Celebramos
dentro deste tempo do natal, a solenidade da Sagrada família de Nazaré. Na
dinâmica litúrgico-celebrativa, a solenidade de hoje visa, em primeiro lugar,
confessar uma verdade importantíssima dentro deste mistério que vivenciamos por
estes dias da oitava de natal: a realidade da Encarnação do Filho de Deus. Este
mistério é visibilizado através da solenidade deste domingo através do fato de
que Deus, ao assumir a história humana, assume-a em seu realismo e em suas
dinamicidades e estruturas, aceitando ser família, de modo a revelar à
humanidade que também Ele, em seu mistério trinitário forma família, na relação
existente entre as pessoas divinas.
Deus,
no Filho, assume a história humana ao assumir a carne, e, igualmente, ao
assumir a realidade histórica e estrutural de uma família, revelando-se Família
desde sua vida intra-trinitária. Mas qual a finalidade desta “assunção” da
realidade familiar humana por parte de Deus? É a de propor à humanidade um
convite: torna-la participante da família de Deus. Poderíamos parafrasear o
v.14 do prólogo do Evangelho segundo João: “O verbo se fez carne e revelou sua
Família entre nós, para que pudéssemos fazer parte de sua família”. Mas existe
um critério, ou, se preferir, um caminho para se tornar parte da Família de Deus.
É o que o texto evangélico proposto para esta solenidade nos convida a assimilar.
Antes
de tudo, se faz necessário desconstruir aquelas idealizações concernentes à
Sagrada Família. A família de Nazaré, José, Maria e Jesus não pode ser tida, a
rigor, como modelos de perfeição ou daquela famosa imagem de “família tradicional”.
A família de Nazaré já começou fora dos paradigmas “humanos”, “culturais”, “religiosos”,
“tradicionais” daquela época e contexto socio-religiosos. Uma mulher que
engravida, para todos os efeitos, fora das estruturas humanas e religiosas,
fadada à mendicância, prostituição, e, em último caso, mais certeiro, pena de
morte. O esposo, procura não assumir a sua prometida, pretendendo devolvê-la em
segredo à família, na intenção de que eles decidissem sobre a sorte da menina;
o que revela, numa primeira leitura, um José descompromissado e amedrontado.
Uma situação destinada ao fracasso desde o começo. Aparentemente!
Deus
quebra os esquemas e paradigmas da história humana, subvertendo a ordem e a
importância das coisas. Ora, à luz dos textos bíblicos destes dias somos chamados
a contemplar como as personagens Maria e José buscam responder ao projeto de
Deus. Na perspectiva do Evangelho de Lucas, Maria é tida como o modelo do
discípulo do Reino, pois ela se abre e se dedica à escuta, acolhida
(discernimento) e cumprimento da Palavra de Deus ( Lc 1,38ss; 2,1-15). José, no
evangelho de Mateus assume a figura do discípulo exemplar, ele é justo, porque
permite que a vontade de Deus se cumpra em sua vida e através dela, escutando,
assim a Palavra de Deus e colocando-a em prática (Mt 1,16ss; 2,13-19, texto de
hoje). Quanto a Jesus, sempre o veremos como fiel ouvinte da Palavra do Deus
que ele chama de Pai, do começo ao fim de sua vida ministério.
Existe,
portanto, uma característica comum entre as três personagens que compõem esta
família de Nazaré, tão histórica e concreta: ouvir e discernir a Palavra de
Deus. Isso, para escapar das possíveis quedas retóricas e devocionais
relacionadas à idealização da família e da “sagrada” família. Especialmente, é
oportuno recordar que, na economia cristã e de acordo com as próprias palavras
de Jesus, a realidade decisiva é a nova família de Jesus: aquela dos seus
discípulos e discípulas, reunida ao seu redor pelo anúncio da Palavra de Deus e
que não se baseia mais em laços de sangue, mas no “fazer a vontade de Deus”
(cf. Mt 12,46-50).” (Comunitá di Bose. Eucaristia e Parola, p. 36).
Agora,
podemos entrar na narrativa do evangelho de hoje. O evangelista Mateus, se
serve de um episódio já conhecido de seu povo e de sua comunidade, a matança
dos meninos hebreus pelo Faraó, em Ex 1,22. O evangelista se serve da técnica de
interpretação dos textos narrativos, utilizados pelos rabinos de seu tempo, o
midrash. Ele se apropria desta técnica narrativa de interpretação para
transmitir sua catequese sobre Jesus de Nazaré para a sua comunidade. Ele se
serve de todo o patrimônio escriturístico, histórico e religioso de Israel para
fazer conhecer a identidade de Jesus: para a comunidade de Mateus, Jesus é o novo
Moisés, que assume toda a história e tradição de seu povo, para promover a nova
libertação, o novo êxodo, e inaugurar o novo povo de Deus, através do qual Deus
poderá exercer sua ação na história humana, ou seja, seu Reinado.
