sábado, 29 de janeiro de 2022

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 4, 21-30


O Evangelho deste domingo é a continuação do texto meditado no domingo passado. É a conclusão do episódio programático de Jesus em Nazaré. Ali, decide-se voluntária e livremente a assumir o projeto contido no livro do Profeta Isaias (61,1ss), de proclamar a boa-nova libertadora e o ano favorável da intervenção de Deus na história em favor dos pobres, cativos, oprimidos.

O texto que temos hoje em mãos para meditar começa justamente de onde parou: Jesus anunciava à sua gente que aquela escritura se cumpria diante deles. Ou seja, Ele se incumbia de leva-la à superação. E, para o horizonte da comunidade, Lucas deseja, com estas palavras de Jesus, reorientar lhes a vida: o referencial de vida dela é a vida de Jesus e seu Evangelho.

Mas os ouvintes de Jesus, os de sua “casa”, tiveram muitas dificuldades de compreender sua mensagem e proposta. O evangelista nos informa que os que O ouviam ficavam admirados e questionavam sua origem: “Não é este o filho de José?” (cf. v.22). Como filho de um carpinteiro, Jesus não receberia muito crédito entre sua gente. Os que executavam trabalhos manuais, como os artesãos não eram pessoas consideráveis naquela época. Outro fator que favoreceu o espanto e a recusa, por parte de seus conterrâneos, foi a compreensão de messias que pairava no imaginário coletivo da época: o ungido de Deus para inaugurar a era escatológica do Seu Reinado na história deveria encarnar em si as qualidades de um guerreiro, promotor da luta armada para expulsar os romanos e restaurar o reino davídico. Para os que acreditavam nesta ideologia nacionalista, Jesus não se encaixava nos moldes e nas expectativas do povo. Ele era apenas um carpinteiro, continuador da profissão de seu pai. Ele não poderia, aos olhos deles, ensinar-lhes absolutamente nada. Não para aquela pequena e conservadora Nazaré.

Jesus, percebendo a admiração e a desconfiança, se antecipa e revela a reprovação deles: “Sem dúvida, vós me repetireis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo” (v.23). Depois, declara, “que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria” (v.24). Este dito acerca do profeta rejeitado na própria terra serve para indicar o modo de vida pelo qual Jesus decide-se levar a cabo sua missão: Jesus pauta sua vida e sua missão a partir do carisma profético. Já o provérbio “médico, cura-te a ti mesmo”, é colocado na boca de Jesus por Lucas para antecipar as ironias que sofrerá na cruz: “salva-te a ti mesmo e a nós” (Lc 23,37). Para enfatizar que, realmente, ele trilha o caminho do messias-profeta, o Jesus de Lucas toma para si dois exemplos: Elias e Eliseu. O primeiro, o modelo de todo o movimento profético do Antigo Testamento, e o segundo foi discípulo e continuador da missão de Elias. Jesus recupera para seus ouvintes as atitudes daquelas duas personagens. Elias, enviada a uma viúva em Sarepta (Sidônia, território da Fenícia, e, por isso, pagão e estrangeira). Eliseu, atende o general Naamã, sírio, infectado pela lepra, pagão e estrangeiro. Os dois profetas que mais pregaram o monoteísmo javista (a fé em Javé e a fidelidade à Aliança) atuaram até mesmo fora de seu país, pregando a fé em Javé e a fidelidade ao projeto da Aliança também aos estrangeiros. Ambos não ficaram reféns, tampouco aprisionaram a Deus e a Aliança, enredando-os nos esquemas da religião.

O projeto de amor e de misericórdia de Deus, o qual se torna Evangelho (Boa Notícia) e a Salvação não conhecem limites, não são propriedades de nenhuma pessoa, de nenhum um grupo, de nenhuma instituição. São, antes, graça e dom para quem quiser fazer experiência com ele. Nesse sentido, emerge para o leitor-discípulo do terceiro evangelho um tema muito precioso para o evangelista e catequista Lucas: a universalidade da Salvação.

“Quando ouviram estas palavras de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos. Levantaram-se e o expulsaram da cidade. Levaram-no até ao alto do monte sobre o qual a cidade estava construída, com a intenção de lançá-lo no precipício” (v. 28-29). Bastou essa declaração de Jesus, para que os tradicionalistas nazarenos irrompessem furiosos. Lucas quer informar que a rejeição a Jesus e a sua mensagem foi total e completa, expulsando-o da sinagoga e da cidade. Um detalhe curioso: há uma certa incoerência geográfica nesta descrição do evangelista. Nazaré é construída sobre uma planície. Não há monte algum ali. A intenção do autor acerca deste dado é teológica. Ele quer estabelecer para sua comunidade e para seus discípulos uma comparação entre Nazaré e Jerusalém. Esta é construída sobre uma montanha. O catequista deseja prefigurar os acontecimentos da paixão de Jesus, que acontecerão na cidade santa. Nesse sentido, Nazaré miniaturiza Jerusalém, e o conflito com os seus conterrâneos trata-se de uma síntese em forma de prolepse (antecipação temática ao interno da narrativa) de todos os conflitos que terá durante seu ministério.

Jesus, em Nazaré, sofreu na pele a rejeição à sua Palavra, seu modo de vida e sua missão. Mas a rejeição não foi a última palavra em sua missão. O fracasso (na própria terra) não o determinou; tampouco frustrou a Jesus. Lucas nos narra que “Jesus, porém, passando no meio deles, continuou o seu caminho” (v. 30).  Porque sua vida está orientada ao Pai e ao projeto do Reino; e não aos interesses escusos ou mesmo à vaidade de “agradar a todos”. Sua atitude deixa muito claro que não são as forças conservadoras e opressoras (representadas pelos Seus conterrâneos) que tem a última palavra. Elas não conseguem deter a força da Palavra e do Espírito do Senhor que movia Jesus.

O evangelho deste domingo tem a finalidade de ensinar-nos que, 1) aquele que se dispôs a assumir a perspectiva da missão de Jesus (proclamar a Boa-Nova da salvação e libertação aos pobres, oprimidos e marginalizados, e, hoje, a todos, sem distinção) deve ter a consciência de que passará pelo mesmo caminho da rejeição que o mestre passou e viveu na pele; 2) O texto de hoje serve, também, como um antidoto para que a comunidade cristã não caia (ou evite cair) na tentação de pensar que a salvação e o projeto amoroso e misericordioso de Deus, que consiste no Reino de Deus, seja somente para si, e assim reproduza o mesmo fechamento e mentalidade exclusivista que os conterrâneos de Jesus nutriam. A salvação-comunhão com Deus é uma proposta destinada a todos, sem distinção. 3) O texto funciona como um espelho. Diante dele somos convidados a olharmos e nos identificarmos com aqueles que escutavam a Jesus. Imaginando que ali estivéssemos, quem seriamos? Aqueles que, escutando a Palavra de Jesus decidiram-se por viver a mesma vida e o mesmo projeto que ele assumiu e viveu, ou seriamos os que fizeram oposição à sua Palavra, a ponto de o tirarmos de nosso caminho e lançá-lo “precipício a baixo”, recusando seu projeto e optando pelos nossos?

Que o evangelho de hoje nos ajude a tomarmos o mesmo caminho de Jesus.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 22 de janeiro de 2022

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 1,1-4;4,14-21

 


A liturgia dominical apresenta para este terceiro domingo do tempo comum um texto complexo em sua estrutura, uma junção de dois capítulos do Evangelho segundo Lucas, Lc 1,1-4;4,14-21. A primeira parte compreende o capítulo primeiro, o qual apresenta o prólogo da primeira parte da obra do autor (Evangelho e Atos dos Apóstolos), 1,1-4, e a segunda parte, o capítulo quarto, que apresenta o discurso inaugural de Jesus na catequese lucana (4,14-21), situado na sinagoga de Nazaré. De qualquer maneira, o texto – mesmo estando assim composto – nos apresenta uma profunda e valiosa lição.

