sábado, 28 de dezembro de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA SAGRADA FAMÍLIA (Ano A) - Mt 2,13-15.18-19:




Celebramos dentro deste tempo do natal, a solenidade da Sagrada família de Nazaré. Na dinâmica litúrgico-celebrativa, a solenidade de hoje visa, em primeiro lugar, confessar uma verdade importantíssima dentro deste mistério que vivenciamos por estes dias da oitava de natal: a realidade da Encarnação do Filho de Deus. Este mistério é visibilizado através da solenidade deste domingo através do fato de que Deus, ao assumir a história humana, assume-a em seu realismo e em suas dinamicidades e estruturas, aceitando ser família, de modo a revelar à humanidade que também Ele, em seu mistério trinitário forma família, na relação existente entre as pessoas divinas.

Deus, no Filho, assume a história humana ao assumir a carne, e, igualmente, ao assumir a realidade histórica e estrutural de uma família, revelando-se Família desde sua vida intra-trinitária. Mas qual a finalidade desta “assunção” da realidade familiar humana por parte de Deus? É a de propor à humanidade um convite: torna-la participante da família de Deus. Poderíamos parafrasear o v.14 do prólogo do Evangelho segundo João: “O verbo se fez carne e revelou sua Família entre nós, para que pudéssemos fazer parte de sua família”. Mas existe um critério, ou, se preferir, um caminho para se tornar parte da Família de Deus. É o que o texto evangélico proposto para esta solenidade nos convida a assimilar.

Antes de tudo, se faz necessário desconstruir aquelas idealizações concernentes à Sagrada Família. A família de Nazaré, José, Maria e Jesus não pode ser tida, a rigor, como modelos de perfeição ou daquela famosa imagem de “família tradicional”. A família de Nazaré já começou fora dos paradigmas “humanos”, “culturais”, “religiosos”, “tradicionais” daquela época e contexto socio-religiosos. Uma mulher que engravida, para todos os efeitos, fora das estruturas humanas e religiosas, fadada à mendicância, prostituição, e, em último caso, mais certeiro, pena de morte. O esposo, procura não assumir a sua prometida, pretendendo devolvê-la em segredo à família, na intenção de que eles decidissem sobre a sorte da menina; o que revela, numa primeira leitura, um José descompromissado e amedrontado. Uma situação destinada ao fracasso desde o começo. Aparentemente!

Deus quebra os esquemas e paradigmas da história humana, subvertendo a ordem e a importância das coisas. Ora, à luz dos textos bíblicos destes dias somos chamados a contemplar como as personagens Maria e José buscam responder ao projeto de Deus. Na perspectiva do Evangelho de Lucas, Maria é tida como o modelo do discípulo do Reino, pois ela se abre e se dedica à escuta, acolhida (discernimento) e cumprimento da Palavra de Deus ( Lc 1,38ss; 2,1-15). José, no evangelho de Mateus assume a figura do discípulo exemplar, ele é justo, porque permite que a vontade de Deus se cumpra em sua vida e através dela, escutando, assim a Palavra de Deus e colocando-a em prática (Mt 1,16ss; 2,13-19, texto de hoje). Quanto a Jesus, sempre o veremos como fiel ouvinte da Palavra do Deus que ele chama de Pai, do começo ao fim de sua vida ministério.

Existe, portanto, uma característica comum entre as três personagens que compõem esta família de Nazaré, tão histórica e concreta: ouvir e discernir a Palavra de Deus. Isso, para escapar das possíveis quedas retóricas e devocionais relacionadas à idealização da família e da “sagrada” família. Especialmente, é oportuno recordar que, na economia cristã e de acordo com as próprias palavras de Jesus, a realidade decisiva é a nova família de Jesus: aquela dos seus discípulos e discípulas, reunida ao seu redor pelo anúncio da Palavra de Deus e que não se baseia mais em laços de sangue, mas no “fazer a vontade de Deus” (cf. Mt 12,46-50).” (Comunitá di Bose. Eucaristia e Parola, p. 36).