Existe
uma trama maldosa e diabólica por parte de Herodes. O mensageiro celestial
informa a José que o tetrarca pretende atentar contra a vida do menino. “Levanta-te,
pega o menino e sua mãe e foge para o Egito! Fica lá até que eu te avise!
Porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo” (v. 13b). A expressão “Anjo
do Senhor” é uma forma suavizada para falar de Deus mesmo. Como a mentalidade
hebraica concebia Deus como alguém muito distante e o ser humano incapaz de
comunicar-se com ele, usava-se a imagem de um ser intermediário, como um anjo.
Já o sonho, na mentalidade bíblica, e sobretudo em Mateus, significa a
disposição interior para compreender a vontade de Deus e colocá-la em prática. A
primeira informação evidenciada aqui é a proteção constante de Deus na vida de
Jesus, sendo também uma antecipação do seu ministério como oposição ao poder
estabelecido. O evangelista está alertando que, desde o início, Jesus e seu
projeto libertador são insuportáveis para todo e qualquer sistema de dominação
sustentado pelo uso da força e poderio econômico, causas diretas das principais
injustiças. (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).
“José
levantou-se de noite, pegou o menino e sua mãe, e partiu para o Egito” (v. 14).
Existe uma estrutura neste versículo: José – o menino – a mãe. Notemos que Jesus
está ocupando o centro da frase. O evangelista Mateus quer ensinar para a sua
comunidade qual deve ser o seu referencial: Jesus. Ele deve ocupar sempre o centro
de sua vida. José e Maria são, aqui, símbolos do antigo Israel, o qual vai se
abrindo à novidade da vida e da missão de Jesus, tornando-se assim um novo
povo.
Ao
mesmo tempo, o versículo quatorze traz uma estrutura ritimada que aparece
novamente nos vv.13.20.21, marcada pelos verbos “levantar-se, tomar consigo
(pegar), partir e entrar”, parecendo um refrão. Esta ordem de Deus, através do
anjo, é, na verdade uma síntese de todo o discipulado a Jesus, através do
cumprimento da ordem dada. José, se torna, portanto, o modelo do discípulo:
todo o seu agir é pautado pela Palavra de Deus.
O
texto continua, informando a morte de Herodes e uma nova aparição do Anjo do
Senhor a José (v. 19), com uma nova ordem: “Levanta-te, pega o menino e sua
mãe, e volta para a terra de Israel; pois aqueles que procuravam matar o menino
já estão mortos” (v. 20). Mateus quer identificar Jesus como o novo Moisés, que
do Egito inaugura um novo êxodo. Isso será mostrado no decorrer de todo o
evangelho mateano.
Importante
notar mais uma característica desta família: ela se deixa iluminar pela Palavra
de Deus. Ora, Deus protege, mas o ser humano participa da contínua libertação.
Em momento algum o evangelista diz que Deus os transportou de um lugar para
outro. Apenas os iluminou com a Sua Palavra. A iniciativa de partir de um lugar
para outro foi sempre de José, ou seja, do agente humano. É assim também que
deve fazer a comunidade cristã: à luz da Palavra, tomar iniciativas de
libertação; não repetindo as práticas do opressor, mas criando e propondo
alternativas de vida. A ida dos três para a desprezada região da Galileia é uma
prova disso. É de lá que o Reino será, posteriormente, anunciado e iniciado por
Jesus (cf. Mt 4,14) (CORNELIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot).
O
texto de hoje nos provoca: 1) Que imagem de família (ou modelo) trago comigo, ela
é conforme os moldes e padrões desta mentalidade, perfeitinha, “exemplo de
moral e bons constumes”? 2) O exemplo de José pode ser assimilado por nós e
nossas comunidades? 3) Nossas famílias, com todo o realismo e imperfeição que
elas possam ter, são espaços de escuta, acolhida, discernimento e realização da
Palavra de Deus? 4) Podemos ser contados entre os membros da Família de Deus,
assim como a humana e histórica família de Nazaré, que se colocou na disponibilidade
da escuta e do cumprimento da Palavra de Deus?
Celebrar
a família de Nazaré significa celebrar a nossa entrada na Grande Família de
Deus, que não se delimita e determina mais pelos laços sanguíneos, mas pelos laços
que a Palavra de Deus cria em cada um que se torna sua Ouvinte.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu – SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário