sábado, 24 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 10,11-18:

 


A liturgia deste quarto domingo do tempo pascal retoma a leitura do evangelho joanino. O texto proposto é a alegoria do pastor, retirado dos versículos de 11-18 do capítulo décimo. O texto rico e denso. Por isso, se faz necessário contextualizar Jo 10, bem como fazer emergir o pano de fundo do Antigo Testamento inerente a ele.

O capítulo décimo do Quarto Evangelho apresenta a temática do pastoreio. Este tema era muito presente na vida do povo de Deus. É importante, primeiramente, saber que o rebanho/ovelha é um símbolo aplicado à Israel. Já a imagem do pastor era atribuída ao próprio Deus. Mas, no decorrer da história do povo, foi sendo atribuída às suas lideranças, os reis e sacerdotes, a alcunha de pastores do povo. Mas, a história mostrou que esta função não foi desempenhada “segundo o coração de Deus (cf. Ez 34)” pelas mesmas lideranças.

O texto, em seu contexto próximo, situa-se imediatamente após o sinal realizado por Jesus devolvendo a visão ao cego de nascença. O Sinal em Jo 9 consiste na revelação de Jesus como o enviado (hbr. siloé) para trazer a Luz para o mundo. O cego de nascença é, ao mesmo tempo, instrumento através do qual Jesus revela a Glória de Deus e metáfora para as lideranças do povo, as quais estavam cegas, recusando conscientemente ver a Luz de Deus que se manifestava em Jesus de Nazaré, e, cegadas, igualmente pelo poder, pelos privilégios e pela mentalidade mundana. Tal é corroborado pela postura destas lideranças judaicas. Ao invés de cuidar e acolher o povo, promovendo-lhe a vida e a dignidade, acabavam expulsando de seu meio a gente simples; aqueles que lhes representavam alguma ameaça (entre estes, os seguidores do Nazareno), ou, porque, simplesmente viviam fora de seus padrões. Sabendo disso, Jesus vai ao encontro do ex-cego (Jo 9,35-37). É para aquelas lideranças que o evangelista estabelece um contraste com Jesus.

O capítulo 34 do profeta Ezequiel serve de pano de fundo para que o evangelista transmita sua catequese para sua comunidade. O profeta denuncia os maus pastores de Israel, os quais apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, Deus tomaria a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidaria, ele mesmo, do rebanho (cf. Ez 34,11).

O texto inicia-se a partir do v.11, com uma declaração importante de Jesus: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. Na intenção de estabelecer uma distinção entre Jesus e os líderes do povo, os fariseus e sacerdotes, o evangelista recupera esta declaração solene de Jesus, que pode ser traduzida literalmente assim “O pastor exemplar sou eu”. A expressão “Eu sou” (gr. Ἐγώ εἰμι – egô eimí) recorda a condição divina de Jesus, pois essa é a fórmula que chamamos de revelação. Por exemplo, Deus tinha se revelado a Moisés desse modo (cf. Ex 3,14). O evangelista João a emprega somente à Jesus, em sua obra. Assim, ele afirma que Jesus possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo, ao revelar-se como pastor autêntico. Nesse sentido, é importante compreender o adjetivo utilizado pelo autor, no original grego. Ele não utiliza o termo “bom”, mas “belo (gr. καλός / kalós)”, exemplar, nobre, valente.

A intenção de João é a de indicar e reavivar o horizonte de sua comunidade, e para aqueles que estão iniciando-se na fé, que Jesus é o protótipo do pastor. É o pastor exemplar, aquele que empenha sua vida pelas ovelhas. Ao contrário do simples assalariado, que foge quando se apresenta um perigo ou ameaça. Assalariado (gr. μισθωτός / misthotos) é o termo mais apropriado que “mercenário”. Havia um costume na sociedade do tempo de Jesus de se terceirizar a supervisão do rebanho, contratando e pagando uma diária a alguém, para que cuidasse do rebanho durante a noite. Ora, o assalariado foge porque verdadeiramente não está comprometido com o bem e com o cuidado das ovelhas, e sim com sua vida e próprio bem-estar; não se sente afetiva e efetivamente ligado a elas, mas ao lucro que pode vir através delas. Aqui, representa a hierarquia religiosa de Jerusalém.

Jesus chega ao ponto alto de sua crítica à hierarquia religiosa de Jerusalém. Aos sacerdotes do templo, não importava a situação do povo, eles pensavam apenas nas ofertas que recebiam. O lobo é imagem das forças de morte, exploração e injustiça que ameaçam a comunidade e a humanidade de um modo geral. Nesse contexto específico, representa o império romano. Ao invés de combatê-lo, a religião comandada por mercenários prefere aliar-se ou fugir dele. No caso da religião praticada no tempo de Jesus na Palestina, havia conivência e conveniência entre as autoridades religiosas e o império romano, de modo que mercenário e lobo conviviam muito bem, espoliando as pobres ovelhas de Israel. É importante recordar que as denúncias de Jesus às estruturas da sua época são válidas para todos os tempos (CORNELIO, F, Homilia dominical in.porcausadeumcertoreino.blgospot.br)

Esta é a imagem que o Jesus de João se serve para colocar-se como contraponto. O catequista autor do Quarto Evangelho gosta da técnica do contraste: precisamente nesse sentido é que Jesus se declara como pastor ideal e exemplar. Ele possui uma relação e um vínculo estreitos com seu discípulo. A tal ponto de colocar a sua vida em relação à do discípulo, da ovelha. “Eu conheço minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu empenho minha vida (lit.: dou/ponho minha alma) pelas ovelhas (do Pai!)” (v.14-15). Entre Jesus e os seus discípulos existe uma comunhão que se fundamenta na comunhão existente com o Pai. Por causa dessa comunhão, ele põe sua vida em jogo por suas ovelhas (vv. 17-18). Essa comunhão é uma comunhão de vida e de amor. O conhecer do qual Jesus se refere não é um ato epistemológico, mas a capacidade de se estabelecer uma relação intima e pessoal com o outro. A intimidade de Jesus com as suas ovelhas é atestada pela sua capacidade de amar até as últimas consequências da doação da própria vida.

Um questionamento importante que o texto nos faz: como as ovelhas podem conhecer o seu pastor, ou, de outro modo, como o discípulo pode fazer a experiência pessoal com Jesus? Umas das características fundamentais do pastor exemplar, o qual Jesus revela ser é a proximidade e intimidade entre Ele e o discípulo. Nisso João é muito feliz ao descrever Jesus como pastor. Na perspectiva do evangelista, o pastor não carrega ninguém ao colo. Ao contrário, Ele caminha a frente e junto de suas ovelhas. É um pastor que aponta caminhos e que os percorre juntamente com elas. O discípulo que assimila e percorre o caminho que Jesus faz consegue assimilar o sentido salvífico que a vida dele possui, e vai se tornando capaz de assumir como modelo exemplar para sua vida e seu discipulado, a vida do mesmo Senhor.

