sábado, 17 de junho de 2023

XI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 9,36 - 10,8:

 


A Liturgia do décimo primeiro domingo do tempo comum, continua a leitura do Evangelho segundo Mateus, a partir do final do capítulo nono, o qual serve de dobradiça para o “Discurso Missionário” contido no capítulo décimo, o segundo discurso-catequese de Jesus no evangelho mateano. No Discurso inaugural, o sermão da Montanha (Mt 5 – 7), Mateus tratou de apresentar a Jesus como novo Moisés, intérprete da Palavra de Deus ao novo povo de Israel, e, assim, o Messias por Palavras. Desde o capítulo oitavo, o evangelista trata de mostrar a atividade libertadora do Senhor, através dos gestos de poder que atestam sua autoridade como o Ungido de Deus. Na narrativa anterior, Jesus acolheu os cobradores de impostos e os pecadores, sentando-se à mesa com eles, ensinando que o amor a misericórdia de Deus destina-se aos pecadores, marginalizados e excluídos.  O texto termina com o início do capítulo décimo, o discurso missionário.

A conclusão do nono capítulo nos informa a respeito de um sentimento de Jesus diante da multidão que parecia ovelha sem pastor, cansada e abatida (v.36), deixada à própria sorte pelos pastores autorizados: os mestres da lei e os fariseus. Eles não se interessavam pela multidão de gente simples da Galileia, tratando-a com desprezo. O evangelista descreve a atitude de Jesus frente a situação: sente compaixão, pois são como um rebanho sem pastor (Ez 34; Jr 23,1-4; SI 23[22]).

A compaixão / misericórdia na bíblia, já refletimos, não é um sentimento apiedado ou adocicado, mas uma atitude operativa em favor de quem sofre. É a capacidade de colocar-se no lugar do outro, porque o seu sofrimento faz remexer as vísceras. Compaixão é traduzido do hebraico Rahamim (lit. visceras), cuja raiz provém de Hesed (amor/misericórdia). Jesus extravasa este amor entranhado de Deus pela humanidade sofredora através de agir existencial e salvífico. E então, faz uma constatação e uma recomendação em forma de parábola: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da messe que envie mais trabalhadores para a colheita”. Interessante notar que Ele não orienta os discípulos a pedir ao Pai do Céu que envie pastores, mas operários. Não há outro pastor para o povo a não ser Deus. Os outros colaboradores são apenas operários. Na mentalidade de Jesus, ao interno de sua comunidade não espaço para lugares privilegiados de domínio e comando; não há maior ou menor. Todos são irmãos (cf Mt 18). Assim, o “discurso missionário” que se inicia em seguida provém da compaixão de Jesus ao ver a gente simples semelhantes a “ovelhas sem pastor”.  

"Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus e para curarem todo tipo de doença e enfermidade” (v.10,1). O Senhor associa a si doze homens. O número doze simboliza totalidade; ele evoca a Israel, representado pelas doze tribos. Jesus, comprovado por Mateus como Messias poderoso através das obras, realiza mais um gesto importante: a reunião do Israel ferido e fragmentado ao instituir o seu grupo. Assim, Ele está refundando um novo Israel. É um gesto que institui sua comunidade de vida. Os discípulos são constituídos na condição de apóstolos (enviados), ou seja, para uma missão e não um título de honra.

Jesus lhes dá autoridade (gr. ἐξουσία/exousia), e não poder. Esta, não significa a faculdade ou o arbítrio de mandar e desmandar. Ela consiste na missão confiada pelo Pai. E encontra-se na coerência entre seu agir e falar. Jesus vive o que anuncia. Mas qual é a missão deste novo povo, simbolizado pelo grupo dos Doze? Os discípulos são constituídos apóstolos com a mesma missão de proclamar o evangelho do Reino e curar os enfermos, como acontece com Jesus. O ideal do discípulo é ser como o Mestre. Esta autoridade, outra coisa não é que viver conforme a vida, Palavra e obra do mestre. Assim, comunica a eles o Seu mesmo modo de viver e de ser.