Em Lc 1,1-4, temos elementos importantes que se conectam com a segunda parte, e que precisam ser colocadas em relevo. Por se tratar de um prólogo, uma introdução, o autor nestes quatro versículos expõe sua forma de escrever e a finalidade de seu relato, e isso é muito importante. Em primeiro lugar (para não estender em demasia), esta inteligente introdução que o evangelista elabora evidencia muito de seu estilo e forma. Lucas assimila o estilo de escrita e narrativa já presentes nas grandes obras da antiguidade clássica, as quais apresentavam seus heróis como personagens principais, inseridas na história e na realidade cronológica. Mas é importante lembrar: os evangelhos não cumprem a finalidade de ser uma cronologia ou biografia de Jesus. O autor do terceiro evangelho e de Atos sabe muito bem disso e, para além de uma história quimicamente comprovada (como se espera de uma historiografia moderna, com dados confirmados com exatidão pela arqueologia e pela pesquisa histórica e crítica das fontes), ele elabora uma Teologia da história e na história. Ele tem a função de transmitir uma experiencia de fé pessoal e comunitária, “Muitas pessoas já tentaram escrever a história dos acontecimentos que se realizaram entre nós, como nos foram transmitidos por aqueles que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da palavra” (v.1-2). Nosso catequista pertence à terceira geração dos seguidores de Jesus. Escreve sua obra entre 80 – 85 d.C, seguindo o fio condutor narrativo comum aos sinóticos, o evangelho de Marcos, mas acrescentando muito de seu material próprio, provindos da experiência e da necessidade de sua comunidade, e da sua experiência com o Apóstolo Paulo. 

Sua intenção é clara já nas linhas introdutórias, no v.3: “Assim sendo, após fazer um estudo cuidadoso de tudo o que aconteceu desde o princípio, também eu decidi escrever de modo ordenado para ti, excelentíssimo Teófilo”. Escrever de modo ordenado, depois de um cuidadoso estudo, tudo o que aconteceu desde o princípio. Ou seja, Lucas, para além do que muito se pensou acerca de sua profissão de médico (conforme tradição), mostra-se um estudioso e um exímio escritor. Por mais que seja um judeu de diáspora (que vive fora da província da palestina) e escreva para uma comunidade grega (na Grécia meridional, uma tradição antiga aponta para Corinto), é um conhecedor das escrituras hebraicas (pode ser um cristão convertido do paganismo o mesmo um judeu-grego convertido à fé cristã). E, aparentemente, apresenta-nos um destinatário. Um certo Teófilo (lit. Amigo de Deus), que pode ser uma pessoa concreta (filho do sumo sacerdote Anás, muito conhecido entre os anos de 30 – 60 d.C, conforme sugerem estudos sérios acerca desta personagem), como uma personagem corporativa, isto é, símbolo para todos aqueles que desejam se tornar amigos de Deus, a partir da escuta da Palavra (já que não podem ser testemunhas oculares, porque estas foram tão somente a primeira geração dos discípulos-apóstolos do Senhor). Logo, chegamos a sua finalidade: “verificar a solidez dos ensinamentos que recebestes”. A comunidade já fora evangelizada, e necessita ser confirmada nesta Boa Notícia.

Somos convidados, agora, a meditar a segunda parte do evangelho, Lc 4,14-21. Neste capítulo, o evangelista apresenta-nos o discurso inaugural de Jesus proferido na sinagoga de Nazaré, sua cidade natal. É um discurso ao mesmo tempo que é um conteúdo programático, o qual apresenta para os discípulos-leitores do terceiro evangelho o itinerário pelo qual Jesus decidiu pautar sua vida e sua missão.

O evangelista nos insere na narrativa informando que Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou para a Galileia. A expressão “cheio do Espírito” indica que toda a ação de Jesus, e para onde quer que ele vá, são motivadas pelo Espírito Santo, o Dinamismo vital de Deus que insere todo o ser humano no Seu horizonte. O autor situa-nos na narrativa dizendo que Jesus, em dia de sábado, como de costume, foi à sinagoga de sua cidade natal, Nazaré. Cidadezinha que sequer constava nos mapas, tal o seu desprezo por parte dos judeus piedosos da época, dado ser um lugar mal visto devido a miscigenação ali presente e o sincretismo religioso que em nada agradava a gente piedosa do sul (Jerusalém).