O pastor-modelo não se ocupa somente com os que vêm de perto, os de casa, o grupo estabelecido. “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v.16). Quem são estas ovelhas das quais Jesus fala? Devemos unir os horizontes do tempo narrado, os anos 30 da vida e ministério públicos de Jesus, com os anos 90 d.C da vida da comunidade joanina. As ovelhas que são de outro rebanho correspondem mais aos horizontes do tempo da comunidade e muito provavelmente seriam os samaritanos (primeiro grupo a acolher a fé em Jesus, após sua ressurreição) e aos greco-romanos provindos do paganismo. Esta fusão de horizontes permite retirar a mensagem para o hoje da comunidade: a comunidade que se diz seguidora de Jesus não pode pensar somente em si mesma e orientar as suas ações para seu próprio umbigo. Se ela assimilou a exemplaridade da vida e da obra do Pastor ideal que é o Cristo, deverá ela também se tornar uma comunidade em pastoreio, sendo doadora e promotora da vida Ele doa. Não basta ocupar-se com os que moram em torno da igreja matriz; com os que estão próximos; com aqueles que “pensam como nós”.

“Ninguém tira a minha vida, eu a dou por mim mesmo; tenho poder de entregá-la e tenho poder de recebê-la novamente; esta é a ordem que recebi do meu Pai” (v.18). Jesus dá a sua vida e por isso pode retomá-la. Todavia é preciso compreender o sentido da expressão “para que” (gr. ἵνα / hina), no grego de João. É preferível traduzi-la por “de sorte que”. Ou seja, Jesus pode retomar a vida de que ele doa, pois ninguém a tira dele contra sua vontade. Ele empenha sua vida porque quer, soberanamente, assim como ele pode retomá-la (pois ele tem poder sobre a vida, cf. Jo 5,26). É o que acontece na ressurreição. Esse é o mandato (lit. “mandamento”), o encargo que recebeu do Pai: amar, a ponto de dar a própria vida de forma livre e gratuita.

Se o discípulo quiser, verdadeiramente, fazer a experiência com Jesus, deverá colocar-se no seguimento a Sua pessoa e no assimilar a exemplaridade de sua vida.

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 17 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA - Lc 24,35-48:

 


“Se Jesus ressuscitou, verdadeiramente, onde se pode fazer experiência com ele?” Essa era a pergunta das comunidades cristãs e das gerações seguintes dos seguidores de Jesus. O texto deste terceiro domingo do tempo pascal, retirado da catequese de Lucas – Lc 24,38-45 – trata de responder a essa pergunta da comunidade de seu tempo, e às duvidas e questionamentos sempre presentes e atuais da comunidade cristã, hoje.

O texto proposto para a liturgia deste domingo pascal situa-se no capítulo vinte e quatro do Evangelho segundo Lucas. No plano temporal-cronológico, o leitor e a comunidade estão fazendo a experiência daquele “primeiro dia” da semana. A narrativa situa-se imediatamente após a passagem conhecida do encontro com o Jesus Ressuscitado, em Emaús. É importante que sempre se tenha presente que esses relatos evangélicos de Jesus ressuscitado não pretende narrar uma aparição, tampouco pretende ser uma crônica de fatos.

Os relatos do N.T que narram Jesus ressuscitado descrevem um encontro, e não uma aparição. Encontro, porque a iniciativa de manifestar-se aos discípulos parte totalmente do Senhor. Ele lhes vem ao encontro. Não se trata de uma insistência da comunidade, porque ela está desbaratada, frustrada e desorientada pelos acontecimentos das horas e dos dias anteriores: a morte trágica do mestre, que, conforme pensavam, seria um profeta poderoso em obras e palavras e que fosse restaurar a realeza davídica. Por isso, por exemplo, os discípulos se dirigem frustrados para Emaús, direção oposta de Jerusalém. Vão na contramão da proposta de Jesus.

Do contexto próximo da passagem dos discípulos de Emaús – Lc 24,13-35 – é que o texto de hoje parte. “os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão” (v. 35). O evangelista começa a dar as pistas para o reconhecimento do ressuscitado e para a oportunidade de se fazer a experiência com Ele e com o sentido de sua vida. Eles falam sobre Jesus. O falar a respeito do Senhor já é uma forma de se fazer e atualizar sua presença em meio. Porém, eles relatam uma experiência: reconheceram-no ao partir do pão, quando estavam à mesa com Ele. O partir do pão – estar à mesa – tem dois significados muito profundos e importantes.

O primeiro está na cotidianidade do gesto. Trata-se de um gesto simples, mas, ao mesmo tempo vital. O evangelista pretende acenar para a sua comunidade que busca pistas para encontrar-se com Jesus que, este encontro se dá na simplicidade e no cotidiano dos gestos familiares, relacionais. Outro significado profundo do partir do pão – do sentar-se à mesa – reside na importância desta ocasião. Para o povo de Jesus, a refeição era o lugar privilegiado para se fazer uma experiência de comunhão e de partilha da vida. Ora, falar de Jesus e “partir o pão” se tornam as vias seguras para se fazer uma experiência genuína de vida com Ele. Mas, no partir do pão não se deve fixar somente um rito repetível, mas no sentido para o qual esse rito aponta: a partilha e a entrega da vida como dom e serviço aos irmãos e aos mais necessitados. Quando a comunidade partilha – vive do sentido da vida de Jesus – e fala do Senhor, ela vive a mesma vida Dele.

“Ainda estavam falando quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: “A paz esteja convosco!” (v. 36). Lucas, assim como João, relatam a experiência com Jesus Ressuscitado de forma muito hábil. Jesus se põe ao centro dos discípulos. O evangelista quer ensinar para a sua comunidade que se ela deseja, de fato, fazer a experiência com Jesus, ela deve tê-lo como o centro de sua vida; estar toda ela referenciada à Ele.

A saudação de Jesus deve ser compreendida de modo mais profundo. Ela não é uma mera saudação. A paz – hbr. Shalom – representa a plenitude da benção que se inaugura com o tempo da manifestação do Messias, segundo a compreensão do povo de Israel. Ele deveria vir glorioso, poderoso e com a espada nas mãos para dominar os inimigos e os opressores do povo. Na verdade, seria mais uma forma de dominação e de opressão, uma paz assegurada pela força e pela guerra. Não é essa paz que Jesus oferece. Não é esse o modelo de Messias que Jesus vive a partir de sua vida. Seu messianismo é vivido através da entrega, do amor e do serviço; é um messias crucificado que garante uma paz reconciliadora e promotora de vida. Trata-se de uma paz inquieta, que não tranquiliza, mas vence o medo e fortalece a busca pela realização plena do Reino de Deus. Ela rompe com o medo, que faz distorcer a imagem do Ressuscitado no meio da comunidade. Se os discípulos e a comunidade vivem do medo, ela pode distorcer a compreensão da pessoa de Jesus. Ambos possuem a tentação de confundir a Jesus como um fantasma ou um juiz vingativo, quando não absorvem a Sua paz e nem compreende as Escrituras.

