terça-feira, 31 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE SANTA MÃE DE DEUS - Lc 2,16-21:




A oitava do natal se completou. Por oito dias, desde a noite santa da solene vigília de natal, a Igreja permaneceu ao redor do menino e de seus pais no estábulo de Belém. Hoje, a liturgia da Igreja celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica – relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Tudo o que se pode dizer acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que é e do que sempre foi dito de seu filho.

Qual o sentido deste dogma na conclusão da oitava do Natal? A liturgia sempre quis visibilizar e introduzir o fiel no mistério da salvação que ela celebra de modo sacramental e sensível na vida do ser humano e na história. Na solenidade do santo Natal, a Igreja faz a memória do mistério da Encarnação, ou seja, Deus que se fez carne, armando sua tenda entre nós (Jo 1,14). Com a solenidade de Maria, mãe de Deus pretende-se visibilizar ainda mais o mistério da Encarnação, colocando acento, agora, na humanidade do Filho. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro e plenamente Deus; verdadeiro e plenamente homem.

A proclamação dogmática acerca da maternidade divina de Maria se dá, portanto, em chave cristológica, ou seja, em virtude da Pessoa de Jesus. O bispo de Antioquia, Nestório e seus companheiros acreditavam (de modo equivocado) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. O que, desde as primeiras profissões da fé Cristológica, a começar por Niceia e culminando em Calcedônia, em 450, a unidade das naturezas na pessoa de Cristo foi sempre confessada e professada. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou a fé cristológica de que em Jesus existe uma comunicação tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo, e não só de sua humanidade.

Quando proclamamos “Maria, mãe de Deus”, estamos dizendo, conforme o dogma, que ela é a mãe do Filho de Deus encarnado. Maria não se tornou uma deusa, nem entrou na Trindade. Por isso, devemos vê-la em relação às pessoas deste Deus Uno e Trino.

A proclamação de Fé sobre a maternidade de Maria deve ser lida em chave teológica, e, portanto, à luz da Santíssima Trindade. Em relação a Deus-Pai, Maria é uma filha predileta. Ela foi agraciada com ternura pelo Criador, que a moldou com especial carinho. Ao mesmo tempo, Maria concretiza, de forma humana, a eterna geração que o Pai realiza com o Filho, no seio da Trindade. Como toda mãe ou pai, ela é figura do amor criador de Deus-Pai. Em relação ao Filho, Maria é mãe, educadora e discípula. O seu relacionamento com Jesus supera os laços de família. Maria é mãe, mas sua missão vai mais além. Esteve junto de Jesus durante sua vida terrena e, agora, glorificada, continua junto do Filho ressuscitado, na comunhão dos Santos. A respeito do Espírito Santo, Maria é uma pessoa plena do Espírito do Senhor. Como perfeita discípula de Jesus, acolheu o Espírito e fez-se transparente a ele. Tornou-se um templo vivo de Deus e se transformou, por Graça, na mãe do Messias. A docilidade ao Espírito Santo explica a maternidade biológica de Maria e o seu coração tão aberto a Deus. O dogma é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Santo Ambrósio, no século quarto, dizia que cada cristão é mãe como Maria, pois gera Cristo no seu coração. Hoje, numa sociedade tão marcada pela violência, pelo egoísmo, pela dureza nas relações humanas, pela destruição do meio ambiente, precisamos desenvolver atitudes maternas, uns para com os outros, e para com todos os seres. A declaração de fé também toca a vocação de cada discípulo e discípula do Reino, pertencente à comunidade eclesial, por serem, através do Batismo, Igreja. Maria é imagem da Igreja em sua dimensão glorificada. Por isso, a Igreja é mãe. E à luz da maternidade de Maria, ela gera, alimenta, dá vida e cuida dos filhos de Deus nascidos no Batismo, através da Fé que transmite, da Palavra de Deus e dos Sacramentos de Seu Filho Jesus (MURAD, A. p.139-140; disponível in. http://maenossa.blogspot.com).

O Evangelho de hoje nos ajuda a contemplarmos o modo através do qual Maria, de fato, é mãe de Deus-Filho, e está em relação com a Trindade e com cada um de nós. Temos para a nossa meditação, a continuação do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As característica fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.  E delineia, durante todo o evangelho, as atitudes esperadas para os que querem se tornar discípulos do Reino e de Jesus.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso se tornavam inaptos para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente. No v.16, eles vão se certificar do evangelho que lhes fora dito pelo mensageiro celestial.

O terceiro evangelho é caracterizado pelo tema da pobreza. A primeira palavra que sai da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré, é que seu projeto de vida contempla o anúncio aos pobres, e que o Espírito do Senhor estaria sobre ele, e o ungira para esta missão (Lc 4,18). Ora, entre as muitas faces do terceiro evangelho, esta o aspecto da salvação para os pobres, os últimos, a inversão escatológica, onde os primeiros se tornam últimos, e os últimos se tornam os primeiros. Ora, o Evangelho de Lucas é o mais social dos escritos do NT. Lucas é plenamente o evangelista dos pobres; aqueles aos quais os anjos anunciam um evangelho de Alegria.

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas. Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (hbr. shemá), que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. Por mais que a imagem da ruminação seja melhor aplicada ao evangelho de João, podemos entender essa atitude de Maria de “guardar no coração”, como sendo uma ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma. É a postura do discípulo do Reino.

No esquema da obra Lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu intimo, ruminando-a, para, enfim, coloca-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, que tudo guardava no coração – confrontando e ruminando a Palavra – o leitor do evangelho é convidado e enxergar em Maria, o exemplo do verdadeiro discípulo de Jesus.

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o titulo de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula.

A Maternidade de Maria ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor e mais bem feito propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.

Pe. João Paulo Sillio / Arquidiocese de Botucatu – SP.

Feliz Kairós de 2020!

sábado, 28 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA SAGRADA FAMÍLIA (Ano A) - Mt 2,13-15.18-19:




Celebramos dentro deste tempo do natal, a solenidade da Sagrada família de Nazaré. Na dinâmica litúrgico-celebrativa, a solenidade de hoje visa, em primeiro lugar, confessar uma verdade importantíssima dentro deste mistério que vivenciamos por estes dias da oitava de natal: a realidade da Encarnação do Filho de Deus. Este mistério é visibilizado através da solenidade deste domingo através do fato de que Deus, ao assumir a história humana, assume-a em seu realismo e em suas dinamicidades e estruturas, aceitando ser família, de modo a revelar à humanidade que também Ele, em seu mistério trinitário forma família, na relação existente entre as pessoas divinas.

Deus, no Filho, assume a história humana ao assumir a carne, e, igualmente, ao assumir a realidade histórica e estrutural de uma família, revelando-se Família desde sua vida intra-trinitária. Mas qual a finalidade desta “assunção” da realidade familiar humana por parte de Deus? É a de propor à humanidade um convite: torna-la participante da família de Deus. Poderíamos parafrasear o v.14 do prólogo do Evangelho segundo João: “O verbo se fez carne e revelou sua Família entre nós, para que pudéssemos fazer parte de sua família”. Mas existe um critério, ou, se preferir, um caminho para se tornar parte da Família de Deus. É o que o texto evangélico proposto para esta solenidade nos convida a assimilar.

