domingo, 31 de dezembro de 2023

SOLENIDADE DE SANTA MARIA MÃE DE DEUS - Lc 2,16-21:

 


Durante oito dias, a Igreja permaneceu ao redor do menino de Belém. Hoje, concluindo a Oitava do Natal, a liturgia celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica, isto é, relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Sempre válido dizer e relembrar que tudo aquilo que se proclama acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que foi proclamado acerca de seu filho. Só se pode afirmar que ela é mãe de Deus porque Jesus, primogênito de Deus, e, portanto, Deus, se fez homem. Com a solenidade de Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais a realidade deste mistério, colocando acento, agora, na humanidade do Filho.

 

A proclamação de Fé eclesial sobre a maternidade divina de Maria, que já era celebrada pela tradição litúrgica da Igreja, possui seu contexto histórico e é importante recordá-lo. No século III, o bispo de Antioquia, Nestório, juntamente com seus companheiros acreditavam (de modo equivocado, é claro) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. Tal afirmação não era correta. Os primeiros concílios do cristianismo, começando por Nicéia (325 d.C) e culminando em Calcedônia (451 d.C), confessavam e professavam a unidade das naturezas (humana e divina) na pessoa Jesus. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou esta fé cristológica: em Jesus existe uma comunicação (de idiomas) tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo em sua totalidade, e não só de sua humanidade. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro e pleno Deus; verdadeiro e pleno homem.

 

O grande Ambrósio, bispo de Milão, refletia sobre a realidade da maternidade de Maria, afirmando que ela foi, primeiro, mãe de Jesus no coração conforme se tornava mãe de Deus na Carne. E isso, só foi possível mediante sua condição exemplar de discípula. É a segunda lição que o evangelho desta solenidade quer nos transmitir. Por isso, somos convidados a adentrar no seu horizonte.

 

A liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.

 

Lucas, após o parto narra o encontro dos pastores com a família de Nazaré em Belém (v.16), conforme fora dito pelo mensageiro celestial. Entra em cena o tema do evangelho destinado aos pobres e excluídos, os destinatários que o evangelista aprecia. Eles eram humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico.

 

Ao chegarem encontram tudo conforme lhes fora dito pelo anjo. O recém-nascido envolvido em faixas e posto numa manjedoura. É oportuna esta informação. Lucas quer enfatizar através da imagem do menino enfaixado, a Sua humanidade. Para que a comunidade e seus leitores nunca percam de vista a novidade que este acontecimento traz: Deus que se faz homem. O divino que se deixa envolver pelas faixas da humanidade. Aquela criança, cuidada e protegida, através de sua humanidade e fragilidade traz em si o divino.

 

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas (cf. v.19). Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (gr. συντηρέω/synterêo), que traduz o verbo Shemá, que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. “Guardar no coração” pode aludir a atitude da ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma.

 

Maria rumina o alimento da Palavra de Deus, bem como aqueles fatos carregados da força daquela mesma Palavra; rumina, como que em gradativo e necessário processo digestivo. A sua postura deve nos encorajar a aceitar os processos da vida e da história, de modo a compreender que nada é ou acontece num piscar de olhos, ou como que num passe de mágica. Ou mesmo, conforme a nossa vontade.

 

No esquema da obra lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu íntimo, ruminando-a, para, enfim, colocá-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é convidado e enxergar nela o modelo, a exemplaridade do discípulo de Jesus.

 

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula.

 

Mas a salvação que este menino-Deus e menino-homem trará será uma constante contradição. Será uma salvação que acolhe e reintegra a todos, sem distinções; uma salvação que atingirá a totalidade do ser humano e da história, isto é, que tocará todas as dimensões constitutivas deste cosmos, não sendo somente uma salvação do religioso, mas do humano, do social, do ético.

 

A vocação salvadora de Jesus emergirá de modo explosivo no capítulo 4 da catequese de Lucas, no episódio de Nazaré. A primeira palavra que sairá da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré será a de que seu projeto de vida e sua missão messiânica contemplará o anúncio da Boa Notícia aos pobres, a libertação aos cativos, a recuperação da visão aos cegos, e o ano favorável de YHWH, e, que para esta missão, o Espírito do Senhor estaria sobre ele com a unção (Lc 4,18). Mas esta modalidade de salvação deverá ser acolhida também por sua mãe. Por isso será sempre um exercício constante a atitude de “guardar” no coração e meditar sobre os fatos e acontecimentos que a rodeiam. Por isso, Maria é nossa mãe, modelo e companheira. Ela nos precede no discipulado e na missão.

 

O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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