra (v.29) que ela também fica com um certo temor. O que significa este temor? É o confronto da vida com a Palavra de Deus. Maria, ao escutar a saudação do mensageiro celeste está, na verdade escutando uma palavra sendo dita pelo próprio Deus! Por isso, a perturbação interior, que revela a atitude de questionar-se; de ler e reler a vida diante da Palavra. É a atitude de máxima grandeza, pois toda a vocação dada por Deus deve ser respondida a partir desse confronto consigo mesmo; deve ser consequente e responsável. O anjo a tranquiliza, exortando-a para não ter medo, pois encontrou ela Graça diante de Deus (mais uma vez aparece a palavra Graça-misericórdia).

O conteúdo desta Palavra de Salvação é este: ela conceberá um filho, que será chamado de Jesus (hbr. Ieshua / Deus Salva - salvador). Nele se realizarão todas as promessas dos tempos passados; mais uma maneira de se dizer que esta Boa Nova ultrapassava de longe as expectativas judaicas (2Rs 7). Cumpre-se, em certo sentido, a profecia de Isaías (Is 11,1-9): da raiz de Jessé, pai de Davi, Deus suscitaria um rebento para governar o mundo, não pela espada, mas pelo Espírito. Ele estará cheio do Espírito de YHWH e não julgará pelas aparências, nem pelo ouvir dizer, mas julgará os fracos com justiça e pronunciará uma sentença em favor dos pobres da terra. O menino terá um nome significativo: “O Senhor salva”, Jesus. Como se sabe, o nome diz muito acerca da missão que a pessoa, no mundo bíblico, tem a realizar. Seu nome, além de sua identidade, será sua missão. O mensageiro continua dizendo que “Ele será grande, será Filho do Altíssimo e reconhecido como tal”. Estes dois vocativos convidam o leitor-discípulo a reconhecer no filho de Maria, uma personalidade que assume a vida, o modo de ser e o rosto do próprio Deus. Na linguagem tradicional da Bíblia, o vocábulo “Grande”, em sentido absoluto, refere-se unicamente à Deus.

Maria pede um sinal para ter certeza, assim como Zacarias o fez. E no seu caso isso não é considerado uma afronta ou descrença, pois ela não conhece a José no sentido sexual. Lucas já apresentou Maria numa atitude atenta, reflexiva e pronta para entender o sentido e as consequências da Palavra de Deus. Ora, sua objeção revela a mesma atitude espiritual. O Anjo dirá – introduzindo a segunda parte do anúncio acerca da identidade do filho de Maria – que o Ruah YHWH (Espírito de Deus = dinamismo de vida do próprio Deus) realizará isso. Uma expressão poética, mas que na verdade que dizer muito: uma maneira de se ilustrar a relação íntima do casal. Aplicado à Maria, pretende dizer que a concepção e geração de seu filho será um ato criador do Espírito Deus.  Ele realizará a ação geradora de Jesus no ventre de Maria. Por isso, aquele que nascer será Filho de Deus e não de José. O evangelista quer enfatizar para a sua comunidade que, desde suas origens humanas, Jesus é Filho de Deus. Isso não é questão biológica, mas de pertença e autoridade divina.  E o sinal de que Deus é capaz de muita coisa é aquilo que aconteceu com Elisabeth, que concebeu um filho na velhice: pura graça de Deus.

Então dirá Maria: Eis aqui a serva do Senhor. Faça-se em mim, segundo a vossa Palavra”. Responde como os grandes personagens chamados a uma missão especial com um solene “eis-me, aqui”. É a total disponibilidade em acolher o projeto de Deus. E, por isso, o sinal da adesão incondicional à vontade de Deus. Depois reconhece-se como serva. E não se pode interpretar o dito a partir da humildade. O texto não permite isso. O termo servo, na tradição bíblica é destinado àquele personagem muito importante. É aquele que colocou toda a sua vida em relação ao projeto de Deus. Seria estranho Maria atribuir a si este título, uma vez que somente aos homens era destinado. No entanto, ela é única mulher que recebe este título. O que acontece, então? Na verdade é a comunidade primitiva que a reconhece como serva, e, que, portanto dá à ela esta dignidade, porque viu como esta mulher soube responder à sua vocação com total disponibilidade. Então, ela declara e confessa: “esta sim é uma serva do Senhor”.