Antes de tudo, se faz necessário desconstruir aquelas idealizações concernentes à Sagrada Família. A família de Nazaré, José, Maria e Jesus não pode ser tida, a rigor, como modelos de perfeição ou daquela famosa imagem de “família tradicional”. A família de Nazaré já começou fora dos paradigmas “humanos”, “culturais”, “religiosos”, “tradicionais” daquela época e contexto socio-religiosos. Uma mulher que engravida, para todos os efeitos, fora das estruturas humanas e religiosas, fadada à mendicância, prostituição, e, em último caso, mais certeiro, pena de morte. O esposo, procura não assumir a sua prometida, pretendendo devolvê-la em segredo à família, na intenção de que eles decidissem sobre a sorte da menina; o que revela, numa primeira leitura, um José descompromissado e amedrontado. Uma situação destinada ao fracasso desde o começo. Aparentemente!

Deus quebra os esquemas e paradigmas da história humana, subvertendo a ordem e a importância das coisas. Ora, à luz dos textos bíblicos destes dias somos chamados a contemplar como as personagens Maria e José buscam responder ao projeto de Deus. Na perspectiva do Evangelho de Lucas, Maria é tida como o modelo do discípulo do Reino, pois ela se abre e se dedica à escuta, acolhida (discernimento) e cumprimento da Palavra de Deus ( Lc 1,38ss; 2,1-15). José, no evangelho de Mateus assume a figura do discípulo exemplar, ele é justo, porque permite que a vontade de Deus se cumpra em sua vida e através dela, escutando, assim a Palavra de Deus e colocando-a em prática (Mt 1,16ss; 2,13-19, texto de hoje). Quanto a Jesus, sempre o veremos como fiel ouvinte da Palavra do Deus que ele chama de Pai, do começo ao fim de sua vida ministério.

Existe, portanto, uma característica comum entre as três personagens que compõem esta família de Nazaré, tão histórica e concreta: ouvir e discernir a Palavra de Deus. Isso, para escapar das possíveis quedas retóricas e devocionais relacionadas à idealização da família e da “sagrada” família. Especialmente, é oportuno recordar que, na economia cristã e de acordo com as próprias palavras de Jesus, a realidade decisiva é a nova família de Jesus: aquela dos seus discípulos e discípulas, reunida ao seu redor pelo anúncio da Palavra de Deus e que não se baseia mais em laços de sangue, mas no “fazer a vontade de Deus” (cf. Mt 12,46-50).” (Comunitá di Bose. Eucaristia e Parola, p. 36).

Agora, podemos entrar na narrativa do evangelho de hoje. O evangelista Mateus, se serve de um episódio já conhecido de seu povo e de sua comunidade, a matança dos meninos hebreus pelo Faraó, em Ex 1,22. O evangelista se serve da técnica de interpretação dos textos narrativos, utilizados pelos rabinos de seu tempo, o midrash. Ele se apropria desta técnica narrativa de interpretação para transmitir sua catequese sobre Jesus de Nazaré para a sua comunidade. Ele se serve de todo o patrimônio escriturístico, histórico e religioso de Israel para fazer conhecer a identidade de Jesus: para a comunidade de Mateus, Jesus é o novo Moisés, que assume toda a história e tradição de seu povo, para promover a nova libertação, o novo êxodo, e inaugurar o novo povo de Deus, através do qual Deus poderá exercer sua ação na história humana, ou seja, seu Reinado.

Existe uma trama maldosa e diabólica por parte de Herodes. O mensageiro celestial informa a José que o tetrarca pretende atentar contra a vida do menino. “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo” (v. 13b). A expressão “Anjo do Senhor” é uma forma suavizada para falar de Deus mesmo. Como a mentalidade hebraica concebia Deus como alguém muito distante e o ser humano incapaz de comunicar-se com ele, usava-se a imagem de um ser intermediário, como um anjo. Já o sonho, na mentalidade bíblica, e sobretudo em Mateus, significa a disposição interior para compreender a vontade de Deus e colocá-la em prática. A primeira informação evidenciada aqui é a proteção constante de Deus na vida de Jesus, sendo também uma antecipação do seu ministério como oposição ao poder estabelecido. O evangelista está alertando que, desde o início, Jesus e seu projeto libertador são insuportáveis para todo e qualquer sistema de dominação sustentado pelo uso da força e poderio econômico, causas diretas das principais injustiças. (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).

“José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito” (v. 14). Existe uma estrutura neste versículo: José – o menino – a mãe. Notemos que Jesus está ocupando o centro da frase. O evangelista Mateus quer ensinar para a sua comunidade qual deve ser o seu referencial: Jesus. Ele deve ocupar sempre o centro de sua vida. José e Maria são, aqui, símbolos do antigo Israel, o qual vai se abrindo à novidade da vida e da missão de Jesus, tornando-se assim um novo povo.

Ao mesmo tempo, o versículo quatorze traz uma estrutura ritimada que aparece novamente nos vv.13.20.21, marcada pelos verbos “levantar-se, tomar consigo (pegar), partir e entrar”, parecendo um refrão. Esta ordem de Deus, através do anjo, é, na verdade uma síntese de todo o discipulado a Jesus, através do cumprimento da ordem dada. José, se torna, portanto, o modelo do discípulo: todo o seu agir é pautado pela Palavra de Deus.

O texto continua, informando a morte de Herodes e uma nova aparição do Anjo do Senhor a José (v. 19), com uma nova ordem: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos” (v. 20). Mateus quer identificar Jesus como o novo Moisés, que do Egito inaugura um novo êxodo. Isso será mostrado no decorrer de todo o evangelho mateano.

Importante notar mais uma característica desta família: ela se deixa iluminar pela Palavra de Deus. Ora, Deus protege, mas o ser humano participa da contínua libertação. Em momento algum o evangelista diz que Deus os transportou de um lugar para outro. Apenas os iluminou com a Sua Palavra. A iniciativa de partir de um lugar para outro foi sempre de José, ou seja, do agente humano. É assim também que deve fazer a comunidade cristã: à luz da Palavra, tomar iniciativas de libertação; não repetindo as práticas do opressor, mas criando e propondo alternativas de vida. A ida dos três para a desprezada região da Galileia é uma prova disso. É de lá que o Reino será, posteriormente, anunciado e iniciado por Jesus (cf. Mt 4,14) (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).   

O texto de hoje nos provoca: 1) Que imagem de família (ou modelo) trago comigo, ela é conforme os moldes e padrões desta mentalidade, perfeitinha, “exemplo de moral e bons constumes”? 2) O exemplo de José pode ser assimilado por nós e nossas comunidades? 3) Nossas famílias, com todo o realismo e imperfeição que elas possam ter, são espaços de escuta, acolhida, discernimento e realização da Palavra de Deus? 4) Podemos ser contados entre os membros da Família de Deus, assim como a humana e histórica família de Nazaré, que se colocou na disponibilidade da escuta e do cumprimento da Palavra de Deus?

Celebrar a família de Nazaré significa celebrar a nossa entrada na Grande Família de Deus, que não se delimita e determina mais pelos laços sanguíneos, mas pelos laços que a Palavra de Deus cria em cada um que se torna sua Ouvinte.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR - Jo 1,1-18


 a Palavra se fez Carne.

Antigamente, se iniciava o estudo do Evangelho de João pelo v.19 do cap.1, onde começa a narrativa propriamente. Mas devido ao caráter próprio dos dezoito versículos anteriores, o prologo do Evangelho nos coloca na mentalidade própria do autor do Quarto Evangelho, de modo a compreender bem a narrativa. Gostaria de meditar um pouco sobre os v. 1-2, 12-14. Não tomarei todo o texto bíblico do Prólogo de João, pois estes cinco versículos expressam bem a Graça deste dia Santo que celebramos, o Natal do Senhor!

“No principio era a Palavra” (v.1). João é um judeu, e que pensa e escreve a maneira semítica, só que em grego. Existem muitas construções frasais no seu evangelho que não são nada gregas, mas de mentalidade muito semítica.