O sábado era o dia por excelência de sua fé. Neste dia o judeu piedoso vai à sinagoga para escutar a Palavra de Deus e recitar a Oração das Dezoito Bênçãos. Contudo, será ali que Jesus causará as polêmicas – conflitos – acerca do sábado e sobre a sinagoga. Com efeito, será na própria sinagoga que sua pessoa e Palavra serão rejeitadas.

Lucas informa aos leitores que Jesus é convidado para tomar parte da liturgia da palavra. Ela começava com a oração do Shemá (a profissão de fé do povo), seguida da leitura da Lei, dos profetas e, em seguida, fazia a explicação daqueles textos. Tinha-se o costume de oferecer a leitura dos textos dos livros proféticos e a prática da homilia aos filhos da terra que moravam longe, por ocasião da visita a terra natal.

Jesus recebe, pois, o livro do profeta Isaias. Precisamente Is 61, onde o profeta proclama um anúncio de salvação e libertação para o povo exilado na Babilônia. Com algumas modificações, a mensagem central retida pelo evangelista Lucas e colocada nos lábios de Jesus é esta: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano da graça do Senhor” (vv.18-19). Jesus, fechando o livro, o entrega ao ajudante e senta-se, ocupando a posição privilegiada do mestre que ensina. Lucas informa aos leitores que todos tinham os olhos fixos em Jesus. Ele, então, declara aos presentes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir”. Este dito de Jesus expressa muita coisa.

O evangelista pretende mostrar Jesus como o intérprete e realizador das Escrituras de Israel. À luz destas mesmas Escrituras, ele se decide por viver sua missão e confirma a sua vocação messiânica – o Ungido – para libertar definitivamente o povo. Mas que povo é este? Ou melhor quem são os destinatários desta libertação? Os pobres, os cativos (oprimidos), os cegos. O anúncio da Boa-Nova a estas pessoas, que no tempo de Jesus simbolizavam os excluídos e marginalizados, era o sinal de que o tempo messiânico – tempo da salvação e dia favorável da intervenção e YHWH – havia irrompido definitivamente. Tal será o programa de vida assumido por Jesus.

Mas o discurso inaugural ou programático de jesus deverá ser o programa de vida da comunidade dos discípulos. Pois o que o mestre realiza valerá também para o discípulo. Nisto compreendemos que a missão de Jesus se dilata para os discípulos daquele tempo e de hoje, pois o verbo “enviar”, utilizado por Lucas sugere uma ação contínua (lit. “envia-me para evangelizar.”, gr. ἀπέσταλκέν/Apêstalkên, do verbo ἀποστέλλω/apostello). Ou seja, o Pai continuamente envia o Espírito do Seu Filho sobre a comunidade, para que ela possa assumir a mesma missão de seu Cristo.

A declaração que Jesus dá aos ouvintes é muito profunda. O verbo cumprir (gr. πληρόω/Plerôo; πεπλήρωται/ peplerotai) é significativo e deve ser bem compreendido. O cumprimento das escrituras de que Jesus fala não pode ser pensado na lógica do “estava escrito e Jesus cumpriu”, pois se assim for reproduziremos heresias antigas e já mitigadas, como por exemplo, o docetismo que em linhas gerais apregoava que a vida humana de Jesus foi um “faz de conta”, que ele nada teria sofrido, que sua morte teria sido uma mera aparência, assim como a sua humanidade, permanecendo plenamente divino. Tal erro foi combatido nos primeiros séculos do cristianismo através das profissões de Fé na união das duas naturezas e na consubstancialidade com Pai e conosco. Plenamente humano; plenamente divino.