O seu “faça-se” (gr. γένοιτό/ gênoito), verbo forte, deseja expressar justamente isso, o desejo alegre que isso aconteça o mais rápido possível. Maria dá o consentimento à Palavra de Deus, aderindo a ela transformadora e performativa; e se torna a servidora desta Palavra já assumida. Só então tem sentido o que virá a seguir: partir para junto de sua prima para servi-la. Ao se tornar serva da Palavra encarnada, ela se torna serva dos mais debilitados, dos excluídos, dos envergonhados. Encarna em disposições concretas o serviço a Deus, prestando sua ajuda à sua prima, que, como ela, é também imagem dos sofredores desta história.

No evangelho segundo Lucas, o modelo para o discípulo do Reino é Maria, porque ela conserva em si as virtudes características do discipulado: Ouvir a Palavra de Deus; acolher esta Palavra de vida e Salvação; e realizar (cumprir / frutificar) a Palavra de Deus através da vida colocada em doação e serviço aos homens e mulheres de todos os tempos, lugares e condições. Ao escutar, acolher (ruminar/confrontar) e realizar a Palavra de Deus, Maria vai tecendo em seu ser Jesus-Palavra. Através dela, Deus se coloca ao lado dos excluídos, dos fracos, dos marginalizados; dos que não tem voz; dos despossuídos; das minorias.

Neste tempo do advento, qual vem sendo a atitude diante da Palavra que Deus dirige também a nós, como fez à Maria? Também a nós Deus dirige seu favor, chamando-nos de agraciados. Qual vem sendo nossa resposta? Nossa vida e missão tem sido um frutificar da Palavra de Deus? Ao lado de quem nos colocamos, enquanto discípulos e discípulas do Reino? Que neste quarto domingo do advento, o Deus e Pai de Jesus Cristo possa encontrar em nossas vidas o mesmo espaço que Ele encontrou na jovem de Nazaré para o acontecimento de seu querer.

 

Pe. João Paulo Sillio.

 

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

 

sábado, 16 de dezembro de 2023

III DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Jo 1,6-8.19-28:


 

A liturgia do terceiro domingo do advento se reveste da alegria, em virtude da memória da vinda do Senhor. Nos dois finais de semana anteriores, os textos bíblicos colocavam a assembleia na atmosfera da segunda vinda – a parusia – de Jesus. Atitudes como a vigilância, acolhimento, conversão e escuta da voz de Deus chamavam a atenção, em vista do retorno do Senhor. Agora, adentrando no segundo ciclo do advento, a Igreja chama a fazer a memória da primeira vinda, o natal do Senhor. Para isso, será necessário aprender novas atitudes. É o que o Evangelho de hoje pretende mostrar.

O texto proposto para a meditação é retirado do prólogo do evangelho de João, a abertura solene que o evangelista redige, a fim preparar seus leitores para acolher a novidade da obra de Jesus, o revelador de Deus. Deste trecho importantíssimo – que será meditado no dia do Natal – a liturgia elege os versículos seis, sete e oito, e, depois, salta para o dezenove até vinte e oito, os quais apresentam propriamente a narrativa do evangelho, colocando em cena a missão e a pessoa de João Batista. Nota importante que o Quarto Evangelho oferece: João não é apenas o precursor de quem nos falam os sinóticos (Mc, Mt e Lc), mas a testemunha.

Testemunho, enquanto substantivo, e testemunhar (verbo) são termos e temas importantes no evangelho joanino. O testemunho é o conteúdo da Boa Notícia: a novidade de Deus agindo em meio a humanidade de uma forma definitiva e plena, através de Jesus de Nazaré, que revela às pessoas que Deus é amor. O verbo testemunhar consiste na atitude de dar fé, veracidade e fidelidade ao conteúdo do anúncio. Testemunho/testemunhar é a primeira atitude a ser assimilada neste evangelho.