Jesus ressuscitado mostra as mãos e os pés. Ora, Lucas escreve para um público helenizado, os quais exigiam, muitas vezes, provas racionais. Por isso, narra Jesus comendo também. Mas a insistência de se mostrar as mãos e os pés, ambos marcados pelos pregos, revelam a intenção do evangelista: afirmar que aquele Jesus de Nazaré, que foi ferido, crucificado e morto é o ressuscitado! O ressuscitado traz consigo as marcas da paixão. Existe uma continuidade e uma novidade na história e na existência desse Jesus. Se os discípulos querem fazer uma experiência autêntica com Jesus deverão aceitar que ele é também o crucificado. Não existe ressurreição sem cruz. Não há sentido na cruz sem a última e definitiva palavra-resposta de Deus Pai à vida do seu Filho, a ressurreição.

Dos vv. 44-48, Lucas realiza o desfecho da cena e revela a função do texto para a comunidade. No encontro com o Ressuscitado não podem faltar refeição e catequese, partilha do pão e da palavra; esses elementos são imprescindíveis na comunidade cristã. Por isso, são os componentes básicos da celebração eucarística. Nesse episódio, há uma inversão na ordem: enquanto na cena dos “Discípulos de Emaús” a catequese precedeu à partilha do pão, aqui acontece o contrário, ou seja, a catequese vem depois da refeição. Assim, podemos concluir que o evangelista não preconiza um rito, mas ensina à comunidade quais são os seus elementos essenciais: a partilha do pão e da Palavra. A interpretação e compreensão adequadas das Escrituras são essenciais para a vida da comunidade. Essa é uma das principais preocupações de Lucas, ao longo de sua dupla obra (Evangelho segundo Lucas e Atos dos Apóstolos). Jesus é o intérprete e princípio interpretativo de toda a Escritura, ou seja, a Bíblia. A Lucas, diferente de Mateus, por exemplo, não interessa colher citações avulsas, mas a Escritura em seu conjunto: Lei, Profetas e Salmos (v. 44); tudo isso aponta para Jesus e deve ser lido à luz da sua vida, morte e ressurreição. Desde o princípio, a Palavra de Deus revelada nas Escrituras aponta para o triunfo da vida e a derrocada de todos os projetos de morte. A ressurreição de Jesus é o ponto culminante dessa trajetória. Sem a Palavra, a comunidade perde o rumo da história. As Escrituras, se bem compreendidas, abre mentes, olhos e horizontes, fazem parte do processo de conversão contínuo pelo qual deve passar toda comunidade cristã. Por outro lado, sem abertura de mente, pode tornar-se também instrumento de morte (CORNELIO, F, Reflexão dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Lucas quer acenar para o fato de que o Ressuscitado pode ser encontrado em qualquer situação, em qualquer espaço e em qualquer época: ele está na estrada, caminhando com os peregrinos desiludidos (Lc 24,13-35), está na mesa durante as refeições, quando o alimento é partilhado, está no meio da comunidade reunida e nas pessoas necessitadas, principalmente as famintas e feridas, com chagas expostas para serem cuidadas. Porém, para reconhecê-lo, é necessário compreender as Escrituras e ter abertos os olhos, a mente e o coração.

Quando o discípulo realiza o caminho da vida doada e partilhada, através do “partir do pão” com os necessitados, e realiza a compreensão das escrituras, ela torna, portanto, testemunha. Ser testemunha implica a coragem de dar a vida. Significa assimilar o sentido da vida de Jesus e irradiá-la com a própria vida. Viver a mesma vida do Filho de Deus.

O texto nos questiona. Em que momento da nossa experiência com Jesus estamos? Ele tem ocupado o centro e o fundamento de nossas opções, de nossa vida e de nossa comunidade? Temos assimilado o seu gesto de partir o pão – partilhar da própria vida para que outros tenham vida? Palavra tem ocupado a centralidade na minha vida e iluminado o meu agir?

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco do Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 10 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:


A oitava pascal se concluiu – o grande domingo da Ressurreição do Senhor. E a narrativa proposta pela liturgia para a nossa meditação é tomada da conclusão original do Quarto Evangelho, Jo 20,19-31 (uma vez que o vigésimo primeiro capítulo do Evangelho segundo João é um apêndice, o qual possui sua finalidade que ainda não cabe comentar). O texto deste Segundo domingo do tempo pascal continua a leitura do capítulo vigésimo, omitindo apenas o encontro de Maria Madalena com Jesus Ressuscitado.

Nesta seção o leitor-discípulo é convidado a tomar parte da experiência da comunidade dos discípulos com Jesus ressuscitado. Não se trata de aparições, propriamente, mas de Encontros com o Crucificado-Ressuscitado. É evidente, que para aquelas testemunhas oculares não se constituiu tarefa fácil encarar as horas e os dias seguintes ao “acontecido” com Jesus de Nazaré. Por isso, o fiel e leitor do Quarto Evangelho, ou melhor, a geração posterior (na qual somos incluídos), deverá colocar-se no mesmo horizonte daquelas testemunhas oculares. Caberá a esta geração “Crer sem ver”, e por isso ser considerados o bem-aventurados. Para João, morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois aspectos inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus.

João situa o leitor no tempo e no espaço, “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores. O primeiro dia. Mas a variação temporal revela que a comunidade dos discípulos já deu passos significativos: saiu da escuridão da “madrugada” daquele primeiro dia; da escuridão da incompreensão dos acontecimentos da primeira hora da ressurreição. A partir deste novo indicativo temporal, João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Sinal, também, de que ela já estava dedicando aquele “primeiro dia” para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade. Isto já é um sinal de que ela venceu o sepulcro.

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.1b), mostra que, mesmo a comunidade tendo dado os passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Ora, Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. Esta condição amedrontada acaba sendo incompatível com o desenlace da trajetória de Jesus (cf. 16,33). O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor. Todavia, é preciso fundir os horizontes. O leitor é chamado à unir o panorama temporal da comunidade dos discípulos, que fazia a experiência com o ressuscitado com a realidade da comunidade joanina dos anos 90 d.C, que sofria perseguição por parte dos Judeus e das autoridades romanas. 

Eis que Jesus põe-se no meio deles, conforme a narrativa. É importante a informação dada pelo evangelista. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Na comunidade do Ressuscitado (e na comunidade joanina) não existe supremacia nem relações piramidais. Ela é uma comunidade igualitária e livre, tendo um único centro: Jesus. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado realiza neles o processo de transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada.

“A paz esteja convosco (gr. ειρηνη υμιν, Eiréne ymín)”. À primeira vista, isso parece a saudação comum do ambiente bíblico. Mas esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom da vida de Jesus vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada.

Jesus mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade entre Jesus Crucificado e Ressuscitado. E os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração.

“Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai e na Sua fidelidade ao realiza-la; a dos discípulos, na de Jesus. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, gr. ἀποστέλλω; mas aqui απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (gr. καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e causalidade, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem.

Ao enviar os discípulos, ele sopra sobre eles o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. A ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos.

A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades. O que perdoa os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão, o discípulo que recusa amar como Ele amou. Em outras palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da comunidade e do discípulo diante do mandamento do amor, e a atitude de negação do fiel em relação à pessoa de Jesus.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ora, ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilhasse da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Mas quem seria o seu outro irmão gêmeo? Teríamos um personagem anônimo na narrativa? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho (e em toda a Sagrada Escritura), a função de paradigmas – ou de espelhos – para a comunidade e os leitores. Ou seja, eles servem para que os leitores assumam aquela identidade; se identifiquem com ele. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a tomarem Tomé como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa e, portanto, circulava livremente e sem temor algum. Porém, sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a executar o gesto que havia pedido como prova. Ele, ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18) e cria, assim, uma inclusão que abarca e resume o Evangelho segundo João.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado. 

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco de São Judas Tadeu, Avaré-SP / Arquidiocese de Botucatu. 

sábado, 3 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA O DOMINGO DE PÁSCOA - Jo 20,1-9:


 


O Texto proposto para a meditação neste Domingo de Páscoa é retirado do capítulo vigésimo do evangelho de João. O último capítulo do Quarto Evangelho relata para nós a experiência com Jesus Ressuscitado. Embora, o início desta última cena do evangelho joanino não descreva qualquer encontro com Jesus. Estamos no livro da Gloria. A sua glorificação já foi realizada através da entrega na cruz. Ali, Deus revelou toda a sua presença e poder. O discípulo e a comunidade são chamados a reconhecer Deus mesmo no Crucificado. Mas a comunidade ainda não está preparada para fazer a experiência com o ressuscitado. Na narrativa prosta para esse dia solene, Jo 20,1-9, o evangelista trata de relatar esta dificuldade da comunidade, a qual tem como primeiro símbolo neste amanhecer do dia, Maria Madalena.

No v.1, o evangelista nos informa que, no primeiro dia da semana, bem de madrugada quando ainda estava escuro, ela se dirige ao sepulcro. João quer acenar para o fato de que a comunidade, simbolizada por ela, ainda se encontra ao redor do túmulo. Não conseguiu fazer a experiência da ressurreição do Senhor.

Outro fato agravante é o dado cronológico que o evangelista dá: era o primeiro dia da semana, literalmente, "depois do sábado". Esta informação revela que a comunidade dos discípulos ainda está presa ao preceito da lei mosaica de guardar o sétimo dia. Esta observância impede o discípulo e a comunidade de experimentarem prontamente a potência da vida que existe em Jesus, uma vida capaz de superar a morte. Mas apegar-se a tal observância da lei retarda a experiência com a nova criação, inaugurada por Deus no Ressuscitado, naquele primeiro dia da semana. De fato, o "primeiro dia da semana", para o evangelista, recorda o primeiro dia da criação em Gn 1 – 2. Em Jesus, acontece a nova criação. Aquela que é realmente criada por Deus e não conhece fim; não conhece a morte.

"Quando ainda estava escuro", enfatiza o evangelista. A escuridão remete às trevas. Ela simboliza a incompreensão da comunidade que não assimilou Jesus como a luz do mundo. A comunidade encontra-se, portanto, impossibilitada, bloqueada e sem compreender a vida e o acontecido com Jesus.

Madalena, ao chegar ao sepulcro, o encontra aberto. A pedra havia rolado. O tumulo estava vazio. Imediatamente, Maria corre até os discípulos para contar-lhes o acontecido. Aqui, se faz necessário entender o seguinte, as mulheres não eram consideradas pela sociedade da época de Jesus; elas não tinham voz e nem vez; inclusive, seu testemunho não valia. Daí, o fato de correr até os discípulos, homens, que funcionariam como testemunhas qualificadas para o evento. Mas, na verdade, Maria Madalena tem a função de arrebanhar o grupo dos discípulos que haviam dispersados após a morte de Jesus. E lhes anuncia, então, o seguinte: "'Tiraram o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o colocaram" (v.2). É interessante, que ela não fala de um cadáver ou de um corpo, mas refere-se a Jesus como "o Senhor". O evangelista, com essa afirmação de Madalena, quer aludir ao fato de que esse Jesus está vivo, e não morto.

O que fazem Pedro e o outro discípulo? Justamente o que não era para fazer: vão ao sepulcro. O último lugar que deveriam ir. Porque Jesus não se encontrava ali. No evangelho segundo Lucas, inclusive, o evangelista insere os dois homens-mensageiros, que se interpõem entre as mulheres que no meio do caminho, para adverti-las de que o Jesus não estava ali. Os dois dirigem-se ao lugar da morte (v.3). Ora, Jesus não pode ser retido na sepultura, lugar da morte, porque Ele é o vivente. Porque o amor com que ele viveu sua vida e obra, na fidelidade ao Deus que chamava de Pai, e que foi vivido até o fim, superou o ódio e a violência que foram cometidas contra Ele. Amor foi mais forte que a morte e garantiu que a vida desse Jesus se tornasse indestrutível. O amor levado até o fim plenifica a vida tornando-a eterna. O amor eterniza e imortaliza.

"Os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa que Pedro e chegou primeiro ao túmulo" (v.4). As duas personagens são intrigantes. João trata de estabelecer um contraste entre os dois. O discípulo amado – que não é João, o autor do Quarto Evangelho – é  aquele que guardou as palavras de Jesus; que fez uma experiência de amor com o mestre; e que está em condições de assumir a vida e o projeto Dele em sua vida. Sua atitude nesta cena é exemplar: ele corre mais depressa (por ter feito uma experiencia profunda com Jesus, ele consegue processar mais rapidamente os eventos), chega ao sepulcro, olha para dentro, vê as faixas no chão e não entra (v.5). O evangelista trabalha aqui com o verbo grego Theorein, que significa ver. Mas este "ver" não corresponde tão somente a uma capacidade física. Theorein (Theoreo) significa "contemplar", "olhar a partir de dentro". O discípulo amado, portanto, é aquele que está em condições de fazer a experiência com o ressuscitado.

Diferentemente de Pedro. Ele tem dificuldades. Ele se recusou e fez resistência a Jesus no gesto de lavar os pés; descomprometeu-se com o mestre na ocasião do processo judaico na casa do sumo sacerdote, negando-o. Não aceitou o gesto e a condição mestre e Senhor de lavar os pés e colocar-se a serviço. Por isso, chega depois no sepulcro. Porém, o discípulo amado se retém, e deixa que Pedro, o discípulo descompromissado e que fez a experiência com a morte, adentre no sepulcro e faça sua experiência com o evento da vida (v.6).