Ora, quando se repensa esta primeira linha do prólogo, sob pano de fundo hebraico, é evidente que ele tem em mente o Gênesis. O Genesis começa com um “No princípio (Bereshit)” Logo, João faz em sua Overture (abertura) uma releitura do poema da criação do Gênesis (Gn 1,1-31). Ali se fala da palavra efetiva, criadora e ordenadora. Esta Palavra foi efetiva: “Haja Luz, e houve luz”. É, então, sobre esta Palavra efetiva e eficiente que João faz uma meditação para nos colocar no espirito de sua obra. É uma Palavra que faz coisas, que cria possibilidades e horizontes.

Esta palavra estava junto de Deus (prós ton Theon); no inicio estava Deus falando e esse falar era próprio de Deus, e esta Palavra é Deus. Não é outra entidade senão Deus. É ele mesmo quem fala. Ora, a Palavra é Gerada, produzida, dita por Deus, e não Criada. Isso é muito importante, pois João apresenta o falar de Deus, que é Deus mesmo.

No v.12, o autor do Quarto Evangelho ratifica a ideia dos versículos precedentes, de que a Palavra veio para os seus, mas os seus não a acolheram, mas pontuando que não foram todos, dentre os que eram seus (o povo de Israel), que não o acolheram, e que aqueles que o acolheram, se tornaram filhos de Deus, no nome do Filho, e receberam Graça por Graça.

No v.13 aparece o tema da geração por Deus. Os que aceitam a Palavra de Deus são gerado por Deus. É Deus quem gera e faz o fiel, através de sua Palavra Criadora.

O v.14 é explosivo: A Palavra se fez Carne e armou sua tenda entre nós, e nós vimos a sua Glória. Esta imagem evoca a encarnação concreta, palpável de alguém, que fez (armou) sua tenda entre nós. Esta imagem evoca a Tenda da Reunião, nos livros de Êxodo e Números. Aquela tenda que depois foi transferida pelo Rei Davi, e finalmente transformada em templo por Salomão. Mas de qualquer modo, esta tenda era a habitação, a morada de Deus no meio dos Homens, (morada = Shekiná) no Antigo Testamento.

Dentro deste contexto semântico é que João situa o acontecimento (o evento) da Palavra no âmbito do humano. Esta Palavra colocando sua Shekiná, sua morada, no meio de nós. E, por isso, sua Glória se torna visível para nós.

Glória no Antigo Testamento não é sinônimo de Brilho. Em hebraico, a palavra Glória (hbr. Kabod) significa Peso, substância. Ora, o Judeu, que sabia lidar com ouro tinha a consciência de que este pode, enquanto polido irradiar sua glória e brilho. Mas mesmo opaco, sem nenhum tratamento, ele sabe que a importância do ouro não está no seu brilho, mas em seus Quilates, portanto em seu peso, mesmo escondido. Então, Glória é como o ouro, que, mesmo escondido, tem seu peso, sua subtância, sua qualidade, seu Kabôd.

O que está no Menino de Belém [Jesus] não é algo que brilha sobre o mundo, mas o Peso e a substância de Deus (Kabod há YWHW – Glória de Deus). João quer ensinar à sua comunidade e ao leitor de seu evangelho ruminado, que o lugar da manifestação da Glória (do peso substancioso) de Deus reside na Carne, na vida e na história de Jesus de Nazaré. A glória de Deus (seu peso, sua presença substanciosa) reside, agora, na Carne do ser humano: reside no Homem. A humanidade torna-se o lugar de Deus. Ela, agora, leva consigo o próprio Deus, que desejou ser cuidado, também, na fragilidade de uma Criança. 

Com efeito, quando ainda nestes versículos se fala que a Palavra se fez carne, deve-se pensar a Carne (Sarx) como aquela condição mais precária, limitada, frágil da condição humana: uma humanidade limitada (Is 40). Sarx (carne) difere, aqui, de Sôma (corpo). O Quarto evangelista não diz que a Palavra (Lógos) se tornou Corpo (Sôma), mas que se fez Carne (Sarx), ou seja, assumiu em tudo a fragilidade, a precariedade, a mortandade, a temporalidade. Significa dizer que a Palavra se tornou humanidade precária já marcada para a morte. O caminho de toda a carne é a morte. Então, a encarnação de Jesus não é só seu natal, mas também sua sexta-feira da paixão,quando a encarnação é consumada e levada a Termo. Aqui, Jesus é carne ao extremo.

Pleno de Graça e de Verdade (plêres cháritos kai Aletheías), nos informa, ainda o v.14. Estas duas palavras nos fazem retornar ao modo semítico de pensar. Em Hebraico, Graça corresponde a Hesed-Hem, dois conceitos que estão muito próximos. É aquela Benevolência indescritível e Leal. Já Verdade corresponde ao hebraico Emet (fidelidade e veracidade), verdade (mas normalmente, no sentido existencial), que pode ser resumida na expressão “Amor Leal” ou “Amor Fiel” (ou mesmo, Amor e Fidelidade). Graça e verdade são traduções muito aproximativas daquele Amor fiel (Hesed waEmet), que são as ultimas palavras de autorevelação de Deus em Ex 34,26, quando YHWH passa diante de Moisés e lhe proclama suas próprias qualidades, dentre elas seu amor e sua fidelidade. Então, é o mesmo Deus do Sinai que está presente neste unigênito, que não é outra coisa, senão a automanifestação (ou autocomunicação) deste Deus pleno de Graça e verdade.

Assim sendo, a solenidade do Santo Natal, que celebramos hoje, é a festa da glorificação de nossa Carne, através da Carne de Jesus de Nazaré, o Unigênito Filho de Deus. No mistério de sua Encarnação, sua Antróposis, Deus eleva a condição humana à sua Théosis, à Deificação. Dizer que através da Carne do Filho tem-se acesso à glória de Deus, significa dizer que Carne (tudo aquilo que é de mais frágil, precário, finito, débil e mortal) se torna lugar de Deus. O humano se torna lugar de Deus. Como bem expressou Santo Irineu de Lyon, "a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus (Adversus Haeresis, de Santo Irineu, Bispo (Lib. 4, 20, 5-7: Sch 100, 640-642. 644-648, séc. I).

Como dizia acertadamente Fernando Pessoa: "Tão humano assim, só poderia ser Divino" (parafraseando consciente ou inconscientemente São Leão Magno).
FELIZ E SANTO NATAL!

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A NOITE DO SANTO NATAL - Lc 2,1-14




