A Liturgia do décimo primeiro domingo do
tempo comum, continua a leitura do Evangelho segundo Mateus, a partir do final
do capítulo nono, o qual serve de dobradiça para o “Discurso Missionário”
contido no capítulo décimo, o segundo discurso-catequese de Jesus no evangelho
mateano. No Discurso inaugural, o sermão da Montanha (Mt 5 – 7), Mateus tratou
de apresentar a Jesus como novo Moisés, intérprete da Palavra de Deus ao novo
povo de Israel, e, assim, o Messias por Palavras. Desde o capítulo oitavo, o
evangelista trata de mostrar a atividade libertadora do Senhor, através dos
gestos de poder que atestam sua autoridade como o Ungido de Deus. Na narrativa anterior,
Jesus acolheu os cobradores de impostos e os pecadores, sentando-se à mesa com
eles, ensinando que o amor a misericórdia de Deus destina-se aos pecadores,
marginalizados e excluídos. O texto
termina com o início do capítulo décimo, o discurso missionário.
A conclusão do nono capítulo nos informa a respeito de um sentimento de Jesus diante da multidão que parecia ovelha sem pastor, cansada e abatida (v.36), deixada à própria sorte pelos pastores autorizados: os mestres da lei e os fariseus. Eles não se interessavam pela multidão de gente simples da Galileia, tratando-a com desprezo. O evangelista descreve a atitude de Jesus frente a situação: sente compaixão, pois são como um rebanho sem pastor (Ez 34; Jr 23,1-4; SI 23[22]).
A compaixão / misericórdia na bíblia, já refletimos, não é um sentimento apiedado ou adocicado, mas uma atitude operativa em favor de quem sofre. É a capacidade de colocar-se no lugar do outro, porque o seu sofrimento faz remexer as vísceras. Compaixão é traduzido do hebraico Rahamim (lit. visceras), cuja raiz provém de Hesed (amor/misericórdia). Jesus extravasa este amor entranhado de Deus pela humanidade sofredora através de agir existencial e salvífico. E então, faz uma constatação e uma recomendação em forma de parábola: “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi, pois, ao dono da messe que envie mais trabalhadores para a colheita”. Interessante notar que Ele não orienta os discípulos a pedir ao Pai do Céu que envie pastores, mas operários. Não há outro pastor para o povo a não ser Deus. Os outros colaboradores são apenas operários. Na mentalidade de Jesus, ao interno de sua comunidade não espaço para lugares privilegiados de domínio e comando; não há maior ou menor. Todos são irmãos (cf Mt 18). Assim, o “discurso missionário” que se inicia em seguida provém da compaixão de Jesus ao ver a gente simples semelhantes a “ovelhas sem pastor”.
"Jesus chamou os doze discípulos e deu-lhes poder para expulsarem os espíritos maus e para curarem todo tipo de doença e enfermidade” (v.10,1). O Senhor associa a si doze homens. O número doze simboliza totalidade; ele evoca a Israel, representado pelas doze tribos. Jesus, comprovado por Mateus como Messias poderoso através das obras, realiza mais um gesto importante: a reunião do Israel ferido e fragmentado ao instituir o seu grupo. Assim, Ele está refundando um novo Israel. É um gesto que institui sua comunidade de vida. Os discípulos são constituídos na condição de apóstolos (enviados), ou seja, para uma missão e não um título de honra.
Jesus lhes dá autoridade (gr. ἐξουσία/exousia), e não poder. Esta, não significa a faculdade ou o arbítrio de mandar e desmandar. Ela consiste na missão confiada pelo Pai. E encontra-se na coerência entre seu agir e falar. Jesus vive o que anuncia. Mas qual é a missão deste novo povo, simbolizado pelo grupo dos Doze? Os discípulos são constituídos apóstolos com a mesma missão de proclamar o evangelho do Reino e curar os enfermos, como acontece com Jesus. O ideal do discípulo é ser como o Mestre. Esta autoridade, outra coisa não é que viver conforme a vida, Palavra e obra do mestre. Assim, comunica a eles o Seu mesmo modo de viver e de ser.
O grupo é encabeçado por Pedro, e segue-se a lista dos outros onze (v.2-4). Este discípulo virá sempre como um porta-voz e representante do grupo. Ele servirá de modelo para o discípulo de todos os tempos, em todos os seus processos existenciais, em cada uma de suas resistências; na multiplicidade dos altos e baixos da vida. É um grupo difícil que Jesus associa a si. Note-se como termina a lista: citando o traidor, Judas Iscariotes (Is = homem / chariote = povoado; “homem do povoado”. Ora, não se pode esquecer o sentido negativo do termo “povoado”: ele indica mentalidade e pensamento fechados e equivocados, resistência ao novo, apego ao tradicionalismo). Tanto Simão Pedro como Judas refletem a mentalidade existente no grupo. Os doze são assim. Mas é com eles que deseja contar. Neles encontram-se reunidos, bem ou mal, os discípulos de todos os tempos e lugares. Mas caberá a cada um a sua tomada de decisão: configurar-se ou não à Jesus.
“Jesus enviou estes Doze, com as seguintes recomendações: Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!” (v.5-6). Numa leitura superficial ou extremista o dito pode ser mal compreendido, ou mesmo parecer contraditório a toda sua mensagem. A orientação de não ir aos samaritanos, nem onde moram os pagãos não se trata de exclusão. E a orientação seguinte, no v.6, explicita esta constatação: “Ide, antes (lit. primeiramente) às ovelhas perdidas da casa de Israel”. O adverbio “antes / primeiro” (gr. Μαλλον) indica precedência e não exclusividade ou exclusão. O mestre privilegia o povo judeu, mas não lhe dá exclusividade. Os pagãos também têm o direito de ser convidados para participar do Reino. A missão junto a Israel (particularidade) serve de trampolim/ponte para a missão junto das nações (universalidade).
A ação dos discípulos consistirá em proclamar que o Reino dos Céus se aproxima (Mt 4,17), bem como curar os enfermos, ressuscitar os mortos, limpar os leprosos, expulsar os demônios. Portanto, têm como tarefa refazer o caminho de Jesus-Messias, por palavras e por obras. E, um traço característico da ação do discípulo enviado é a gratuidade. Já que receberam tudo de graça, também de graça devem oferecer.
O discurso missionário é endereçado a todos nós, os discípulos e discípulas (missionários) de todos os tempos e lugares. Por isso, diante do texto que funciona como um espelho para a nossa vida, podemos nos perguntar: 1) Tenho escutado o apelo de Jesus e me tornado operário da messe do Pai? Rezar para que surjam operários é necessário, mas também pedir a coragem de ser operário é importante; 2) Como temos vivido nosso discipulado-missionário: com o senso do privilégio e do exclusivismo, concebendo-nos como os tais e já salvos; ou temos exercido a missão, no serviço a todos, indistintamente? 3) Somos comunidade servidora e em saída, ou apenas um grupo exclusivo de amigos, ou, pior, um gueto bem fechado e excludente?
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese
de Botucatu – SP
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