"Então entrou também o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo. Ele viu, e acreditou. De fato, eles ainda não tinham compreendido a Escritura, segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos" (vv.8-9). A advertência que o evangelista faz no v.9 é importante. A preocupação de João é que se possa crer na ressurreição de Jesus somente vendo os "sinais" (sepulcro vazio; toalhas e panos ao chão) de sua vitória sobre a morte. Mas a ressurreição de Jesus não é um privilégio concedido a um grupo restrito de pessoas, num determinado tempo e espaço, ha dois mil anos atrás. E, sim, uma possibilidade a todos os crentes. Como? Através do exame e da compreensão das Escrituras.

No evangelho joanino, soma-se às Escrituras Sagradas do AT as palavras e ensinamentos de Jesus. Para ele e sua comunidade as palavras de Jesus ganham e adquirem estatuto de Palavra de Deus. Principalmente "aquelas segundo a qual ele devia ressuscitar dos mortos". O acolhimento das Escrituras e da Palavra do Senhor e Mestre no discípulo, o enraizamento de Sua mensagem em sua vida, permite viver uma vida de qualidade tal que poderá experimentar o ressuscitado na sua própria vida. Não se crê que Jesus ressuscitou apenas porque o sepulcro está vazio. Mas somente se O encontra vivo e atuante na própria vida do discípulo! 

A ressurreição de Jesus ninguém viu. Ela aconteceu na noite da história humana, mas ainda continua sendo uma experiência "familiar", ou seja, pertencente ao mistério do Deus Uno e Trino. Só temos acesso às experiências que as primeiras testemunhas oculares nos transmitiram através dos relatos bíblicos, e, tão somente com o Ressuscitado, de modo que as narrativas só podem transmitir esta experiência a partir de uma linguagem repleta de simbologia. O que, jamais, poderá empobrecer o evento, tampouco negá-lo.

Mas, a partir da própria linguagem é que se pode elaborar verbalmente aquela experiência fundante da fé cristã. Por isso, poderíamos dizer com toda a segurança que a ressurreição de Jesus é a mais perfeita, profunda e plena afirmação da vida existencialmente vivida por Ele que o Pai faz. Deus, ao ressuscitar Jesus dentre os mortos, confirma a sua vida (missão, modo de ser, história, seu amor fiel, obra, paixão e morte), como aquela vida sonhada e desejada por Ele a todo gênero humano. A ressurreição é o grande e definitivo Sim de Deus à vida de Jesus e de todo o gênero humano.

Feliz e Santa Páscoa!

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco da paróquia São Judas Tadeu, Avaré-SP / Arquidiocese de Botucatu-SP.

REFLEXÃO PARA A SOLENE VIGÍLIA PASCAL (Ano B) - Mc 16,1-7:

 


O evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, e apresenta para o seu leitor um verdadeiro itinerário catequético para o fiel discípulo. Por ser um “genuíno” manual de catequese, o Evangelho de Marcos apresenta como ponto nuclear o anúncio da fé cristã: Jesus crucificado, o Cristo de Nazaré, foi ressuscitado. Esta afirmação encontra-se na confissão de fé proferida pelo soldado romano junto à cruz: “De fato, este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).

O texto proposto para esta noite santa é o final da catequese de Marcos. “Quando passou o sábado, Maria Madalena e Maria, a mãe de Tiago, e Salomé, compraram perfumes para ungir o corpo de Jesus” (v.1). Passadas as horas dolorosas [e traumáticas] da paixão e da morte de Jesus, algumas mulheres vão até o lugar onde haviam-lhe sepultado. São elas: Maria Madalena, Maria de Tiago e Salomé. Pretendem continuar os preparativos do cadáver, que tiveram que ser interrompidos devido ao início do sábado. O evangelista faz questão de salientar a indicação temporal (cronologia): trata-se do primeiro dia da semana, ao nascer do sol (cf. v.2). Já não se trata mais da noite (escuridão) da paixão, nem da tarde envolvida em trevas na morte. Mas, um dia novo. O dado cronológico inserido por Marcos explicita que uma novidade aconteceu. Uma nova realidade. Um novo horizonte que se descortina.

“E diziam entre si: Quem rolará para nós a pedra da entrada do túmulo?” (v.3). No entanto, ao dirigirem o olhar para entrada do sepulcro, notam que a pedra havia sido removida. Marcos não nos informa quem o fizera, mas o leitor-discípulo deverá levar em conta que isso não poderia ter sido feito por “mãos humanas” (Mc 14,58). Contudo, essa imagem pode parecer pouca coisa para os olhos acostumados aos grandes sinais e gestos maravilhosos e extraordinários realizados por Jesus durante a sua vida. O que elas veem, num primeiro momento, não é uma experiência que se possa descrever como um grande prodígio. Entretanto, todo o Evangelho de Jesus (e sobre Jesus) só pode ser compreendido através da luz que se desprende desta cena. Toda a vida de Jesus, bem como a experiência da comunidade (com Ele) só pode ser compreendida à luz do mistério da ressurreição. A ressurreição é a vida de Jesus passada a limpo.

Uma consideração importante: não era preocupação dos evangelistas e das primeiras comunidades cristãs descreverem a ressurreição, nos mínimos detalhes, como que numa crônica jornalística. Perguntar-se como, onde, que horas foi a ressurreição, ou se ela aconteceu dentro ou fora do sepulcro, definitivamente, não estava na pauta, nem nos objetivos dos autores sagrados, tampouco das gerações subsequentes.

O que as mulheres veem ao chegare ao túmulo? A entrada do túmulo estava aberta. Na mentalidade do povo de Israel, o tumulo simbolizava a morada dos mortos, o Sheol, o abismo da morte. As portas da morte foram rompidas!

“Entraram, então, no túmulo e viram um jovem, sentado do lado direito, vestido de branco. E ficaram muito assustadas” (v.5). Marcos, para narrar a experiência das mulheres, serve-se da linguagem simbólica do Antigo testamento, fazendo uso do gênero literário dos anúncios. Um jovem aparece. Ele está vestido de branco. A veste branca é símbolo do mundo divino. Este personagem assenta-se a direita, o que revela uma posição de dignidade. Em seguida, a reação de medo (inquietação e incompreensão) das mulheres dá o colorido ao gênero literário, bem como o encorajamento do mensageiro divino. Mas qual a função deste cenário pintado pelo gênero de anúncio?

A função é a da indicar a origem da mensagem pascal: Ela é uma revelação de Deus, e não fruto da descoberta ou do delírio humano. Uma revelação que se prolonga através das confissões de fé das comunidades cristãs, que proclamam a Jesus ressuscitado. “Mas o jovem lhes disse: Não vos assusteis! Vós procurais Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o puseram”. As palavras do mensageiro refletem o anúncio das comunidades cristã (Querígma): Jesus de Nazaré, o Crucificado, foi ressuscitado (por Deus)! O mensageiro as convida a uma atitude, “vede”. O verbo “ver” não representa na teologia bíblica somente a capacidade biológica-física de enxergar. “Ver” significa começar a fazer uma experiência. As mulheres são convidadas a entrar numa experiência com aquela novidade que ali aconteceu.