Meditamos nesta noite santa o capítulo segundo do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,1-14). O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). O evangelista possui uma visão ecumênica, ou melhor, inclusiva (universal, se preferir) na transmissão de seu relato.
O terceiro evangelista nos informa que José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, desposada com ele. Talvez essa palavra “desposada” já não cabe mais, pois no primeiro capitulo, Maria estava prometida em casamento a José, então casada com ele. Na cidade de Belém ela dá a luz ao filho primogênito: o Ya’hid (meu único), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os direitos jurídicos (v.5-6).
No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas, desde o nascimento delimita “o que virá a ser esse menino”, ou seja, a figura de Jesus que perpassará todo o evangelho. Mas isso, na ordem da narrativa, pois devemos evitar, aqui, todo e qualquer determinismo quanto à vida de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade.
O menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para ele na sala da hospedaria. Lucas que mostrar que Jesus está entre os excluídos. Imaginemos o contexto social da época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas rochas. Dentro delas haviam galerias onde era possível arrumar um cantinho para ficar, enquanto que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na estrebaria. Mas nem um lugar nessas galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito provavelmente, tenham ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos pastores da região, como o resto da narrativa sugere.
Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso se tornavam inaptos para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente!
Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. Interessante notar a composição lucana sempre mostrando o contraste entre escuridão e claridade, como que se Deus gostasse de se manifestar na escuridão (por exemplo, a nuvem escura que desce sobre a tenda da aliança no deserto) ou na luz da salvação predita pelo profeta Isaias em 9,1.
Os primeiros cristãos viram no nascimento de Jesus uma realização do que foi predito pelo Profeta Isaias no cap.9,1. Esta Luz aparece aqui aos pastores. Isso é muito interessante: não é uma luz que atinge as pessoas, mas que as envolve. Ficando eles envolvidos também por um certo temor religioso, o anjo, então, lhes exorta, primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve ser uma barreira. Em segundo lugar, lhe dá o motivo: um evangelho de alegria para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor!
A palavra Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor de uma função especial, como o rei e o sumo sacerdote. E isso, na Cidade de Davi.
O mensageiros celestial lhes dá um sinal para encontra-lo: encontrarão o menino deitado numa manjedoura, envolto em faixas! O sinal é encontrar, portanto, o menino colocado no lugar da exclusão!
O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso. Não poderá ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Não está no esplendor do templo de Jerusalém. Não está entre os poderosos. O sinal é um menino envolto em faixas e colocado em meio a paus trançados – a mangedoura. Porque não havia lugar para eles na hospedaria (Lc 2,7). Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feito Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos. Deus empodera os pequenos optando por eles.
Na manjedoura de paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Na cidade de Belém já se vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz. O sinal do menino envolto em faixas é sinal da inversão escatológica: Deus que inverte a lógica dos poderosos em favor dos pequenos.
Na narrativa, imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece uma multidão da corte celeste para anunciar o nascimento do messias: Glória a Deus, no mais alto dos Céus, e paz na terra... Hino celestial muito poético! Significa que o céu e a terra se unem num evento único: a Glória de Deus, que produz Paz (shalom) na terra. Isto é um reflexo do Sl 84. A plena realização (plenitude) – Shalom. Significa que Glória de Deus, ao encontrar-se entre a humanidade através da Carne do menino, está inaugurando o tempo messiânico, o tempo do Shalom, do “debito quitado”, da Paz.
Entramos aqui numa questão semântica: essas pessoas se agradam em Deus ou será que elas recebem o agrado dele? Alguém poderia seguir o exemplo dos fariseus do tempo de Jesus, que faziam de tudo para agradar a Deus. Entretanto, conhecendo a teologia de Lucas, podemos nos inclinar para o seguinte significado: estes, aos quais os anjos anunciam, são os que recebem o prazer ou agrado do coração e do olhar de Deus. Equivaleria dizer que o coração de Deus é oferecido às pessoas que tem um coração humilde. Assim, o agrado de Deus é a salvação do ser humano.
Que a festa do Natal do Senhor possa abrir as portas de nossos corações para a hospitalidade para com o irmão e a irmã que não encontram lugar em nosso meio.  Se quisermos ver o menino, deveremos lançar o olhar para a estrebaria e para a manjedoura. 
Ele está ali, com os últimos e excluídos. Se quisermos ver a Glória de Deus, deveremos olhar para a Carne assumida pelo Filho, e enxerga-lo envolto em faixas e colocado na manjedoura. Olhar para a Carne do Menino de Belém, e para a sua opção pelos últimos. Humano assim, só pode ser Deus.


Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu - SP

Feliz Natal

sábado, 2 de novembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS - Mt 5,1-12:




A solenidade de todos os santos nos propõe o capítulo quinto do Evangelho segundo Mateus. Na catequese mateana, este capítulo funciona como o discurso inaugural de Jesus, encerrando-se em 7,11. Esta primeira catequese de Jesus é de fundamental importância para a comunidade dos discípulos e para as gerações futuras.

Com este discurso inaugural, Jesus faz uma releitura ou uma reinterpretação da Torá, a Lei de Deus, contida no Decálogo. Mateus, em seu propósito catequético e redacional, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido novo à Lei, através do discurso inaugural do Sermão da Montanha. Este sermão abre-se com as bem-aventuranças.

Jesus lança as bases do Reino dos Céus, cuja proximidade havia anunciado (Mt 5-7). O Sermão da Montanha corresponde ao modo de ser e agir, propostos aos que são convidados a se tornar discípulo do Reino. Jesus não prega um código dc moral. Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de vida, que tem o Pai como fundamento e modelo (Mt 5,48) (VITÓRIO, 2017, p.42).

As Bem-aventuranças fazem parte do gênero profético de congratulações ou felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último alude à promessa de intervenção salvadora de Deus na história para salvar e libertar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve nas bem-aventuranças que dirige aos seus.

Após dar início a sua missão, depois de ser batizado por João, o batista, e ter sido tentado no deserto quarenta dias, e retornar para a Galileia e reunir um grupo que se decidira por segui-lo, o evangelista começa o capítulo quinto situando o leitor-discípulo na narrativa, num novo cenário. Jesus, seguido de seus discípulos e de uma multidão que o seguia, conforme somos informados em Mt 4,25, chegou a uma montanha ali no território da Galileia. O autor nos descreve a atitude de Jesus.

“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”.  Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar teológico).

Jesus dirige seu ensinamento desde a montanha. Esta é muito mais que uma localização geográfica, mas um lugar teológico. Ela remete o leitor-discípulo do primeiro evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH dera a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os fieis discípulos de sua comunidade judeu-cristã, que o que Jesus faz equipara-se e supera o gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado.  

A multidão, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre aquele grupo que ouve falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá o passo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e a vida de Jesus. Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderem ao ensinamento de Jesus, saem da multidão e dão o passo do discipulado, permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do Reino. O evangelista afirma que Jesus viu as multidões, mas os que se aproximaram foram os discípulos. Mas é claro que o ensinamento que Jesus dirige também contempla a multidão, visando provoca-la a dar o passo para o discipulado.

O ensinamento contido nas Bem-aventuranças não são palavras de consolação, muito menos uma pregação moralista para suportar, tendo em vista uma recompensa celeste. É um apelo de alegria e exultação, que prepara um anúncio de libertação e intervenção de Deus. Não se trata de oito diferentes tipos de pessoas, e, sim, oito diferentes ilustrações da vida do discípulo centrada no Reino. O vocábulo bem-aventurado, feliz, refere-se à condição de quem é abençoado por ter Deus como centro de sua vida (cf. VITÓRIO, 2017, p.42).

Jesus começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Ele declara serem felizes os “pobres em espirito”. Quem são estes? Pode admitir dois sentidos, a pessoa dotada da virtude da humildade, que corresponde à interpretação dos textos de Qumran (hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico. Quer seja o humilde ou o miserável, este é declarado feliz quando tem a atitude de apresentar-se diante de Deus com as mãos vazias, porque soube abdicar de sua autossuficiência e atitude orgulhosa. E, mesmo sofrendo a exclusão social, se abrem para Deus e nele põem sua confiança. Possivelmente a melhor tradução para esta primeira bem-aventurança seja “pobres com espírito”. Aqueles que se recusam a escolher o caminho da idolatria dos bens deste mundo para mudar a situação. Jesus diz ser destes o Reino dos Céus. Em outras palavras, entrarão no mundo dos ressuscitados para a vida.