Quando os evangelhos nos apresentam as formulas de cumprimento (“para se cumprir as escrituras; cumpriu-se o que foi dito pelos profetas; cumpria-se a escritura que dizia..”) como no caso do texto que meditamos, elas devem ser entendidas na seguinte perspectiva: Jesus decidiu-se por assumir, livremente, a Palavra de Seu Pai e vive-la em sua vida. Retomando Is 61, é como que se Jesus dissesse “Eu desejo viver a minha vida, minha relação com o Deus a quem chamo de Pai, na escuta de sua palavra (Torá) e na relação com as pessoas desta maneira, motivado (e investido) pelo Espírito (o dinamismo do Amor e a potência de amar), indo na direção dos pobres, excluídos, marginalizados, para anunciar que o tempo da Salvação se faz presente. É assim que quero viver”. Transpondo isto para o horizonte da comunidade pode-se compreender o cumprimento das escrituras como o cumprimento do tempo do Antigo Testamento. E, que de agora em diante, a comunidade dos discípulos tem um novo horizonte: Jesus de Nazaré e seu Evangelho. Isso fica enfatizado pelo adverbio de tempo que é muito caro ao evangelista, aparecendo outras ocasiões novamente, o “hoje” (gr. σήμερον/Sêmeron). Recorde-se a Boa Notícia dada pelo anjo aos pastores em Lc 2,14, “Hoje nasceu para vós o Salvador”; aparecendo novamente neste episódio da sinagoga (Lc 4,21). Retornando no belíssimo episódio de Zaqueu (“Hoje a salvação entrou nesta casa”, Lc 19,1-10) e, finalizando em Lc 23,43, na cena do perdão ao malfeitor arrependido. O tempo pleno de Deus inaugurado pela ação de Jesus é um constante e definitivo Hoje savífico. Na intenção de Lucas, sempre que o discípulo decide-se por Jesus está acontecendo esse Hoje salvífico em sua vida. Não se vive mais de um passado saudosista ou esquizofrênico, tampouco de um futurismo, porque no horizonte de Deus será sempre um hoje ressignificador para a história humana e de cada um.

Assim, o Evangelho que meditamos nesta liturgia ilumina-nos na compreensão de que o que Jesus realiza e ensina vale para o discípulo e a comunidade; os destinatários da mensagem de Jesus devem ser os mesmos da comunidade, os marginalizados de hoje. É para essas pessoas que se deverá olhar em primeiro lugar. Isto se tornará critério de verificação da fé e da coerência da vida da comunidade, ou seja, se ela é fiel ao projeto de Jesus e sermos reconhecidos como os Teófilos (amigos de Deus), anunciadores e ministros da Boa Nova que é a vida do Senhor acontecendo em meio a nós e através de nós.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 15 de janeiro de 2022

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DO TEMPO COMUM - Jo 2,1-11:

 


O segundo domingo do tempo comum apresenta o evangelho das Bodas de Caná, Jo 2,1-11. Episódio este contido na catequese do evangelho joanino. O Quarto Evangelho é constituído de duas partes. A primeira, o Livro dos Sinais, que inicia em Jo,1,18 e conclui-se em 12,51, e do livro da Glória, Jo 13 – 20.  Cumpre função catequética este primeiro bloco chamado de livro dos Sinais. Uma nota importante: no Quarto Evangelho jamais aparece o termo milagre. Jesus não é mostrado realizando nenhum gesto de poder (Dynameis). O autor prefere o termo Sinal (ou sinais, no plural / gr. tá semeia) para indicar as ações de Jesus.

Os Sinais, na perspectiva de João, são gestos simbólicos de Jesus que apontam para a realidade profunda e essencial de sua identidade. Que Nele existe e desponta a novidade (escatológica, da ultimidade, da plenitude) de Deus agindo na história. Mas estes sinais não devem ser vistos e meditados em si mesmos, e sim orientados para a Hora da Glória de Jesus. A Hora da Glória é o momento do enaltecimento de Jesus; sua revelação como Filho de Deus e Messias: a Cruz. Por isso, só pode avançar para a contemplação da hora da Glória de Jesus o discípulo que percorreu o itinerário descrito nesta primeira parte do evangelho. 

O capítulo 2 do Evangelho segundo João apresenta o primeiro sinal realizado por Jesus. Ele o realiza em Caná, na Galileia, no terceiro dia de sua semana inaugural. Não é atoa que esse dado aparece. O episódio 2,1-11 parece dar seqüência ao contexto de 1,19-51. Se “no terceiro dia” (2,1) faz soma com os quatro dias de 1,19-51, o episódio de Jo 2,1-11 completa uma “semana inaugural”. Portanto, o sétimo dia. Devemos recordar que o Quarto Evangelho é escrito para pessoas que já foram evangelizadas numa primeira vez, por isso a expressão “terceiro dia” alude ao dia da ressurreição. No horizonte da narrativa, no sétimo dia da semana inaugural de Jesus acontece um casamento em Caná. Todavia é preferível para esse episódio o termo “bodas”.