O grupo é encabeçado por Pedro, e segue-se a lista dos outros onze (v.2-4). Este discípulo virá sempre como um porta-voz e representante do grupo. Ele servirá de modelo para o discípulo de todos os tempos, em todos os seus processos existenciais, em cada uma de suas resistências; na multiplicidade dos altos e baixos da vida. É um grupo difícil que Jesus associa a si. Note-se como termina a lista: citando o traidor, Judas Iscariotes (Is = homem / chariote = povoado; “homem do povoado”. Ora, não se pode esquecer o sentido negativo do termo “povoado”: ele indica mentalidade e pensamento fechados e equivocados, resistência ao novo, apego ao tradicionalismo). Tanto Simão Pedro como Judas refletem a mentalidade existente no grupo. Os doze são assim. Mas é com eles que deseja contar. Neles encontram-se reunidos, bem ou mal, os discípulos de todos os tempos e lugares. Mas caberá a cada um a sua tomada de decisão: configurar-se ou não à Jesus.

“Jesus enviou estes Doze, com as seguintes recomendações: Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!” (v.5-6). Numa leitura superficial ou extremista o dito pode ser mal compreendido, ou mesmo parecer contraditório a toda sua mensagem. A orientação de não ir aos samaritanos, nem onde moram os pagãos não se trata de exclusão. E a orientação seguinte, no v.6, explicita esta constatação: “Ide, antes (lit. primeiramente) às ovelhas perdidas da casa de Israel”. O adverbio “antes / primeiro” (gr. Μαλλον) indica precedência e não exclusividade ou exclusão. O mestre privilegia o povo judeu, mas não lhe dá exclusividade. Os pagãos também têm o direito de ser convidados para participar do Reino. A missão junto a Israel (particularidade) serve de trampolim/ponte para a missão junto das nações (universalidade).

A ação dos discípulos consistirá em proclamar que o Reino dos Céus se aproxima (Mt 4,17), bem como curar os enfermos, ressuscitar os mortos, limpar os leprosos, expulsar os demônios. Portanto, têm como tarefa refazer o caminho de Jesus-Messias, por palavras e por obras.  E, um traço característico da ação do discípulo enviado é a gratuidade. Já que receberam tudo de graça, também de graça devem oferecer.

O discurso missionário é endereçado a todos nós, os discípulos e discípulas (missionários) de todos os tempos e lugares. Por isso, diante do texto que funciona como um espelho para a nossa vida, podemos nos perguntar: 1) Tenho escutado o apelo de Jesus e me tornado operário da messe do Pai? Rezar para que surjam operários é necessário, mas também pedir a coragem de ser operário é importante; 2) Como temos vivido nosso discipulado-missionário: com o senso do privilégio e do exclusivismo, concebendo-nos como os tais e já salvos; ou temos exercido a missão, no serviço a todos, indistintamente? 3) Somos comunidade servidora e em saída, ou apenas um grupo exclusivo de amigos, ou, pior, um gueto bem fechado e excludente?

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu – SP

sábado, 10 de junho de 2023

X DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 9,9-13:

 


A liturgia dominical retoma o tempo comum. A leitura do evangelho segundo Mateus, a partir deste décimo domingo do tempo comum toma, novamente, espaço nas meditações litúrgicas. E o texto proposto é retirado do capítulo nono da catequese do evangelista, que encontra-se inserido na seção narrativa, imediatamente após o Sermão da Montanha, o discurso inaugural de Jesus. Através daquele ensinamento, Ele ofereceu as balizas para os discípulos e as multidões iniciarem e perseverarem no seguimento/discipulado do Reino. É característica própria do catequista Mateus estruturar desta maneira o seu escrito: após um discurso-catequese se seguir um bloco narrativo, através do qual mostrará o Senhor realizando o ensinamento anterior, ao mesmo tempo em que mostra ao discípulo como deve agir.