No v.4, Jesus declara serem felizes (bem-aventurados) os aflitos (os que choram, em Lc 6). Mateus mudou a versão de Lucas embasando-se na profecia de Is 61, onde se lê que “O Senhor enviou-me para consolar os aflitos”. Os aflitos são aqueles sofrem os golpes de uma realidade que ainda está sob influencia das forças contrárias ao Reino, o Mal. Vítimas da violência e da injustiça, que não tem a quem recorrer, mas que tem a Deus para consolá-las. Quando os valores do Reino não permeiam as relações interpessoais e o tecido social, as pessoas são cruelmente violentadas. São aqueles que se recusam a revidar violência com violência (Mt 5,39; Rm 12,17; 1 Ts 5,15). Jesus declara que Deus mesmo será o consolador, sofrendo com elas (Is 40,1; 61,2). A consolação prometida é a salvação final e definitiva.

Nesta mesma lógica, Jesus diz serem bem-aventurados os mansos (v.4). Os mansos, pela força de Deus, recusam-se a ser violentos e, desta forma, quebram a maldita espiral da violência. Portanto, serão herdeiros da terra que, com seu gesto de resistência não violenta, ajudaram a construir (SI 37[36]) (cf. VITÓRIO, 2017, p.43). Com certeza esta bem-aventurança foi criada por Mateus, inspirando-se no Sl 37. De certo modo ela repete a primeira bem-aventurança. Todavia, em primeiro plano nesta felicitação está a relação com o próximo. Diante dos outros, o manso apresenta-se desarmado, sem defesas nem esquemas ou autoproteção, colocando-se na dinâmica da não-violência. Um modelo perfeito desta bem-aventurança é o próprio Jesus (Mt 11,29, “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração...). Somente os não-violentos, aqueles que quebram a cadeia (espiral) da violência podem possuir a terra (que num sentido metafórico alude ao Reino de Deus).

A bem-aventurança relacionada aos famintos e sedentos de justiça pode ser compreendida de duas maneiras: 1) Os famintos e sedentos da justiça não têm quem os defenda, para fazer valer seus direitos. Na Lei mosaica, todos e, especialmente, os mais fracos e desprotegidos deveriam ter um protetor (go’el). No projeto de Jesus, o Pai, em pessoa, será o go’el dos discípulos do Reino. Esta bem-aventurança é difícil de traduzir do original grego, que, literalmente poderia vir traduzida assim “Felizes os famintos e sedentos da justiça”. O artigo “a” faria referência à Justiça do Reino (cf. Mt 5,20). E, sendo assim, esta bem aventurança abre-se para uma segunda interpretação: 2) os bem-aventurados por terem fome e sede da Justiça do Reino são saciados quando colaboram para que esta Justiça (que é o agir e a vontade de Deus acontecendo na história) se cumpra, ou seja, se propõem a fazer aquilo que o pai quer.

No v.7, Jesus declara: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Um tema muito querido por Mateus. A misericórdia na bíblia não se trata de um sentimento, mas de uma atitude operativa em favor do outro. É uma atitude relacionada à vida concreta. Na mentalidade do evangelista, o Pai, no último juízo, se mostrará misericordioso com aqueles que viveram uma existência pautada pelo amor o pela misericórdia para com o próximo. Quem tem o coração cheio de misericórdia assimilou o modo de ser de Deus, cuja bondade é eterna (SI 136 [135]). Assim, será também destinatário especial da misericórdia do Pai (cf. VITÓRIO, 2017, p.43).

A bem-aventurança relacionada à pureza de coração deve ser entendida corretamente. São aqueles que são puros desde o íntimo do ser, para além das aparências. Não são pessoas de fachada. Sem falsidades e sem dolo. São transparentes, e essa condição os coloca lado-a-lado com Deus.

Os “fazedores de paz (gr. eirehnopoioí)” empregam toda sua vida para construir o Shalom (paz) neste mundo, propiciando um nível de vida humano e justo onde todos desfrutem do bem-estar e da prosperidade. Serão chamados filhos de Deus por construírem o mundo querido por Deus. São aqueles que colaboram para o diálogo, a concórdia, a reconciliação entre as pessoas, costurando novamente os fios corroídos e selando os laços afrouxados da relações humanas. Jesus diz que, no último dia, estes serão reconhecidos solenemente por Deus como autênticos filhos seus.

Nos vv.10-12, Jesus diz diretamente aos discípulos (bem-aventurados vós...) que estes são felizes por serem perseguidos por causa da Justiça, recebendo injurias, sendo perseguidos e alvos de mentiras por causa dele. Os discípulos deverão se alegrar e exultar, porque a recompensa nos céus será grande. Quem assume viver a dinâmica do Reino, abraçando a causa de Jesus, atrai sobre si insultos, perseguições, mentiras e maledicências. Todavia, os perseguidos por causa da justiça não devem temer, tampouco recuar, pois já possuem a recompensa mais valiosa: o Reino dos Céus. Essas situações difíceis são para eles motivos de alegria e de exultação, contrariando as expectativas do mundo que os quer tristes e derrotados. Sua sorte se compara à dos antigos profetas (cf. VITÓRIO, 2017, p.43).

As bem-aventuranças compreendem a síntese do programa de vida de Jesus e, consequentemente, dos seus discípulos e discípulas de todos os tempos. É um texto belo, mas muito fácil de ter seu sentido deformado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Ora, falar em todos os santos e santas tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem evangélica, evitando que esta solenidade se transforme em mera apologia ao devocionismo ingênuo ou mesmo estéril; que faça pensar ou conceber a santidade, a que todos somos chamados, como sendo algo de outro mundo ou só possível a alguns “separados ou alienados” da realidade. A santidade vive-se na dinâmica relacional e histórica, ou seja, através das relações fraternas restauradoras da dignidade humana, e nesta realidade bem concreta. Por isso, é preciso ter clareza que o programa de vida de Jesus, as bem aventuranças, não se trata de um discurso alienante ou desvinculado da realidade concreta; tampouco um conjunto de ditos moralizantes, mas como processo de seguimento e discipulado, bem como balizas para se viver o projeto do Reino aberto e proposto a todos os batizados e batizadas.

No hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado, assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Nossas comunidades se encontram inseridas nesse projeto de seguimento e discipulado ou concebem-se santamente alienadas e separadas da realidade concreta e histórica onde é chamada a viver e testemunhar a verdadeira santidade de vida? Ora, não vivemos a aventura da santidade sozinhos. Somos chamados à santidade com os nossos irmãos e com eles e através deles nos santificamos também. Será conseguimos reconhecer os bem-aventurados de Hoje? Aprendamos também com eles.

Pe. João Paulo Góes Sillio. Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 27 de julho de 2019

Homilia para o XVII Domingo do Tempo Comum – Lc 11,1-13:



A liturgia deste domingo propõe a leitura do capítulo onze do evangelho segundo Lucas. Jesus e seus discípulos dão continuidade a viagem de subida para a cidade santa. É importante relembrar que esta viagem não é um deslocamento físico-geográfico tão somente. Mas um deslocamento interior, que visa uma atitude exterior por parte do discípulo que caminha com Jesus. É uma metáfora para a vida cristã, permeada do caminhar, mas também do parar. Que não é uma parada qualquer, senão para a Oração.

O capítulo onze apresenta uma catequese-ensino sobre a Oração. Ao seu interno, Lucas apresenta a Oração que Jesus ensina aos seus. A fórmula da Oração do Senhor apresentada pelo terceiro evangelista é considerada pelos biblistas como sendo a mais curta, e, por isso, a mais antiga. É verdade, que outra versão se encontra no evangelho de Mateus, bem mais elaborada, segundo as necessidades daquela comunidade e de seu autor.