O texto litúrgico, que serve de base para a celebração e meditação, infelizmente coloca a fala do mensageiro celestial na voz ativa, ao dizer que “Jesus ressuscitou”. Porém, o verbo Egheiro (gr. ἐγείρω), utilizado por Marcos no original em grego está na voz passiva: “Foi ressuscitado (gr. ἠγέρθη /eigerthe)”. Quando os autores sagrados, principalmente os evangelistas utilizam o verbo na voz passiva, eles querem ensinar que quem realiza aquela ação descrita pelo verbo é Deus (o que chamamos de “Passivum Divinum, ou Theologicum)”. A Ressurreição de Jesus é toda ela obra de Deus, que se revela vencedor da morte e salvador naquele homem concreto, o crucificado. Agora ele foi ressuscitado, é o vivente; é inútil buscá-lo entre os mortos. O túmulo não o manteve prisioneiro. Porém, na intenção do evangelista, o tumulo aberto e vazio se torna um sinal!

Entenda-se bem! O túmulo vazio não é uma prova da ressurreição, mas apenas um indício para os que creem. Não consiste numa prova, porque só Deus pode revelar esta verdade a quem ele encontrar disponível para acolher sua ação escatológica e salvífica em Jesus de Nazaré. Com efeito, o sepulcro vazio de Jerusalém torna-se o indicativo do acontecimento de uma novidade no âmbito das experiências mundanas e humanas. Algo totalmente novo aconteceu na história, através do acontecido com Jesus de Nazaré.

A ultimidade (ou a novidade) deste acontecido foi confiada às mulheres, para que elas a anunciasse. A elas, que eram figuras e personagens nem um pouco credíveis. Não tinham voz ativa na sociedade de seu tempo. Graças à força renovadora e ressignificadora da Ressurreição de Jesus, o anúncio do anjo sobre o sepulcro vazio as transforma nas primeiras testemunhas do ressuscitado. São tornadas apóstolas da ressurreição: “Ide, dizei a seus discípulos e a Pedro que ele irá à vossa frente, na Galiléia. Lá vós o vereis, como ele mesmo tinha dito” (v.7). As mulheres serão responsáveis por reorientar a vida dos discípulos para reencontrem o seu Pastor, na Galileia, o nascedouro do ministério e da missão de Jesus, bem como o lugar do nascimento das primeiras comunidades.

O “preceder” de Jesus, como mostra bem o contexto de Mc 14,27-28, é a atitude do pastor que vai à frente do rebanho para o conduzir. Será na Galileia que Jesus reconstituirá o seu rebanho dispersado pelos acontecimentos em Jerusalém. Ver o ressuscitado na Galileia, terra onde nasceu a missão e o ministério de Jesus, torna-se a possibilidade de compreendê-lo plenamente. Deslocar-se para lá significa dar as costas à Jerusalém (símbolo do poder, da dominação, da falsa imagem e experiência de Deus) e dirigir-se aos gentios, aos pagãos. Aqueles que se encontram nas margens da história e da vida.

Voltar para a Galileia torna-se um convite para renovar a vida, ressignificar as perspectivas. Refazer os caminhos através da memória (atualizadora) da vida de Jesus Ressuscitado. O encontro com o ressuscitado não acontece entre os túmulos, tampouco num presente endurecido que cheira a passado distante e saudoso. Mas na novidade de um futuro que se desponta. Memória não significa passado! Mas releitura e ressignificação do presente, do hoje.

A força da ressurreição é ressignificadora: ela ressignificou a condição das mulheres, constantemente humilhadas e desvalorizadas em testemunhas e anunciadoras da Revelação Divina da Ressurreição. Ressignifica, igualmente, os horizontes da existência e da experiencia humana. Toda a História da Salvação, que é também humana, é ressignificada – recriada – através da Ressurreição de Jesus. Contudo, se faz necessário deslocar-se para lá, a Galileia do início visando um recomeçar e uma ressignificação da vida, da história, da realidade

Diante do espelho do texto, perguntemo-nos: 1) Quais realidades da vida e da história humana precisam ser tocadas pela ressurreição de Jesus? 2) Quais horizontes precisam ser ressignificados em minha história pessoal, e na dinâmica de meu discipulado à Jesus de Nazaré? 3) Voltar para a Galileia, significa voltar para onde tudo começou, por isso, temos a coragem de retornar às nossas origens (com tudo o que este retorno acarreta)?

Não tenhamos medo! Ele refaz conosco este processo! Ele nos precede até lá! Tomemos o caminho de retorno à Galileia da nossa experiência discipular com o Senhor, mediante a força de sua ressurreição.

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco da paróquia São Judas Tadeu, Avaré-SP / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sexta-feira, 2 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA A SEXTA-FEIRA SANTA DA PAIXÃO DO SENHOR - Jo 18,1 - 19,42:

 


A narrativa da paixão no evangelho joanino é diferente das contidas nos sinótcos (Mc, Mt e Lc). João segue um fio narrativo de Mc (o primeiro evangelho escrito), porém distancia-se e muito na forma de narrar e de apresentar a personagem principal da “opera”, por assim dizer. Trata-se de um relato que vai a fundo ao apresentar e revelar a Glória de Deus que se revela em Jesus. O evangelista não economiza ao mostrar a realeza de Jesus. Pode-se dizer com toda a segurança que, ao interno da narrativa da paixão em João, e somente nesta seção narrativa, Jesus é soberano; é rei.

Devido ao fato da extensão do relato joanino da paixão, opto por apresentar esta reflexão a partir das personagens: quem são, o que fazem e quais finalidades possuem ao interno do relato, a fim de transmitir a mensagem salvífica que o texto contém e que o autor quer entregar para a sua comunidade e para as gerações futuras dos discípulos. Contudo, é importante situar o texto ao interno do contexto litúrgico, isto é, na sequência do texto da quinta-feira santa da ceia do Senhor. Ora, somente o discípulo que segue Jesus até à “bacia, o Jarro e à mesa”, poderá tomar parte da hora da glorificação.

Chegou a Hora de Jesus. Durante toda a primeira parte do evangelho joanino – o livro dos sinais – os gestos simbólicos operados por ele possuem a finalidade de revelá-lo como o plenipotenciário enviado do Pai, como também aprontar o discípulo para a Hora da Glória (seu enaltecimento/elevação). Um esclarecimento importante: a Glória da qual fala o evangelista João não pode ser entendida como um brilho ou algo resplandecente. No vocabulário do evangelista, que é todo proveniente da tradição bíblica do Antigo Testamento, a palavra “glória” (hbr. Kabod) é traduzida por “presença”. Logo, ao se falar da “Glória de Deus” (Ez 10; Ez 43,1-27), está se referindo à presença (ao peso) de Deus. A glória, portanto, da qual o Jesus joanino fala é a realidade da presença de Deus mesmo no dom da Sua vida, existência e obra. Quando se revela a Glória de Jesus? Na Hora da Cruz. Ela revela a que a vida de Jesus é o [novo] lugar/santuário da presença de Deus na história. Agora podemos tomar o texto a partir das personagens.