O v.6 declara: “Surgiu um homem enviado por Deus; Seu nome era João”. O evangelista se refere a um homem, isto é, um ser humano para uma missão. A novidade da Ação de Deus na história, que assumirá carne e rosto, deve ser preparada por um homem. Cada pessoa humana possui uma missão a realizar. Como saber qual é esta missão? Basta descobrir a própria identidade. Quando se toma consciência de quem se é, se compreende também o que Deus espera da pessoa. Cada ser humano é único ao interno da Criação.

O Batista tem uma ideia muito clara de sua própria identidade. Ele sabe para quê foi chamado. Seu nome é importante: João (hbr. Johanan; lit. Deus é amor/misericórdia ou Deus é Graça). Ele será o encarregado de mostrar a Pessoa para quem se deve voltar o olhar, se deseja contemplar a luz da face de Deus. E quando voltar o olhar para aquele que revela a luz de Deus, ou seja, Jesus, então se descobrirá que Deus é amor. Por isso, os nomes são muito importantes na tradição bíblica, pois além de apresentarem a identidade das pessoas, também revelam as missões que desempenharão.

O evangelista insiste na missão do Batista enquanto testemunha da Luz, a fim de eliminar a compreensão equivocada de pessoas que acreditavam ser ele o Messias. Não. Ele apenas aponta quem é a Luz; onde ela se encontra: Jesus. Como mais adiante ele mesmo se auto revelará como Luz do mundo (Jo 9). O autor do evangelho pretende com essa polêmica revelar que o Batista conseguiu ver e enxergar para além da natureza humana de Jesus, e reconhece-lo como luz. É verdade que todos podem olhar para Jesus e deparar-se com um homem extraordinário, portador de uma mensagem nova, alternativa, e podem parar neste nível. Portanto, algo que não precisaria de testemunho. Mas só se pode acolher o testemunho de João, aquele e aquela que fizer a mesma experiência feita por ele. Porque para compreender quem é Jesus e acolher esta luz é necessário ter um olhar que enxerga para além daquilo que todos veem. E este olhar, somente o Espirito pode dar. O Batista viu o Espírito pousar e permanecer em Jesus ao batiza-lo no Jordão. Se não se olhar para essa identidade profunda do Senhor, não haverá como testemunhar esta luz de Deus em sua face.

Diante da fama do Batista, o evangelista informa que uma comitiva de Jerusalém é enviada pelos sacerdotes. Sentem-se incomodados com esta luz que é proclamada por ele. Devido ao prestigio que já possuía João, as pessoas acreditavam ser ele o Messias. Ameaçados pela luz, as autoridades religiosas exigem uma resposta para a pergunta: “Quem és tu?” (v.19).

“João confessou e não negou. Confessou: ‘Eu não sou o Messias’” (v.20). A resposta do Batista é dada de modo solene pelo evangelista. Antes de tudo, ele diz aquilo que não é. João não deseja criar expectativas ao redor de uma falsa identidade. Porque uma identidade falsa poderia leva-lo a realizar uma missão que não é sua. O Messias é outro! Insistem, perguntando se ele seria Elias (o modelo do profeta), e, a esta pergunta responde imediatamente: “não sou”; indagam se seria O Profeta por excelência, o novo Moisés. E, pela terceira vez, responde seco: “Não”. Dando um basta na questão.

A identidade do ser humano é definida, antes de tudo, por aquilo que ele não é. Porque o orgulho pode levar a criar uma falsa identidade de si. E isso seria a ruína. Não somos menos do que as pessoas pensam, ou que desejam que fossemos.

As autoridades religiosas exigem uma resposta, pois precisam leva-la para Jerusalém. Questionam: “O que dizes de ti mesmo?” (v.22). Esta é uma pergunta que o leitor-ouvinte do evangelho deve voltar para si próprio. O que você diz de si mesmo? Que consciência possui do papel que você tem nos desígnios de Deus? Que sentido há em sua vida? O que você está a fazer neste mundo? Eis a importância de se tomar consciência de quem se é! O que dizes de ti mesmo? E, não o que os outros pensam ou dizem a seu respeito. Ser consciente de si, de quem se é e da missão a realizar, de modo a evitar equívocos, é a segunda atitude a assimilar.