O evangelista situa-nos no horizonte do texto. Jesus encontra-se em oração (v.1). Por sete vezes, durante seu ministério público, o evangelista mostra Jesus em oração, do batismo à paixão, o que corresponde exatamente à totalidade do seu ministério (cf. 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29; 11,1; 22,41). Tudo o que ele deve realizar, primeiro deve ser discernido segundo a vontade de Deus. Por isso, a oração para Jesus constitui-se o momento através do qual pode entrar em comunhão com Deus. Ela revela que, tudo o que Jesus faz é da vontade e do querer de Deus.

“Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe: Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus discípulos” (v. 1b). Era comum, nos círculos rabínicos, os mestres ensinarem ao seus discípulos uma oração, a qual caracterizava a espiritualidade daquele grupo e do mestre, bem como os distinguiam dos demais. Naturalmente, por terem primeiro sido discípulos do Batista, conservavam na memória o modo de rezarem, segundo João.

Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à vontade, nesse sentido, o que poderia deixar seus discípulos até inseguros, pois não tinham regras estabelecidas a cumprir. A regra de Jesus era apenas o seu jeito de viver (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Jesus dá-lhes uma nova forma de se relacionar com Deus. A novidade da oração de Jesus é, realmente, explosiva. Ela subverte a lógica e os esquemas através do qual o judeu piedoso se relacionava com Deus. Jesus chama o Deus de Israel de Pai. Nunca ninguém jamais havia tido essa ousadia. A nível de conhecimento, o judeu sempre se dirigia a Deus como santíssimo, altíssimo, Senhor-Adonai (YHWH), o Bendito, o Eterno. Somente Jesus se dirige à Deus como Pai. É uma relação nova e inédita, superior à forma como se relacionava Abraão, o amigo de Deus. Os discípulos não são chamados a serem somente amigos de Deus, mas seus filhos. Outra novidade consiste no fato de que ao chamarem Deus de Pai, e descobrirem-se filhos em relação a ele, descobrem-se também irmãos.

A oração de Jesus encontra-se estruturada sobre cinco elementos. Eles traduzem, para nós, o que é rezar. Os dois primeiros (v. 2) provocam à abertura para o Pai; os três últimos (vv.  3-4) conduzem à transformação das relações entre as pessoas.

A “santificação do nome de Deus” (v. 2) e o “advento de seu Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionados, a ponto de confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque Ele é, essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento dessa santidade. Reconhecer a santidade de Deus é saber que Ele é Pai, aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre nós (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Em seguida, Jesus ensina a pedir o “pão necessário para cada dia” (v. 3). Esta petição revela, na verdade, a atitude da confiança incondicional do discípulo em Deus. O ser humano, e, de modo especial, o discípulo do Reino, não podem ser autossuficientes por um dia sequer, mas em tudo dependerem de Deus, até mesmo no que é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as características do Reino, é a confiança e a solidariedade. Mas pedir a cada dia o pão significa assumir a partilha como forma de realizar o Reino, traduzido na fraternidade: pão, terra, moradia, saúde, educação, vida para todos, até que a humanidade inteira reproduza o “paraíso” saído das mãos do Pai.

Não poderia faltar este pedido na oração do Reino. “Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores” (v. 4). De fato, somente Deus é quem perdoa os pecados. Mas Jesus introduz também aqui uma novidade: pois nós perdoamos também a todos os nossos devedores. Assim como o pão cotidiano, os cristãos partilham do Dom do Perdão. Não traduzir nas relações humanas o perdão de Deus é tornar inútil e mentirosa a oração que Jesus nos ensinou.

Com isso, Ele ensina que o perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; não porque a misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão caro a Lucas. Isso implica que, mais que ser perdoado, é necessário viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

A última petição que o Jesus ensina está relacionada a Tentação de abandonar a Deus, e fazer oposição ao seu projeto. A palavra peirasmós (tentação), quando aplicada aos discípulos revela, na verdade, o perigo da desistência e do abandono à Deus. Não são tentações de ordem carnais ou moralistas. Mas optar pelo caminho contrário ao de Deus.

Jesus, por sua vez, nos ensina a pedirmos ao Pai que não nos deixe cair nessas tentações que pervertem o projeto de uma sociedade fraterna e igualitária. Às tentações do poder, do ter e do prestígio os cristãos respondem com a partilha, serviço, igualdade, solidariedade, serviço e disponibilidade como instâncias para construir nova sociedade e história (BORTOLINI, J, 2009, p.646).

Dos vv.5-11, Jesus ilustra a oração que acaba de ensinar, contando-lhes duas parábolas. a do amigo inoportuno (vv. 5-8) e a do pai (v. 11). Ambas têm a função didática de explicitar a proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível que um amigo, e muito melhor que um pai terreno. Desse modo, Ele ressalta que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o que é justo, jamais Ele deixará de atender (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

A oração do Senhor não é apenas uma oração comum, permeada de petições que o fiel orante faz à Deus. É uma escola de vida cristã. Se o rezarmos com mais atenção, veremos que o Pai-Nosso não é uma serie de pedidos, mas o modo através do qual o Cristo nos ensina a viver. Através desta oração rezamos a própria vida. Portanto, o Pai-Nosso é o modo pelo qual pedimos alguma coisa, e, que, ao mesmo tempo nos interpela. Por isso, esta oração deve ser feita no Espírito de Jesus. A comunidade que se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai o que é, de fato, essencial.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 20 de julho de 2019

HOMILIA PARA O XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 10,38-42:



A Igreja continua a leitura do capítulo décimo do Evangelho de Lucas. A moldura da narrativa é a mesma: a subida de Jesus para Jerusalém, meta final de sua viagem. Ao logo desta subida alternam-se as situações de acolhimento e hospitalidade e rejeição (por exemplo em 9,53, os samaritanos não recebem a Jesus). Mas na pericope meditada pela liturgia de hoje, as mulheres Marta e Maria acolhem a Jesus em casa (Lc10,38-42). Este texto pertence somente à tradição de Lucas, e, como sendo de seu perfil, o evangelista trata imediatamente de mostrar Jesus quebrando paradigmas da época.

“Jesus entrou num povoado, e certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (v. 38). O evangelista não cita o nome da aldeia (mas situa os personagens aos poucos): é aceitável que Lucas e sua comunidade conheçam a tradição sobre Lázaro, Marta e Maria, e a tenha colhido do Quarto Evangelho. Talvez por isso, não lhe seja necessário situar com precisão, no nível da narrativa (cf. FÁBRIS, R. p.127).

No tempo da sociedade de Jesus, somente o homem podia receber um convidado em sua casa, uma vez que a mulher não tinha esta autonomia. Marta vai aos afazeres domésticos, conforme os costumes da época. Na verdade, ela faz aquilo que era próprio da mulher dentro de seu contexto social: ser a dona de casa (a doméstica). Sua atitude já era de ser esperada naquela situação social: exclusão dos meios masculinos e a submissão. Ao acolher Jesus, ela rompeu barreiras. Jesus, de sua parte também inova: uma vez que no seu tempo não parecia bem a um homem aceitar a acolhida de mulheres. O evangelista visa ensinar que, ao interno da comunidade e da vida do Reino, homem e mulher são iguais em dignidade e em direitos.  

Em contraste a ela, vemos a sua irmã, Maria. Ela senta-se aos pés de Jesus. “Sua irmã, chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua palavra” (v. 39). Ora, a mulher não podia ser admitida nos círculos de ensino da Lei, nas escolas rabínicas. Objetivamente, ela não poderia estar ali. Na Catequese de Lucas, Maria inaugura um novo papel para as mulheres: o da discípula. O gesto de sentar aos pés não quer dizer adoração nem devoção, como muitas interpretações afirmavam. Muito comum no ambiente rabínico e sinanogal, o “sentar aos pés” indica a postura ideal para a escuta. Ou seja, ser discípulo ou discípula; também é aceitar o outro como mestre. O Jesus de Lucas abre espaço para o protagonismo das mulheres, restaurando a dignidade delas (por ex. Lc 7,11-17.36-50; 8,1-3).