No Jardim (Jesus e Judas) – Jo 18,1-12:

O evangelista chama a atenção do discípulo-leitor para Jesus. Na teologia do Quarto Evangelho, João o apresenta sempre consciente e onisciente. Na ceia (13,4), o havia relatado ciente de que havia chegado a sua Hora, e de que tudo o Pai havia posto em suas mãos.  Não seria diferente na narrativa da paixão. Ele não é vitimizado pela situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha a Sua vida nas mãos. É um homem senhor-de-si.  Por isso, não é surpreendido por Judas e pelas pessoas que vieram prendê-lo. Note-se que Ele mesmo vai ao encontro do traidor (Jo 18, 4). Típica ironia joanina, o evangelista nos conta que Judas vem equipado com lanternas e tochas, que são iluminações artificiais. Recordemos que na ceia Judas já havia feito sua opção pelas trevas à luz que veio no mundo (3, 19). Ao sair do convívio com Jesus na ceia já era noite fechada (13, 30). O evangelista quer mostrar que este discípulo fez a opção contrária à luz; cindiu com ela. E agora, ele é quem precisa de luz artificial. Esta personagem contrasta com Jesus na medida em decide-se por agir contra o projeto e o querer de Deus que se realiza através do Filho. Judas é o modelo que o verdadeiro discípulo deve rejeitar, ou se distanciar na medida em que vai relacionando-se com Jesus.

Anás, Pedro e o discípulo amado - Jo 18,13-27:

O evangelista apresenta três personagens. Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. O segundo personagem é Pedro. Notemos um contraste operado pelo evangelista entre Pedro e Jesus: enquanto este está demonstrando sua inocência naquele interrogatório viciado, seu mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Pedro, durante a narrativa da ceia se mostra todo resistente. Esta personagem serve ao discípulo que lê o Evangelho de João como símbolo daquele que precisa assimilar verdadeiramente o sentido da vida de Jesus, para poder fazer a sua opção pró-Jesus. Emerge uma outra personagem, presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não há fundamento em identificá-lo com João, o autor do Quarto Evangelho (o que seria demasiado simplista). Mas, fato é, ele está à frente de Pedro e contrasta com ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar, precisamente porque fez a experiência com o amor de Jesus, que é uma marca da verdadeira condição de discípulo

Jesus diante de Pilatos – Jo 18, 28-42:

O evangelista apresenta uma personagem confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas.

O diálogo entre eles revela muito, de acordo com o evangelista. Na intenção dele está para começar o processo de Jesus contra o Mundo, representado pelo Império. João disse no prólogo do evangelho que “O mundo não o conheceu (Jesus), e os seus não O acolheram”. Jesus está diante do procurador romano, que o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Ao insistir na culpabilidade de Jesus, emerge, pois, uma declaração muito importante acerca de Jesus, de sua vida e obra. Ele responde: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”. O que o Jesus joanino quer dizer com essa reposta?

Se faz necessário tomar o texto dos originais, em grego, para captar o sentido da resposta de Jesus, que se expressa assim: “o meu reino não vem deste mundo ( gr. Ἡ βασιλεία ἡ ἐμὴ οὐκ ἔστιν ἐκ τοῦ κόσμου τούτου / ek tou kosmou tuotou)”. A realeza de Jesus não provém das realidades mundanas, das estruturas de poder, domínio, opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza depende e está estritamente relacionada à Deus. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do Pai. As palavras “meu reino não é daqui (= deste mundo)”, portanto, não dão margem para sugerir uma fuga do mundo, da realidade, da história humana, nem justificam qualquer tipo de alienação. Pelo contrário, convocam o cristão a uma lucidez superior. Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é palavra de Deus e que liberta de toda escravidão, e que restaura o mundo, enquanto realidade criada por Deus.

Mas neste diálogo emerge mais uma novidade muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma sentença. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos. No inquérito, quem assume a figura do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Mais uma vez, a finalidade é mostrar Jesus superior a realidade e a trama que o circundam, porque só quem autoridade sobre sua vida é o Pai. E mesmo assim, é através de sua liberdade enquanto homem que Jesus vive sua fidelidade ao projeto de vida plena, em amor até o fim, ao Deus que chama de Abá-Pai. Porque este Abá não exige do seu Filho qualquer sacrifício de sangue, ou mesmo uma morte expiatória.

A morte (19,28-37):

Após um caminho longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). O dito “Tudo está consumado” acena para a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas obras e Palavra, refletem a vontade de Deus. Significa, ainda, que a vida e obra de Jesus atingem a Plenitude. Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais.

João faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a humanidade e Deus. Não são mais a observância da Lei, nem das prescrições cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.

O “entregar o espírito” (a existência) acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que se falou a pouco. O verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da paixão, mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo, afirma o domínio de Jesus diante da situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de retomá-la novamente. Ele livremente a doa, para que o Pai reconheça esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra sobre a vida deste seu Filho.

A morte de Jesus, de maneira tão crua, só pode ser entendida à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Ela é a consequência e o resultado da vida, das opções, decisões, vividas à luz do amor fiel ao Pai e aos irmãos, mesmo em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na sua práxis escandalosa, não facilmente aceita, principalmente no tocante a Sua opção pelos últimos. Nesse sentido, pregação de Jesus foi uma inversão de valores. Rompeu com os esquemas estabelecidos. Assim, a condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante sua vida.

O relato de hoje nos deixa diante de duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência cristã e meu discipulado?

A chave e o modo para viver o discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra.

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco da paróquia São Judas Tadeu (Avaré-SP) / Arquidiocese de Botucatu - SP

quinta-feira, 1 de abril de 2021

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA - MISSA DA CEIA DO SENHOR: Jo 13,1-15

 


A Quinta-feira Santa nos faz cruzar o limiar (das celebrações) do Mistério Pascal de Cristo. Gosto de pensar naquela pergunta que o filho mais novo faz à seu pai, ao iniciar a ceia pascal judaica: “Por que esta noite é diferente das outras noites?” E o pai, com toda a delicadeza de uma pedagogia tanto ritual como existencial se coloca a narrar a libertação do povo de Israel, operada por Deus. O chefe da família responde à criança: “Porque nesta noite fomos arrancados da casa da escravidão no Egito, e agora somos livres”. Esta noite começa a ser para nós, povo da Nova Aliança, uma noite diferente, que culminará na grande e solene noite da Vigília Pascal. Nesta noite recebemos a oportunidade de termos nossos pés lavados a fim de podermos tomar parte / comungar do mesmo gesto de Jesus.  