O Batista responde e, então, declara sua identidade e missão: “Eu [sou] a voz que grita no deserto: 'Aplainai o caminho do Senhor'” (v.23). Interessante, pois ele não se apresenta como a Palavra, mas enquanto voz. Na história da interpretação deste texto, Agostinho (século IV, d.C) interpretou bem o versículo, distinguindo a voz da Palavra: aquela, apenas o som, que se coloca à serviço da Palavra. O som da voz deve desaparecer, porque se permanece somente ela, ao invés da Palavra, só poderá gerar confusão. É preciso que o som/voz desapareça, para que permaneça a Palavra.

Questionado pelos enviados das autoridades acerca de sua autoridade em batizar, uma vez que não é o Messias, nem Elias, muito menos o Profeta, o Batista completa a resposta acerca de sua missão: “Eu batizo com água; mas no meio de vós está aquele que vós não conheceis, e que vem depois de mim. Eu não mereço desamarrar a correia de suas sandálias” (vv. 26-27). O batismo de João é completamente diferente do que será realizado pelo Messias. Ele tem o significado da tomada de consciência, necessária à mudança de vida. Tomada de consciência de que se vive ainda nas trevas que se necessita da luz.

Em seguida, ele esclarece qual é a sua posição em relação àquele que deve vir da luz indicada por ele, e o faz com uma imagem que seus ouvintes sabem muito bem, pois são especialistas nas leis. A imagem do desatar as sandálias, ou “descalçamento”, que era previsto na lei do levirato. Esta prescrição dizia respeito a sucessão do marido, em caso de morte, sem que houvesse descendentes. O cunhado deveria desposar a viúva de seu irmão. Se este não quisesse (por várias razões), deveria ceder o direito ao outro irmão. Como forma de visibilizar isto, o substituto se apresentava às portas da cidade, retirava a sandália do outro e a lançava longe, no intuito de mostrar que este não foi capaz de cumprir o dever e, agora, outro o faria. O direito de ser esposo daquela mulher passava a outro. O que o Batista pretende dizer com essa imagem do levirato? Que ele não é o esposo a desposar a esposa. Esta é imagem simbólica do povo de Deus. É como se o João dissesse: “Eu não tenho a dignidade de desposar a Israel, porque não sou o messias-esposo. Sou apenas amigo dele, que está em meio, e me alegro com sua presença. Eu sou aquele que deve fazer de tudo para que este casamento entre eles seja fecundo. A terceira atitude: ser o amigo do noivo, a apresenta-lo sempre à noiva, seu povo, hora ou outra distante dele e infecunda.

Neste domingo, peçamos a graça de sermos testemunhas da luz. De crescermos no conhecimento de nós mesmos, a fim de realizarmos a nossa correta missão; de sabermos o nosso lugar dentro do projeto de Deus. E, por fim, romper com as trevas e deixarmo-nos iluminar pelo esposo que já está em nosso meio, e, que, só é possível vê-lo com os mesmos olhos do Batista.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 9 de dezembro de 2023

II DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Mc 1,1-8:

A liturgia do segundo domingo do advento, apresenta o início do primeiro Evangelho da comunidade cristã, o evangelho segundo Marcos. Situamo-nos na introdução da catequese do evangelista, a qual apresenta, desde o começo algumas notas que serão norteadoras para a leitura e meditação da primeira catequese comunitária.

O texto começa da seguinte maneira: “Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (v.1). Só esta primeira linha introdutória é repleta de significado, e merece ser saboreada. Este título traz consigo, segundo o interesse de Marcos, uma série de referências acerca de Jesus e de um certo “evangelho”.

O termo “evangelho” (gr. εὐαγγέλιον / euanghelion), literalmente significa “boa notícia”. Uma alegre notícia, que no contexto do mundo bíblico é, primeiro, um anúncio importante proveniente da corte do rei (p.e. nascimento de um membro da família real), ou mesmo anúncio de vitória dos israelitas sobre os inimigos. Mas será no campo religioso que o termo alcança sua riqueza de sentido, pois ele estará sempre relacionado ao agir libertador de Deus, sua intervenção sempre salvífica em favor do povo. No Novo Testamento, os primeiros catequistas da comunidade dão um sentido pleno a esta palavra – Paulo, principalmente: o evangelho é a narrativa da missão e obra de Jesus, em seu mistério de paixão, morte e ressurreição, e a própria pessoa de Jesus. Em simples palavras, o evangelista, através deste termo, “evangelho”, quer fazer crescer sua comunidade e as gerações seguintes na consciência de que a Boa Noticia é uma pessoa, Jesus de Nazaré, e o sentido histórico salvífico que sua vida atinge.