Temos aqui, novamente, uma dupla transgressão: a de Maria, que exerce um papel inconcebível para uma mulher da sua época, e a de Jesus que, ao aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada vez mais em xeque a sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o seguinte ditado: “é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma mulher”. Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da sua época. Rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no discipulado (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Agora entramos no núcleo da narrativa. Recapitulemos que a viagem de subida para Jerusalém revela-se, também, caminho de instrução para os discípulos. A partir desta constatação podemos captar o ensinamento de Jesus a respeito do autêntico discipulado-missionário: só pode ser autêntico discípulo dele, a partir da experiência da escuta de sua palavra! Este é um dos temas importantes da catequese lucana. E o diálogo nos ajuda a perceber isso. A Escuta de Maria não é uma escuta ociosa (para fugir do serviço doméstico), ou passa-tempo; tampouco é uma obrigação. Mas é uma escuta que a coloca na dinâmica do “pôr em prática” aquela Palavra.

“O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas” (v. 41). O diálogo, e fundamentalmente, a resposta de Jesus sobre a atitude de Maria serve para colocar em destaque a condição para se tornar autêntico discípulo, e ao mesmo tempo manter-se na atitude missionária: a escuta da Palavra do mestre. Não se trata de uma reprimenda ou censura. Jesus vê que a agitação e o ativismo de Marta a impede de fazer experiência da Palavra que ele transmite. Faz-se necessária a escuta da palavra do Mestre para que o serviço realizado pelo discípulo não se torne agitação vazia e estéril. De nada adianta o muito fazer, se antes não existir um encontro experiencial com a Palavra do mestre. Por isso, Jesus dá uma oportunidade a ela ao chamá-la duas vezes pelo nome. Na teologia bíblica, quando Deus chama uma personagem pelo nome duas vezes (Marta, Marta; Samuel, Samuel (1Sm 3,10); Moisés, Moisés (Ex 3,4); Saulo, Saulo (At 9,4)), é porque Ele está fazendo um chamado vocacional. Jesus está chamando, portanto, Marta a mesma condição de sua irmã, Maria: à vocação ao discipulado.

 O leitor-ouvinte do evangelho segundo Lucas encontra em Marta e Maria a experiência da escuta atenta (da Palavra de Deus), que as torna discípulas e que ordena e harmoniza o Serviço aos irmãos. Só pode servir o próximo quem, primeiro, faz a experiência da escuta da Palavra Deus. Da escuta, se move à Práxis, que é critério de verificação da escuta desta mesma Palavra. Do contrário, fica-se imerso na agitação, no muito fazer e desconectados da escuta da Palavra de Jesus.

Esta é, na perspectiva de Jesus (e do evangelista) a melhor parte. uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a melhor parte”, o correto é “a parte boa” (em grego: τήν άγαθήν μερίδα), pois é a única que realmente importa, e é incomparável. Essa “parte boa” é o Evangelho, o conjunto do ensinamento de Jesus e a sua própria pessoa. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano encontra vida em plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

No entanto, outra característica emerge deste texto bíblico. A escuta atenta da Palavra de Jesus, que torna homens e mulheres discípulos e discípulas de Jesus e do Reino deve encaminhar outra atitude importante, a acolhida-hospitalidade.

A hospitalidade é para o homem bíblico – e deve ser para todo o cristão, discípulo e discípula de Jesus – outro momento privilegiado para se fazer a experiência com o Deus-falante e interpelador. Deus quer ser hospede na casa da existência humana. O é de uma vez por todas, pelo mistério da Encarnação em Cristo Jesus. E quer ser, na medida e ao interno das relações estabelecidas entre os irmãos. Não é possível fazer a experiência da hospitalidade para com Deus, através de sua Palavra, se não há hospitalidade e acolhida para com irmão! Se os homens e as mulheres de hoje não se detêm para escutar aquilo que o outro têm a dizer, em suas dores, fadigas, revezes, lições e testemunhos de vida, não haverá espaço para hospitalidade para com Deus em sua Palavra, tampouco serviço autêntico e sincero a Ele nos irmãos.

Quantas vezes nossas comunidades ditas cristãs se distanciaram da Palavra de Jesus? Temos nos colocado aos pés de Jesus para acolher e escutar sua Palavra, e, consequentemente, tornarmos discípulos dele? Temos cooperado na promoção dos irmãos e das irmãs, de modo que eles também se tornem discípulos? Ao redor de Jesus todos, indistintamente, são chamados a encontrar seus lugares. Só poderemos subir à Jerusalém com Jesus, se estivermos dispostos a fazer a experiência da hospitalidade de sua Palavra, acolhendo e servindo os irmãos. Só poderemos ser autênticos discípulos, se nos dispusermos a ficar aos pés de Jesus juntamente com eles.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 13 de julho de 2019

Homilia para o XV Domingo do Tempo Comum - Lc 10,25-37




A liturgia deste XV domingo do tempo comum nos presenteia com a narrativa de Lc 10,27-35. É importante contextualizar o ensinamento de Jesus ao interno da obra lucana. Ele os discípulos encontram-se a caminho de Jerusalém. A subida do Mestre para a cidade santa, mais do que a destino geográfico, é uma subida para sua livre e soberana entrega na Cruz. Mas este objetivo vai, ao longo destes dez capítulos, delineando-se pelas palavras de Jesus.

Estamos no capítulo 10 do Evangelho segundo Lucas, e os versículos para esta liturgia são posteriores ao envio dos setenta e dois discípulos. No caminho de Jerusalém, Jesus propõe aos discípulos um ensinamento acerca do modo prático de realizar a vontade de Deus, conforme meditado no domingo anterior. Lucas insere, então, a lição dividida em duas partes: o diálogo do Jesus com o doutor da lei (“especialista” em Deus e suas leis / mandamentos), e o relato parabólico do “bom samaritano”.

O diálogo inicia-se com uma pergunta do especialista na lei: “Mestre, o que devo fazer para ter a vida eterna? (v.25). A intenção do mestre da lei é muito clara, e nos é revelada pelo evangelista: interroga a Jesus para pô-lo à prova. O termo grego Peirasmós (ekpeirásôn), comprova esta intenção. Trata-se de uma armadilha! Ainda que se transpareçam as “segundas intenções” do doutor da lei, a pergunta em si mesma era muito comum nos ambientes sinagogais do tempo de Jesus. O discípulo interpelava o mestre (rabino) da seguinte maneira: “mestre, ensina-nos os caminho da vida para que possamos merecer a vida futura”. O acento da pergunta está no “fazer” – na práxis – , o que é muito autêntico e original na cultura bíblica.

Jesus responde à pergunta do doutor com uma interrogação: “O que está escrito na Lei? Como lês? (v.26). Com isso, o mestre de Nazaré reorienta o doutor da lei à própria Lei, fazendo-o comprometer-se com aquilo que ensina aos outros, de modo que o doutor se enxergue no próprio texto, e no ensinamento nele contido, confronte-se em sua prática. Na verdade, Jesus aponta para a Lei (Torá = Instrução), porque nela está contida toda a revelação da vontade do Deus de Israel: uma maneira de dizer que não há necessidade nem espaço para novas formulações.