O texto de Mt 9,9-13 encontra-se no bloco narrativo que mostrará ação de Jesus como verdadeiro Messias pelas obras. Mateus apresentará curas, gestos e atitudes que têm por finalidade comprovar a autoridade do Senhor como enviado de Deus para inaugurar e realizar Seu Reinado. Assim, a narrativa, a partir do chamado de Mateus e do convite à misericórdia feitos por Jesus possui uma dupla finalidade: assimilar o modo de agir do mestre (v.v 9-10.12-13), e evitar a atitude (conduta, pensamento) dos fariseus (v.11).

“Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: "Segue-me!" Ele se levantou e seguiu a Jesus” (v.9). O autor sai de sua função de redator e passa para a de narrador-personagem. É apresentada a personagem Mateus: um cobrador de impostos a quem Jesus dirige um convite, “Segue-me”. De forma muito rápida, o autor informa que, após o chamado, “ele se levantou e seguiu a Jesus”. Se levantou de onde? Da mesa de coletoria de impostos, porque era sua profissão.

Jesus chama um cobrador de impostos. Esta categoria não era aceita e bem vista pelo povo. O publicano ou cobrador de impostos trabalhava para a maquina imperial, ou seja, para os dominadores romanos, cobrando os altos e abusivos impostos e, conforme ocasião, desviando para o bolso. Por isso, eles eram considerados inimigos públicos, traidores do seu povo, e, somado a isso, o aspecto religioso: eram rotulados de pecadores, pois o seu trabalho os fazia conviver com os dominadores pagãos, o que os colocavam em situação de impureza. E, portanto, incluídos nessa categoria. Alguém para não se ter por perto.

Recorde-se, que, nesta seção narrativa Mateus trata de mostrar a identidade de Jesus como messias mediante as obras. Por isso, a integração de Mateus à comunidade dos discípulos revela um traço da identidade messiânica do mestre: a solidariedade com os pecadores e marginalizados, porque eles são os destinatários de Sua missão salvadora, por serem os mais dependentes da misericórdia do Pai dos Céus. Ora, o evangelista quer ensinar para a sua comunidade (e para nós, comunidade de todos os tempos), que faz parte da obra do Ungido de Deus, o Messias-Jesus, recuperar a vida e a dignidade das pessoas marginalizadas e excluídas; é sua missão realizar a reunião dos pecadores. Onde se dá esta reunião? Qual a imagem profunda desta reunião?

O v.10 revela ao leitor-ouvinte. “Enquanto Jesus estava à mesa, em casa de Mateus, vieram muitos cobradores de impostos e pecadores e sentaram-se à mesa com Jesus e seus discípulos” (v.10). A mesa. Mais propriamente, a refeição (o banquete). Lugar e ocasião muito importante, principalmente para o povo de Jesus. Sentar-se à mesa e tomar refeição  com outras pessoas era uma ocasião privilegiada de convivência e de aperfeiçoamento das relações e dos laços humanos. É, pois, ao redor da mesa que o Cristo reúne-se com estas pessoas. Supõe-se que seja a casa de Mateus (embora o original grego não mencione isso, diferente da tradução litúrgica), devido ao fato de que muitos cobradores de impostos e pecadores se faziam presentes. É interessante notar que Jesus se sente a vontade com eles, porque eram seu público preferido, pois possuía a consciência de ter sido enviado pelo Pai para resgatá-los das muitas formas de desumanização. Por outro lado, eles se sentem a vontade com o mestre, porque ele não os tratava com violência, hostilidades e moralismos. Ao contrário, era-lhes próximo, acolhia e convivia com eles. Para além deste aspecto da mesa/refeição como lugar de acolhimento, partilha, fortalecimento das relações, está a conotação religiosa. O banquete/refeição, associado ao sentar-se à mesa, era sinal de que o tempo messiânico havia chegado, de que o Messias seria revelado. Mas só sentaria à mesa com ele quem tivesse sido merecedor.

Imbuídos desta mentalidade, aparecem os fariseus, que, devido ao fato de Jesus estar sentado com esse tipo de gente interrogam os discípulos: “Alguns fariseus viram isso e perguntaram aos discípulos: Por que vosso mestre come com os cobradores de impostos e pecadores?” (v.11). São os fiscais. Querem explicações para censurarem a Jesus. “Por que ele faz isso? Não está certo! Estas pessoas são gente impura. Ele está se contaminando com a impureza destes! Ele os está legitimando! Está se desautorizando, e a nós também!” Ou seja, querem chamar a atenção dos discípulos acerca da inconveniência de seguirem a Jesus, desviando-se, assim, da “autêntica” religiosidade deles.