Em segundo lugar, os complementos nominais que se seguem só nesta primeira linha do v.1, “Cristo” (sem o artigo definido), e “Filho de Deus”, funcionam como genitivos restritivos. Possuem a função de acenar para a identidade deste Jesus. Cristo é a tradução grega da palavra hebraica “messias”. Note-se, aqui, mais uma vez, que ela não vem acompanhada do artigo definido. Marcos não quer identificar a Jesus com “o Messias” davidico, aquele valente guerreiro, político e revolucionário que deveria libertar o povo de Israel da opressão dos romanos. O evangelista concebe o messianismo do Senhor de outra forma, a qual se desenrolará no decorrer da narrativa evangélica. “Filho de Deus” é outro genitivo restritivo que precisa ser compreendido bem, mas que só o será na medida em que o leitor-discípulo vai avançando na compreensão e no conhecimento de Jesus. O autor aplica esse adjetivo a Jesus para comunicar uma mensagem à sua comunidade: o messias e Filho de Deus não é o Cesar de Roma (ideológica e falsamente reconhecido como divino), mas este Jesus de Nazaré. A boa notícia que vem através de Sua vida, missão e obra é a nova modalidade de relação entre o homem e Deus. Relacionamento este que não se dará mais por intermédio da Lei (termo que não aparecerá mais no evangelho marcano), mas através da acolhida e da assimilação de Seu amor, através da vida de Jesus.

No v.2, Marcos se serve de uma passagem contida no Segundo Isaias, Is 40, que, começa com um convite de ânimo e de consolação para o povo sofrido e exilado na Babilônia. O texto do qual o evangelista usa é daquele período. E faz, portanto, sua releitura daquele “consolai o meu povo! Consolai!”, pois “O vosso Deus chega com poder”. Mas para que ela venha, se fazem necessárias duas atitudes: ouvir a voz que grita no deserto, e acolher o convite à “preparar os caminhos do Senhor”, conversão (mudança da mentalidade; do modo de pensar; uma nova consciência).

O evangelista apresenta o primeiro personagem de seu evangelho (v.4). Um tal João, cujo nome hebraico significa “Deus é Misericórdia (Deus é Graça)”, que batiza no deserto. Em João, o povo simples reconhece a vinda do profeta verdadeiro, esperado por quatro séculos. Por quatrocentos anos o povo viveu sem profetas, uma vez que as autoridades do templo haviam proibido o exercício da profecia em Israel, no pós-exílio, o que se pode verificar na profecia de Zacarias 13. O templo pretendeu abafar a profecia porque não a suportava. O evangelista apresenta esse homem vestido com pele de camelo, que se alimenta de gafanhotos e mel silvestre. É retratado como figura e símbolo do grande profeta do povo, Elias.

O evangelista sublinha o lugar geográfico do rio Jordão. Ele não é só uma localização espacial, mas um lugar teológico também. Na tradição do Pentatêuco, o Jordão era tido como o último lugar de travessia por onde o povo teria que passar para entrar e  conquistar a terra prometida. Mas a localização que Marcos oferece indica o Batista realizando seu batismo estando na margem do lado de Jerusalém, ou seja, o caminho contrário. De modo que, ao passar pelo batismo de João, cruza do o Jordão, as pessoas teriam a sua frente o deserto. Indo, portanto, na direção oposta à capital, que, na tradição religiosa é o lugar sagrado, a terra prometida. É uma forma de se dizer que aquela terra de promessa havia se transformado numa terra de escravidão, da qual se deve sair. Para escutar e acolher o Senhor que vêm, se faz necessário romper com que é antigo, com os empecilhos e obstáculos que impedem a experiência com a Boa Nova de Jesus.