O Doutor lhe responde com a formula da profissão de Fé do povo de Israel – o Shemá (Escuta, ó Israel) – expressada em Dt 6,5: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência”. E acrescenta Lv.19,18: “E o teu próximo como a ti mesmo”. A junção das duas normativas acena para a implicação do modo coerente e exato de se ler e viver as escrituras, de modo a entrar no caminho para a vida, ou seja, através da relação vital e existencial com Deus verificada na relação com o próximo. Jesus aprova a resposta do doutor da Lei e não lhe acrescenta nenhum outro ensinamento, dizendo apenas “Faze isto e viverás”. Até aqui, no nível da narração, não há nenhuma novidade.

Ora, o amor ao próximo estava na pauta da pregação dos profetas, no Antigo Testamento, e por isso, previsto na Torá, na Palavra de Deus. Os porta-vozes de Deus – os Profetas – em suas pregações e denúncias contra o povo infiel, condenavam as práticas religiosas (orações, cultos, sacrifícios, liturgias) desvinculadas da relação com o próximo. A crítica dos profetas reside no fato de que os piedosos israelita concebiam as suas relações com YHWH unicamente pelas vias das práticas religiosas da oração, do culto e da liturgia. Eles pensavam que as liturgias, os incensos e os sacrifícios podiam aplacar e comprar a Deus; que podiam tê-Lo nas palmas das mãos. Os profetas condenarão essa ideia e prática. Deus não se deixa comprar, nem se agrada com essa mentalidade; não se deixa levar por nada de aparente ou externo. Com Deus não há barganha.

Agora entramos no segundo momento da narrativa do relato lucano: a parábola do Bom Samaritano. À pergunta sem-jeito do doutor da Lei, “Quem é meu próximo?”, o mestre de Nazaré responde com uma parábola. Um homem (e pelo contexto judaico se pode intuir que seja um israelita) descia de Jerusalém para Jericó. No caminho caiu nas mãos de assaltantes violentos. Estes o deixam quase morto pelo caminho. Sobem pelo caminho um sacerdote e um levita (ambos especialistas da liturgia levítico-cultual) e passam pelo caído-ferido sem nem ao menos tocá-lo, para que não ficassem impuros para culto e para as orações, conforme previa a Lei mosaica. Mas um terceiro personagem aparece no relato. Um samaritano. Uma figura controversa.

Os Judeus não se davam com os samaritanos. A Samaria, bem como o norte de Israel, a Galileia das nações, eram tidos como pagãos e, portanto, impuros, desde a dominação do império assírio em 722 a.C, quando do primeiro exílio promovido por esse império. A política de dominação deles era muita perversa. Ao deportar e dispersar a população local para as diferentes regiões de seu império, os assírios colocavam no lugar destes povos locais outros povos, misturando-os consigo mesmos. Nesse sentido, o norte de Israel sofreu influência religiosa de outros povos, que se mesclavam com a fé judaica javista. Um judaísmo misturado, e não puro, como o do sul. Por essa miscigenação os Judeus do sul (de Jerusalém) consideravam os samaritanos como impuros e hereges.

A esta altura, a parábola explicita seu elemento paradoxal, que visa chamar e prender a atenção do leitor: é um samaritano, que na parábola, cumpre perfeitamente a Lei de todos os israelitas; aquele que era considerado “herege”, pagão e estrangeiro cumpre com perfeição a Lei do Amor a Deus.

O texto é bem claro, o samaritano, movido por compaixão (splagnisthe) socorre o homem caído e ferido pelo caminho. O termo compaixão (Splangnisomai / Splangnon) no evangelho de Lucas é de fundamental importância, porque o terceiro evangelho é conhecido como o Evangelho da Misericórdia.

O termo compaixão é traduzido por Misericórdia. Esta não consiste em sentimentos, mas na capacidade de agir em favor do outro que sofre. Ele traduz o termo hebraico Hesed (amor), que significa um amor visceral, entranhado. Deus, diante do sofrimento dos pequenos e pobres, dos marginalizados e oprimidos, remexe-se no seu íntimo e intervém em favor deles; tem “dor de barriga” pelo sofrimento do outro e só assim é capaz de agir com misericórdia, com seu amor visceral. Lucas em sua catequese evangélica identifica a misericórdia de Deus em Jesus. Ele é o rosto e a personificação da Misericórdia de Deus. Jesus é a Misericórdia que se fez carne.

Entramos na pragmática do Texto, sua intencionalidade e finalidade para a comunidade cristã daquela primeira hora, e para nós, a geração posterior. Jesus, ao perguntar ao doutor a opinião dele sobre quem agiu como próximo daquele ferido, faz com que o especialista da Lei se posicione, e reconheça-se também neste relato. Lembre-se que quando as personagens não recebem nome no texto, é porque o autor sugere que o leitor se identifique com elas. Sinta-se questionado e provocado pela parábola, a qual tem esta função, de modo a gerar uma mudança de comportamento e de vida no leitor-ouvinte.

Para Jesus, não se deve questionar quem é ou quem pode ser objeto do amor misericordioso, mas como alguém pode tornar-se próximo do outro. O próximo é, então, todo aquele que se aproxima do outro com um amor operativo, e não com teorias. É aquele que transcende os limites socioculturais; que ultrapassa todo o senso de diferença (e socorre a diversidade). O caminho para a vida eterna é o amor-misericórdia operativo para com todos os homens e mulheres. E aqui é que se distingue quem é autêntico discípulo-apóstolo de Jesus.

As comunidades cristãs, e de modo particular, a de Lucas compreenderam a Jesus como o bom samaritano. Ele é o estrangeiro galileu que leva a termo as tradições religiosas de seu povo até as últimas consequências. Jesus é aquele que se moveu no íntimo de suas entranhas devido aos sofrimentos dos outros, e por isso moveu-se exteriormente em atitudes humanizadoras. Não se levou por preconceitos nem prescrições legais, mas mostrou-se, na linguagem lucana, o grande Filantropo (amante da humanidade) que resgata a mesma humanidade sofredora.

Uma bela interpretação alegórica nos é proposta por Orígenes de Alexandria, escritor eclesiástico da virada do século I para o II, que dirá que homem da parábola simboliza o velho Adão que desce do paraíso (Jerusalém) para o mundo (Jericó), e o Samaritano é símbolo de Cristo. A hospedaria é símbolo da Igreja, da comunidade dos discípulos de Jesus, que tem por dever cuidar dos caídos pelo caminho. Ser verdadeiro hospital de campanha no meio do mundo, como dirá o Papa Francisco, é missão da Igreja-hospedaria. Deve ser ela casa da misericórdia, e cuidar para que todos e todas tenham sua dignidade restituída.

No bom samaritano, Jesus não propõe apenas um belo exemplo a ser imitado, mas também abre uma nova perspectiva na organização das relações humanas. Esta já é uma realidade inaugurada em sua maneira de falar e agir com os homens e mulheres de seu tempo (FABRIS, R. 1998. p.127).

Será que sabemos, hoje, como comunidade dos discípulos (Igreja), reconhecer os caídos e feridos nas vias deste mundo? Sabemos acolhê-los, com suas feridas? Sabemos devolver-lhes a dignidade? Temos tido a coragem de tocar-lhes as feridas, e nelas nos sujarmos? Ou preferimos ainda uma espiritualidade estéril, desvinculada das relações humanizadoras, desencarnadas da prática do amor-misericordia, que podem devolver a dignidade de Filhos e Filhas de um único Pai, no Primogênito Irmão?

 E nós, discípulos de hoje, temos a parreisia (coragem) de andar na direção que ele aponta, ao encontro do caído e ferido? Temos a coragem de nos tornarmos próximos dos outros, em atitudes de amor?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.