Os versículos seguintes trazem a lição a ser assimilada e aprendida. “Jesus ouviu a pergunta e respondeu: Aqueles que têm saúde não precisam de médico, mas sim os doentes” (v.12). O Senhor se dá ao trabalho de responder aos fariseus. Faz uso, primeiramente, da metáfora do médico. Aqueles que estão doentes precisam dos seus serviços. Fica evidente que, os doentes dos quais se refere o mestre são os pecadores e os cobradores de impostos. Mas não fica estabelecido quem são os sadios, que não precisam de médico. Jesus não diz na metáfora que os fariseus são os saudáveis. Porque, na verdade, não o são. Eles apresentam uma doença religiosa: a religiosidade hipócrita, desconectada da vida e das relações interpessoais. Esta metáfora, portanto, ilustra o interesse de Jesus pelos pecadores e cobradores de impostos, a quem a misericórdia do Pai deve alcançar por primeiro. Já os fariseus, religiosos (enfermos) e seguros de estar em dia com Deus não são motivo para as preocupações de Jesus.

No v.13, Jesus dá cartada final, ao recuperar a mensagem do profeta Oseas (Os 6,6): “Aprendei, pois, o que significa: Quero misericórdia e não sacrifício. De fato, eu não vim para chamar os justos, mas os pecadores”. O Senhor chama a atenção e corrige os fariseus, recordando a pregação do profeta Oseas, que, já no século VIII, censurava incoerência da vida de fé do povo de Israel. Ela encontrava-se desvinculada da vida e das relações fraternas. Assim como o profeta, Jesus questiona aquela religião que religa também ao próximo. A misericórdia é uma atitude que brota do íntimo, das entranhas literalmente, e que faz agir em favor do outro que necessita. A iniciativa de ajudar o outro que não pode a ocupar o lugar que não pode, isso segundo os critérios desta realidade. Tal atitude deve ser fruto da religião plenamente vivida. Não pode haver esquizofrenia nesse sentido.

A citação de Oseas, que Jesus faz, é uma declaração do interesse do Pai pela prática da misericórdia em detrimento do culto. Esse horizonte norteia a existência e a missão do Cristo. A compaixão para com os pecadores e cobradores de impostos condiz precisamente com o que o Pai quer e espera Dele. A misericórdia de Deus é e sempre será humanizadora. Será resgate e devolução da vida e da dignidade do outro. Ela será o termômetro da vida de fé e da prática religiosa. Uma religião que não se traduza em misericórdia não terá sentido para Jesus.

O discípulo é convidado a assimilar o modo de vida e o agir de Jesus, que se coloca ao lado dos excluídos, dos pecadores, pois ele também se insere nesta condição, da qual o Senhor lhe resgata. E evitar a mentalidade e o modo de agir dos fariseus. Mesmo sendo discípulo pode-se correr o risco de carregar em si os resquícios de um farisaísmo extremo.

O texto sempre traz seus questionamentos. 1) Nossas comunidades conseguem identificar os cobradores de impostos e pecadores de hoje, sem moralismos e hostilidades, mas com acolhimento e amor? 2) Quais são nossas posturas e atitudes diante destes? 3) Temos cedido ou incorporado a estes nos lugares ao redor da mesa? 4) Quais resquícios de farisaísmos existem em nós e em nossas comunidades? 5) Temos agido como Jesus, sendo sinal de misericórdia para o outro, ou temos agido como os fariseus que fiscalizam, censuram, hostilizam e condenam (“Este não pode estar aqui!”; “Aqui não há espaço!”; “Ele não merece este lugar”; “Este não pensa e faz como eu; não pode ser melhor do que eu!”).