Mas, de verdade, o que faz João; ou, de outro modo, o que não faz? O que ele faz é explicitado no v.8a: “Eu vos batizei com água”. Ou seja, o batizador é um instrumento para a mudança de vida e de mentalidade. O que ele não pode fazer é outra coisa: batizar com o Espírito Santo. Ou seja, ele não comunica o dinamismo de vida de Deus que é capaz de fazer com que o ser humano viva esta nova realidade iniciada pela conversão e pelo perdão dos pecados. Esta será, portanto, a missão de Jesus, que é aquele que batizará com o Espírito Santo, inserindo o homem e a mulher no horizonte da vida mesma de Deus, e este será o anúncio feito por Jesus.

O evangelho deste segundo domingo do advento nos dá três lições-atitudes que devemos procurar assimilar. Escutar a voz: ela orienta, segundo o texto de hoje, a acabar com todas as dificuldades, a deixar um caminho livre e aberto, para que Ele possa chegar. Chegará na estrada que cada homem e mulher se propõe a preparar. Na verdade, Ele vem ao encontro nesta estrada. No caminho que deixamos prontos para encontrarmos com Ele, ou seja, a atitude do “aplainar/preparar os caminhos”. A fim de se acolher o convite à conversão, que é atitude interior da mudança de mentalidade e de vida. Só assim se pode participar (mergulhar) na vida e da missão Daquele que batiza com o Espírito Santo, o qual nos insere na vida e no horizonte todo de Deus.

Nossos ouvidos estão atentos a este apelo? Que caminho/estrada temos preparado para o Senhor que vem; e que via podemos a ele apresentar como lugar de encontro entre ele e nós?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 2 de dezembro de 2023

I DOMINGO DO ADVENTO (Ano B) - Mc 13,33-37:

 


O tempo do advento divide-se em dois momentos. O primeiro, que se estende até o dia dezessete de dezembro, apresenta a temática do advento escatológico de Jesus. Ou seja, a liturgia faz com que o fiel, através dos textos bíblicos se abra para o horizonte da segunda vinda do Senhor. Já os domingos seguintes, são marcados pela temática da primeira vinda, celebrada com o santo natal.

Ora, o Advento não é a espera de Alguém que ainda deve vir, mas é uma renovação do compromisso de tornar manifesto o Cristo que já veio e permaneceu com os seus. Portanto, o papel da comunidade cristã é tornar sempre mais visível a presença do Senhor através do amor. É o tempo para se abrir os olhos e reconhecer Deus no pequenino; no último.

A liturgia propõe para a meditação, o texto pertencente ao evangelho segundo Marcos, Mc 13,33-37, o qual apresenta o sermão escatológico concentrado pelo evangelista neste capítulo. Ele é chamado de “apocalipse de Marcos”. Apocalipse significa revelação. Não se trata de tragédia ou catástrofe, mas da consolação do fiel, do povo, da humanidade por Deus. Este gênero literário serve-se de um vasto campo simbólico para transmitir uma mensagem de ânimo e de esperança em tempos de crise e de desolação. Na realidade, a literatura apocalíptica é essencialmente uma literatura de resistência, e a promessa de uma mudança radical para breve alimenta a força de resistência para a comunidade. Importante consideração: o gênero literário apocalíptico não é uma futurologia, mas leituras da História, que, em última análise, está nas mãos de Deus.

Duas são as formas de ler o texto de hoje, unindo-as num mesmo horizonte; de acordo com o horizonte do texto, ao interno da narrativa de Marcos, o discípulo deverá tirar as pistas para superar o momento da tribulação pela qual o mestre passará, e saber se comportar diante dos eventos de sua paixão, morte e ressurreição; e a segunda forma é a da assimilação deste convite à vigilância frente a demora da segunda vinda, que deve suscitar uma espera paciente. A constante vigilância do cristão é um programa de ação. Mc 13 ensina a vigilância em vista à do retorno de Jesus, que quer encontrar os seus ocupados com as coisas do Reino, sobretudo a caridade fraterna.

Ao interno do texto, Jesus está com seus quatro mais próximos, Pedro, André, Tiago e João, sobre o monte das Oliveiras, olhando para Jerusalém e o templo. Nas narrativas anteriores eles se maravilhavam com os ornamentos do recinto. Fora dele podem ver e contemplá-lo, uma vez que não sobrará pedra sobre pedra, conforme dissera o mestre anteriormente. Com esse panorama, os discípulos se inquietam e perguntam-no “quando será?” “Qual será o sinal de que tudo isso vai acontecer?” Isto posto, podemos adentrar no horizonte do texto e meditarmos sobre esta atitude.

Dos vv.33-36, Jesus fala novamente em parábolas. Emergem, aqui, imagens que a comunidade cristã primitiva tinha acerca da parusia, inaugurada pela ressurreição de Jesus. Os primeiros cristãos comparavam a ressurreição do Senhor a uma viagem para receber a glória de Deus Pai e seu retorno como a completude do Reino que ele inaugurou, com o ajuste final para todos de acordo com suas obras.

Alguns elementos da parábola merecem destaque. A casa lembra, em Mc, a comunidade dos discípulos. A figura do patrão, do porteiro e dos servos. A identificação da primeira personagem é imediata: o patrão é Jesus. Os servos são imagens para a comunidade cristã à qual o evangelista Marcos escreve, mas também são símbolos dos discípulos que acompanham a Jesus no curso de sua vida pública. O porteiro, encarregado de vigiar, talvez represente a imagem dos líderes. O porteiro e os servos (incumbidos cada qual de seus afazeres) devem vigiar, pois não sabem quando virá o senhor da casa. De ambos se exige a mesma atitude: vigilância.

O termo vigilância aprece nesta perícope por três vezes. A exortação inicial “Cuidado! Ficai atentos” (gr. βλέπετε ἀγρυπνεῖτε / Blépete agrypneîte) é carregada de sentido. O verbo βλέπω (Blepo/Blépen) significa “ver”. Ele indica a capacidade do discernimento, da percepção; o termo ἀγρυπνέω (agrypnéo) significa “estar acordado”. Durante a narrativa os termos vão variando entre “Cuidado! Ficai atentos” (βλέπετε ἀγρυπνεῖτε), “vigiai, portanto” (γρηγορεῖτε οuν), e, vigiai (γρηγορεῖτε). A vigilância bíblica não significa “não dormir”, “não cair (ou pegar) no sono”; também não é uma espera passiva. Pelo contrário. A vigilância é uma espera atuante, operativa, que se vive na atitude. É a capacidade de estar de prontidão. Pois não se sabe a hora noturna em que o Senhor virá.

A exortação de Jesus pode ser lida e entendida na realidade da primeira geração dos discípulos, que mesmo após a ressurreição esperavam a volta iminente – para já – do Senhor. Como pode ser lida em tom de exortação para as gerações seguintes, dada a demora do retorno do Cristo. Esta exortação (ordem – convite) de Jesus à vigilância serve de antidoto contra a tentação de ficar dormindo.

Jesus e Marcos se servem da imagem do sono (dormir) para ilustrar a condição do discípulo que não está respondendo ao projeto de Deus. Alude também à recusa e a indiferença. Devido ao “atraso” do Senhor, as comunidades ficavam tentadas a abandonar tudo, a esfriar na vida Fé – na relação com Deus e no trato fraterno com os outros. Ainda, pensamentos e atitudes da seguinte ordem também eram perceptíveis ao interno das comunidades: bastava ter aderido à fé, com isso descomprometiam-se da realidade. Este é o sono, a dormência, que a comunidade dos discípulos de todos os tempos deve combater e evitar através do dinamismo da vigilância.  Quer diante da demora ou da iminência do acontecimento, cada momento é “o hoje de Deus” (gr. καιρός / kairós). Não devemos nos empenhar somente em vista de um fim próximo ou distantes, mas como se o Fim estivesse chegando sempre.

O discípulo é chamado à “abrir os olhos” e não esperar que outros resolvam os problemas para si; ou mesmo realizem aquilo que cada um tem a capacidade de fazer. A comunidade é esta casa de servos, onde cada um deve realizar aquilo que recebeu para fazer, enquanto espera a vinda do dono. Como nos encontramos ao final/recomeço deste tempo sempre novo? Vigilantes ou no perigo da sonolência, ou mesmo dormindo?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.