Agora, podemos entrar na narrativa do evangelho de hoje. O evangelista Mateus, se serve de um episódio já conhecido de seu povo e de sua comunidade, a matança dos meninos hebreus pelo Faraó, em Ex 1,22. O evangelista se serve da técnica de interpretação dos textos narrativos, utilizados pelos rabinos de seu tempo, o midrash. Ele se apropria desta técnica narrativa de interpretação para transmitir sua catequese sobre Jesus de Nazaré para a sua comunidade. Ele se serve de todo o patrimônio escriturístico, histórico e religioso de Israel para fazer conhecer a identidade de Jesus: para a comunidade de Mateus, Jesus é o novo Moisés, que assume toda a história e tradição de seu povo, para promover a nova libertação, o novo êxodo, e inaugurar o novo povo de Deus, através do qual Deus poderá exercer sua ação na história humana, ou seja, seu Reinado.

Existe uma trama maldosa e diabólica por parte de Herodes. O mensageiro celestial informa a José que o tetrarca pretende atentar contra a vida do menino. “Levanta-te, pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise! Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo” (v. 13b). A expressão “Anjo do Senhor” é uma forma suavizada para falar de Deus mesmo. Como a mentalidade hebraica concebia Deus como alguém muito distante e o ser humano incapaz de comunicar-se com ele, usava-se a imagem de um ser intermediário, como um anjo. Já o sonho, na mentalidade bíblica, e sobretudo em Mateus, significa a disposição interior para compreender a vontade de Deus e colocá-la em prática. A primeira informação evidenciada aqui é a proteção constante de Deus na vida de Jesus, sendo também uma antecipação do seu ministério como oposição ao poder estabelecido. O evangelista está alertando que, desde o início, Jesus e seu projeto libertador são insuportáveis para todo e qualquer sistema de dominação sustentado pelo uso da força e poderio econômico, causas diretas das principais injustiças. (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).

“José levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito” (v. 14). Existe uma estrutura neste versículo: José – o menino – a mãe. Notemos que Jesus está ocupando o centro da frase. O evangelista Mateus quer ensinar para a sua comunidade qual deve ser o seu referencial: Jesus. Ele deve ocupar sempre o centro de sua vida. José e Maria são, aqui, símbolos do antigo Israel, o qual vai se abrindo à novidade da vida e da missão de Jesus, tornando-se assim um novo povo.

Ao mesmo tempo, o versículo quatorze traz uma estrutura ritimada que aparece novamente nos vv.13.20.21, marcada pelos verbos “levantar-se, tomar consigo (pegar), partir e entrar”, parecendo um refrão. Esta ordem de Deus, através do anjo, é, na verdade uma síntese de todo o discipulado a Jesus, através do cumprimento da ordem dada. José, se torna, portanto, o modelo do discípulo: todo o seu agir é pautado pela Palavra de Deus.

O texto continua, informando a morte de Herodes e uma nova aparição do Anjo do Senhor a José (v. 19), com uma nova ordem: “Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino já estão mortos” (v. 20). Mateus quer identificar Jesus como o novo Moisés, que do Egito inaugura um novo êxodo. Isso será mostrado no decorrer de todo o evangelho mateano.

Importante notar mais uma característica desta família: ela se deixa iluminar pela Palavra de Deus. Ora, Deus protege, mas o ser humano participa da contínua libertação. Em momento algum o evangelista diz que Deus os transportou de um lugar para outro. Apenas os iluminou com a Sua Palavra. A iniciativa de partir de um lugar para outro foi sempre de José, ou seja, do agente humano. É assim também que deve fazer a comunidade cristã: à luz da Palavra, tomar iniciativas de libertação; não repetindo as práticas do opressor, mas criando e propondo alternativas de vida. A ida dos três para a desprezada região da Galileia é uma prova disso. É de lá que o Reino será, posteriormente, anunciado e iniciado por Jesus (cf. Mt 4,14) (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).   

O texto de hoje nos provoca: 1) Que imagem de família (ou modelo) trago comigo, ela é conforme os moldes e padrões desta mentalidade, perfeitinha, “exemplo de moral e bons constumes”? 2) O exemplo de José pode ser assimilado por nós e nossas comunidades? 3) Nossas famílias, com todo o realismo e imperfeição que elas possam ter, são espaços de escuta, acolhida, discernimento e realização da Palavra de Deus? 4) Podemos ser contados entre os membros da Família de Deus, assim como a humana e histórica família de Nazaré, que se colocou na disponibilidade da escuta e do cumprimento da Palavra de Deus?

Celebrar a família de Nazaré significa celebrar a nossa entrada na Grande Família de Deus, que não se delimita e determina mais pelos laços sanguíneos, mas pelos laços que a Palavra de Deus cria em cada um que se torna sua Ouvinte.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

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