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário  São Judas Tadeu, Avaré; Arquidiocese de Botucatu-SP.


quinta-feira, 8 de junho de 2023

SOLENIDADE DE CORPUS CHRISTI (Ano A) - Jo 6,51-58:


 A liturgia apresenta para a meditação, o capítulo sexto do evangelho joanino, no qual o autor concentrou uma catequese eucarística: o discurso acerca do pão da vida. João, ao contrário dos outros três evangelistas, não apresenta o tema da eucaristia como parte integrante da ceia pascal. Ele prefere narrar o gesto do lava pés, e reúne, portanto, num único capítulo um discurso explicativo para o sinal que acabara de realizar, a condivisão/multiplicação dos pães.

O capítulo sexto começa com a realização de um sinal, a multiplicação dos pães. Jesus realiza a fração dos pães e dos peixes como gesto profético e simbólico que fazem alusão à entrega, partilha, fração de sua própria vida na cruz. Mas os discípulos e a multidão que caminha com Ele não entendem o Sinal. Confundem-no com um fazedor de milagres; e, pior, com uma falsa ideia de messias e rei. A tal ponto de fazer com que ele saísse do meio deles para evitar esse equívoco. Em seguida, o Senhor se dirige à sinagoga de Cafarnaum. Ali, encontra-se novamente com a multidão (que tem em seu meio os chefes do povo, os Judeus), e se põe a ensinar, explicando o gesto que realizou anteriormente. Neste contexto e ambiente que se desenvolve o discurso/catequese a respeito do pão da vida.

O discurso é costurado por elementos simbólicos, que pertencem ao patrimônio das Sagradas escrituras de Israel. O elemento simbólico/material do pão é o primeiro que aparece. Ele simboliza duas coisas: o alimento material que sacia a necessidade vital que é a fome, a Sabedoria/Palavra de Deus. Ele costurará todo o discurso, sofrendo variação apenas nos adjetivos: Pão do Céu; Pão vivo descido do Céu; Pão da vida. Até Jesus se declarar “Eu sou o Pão vivo descido do céu”. Dois outros elementos, também simbólicos, emergem na pregação do Senhor neste capítulo sexto – e, precisamente, neste trecho meditado pela liturgia – são carne e sangue. A carne (gr. σάρξ/Sarx) é a composição mais frágil da constituição humana. Ela acena justamente para esta realidade: limitação, finitude, fragilidade. Que, unida ao corpo, na antropologia bíblica, simbolizam a existência histórica de uma pessoa. Por fim, o sangue (gr. αἷμα/aîma). Este é símbolo da vida.

No versículo 51, o evangelista transmite a declaração de Jesus: “Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo". O Senhor se autoproclama Pão vivo descido do céu. Recordando o significado simbólico do pão dito acima, João pretende mostrar para a sua comunidade e para nós esta realidade: Jesus é a Sabedoria/Palavra que desce do céu, ou seja, que vem de Deus. O Pão/palavra que o Pai dá, oferece, envia é Seu próprio Filho.

Jesus utiliza o verbo comer e sua consequência: ter a vida de Deus. Comer é uma metáfora para a atitude da assimilação. Em simples palavras, o Senhor declara que aquele e aquela que o acolhem e assimilam o sentido de sua vida, enquanto Palavra/Sabedoria de Deus tem a possibilidade de participar da vida de Jesus e do Pai.

Diante da dificuldade de compreensão da multidão, da murmuração dos chefes religiosos do povo (que comentaremos por último) e dos discípulos, Jesus chama a atenção deles, através de uma declaração solene, a qual visa despertar o discípulo que ouve para um ensinamento importante. “Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós”. Jesus atribui ao Pão um novo significado: é sua carne e seu sangue. Essa variação é muito importante, porque ele tem a intenção de revelar que a sua carne, isto é, sua existência limitada, e seu sangue, símbolo de sua vida, são, agora, as mediações (os meios) através dos quais a Palavra/Sabedoria de Deus se faz presente na história. Dizendo de uma forma mais simples, o discípulo é chamado a assimilar (comer) o sentido da existência (a carne) e da vida; a ver e contemplar todos os gestos, atitudes e opções de que Jesus fez na carne e no sangue, e, portanto, fazer sua opção por Ele. A consequência será ter a vida, a existência – a carne e o sangue – de Jesus em si mesmo. Sendo capazes de transformar a vida numa plenitude de sentido: numa vida em tons e cores de eternidade.

