Durante
oito dias, a Igreja permaneceu ao redor do menino de Belém. Hoje, concluindo a
Oitava do Natal, a liturgia celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma
proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica, isto é, relacionada à
Fé em Jesus de Nazaré. Sempre válido dizer e relembrar que tudo aquilo que se proclama
acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que foi proclamado
acerca de seu filho. Só se pode afirmar que ela é mãe de Deus porque Jesus,
primogênito de Deus, e, portanto, Deus, se fez homem. Com a solenidade de
Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais a realidade deste
mistério, colocando acento, agora, na humanidade do Filho.
A
proclamação de Fé eclesial sobre a maternidade divina de Maria, que já era
celebrada pela tradição litúrgica da Igreja, possui seu contexto histórico e é
importante recordá-lo. No século III, o bispo de Antioquia, Nestório,
juntamente com seus companheiros acreditavam (de modo equivocado, é claro) que
a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. Tal afirmação não
era correta. Os primeiros concílios do cristianismo, começando por Nicéia (325
d.C) e culminando em Calcedônia (451 d.C), confessavam e professavam a unidade
das naturezas (humana e divina) na pessoa Jesus. Em 431, o Concílio de Éfeso,
através de Cirilo de Alexandria, reafirmou esta fé cristológica: em Jesus
existe uma comunicação (de idiomas) tão grande entre humanidade e divindade.
Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo em sua totalidade, e não só de sua
humanidade. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o
Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro
e pleno Deus; verdadeiro e pleno homem.
O
grande Ambrósio, bispo de Milão, refletia sobre a realidade da maternidade de
Maria, afirmando que ela foi, primeiro, mãe de Jesus no coração conforme se
tornava mãe de Deus na Carne. E isso, só foi possível mediante sua condição
exemplar de discípula. É a segunda lição que o evangelho desta solenidade quer
nos transmitir. Por isso, somos convidados a adentrar no seu horizonte.
A
liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho
segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo
do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no
acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na
história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste
mini-evangelho da infância.
Lucas,
após o parto narra o encontro dos pastores com a família de Nazaré em Belém
(v.16), conforme fora dito pelo mensageiro celestial. Entra em cena o tema do
evangelho destinado aos pobres e excluídos, os destinatários que o evangelista
aprecia. Eles eram humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por
isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais
do culto judaico.
Ao
chegarem encontram tudo conforme lhes fora dito pelo anjo. O recém-nascido
envolvido em faixas e posto numa manjedoura. É oportuna esta informação. Lucas
quer enfatizar através da imagem do menino enfaixado, a Sua humanidade. Para
que a comunidade e seus leitores nunca percam de vista a novidade que este
acontecimento traz: Deus que se faz homem. O divino que se deixa envolver pelas
faixas da humanidade. Aquela criança, cuidada e protegida, através de sua
humanidade e fragilidade traz em si o divino.
O
Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no
seu coração todas aquelas coisas (cf. v.19). Temos aqui o sentido rico e
autêntico do verbo guardar (gr. συντηρέω/synterêo), que traduz o verbo Shemá,
que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo
todas essas coisas no coração. “Guardar no coração” pode aludir a atitude da
ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma.
Maria
rumina o alimento da Palavra de Deus, bem como aqueles fatos carregados da
força daquela mesma Palavra; rumina, como que em gradativo e necessário
processo digestivo. A sua postura deve nos encorajar a aceitar os processos da
vida e da história, de modo a compreender que nada é ou acontece num piscar de
olhos, ou como que num passe de mágica. Ou mesmo, conforme a nossa vontade.
No
esquema da obra lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de
Deus, a acolhe em seu íntimo, ruminando-a, para, enfim, colocá-la em prática,
frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a
informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é
convidado e enxergar nela o modelo, a exemplaridade do discípulo de Jesus.
O
v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias
para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo
anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu
evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico
Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do
imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino
envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de
mãe, é chamada a assumir a condição de discípula.
Mas
a salvação que este menino-Deus e menino-homem trará será uma constante
contradição. Será uma salvação que acolhe e reintegra a todos, sem distinções;
uma salvação que atingirá a totalidade do ser humano e da história, isto é, que
tocará todas as dimensões constitutivas deste cosmos, não sendo somente uma
salvação do religioso, mas do humano, do social, do ético.
A
vocação salvadora de Jesus emergirá de modo explosivo no capítulo 4 da
catequese de Lucas, no episódio de Nazaré. A primeira palavra que sairá da boca
de Jesus, na Sinagoga de Nazaré será a de que seu projeto de vida e sua missão
messiânica contemplará o anúncio da Boa Notícia aos pobres, a libertação aos
cativos, a recuperação da visão aos cegos, e o ano favorável de YHWH, e, que
para esta missão, o Espírito do Senhor estaria sobre ele com a unção (Lc 4,18).
Mas esta modalidade de salvação deverá ser acolhida também por sua mãe. Por
isso será sempre um exercício constante a atitude de “guardar” no coração e
meditar sobre os fatos e acontecimentos que a rodeiam. Por isso, Maria é nossa
mãe, modelo e companheira. Ela nos precede no discipulado e na missão.
O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite
para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Ajuda-nos a abrir-nos
para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus
em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo
tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.