As bodas fazem parte do imaginário do povo de Israel. A imagem do casamento serve de metáfora/símbolo para a Aliança (relação) com Deus. Mais ainda, nas expectativas do povo, as bodas seriam o momento da inauguração da era messiânica. Ela representa, nesse sentido, a alegria e a expectativa das núpcias messiânica, que, a partir da mentalidade dos discípulos de Jesus Ressuscitado, se dará através das núpcias do Cordeiro. Assim, a narrativa contida neste episódio de Caná, adquire o caráter de núpcia escatológica, que Deus realizará com a humanidade através de Jesus.

Adentrando no horizonte do texto, a personagem que encabeça a narrativa é a mãe de Jesus, primeiramente. No Quarto Evangelho ela nunca é chamada pelo nome. A mãe de Jesus está aí, e ele fora convidado. Ora, a organização das festas geralmente ficava sob o cuidado das mulheres, as mães de família. Os homens ficavam ali como figuras decorativas. Mas o evangelista elenca também a presença dos discípulos que acompanham a Jesus.

A figura da mãe de Jesus deve ser compreendida, de modo a reorientar o olhar para Ele e sua atuação. O texto não tem a mais remota intenção de colocar ênfase na mãe de Jesus. Um detalhe importante, ela não é mencionada pelo seu nome (é óbvio que o evangelista saiba, mas isso não ocupa lugar para a finalidade da narrativa). Sabe-se, que quando uma personagem aparece de forma anônima, na verdade, o autor está fazendo um convite para que os leitores/ouvintes se identifiquem com esta. Portanto, o texto das Bodas de Caná não pode ser interpretado com ênfase na intercessão de Maria em relação à Jesus. A “mãe” é símbolo do Israel fiel à Aliança e, também, submetido à Lei. Ou seja, esta personagem ainda está presa ao regime da lei mosaica e ao sistema religioso-cultual da época. O evangelista João propõe para seus leitores/ouvintes, fieis de sua comunidade, a superação e a substituição de todo o sistema religioso e cultual judaico a partir da pessoa de Jesus. Dito de outra maneira, Jesus é a superação e substituição de todo o sistema antigo que se tornou incapaz de conduzir o ser humano, a pessoa, ao horizonte de Deus.  

O vinho vem a faltar. A mãe de Jesus nota o fato. Uma festa de núpcias sem vinho! O vinho simboliza a alegria e o amor. Mas para a tradição de Israel, o vinho alude/aponta para a inauguração da era messiânica. A mãe se dirige à Jesus, conta-lhe o que está acontecendo e ele responde algo que dá a entender que isso não é assunto dele (lit: “O que há para mim e para ti?”, uma forma de dizer que isso não lhes diz respeito, cf. v.2). Soaria como um “Não é problema nosso”. Com efeito, em seguida, acrescenta Jesus algo que soa igualmente intrigante: “Minha hora ainda não chegou”. De que hora Jesus está falando? De qualquer maneira, ainda não é sua hora, mas o que acontecerá imediatamente será um sinal que encaminhará para a sua hora.

A mãe diz aos que estavam servindo (lit. diáconos), “fazei o que Ele vos disser”. Aqui tem-se a transformação da personagem da mãe. Recordemos que ela foi estabelecida como símbolo para o Israel fiel. Ao dizer aos servos para colocarem toda a atenção sobre o agir e a palavra de Jesus, ela reconhece Nele a novidade da presença de Deus. O Israel fiel (todos aqueles e aquelas) à Deus e Sua Aliança saberão reconhecer agora Deus mesmo agindo através de Jesus e de sua vida. Agora sim, esta mulher começa a fazer parte da Novidade escatológica apresentada por Jesus, e passa, então, a símbolo para a Comunidade dos fieis. O autor do Quarto Evangelho se serve de todo o patrimônio das Escrituras Sagradas de Israel e faz aqui uma releitura/reinterpretação da cena de Gn 41,55, onde o Faraó, após instalar José como Primeiro Ministro do Egíto, ordena que todos se dirijam a seu administrador e façam o que ele ordenar.