Agora, o texto chama a atenção do leitor para um perigo. A atitude dos Judeus. No v.52, o autor informa: “Os judeus discutiam entre si, dizendo: Como é que ele pode dar a sua carne a comer?”. Na verdade, o sentido do verbo discutir dá a entender que eles estivessem debatendo uma ideia. Mas, na verdade, o verbo correto é “murmurar”. Os judeus são os chefes religiosos de Israel. Eles murmuram contra o ensinamento de Jesus. Acontece, que a murmuração corresponde ao pecado do povo contra Deus, no AT. Eles murmuravam por estarem no caminho do deserto, recusando toda a ação libertadora de Deus. Da mesma forma, os chefes religiosos murmuram contra Jesus, ou seja, recusam aceita-lo como Dom de Deus. Ao murmurar, questionam a ação do Pai através de Jesus. Rejeitam assimilar o sentido da vida e obra do Senhor. Este é o perigo sobre o qual nos adverte o evangelista: recusar a forma, o modo, o sentido, as atitude e opções de Jesus como ações do próprio Deus. O discípulo que escuta e caminha com Jesus não pode ter esta atitude. Ao comer da Carne e beber do Sangue de Jesus, o discípulo se compromete em assimilar todo o sentido da existência, vida e obra do Senhor. Por isso, quais são as murmurações e discussões que alimentamos em relação a estas palavras de Jesus?

O discípulo precisa crescer na consciência de que ao comer (assimilar) a carne e beber do sangue do Senhor, está comungando (estabelecendo comunhão de vida) todo a Sua vida. Está sendo provocado a colocar sua existência em relação ao Cristo, a fim de se tornar, histórica e concretamente, sua carne e seu sangue nesta realidade. Ser os olhos, o coração, as mãos, os pés, isto é, o corpo real e histórico do Senhor Jesus no aqui e no agora, a fim de transformar este mundo. Pois, “Que come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele” (v.56). Para viver e construir a unidade do Corpo de Cristo (a Igreja) na história (cf. 1Cor 10,17).

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 3 de junho de 2023

SOLENIDADE DA SANTÍSSIMA TRINDADE - Jo 3,16-18:

 


A Igreja celebra a solenidade da Santíssima Trindade. Ela serve como dobradiça do tempo pascal para o tempo comum, embora, com a Solenidade de Pentecostes o ciclo da páscoa tenha se encerrado. Qual o sentido de celebrar  Deus Uno e Trino na liturgia? Precisamente realçar a novidade de vida que o Mistério Pascal de Cristo conquista e realiza na vida de cada pessoa humana que aderiu a Jesus: a vida ressuscitada e, portanto, divina que o Pai faz através do dom da existência do Filho, sendo mergulhada na plenitude da vida e do amor deste Deus Uno e Trino.

A liturgia da solenidade de hoje propõe a leitura do capítulo três do Evangelho segundo João. Um texto denso desde o início. O autor coloca em cena Jesus em diálogo com um chefe proeminente dos Judeus, o fariseu Nicodêmos dentro de um contexto ainda maior, isto é, imediatamente às palavras (episódio) contra o templo (Jo 2,13-25). Naquele episódio, o Senhor apontava para a novidade escatológica que ele mesmo trazia da parte de Deus: seu corpo (templo) lugar da manifestação da glória de Deus. A novidade da presença de Deus em seu Cristo, Jesus de Nazaré, e não mais no sistema levítico-cultual da tradição judaica. O tema da novidade envolve o capítulo.