Nesta noite santa, somos convidados a meditar nos gestos de Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da própria vida na Cruz. A última ceia carrega consigo, portanto, profecia e testemunho. Profecia, porque ela se torna um gesto simbólico da entrega de Jesus mediante o gesto de lavar os pés dos seus; e testemunho, porque convida, interpela e questiona a conduta e a atitude do discípulo de todos os tempos, provocando-o a “seguir o exemplo” do mestre e Senhor, num fazer memória de Seu gesto, que institui o sacramento do amor serviçal (Ministério Ordenado), e do sacramento de seu Mistério Pascal, presente entre nós (Eucaristia). O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24), alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Isto posto, podemos meditar o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15. 

O leitor-discípulo é convidado, agora, neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus; chamado a entrar na dinâmica da sua Glória. Estes últimos ensinamentos constituem o Testamento de Jesus (Jo 13 – 17). O testamento refere-se a algo muito precioso que é deixado ou dado para quem se ama. O que Jesus deixará para seus amigos constitui o coração de todo o seu ensinamento, concomitante à revelação que realiza acerca da Glória de Deus, através de sua Hora: o seu enaltecimento na Cruz (Jo 18 – 19).

O autor do Quarto Evangelho situa a narrativa no tempo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). Diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), o evangelista situa a ceia de Jesus na véspera da solenidade pascal. Então, a ceia pascal seria celebrada no dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Mais importante aqui é captar a intenção do catequista, a de situar a morte de Jesus no dia da solenidade pascal, no exato momento em que era imolado o cordeiro no templo. Por que?

O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas pretende diferenciar: a páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A sua não exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus substitui e supera. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto que na de Jesus com sua comunidade, se celebra o triunfo da vida na forma do serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há morte, há doação de vida por amor. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

O v.1 inicia a sessão com uma solenidade ímpar. Anuncia a chegada da hora que vinha sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora, começa a ser levada a termo. É a hora de Jesus glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. Esta forma solene com a qual João inicia o versículo primeiro, aponta para a finalidade da missão de Jesus: manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A expressão “Amou-os até o fim” pretende indicar a plenitude e a intensidade do gesto de Jesus.

O amor começa a ser levado à sua plenitude ao interno de um jantar (no original grego, o autor não usa artigo definido, mas o indefinido). É importante compreender o simbolismo das refeições para os povos do oriente, em especial para os semitas. A refeição era o momento privilegiado para se partilhar a vida entre os comensais. Uma pessoa ao ser convidado para uma refeição deveria encarar tal convite como uma honra, porque era o sinal de que anfitrião nutria muita estima pelos seus convidados e, fundamentalmente, tinha a intenção de torná-los participantes de sua vida e de sua alegria.

O evangelista coloca o seu leitor diante de duas personagens, as quais servirão de espelhos para a comunidade. Ele focaliza internamente a personagem Judas Iscariotes, primeiramente, ao informar que “o Diabo” o havia seduzido (lit: “tinha posto no coração de Judas... que entregasse Jesus”). João, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) de Judas realiza um contraste com a consciência livre e orientada para o projeto de Deus que Jesus possui: a de que o Pai, “tudo” (semitismo para Todos) havia colocado nas mãos de Jesus (lit. “o Pai colocou Tudo e Todos nas mãos do Filho”), e de que a partir daquele momento começava seu retorno para Deus, afim de prestar contas de sua missão, enquanto Seu enviado. O Jesus de João não é uma vítima das circunstâncias. Ele não se deixa pegar desprevenido. É um homem inteiramente livre. É o que o autor quer mostrar com essa soberania de Jesus. Esta característica será ainda mais visível na cena do Horto. Jesus vai livremente ao encontro daqueles que procurarão matá-lo. É na fidelidade ao projeto de seu pai, que Ele leva a vida até as últimas consequências.

Com tal consciência, Jesus levanta-se da mesa. Depõe seu manto. Um gesto simbólico: ao depor o manto está, na verdade, despojando-se da imagem de mestre. Cinge-se com uma toalha à cintura. Em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos. Trata-se de um gesto profético. Ele era realizado sempre antes que os convivas se colocassem à mesa; deveriam se purificar (ficar limpos) devido as estradas poeirentas daquele tempo. Esta purificação, geralmente, era feita por um escravo; quando não, pelos filhos ou pela esposa, e, numa demonstração de profunda estima, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões.

Tirar o manto em público significa renunciar ao próprio prestígio e à dignidade pessoal. Amarrar um avental na cintura (cingir-se) acena para a atitude do serviço, na forma e na condição de um escravo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Ele quer ensinar que o destino de sua comunidade e de seus discípulos é o serviço! Esta é a sua real e mais essencial identidade. Estes símbolos servem para explicar o gesto de Jesus: uma transfiguração às avessas! Jesus depõe a sua imagem de Senhor, e assume a forma de servo (Fl 2,7). Ele não veste os paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da casta sacerdotal, mas o avental dos servos.

Agora, desloquemos o olhar para outro personagem que o evangelista faz aparecer na narrativa: Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”. Para o discípulo pescador de Betsáida e para os demais, tal gesto é incompreensível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por hora, eles não sabem o significado daquele gesto (isto só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado).

Para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!”, declara o discípulo. Mas Jesus retruca, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés”. O que Pedro não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Em termos joaninos, “não ter parte” com Jesus significa não ter a sua vida; não participar da vida eterna. Ter parte com Jesus, significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la existencialmente vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra messiânica de Jesus

A profundidade do gesto de Jesus reside no fato de que este é um gesto simbólico-profético da entrega / doação da própria vida. O gesto de lavar os pés é um símbolo para o que ele realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. Ora, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, enquanto mestre e Senhor lhes lava os pés, eles devem fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Sentar-se à mesa e servir eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Dito de outro modo, não há como sentar-se à mesa (tomar parte da ceia do Senhor, comungando de sua vida, corpo e sangue) sem que se tenha lavado os pés dos irmãos; comungado do gesto de Jesus de lavar os pés das pessoas. Não há Eucaristia sem lava-pés!

O texto suscita algumas perguntas para nós mediante este Sagrado Tríduo: 1) Com qual das personagens me identifico: Judas, que não mais se identifica com Senhor, a ponto de tornar-se adversário do projeto de Jesus e de seu Pai, ou com Pedro, que reluta ainda em assimilar a forma servidora de Jesus? 2) Tenho me deixado lavar os pés por Jesus (e com isso aceitado o Seu Dom-Salvação), para poder lavar os pés dos irmãos (através do serviço do amor/doação fraterno)? 3) Tenho crescido na consciência de que ao comungar da Vida do Senhor (através de seu Corpo e Sangue), devo igualmente comungar (assimilar e realizar) no lava-pés do Senhor? Não há Eucaristia sem lava-pés!

Pe. João Paulo Sillio.

Pároco da paróquia São Judas Tadeu  / Arquidiocese de Botucatu – SP.