O evangelista nos informa que ali estavam seis talhas de pedras, de mais ou menos cem litros, utilizadas para a purificação/ablução higiênica e ritual que os judeus costumavam fazer. Elas estavam vazias. Mas após a ordem de Jesus para enche-las, a atitude dos servos é de completa-las até a borda (lit. até o alto). Estão ali inutilizadas; já não servem mais, a não ser para o que serviam antes. O evangelista trabalha com o esquema da superação do sistema antigo, como dissemos acima. As seis talhas eram feitas de pedra. Foi sobre duas tábuas de pedra que, no Sinai, Moisés recebeu a Lei. No simbolismo judaico, a água é associada à Torá. Essa não falta, vinho sim — falta a alegria messiânica. Por isso, o número seis aparece. Na teologia bíblica, seis indica imperfeição, incompletude (contrário do número sete, que simboliza a perfeição). O narrador denuncia a inutilidade das práticas religiosas judaicas que, diante da novidade de Jesus, encontram-se superadas.

Jesus ordena que aquelas tinas d´água sejam enchidas “de novo”. O adverbio utilizado por Jesus, recordado pelo evangelista, “de novo”, retoma o tema da novidade: do antigo não se diz mais; acontece agora uma coisa nova. Devem ser enchidas até a borda. Emerge aqui a ideia da abundância. Assim foi feito. Trazem as talhas à Jesus que pede para que os servidores as levem até o mestre-sala. O qual prova (v.9).

O mestre de cerimônias chama o noivo, que até agora tinha ficado incógnito. Outro fato curioso é que este não tem nome. Aparece para receber do mestre-sala uma observação crítica ou irônica: “Todo mundo serve primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v.10). Esta última parte do versículo adquire um peso devido ao adverbio de tempo “agora”. Ele expressa a realidade de que o “agora” está ai. Este “agora” é a novidade, que é marcada pela abundância do vinho bom, como recorda o profeta Amós no capítulo nono de seu livro, ao dizer que das colinas destilaram vinho em abundância. João recorda também a profecia de Isaias, que profetiza e celebra a abundância vivenciada no tempo messiânico (Is 61; 63; 66).

Se o mestre-sala faz observações acerca da qualidade do vinho, onde ele reconhece a superioridade deste, então qual é o verdadeiro noivo para o qual deveria ter sido dito isto? Jesus, que não deixa faltar o vinho novo e bom. Porque, ao mesmo tempo, o noivo e o vinho melhor são Ele mesmo. Assim, há um “noivo escondido” na história, que vem realizar as núpcias de Deus com a humanidade nesta história. Com efeito, o autor revela a indiferença do mestre de cerimônias através do próprio comentário acerca da qualidade do vinho. Ele não faz questão de saber de onde vem o vinho melhor, por estar comprometido com o sistema da Lei. Diferentemente da “mãe” de Jesus, símbolo do Israel e da comunidade fiel a Deus, que sabe reconhecê-lo através da atuação de Jesus, aquela personagem ainda se encontra-se submetido à Lei, ao antigo.

A mensagem final, no v.11 é sumamente importante: “Este foi o início dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória, e seus discípulos creram nele” (v.11). Notemos que o Quarto Evangelista sublinha que este foi o princípio dos sinais (gr. ἀρχὴν τῶν σημείων/arché tón semeíon), realizados por Jesus. Arché (gr. ἀρχὴν / princípio , origem) faz um arco narrativo com o prólogo do Evangelho, quando o catequista bíblico inicia a obra com um solene “No princípio”, que remete ao primeiro dia da criação em Gn 1,1, com a conclusão provisória desta semana inaugural, que remete à nova criação. Nesta semana, Jesus começa a manifestação da Glória de Deus, mas ainda não plenamente. Os sinais servem para preparar este momento.

Permitamos que o Senhor possa ser sempre e constantemente o vinho melhor para a nossa vida. Que possamos, assim como sua mãe, ouvir, acolher e fazer tudo o que Ele disser, e, ao mesmo tempo, apontá-lo a todos como a novidade última de Deus em meio a nós. Que seu vinho possa encher a ânfora de nossas vidas.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.