O texto apresenta a temática do novo nascimento, da necessidade de se aderir e vivencia-lo, e a incompreensão do fariseu frente a toda esta catequese dada pelo Mestre. Este capítulo pode muito bem assumir o tom do gênero literário de uma homilia proferida por Jesus ao mestre de Israel. Precisamente, o trecho pinçado pela liturgia é uma atualização da Palavra de Deus que o Cristo realiza para o chefe dos fariseus, acerca da ação salvadora de Deus. É neste capítulo que, pela primeira e única vez, aparece a temática acerca do Reino de Deus, que depois é substituído pelo conceito Vida ou Vida Eterna.

Nicodemos é um fariseu, e, enquanto tal, faz parte dos que pensam e concebem ideologicamente a manifestação do Messias e de Deus como sendo ocasião do juízo e da condenação para os pecadores. Mas Jesus lhe revela mais uma novidade: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (v.16). O Cristo se declara como a expressão do amor de Deus, devido ao fato do Pai dar/doar a vida do seu Filho.

Uma constatação importante. Jesus afirma que “Deus deu seu Filho...”. E o evangelista João consegue absorver o sentido do dito do Senhor, e, por isso, emprega o verbo doar (gr. δίδωμι/didomi). O Pai presenteia, doa, a vida de seu Filho a fim de que a humanidade tenha vida. Deus não enviou ou entregou Jesus para sofrer e morrer, nem o entregou para que Ele pagasse com seu sangue e com a morte os pecados do mundo. Deus não é um sanguinário, frio ou cruel que se deixa aplacar ou que se entretém com o sofrimento do outro. Muito menos o de Seu unigênito Filho. 

Deus elimina o pecado do mundo através da vida de Seu Filho. Jesus, com o sentido de sua existência, obra, missão retira e destrói a separação relacional que existia entre Deus e o homem. Ainda que sua existência passe pela eventualidade de uma morte. Mesmo que tenha que entregar a vida.

A vida vivida de Jesus, através de Sua existência e Obra, é a que doa, oferece e plenifica a vida do ser humano que a adere e a recebe. Esta existência absolutamente salvífica é doadora da vida de Deus para nós. O Senhor é o “dom” de Deus que manifesta seu amor e sua graça.

O v.18 aprofunda o sentido do verbo “julgar/condenar” (v.17). Aquele que aceita o Dom de Deus, isto é, adere a Jesus, não é condenado por Ele. Aqueles que fazem a opção pela existência do Filho, que assimilam o Seu modo de viver e de ser, que escutam a Sua Palavra, já passaram pelo julgamento e já receberam sua sentença: a vida. Mas quem não crê, já condenou a si mesmo. A condenação não é sentença divina, mas consequência humana das escolhas e opções de cada pessoa. Há que se deixar claro que João não está falando de pessoas que nunca ouviram falar de Jesus (quer seja naquela época ou hoje). Mas se dirige àqueles que já conhecem a mensagem cristã.  A afirmação do Cristo que o evangelista recolhe soa quase como uma pergunta: “vocês comprometem as suas vidas com a deste Jesus?” O Quarto Evangelista dirige esta pergunta àqueles que perceberam o valor vital de Jesus e, mesmo assim, não querem aceita-lo. É a estes que é dirigido o julgamento, cuja sentença é a autocondenação.

Quem despreza o Dom de Deus – em Jesus – a vinda do Senhor ao mundo como luz já se torna juiz de sua própria condenação (cf. 9,41). Fogem da Luz, preferindo ficar nas trevas, e por isso não a suportam. Quem “pratica a verdade” e age com lealdade em relação a Deus e aos irmãos, esse aproxima-se da luz que é Jesus.

Deus Uno e trino se dá a conhecer através de Jesus de Nazaré, no Espírito, que introduz o ser humano, cada pessoa, na vida mesma de Deus. Da vida da Trindade todos são chamados a participar mediante a Graça do Batismo, que mergulha a pessoa na relação e na ordem experiencial do amor da Trindade. Ela eleva o ser humano redimido para dentro si, a fim de que a tenha e a traga em si mesmo. E se empenhe por viver uma vida segundo o modelo da Trindade: amor, comunhão e unidade.

Habitados que fomos pela Trindade, somos chamados a irradiar, como discípulos-missionários, e, enquanto comunidade, a vida e ação do Deus Uno e Trino.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.