sábado, 26 de novembro de 2022

PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO - Mt 24,37-44

 


A Igreja inicia um tempo litúrgico e com ele um ciclo de leituras bíblicas evangélicas retiradas do evangelho segundo Mateus aos domingos. Este tempo chamado de advento é marcado pelas dinâmicas da espera, da vigilância e também pelo constante apelo à conversão. Ele se divide em dois ciclos: os dois primeiros domingos, e, consequentemente as duas primeiras semanas são marcadas pela temática da segunda vinda do Senhor. Por isso, as celebrações semanais e dominicais serão iluminadas por textos bíblicos de caráter escatológicos, isto é, que tratam de temas relacionados ao fim, às renovações históricas e cósmicas, e, por isso, revestidos de uma linguagem pura e essencialmente simbólica. O tempo do advento tem a intenção pedagógica de ensinar a partir dos dois primeiros domingos, que tratam da segunda vinda de Cristo, precisamente que é para esta segunda vinda que devemos esperar e nos empenhar. Uma vez que a primeira vinda do Senhor, no Santo Natal, nós já o celebramos constantemente na liturgia. Os dois últimos finais de semanas, que já estarão praticamente no segundo ciclo do advento, de 17 a 24 de dezembro, já tocarão na temática da primeira vinda de Jesus celebrada litúrgico-sacramentalmente através das solenidades do Santo Natal.

O texto que temos para a nossa meditação é um pouco difícil. Não por sua interpretação, mas devido ao fato de que ele está fora de seu contexto próximo. Sempre se correrá o risco de interpretar equivocadamente o texto, quando retirado do seu contexto, traindo, inclusive, as intenções do próprio evangelista. Por isso, se faz necessário contextualizá-lo. A liturgia propõe para a abertura do tempo do advento – e, do novo ciclo litúrgico – um trecho do capítulo vinte e quatro do evangelho de Mateus. Neste capítulo, o autor do evangelho apresenta o último discurso de Jesus, o “discurso final” (ou, discurso escatológico), através do qual, tratará de recuperar o ensinamento do Cristo para seus discípulos acerca eventos relacionados ao fim. Por isso, discurso final.

O tema do fim do mundo, da história e da realidade devem ser sempre refletidos e entendidos não como fim catastrófico ou trágico, mas como um convite a uma nova história. O fim na bíblia nunca é fim de um mundo, mas fim de uma época/era a fim de que outra, totalmente nova, possa surgir. Para falar do surgimento desta nova era (no sentido mais positivo do termo), os autores sagrados se servem sempre de uma linguagem com um vocabulário carregado de elementos e termos simbólicos. Principalmente quando os destinatários da mensagem estão em risco, em crise e em dificuldades, ou mesmo a fé encontra-se fria e desalentada. Esta linguagem, além de simbólica, é cifrada e codificada através de elementos já presentes na tradição religiosa da comunidade: são textos do Antigo Testamento, revestidos do gênero literário apocalíptico, que todos já conheceram uma primeira vez, e, que, portanto, não parecerá complicado para eles entender a mensagem. Os autores do Novo Testamento, cada um a seu modo, se serviram deste recurso para transmitir suas catequeses a respeito do ensinamento de Jesus sobre as coisas tocantes ao momento do fim. Assim deve ser compreendida esta parte do chamado discurso final do Senhor ao interno do evangelho mateano.

Por último, o tema do fim deve ser entendido também como “a meta”, “a orientação”, “a plenitude”. A novidade apresentada pelo Novo Testamento é justamente esta: a partir de Jesus, e, através dele, Deus inaugura o tempo pleno de seu agir. Jesus é a novidade, a ultimidade, a meta e a orientação da vida de todo o ser humano, ao mesmo tempo em que Ele apresenta a meta definitiva e plena para a qual toda a criação e o gênero humano tendem: a vida em Deus, que chamamos salvação. Nesta perspectiva é que se deve orientar a interpretação destes discursos finais de Jesus nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). Eles tem a intenção de preparar, animar e chamar à reflexão os discípulos de todos os tempos e lugares para que saibam discernir e acolher os sinais dos tempos que são plenos, a fim de sempre acolher em suas vidas a novidade do Deus-conosco, presente em Jesus de Nazaré.

A fim de se compreender melhor o texto evangélico deste primeiro domingo do advento, se faz necessário lançar um olhar retrospectivo para os versículos anteriores, através dos quais Jesus dirige palavras duras contra o templo, contra a cidade santa (cf. 24,1-25), e causa desconforto nos discípulos com as mesmas palavras simbólicas referentes aos sinais cósmicos e terrestres (26-34), que geram e alimentam a expectativa deles acerca do momento em que tudo isso se realizará. Diante disso, em Mt 24,35, Jesus adverte a seus discípulos que aquela geração não passará sem que tudo isso aconteça, mesmo tendo passado o céu e a terra. E, tranquilizando a inquietação dos discípulos, declara no v.36 que, sobre aquele dia, somente o Pai tem conhecimento de quando será. É, precisamente, sobre este tema que Jesus quer trabalhar com seus discípulos, isto é, o modo (o “como”) através do qual o discípulo, se ele desejar ser, de fato, discípulo do Reino e de Jesus, deverá balizar e pautar a sua vida, e não sobre o “quando”, ou seja, sobre dia e a hora exatas em que Deus plenificará definitivamente esta história, o mundo e a vida de seus filhos e filhas; este dia Ele somente é quem sabe, portanto, isto não poderá ser o centro da ocupação e da preocupação do discípulo e da discípula. Antes, deverá preocupar o discípulo o modo e a forma como ele acolhe e vive o tempo novo e definitivo que é inaugurado em Jesus, o Cristo. Acerca deste modo, ou seja, deste comportamento, desta forma de ser e de agir, que Jesus quer ensinar os seus discípulos de ontem e de hoje através deste trecho contido em Mt 24,37-44.

“A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé” (v. 37). Jesus recuperar para seus ouvintes a realidade vivida nos tempos de Noé. O que representa este elemento simbólico do dia de Noé? O dia de Noé faz referência ao dilúvio. Este, não pode ser interpretado como o fim do mundo, mas o surgimento de uma nova humanidade, em Gn 6 – 7. A vinda do filho do homem acontece, justamente, para propor uma nova forma de vida, uma humanidade renovada. Já se sabe que esta personagem “filho do homem” pertence ao capítulo sétimo do Livro de Daniel, e se trata de um ser (humano) que realiza o querer divino na história com sua própria vida; é aquele que executa o projeto de Deus; que leva a termo o senhorio e o juízo divinos. Filho do Homem não significa a natureza humana apenas, mas a humanidade marcada pela condição divina. Com esta personagem também, é que Jesus se assemelhará, além da daquelas do servo e justo sofredor de Deus. Agora, este não é um privilégio somente de Jesus, mas uma forma de vida oferecida a todo aquele que se coloca no caminho e no seguimento a Ele ao Reino. Filhos e filhas de Deus, porque decidiram-se a viver segundo a vida do Filho, que se fez homem.

Mas, para que o dom de Deus, o tempo de uma nova vida e da renovação constantes trazidas por Jesus, não passe despercebido ao homem a mulher, a cada pessoa, estes não podem ser indiferentes ao acontecimento da vinda e da vida do Filho do Homem, como foi aquela geração do tempo de Noé, diante do apelo de Deus. Como eles viviam? Jesus mesmo recorda que, “nos dias, antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (v.38). Jesus fala das atitudes de comer, beber e casar-se. E esse dito precisa ser bem entendido, de modo a evitar interpretações moralizantes e desconectadas da vida. O casamento e as refeições eram, no tempo da sociedade de Jesus acontecimentos comuns e normais. Jesus está evocando a normalidade, a cotidianidade, o comum enquanto lugar do acontecimento do extraordinário do agir de Deus, e não no extraordinário, no tremendo, no fascínio, no chamativo e gritante. No entanto, é no “aí e no agora” que Deus acontece. Sabiamente dizia Santa Teresa de Jesus (Ávila, Espanha – Séc. XVI): “Deus está entre as panelas também”.

Jesus se serve da realidade cotidiana, rotineira e comum mais uma vez para expressar a novidade do agir de Deus acontecendo na história. Ilustra a sua catequese, agora, com a imagem do trabalho, onde dois homens e duas mulheres estarão realizando seus afazeres, dentre os quais um será “levado” enquanto que o outro será deixado; e uma, das duas mulheres que trabalham na moenda será “levada” e a outra, não. Deve se ter presente que a expressão “ser levado(a)” não se refere a algo negativo ou castigo. Ela precisa ser compreendida da seguinte maneira: “ser levado(a)” significa ser “tomado(a)” da parte de Deus. Então, as duas personagens são “levadas” ou tomadas pelo próprio Deus. Significa que elas estão sendo acolhidas pelo próprio Deus porque souberam acolher Deus em meio à vida. Ora, o Reino de Deus é um convite para todos, mas pouco são os que aderem, uma vez que o ato de ser tomado/levado ou deixado da parte de Deus acontece diante da adesão e aceitação da conversão, da mudança da mentalidade e da vida.

Todavia, para que esta novidade de Deus agindo em meio a essa história e diante desta novidade de ser tomado da parte de Deus possam ser percebidas é necessária a vigilância, a qual é e sempre será uma das virtudes do discípulo que o ajudarão em seu modo de viver a vida e o seguimento à Jesus: “Portanto, ficai atentos! porque não sabeis em que dia virá o Senhor” (v.42). A vigilância bíblica não é uma espera passiva e descomprometida, mas a espera ativa/operante, daquele que sabe esperar cooperando com o projeto de Deus através de suas atitudes. É a espera comprometida com o agir; a capacidade de leitura da realidade unida à ação transformadora de Deus através de seus filhos e filhas. A vigilância cristã revela-se aquela grande virtude do discípulo de ver, discernir, e cooperar com agir de Deus que renova a história. Significa romper com a tentação dos braços cruzados, do sentar e esperar cair dos céus, ou do “tudo está garantido”. Ela confirma ainda mais esta lição de Jesus, de que o Reino é para todos, mas nem todos o abraçam. Porque, efetivamente, o deixam passar. Não se colocam atentos e esperançosos para acolher o Senhor que sempre vem. Nesse sentido, ela se torna o grande antidoto para indiferença daquela geração de Noé, criticada por Jesus, que não soube olhar e discernir nos acontecimentos da vida cotidiana e simples, rotineira e comum, os sinais dos tempos que Deus oferecia. E serve de lente histórica para ajudar a pessoa a perceber a vinda deste Deus que vem para tomar-nos para si.

Por isso Mateus encerra esta seção com um segundo apelo à vigilância, da parte de Jesus, ilustrado pela imagem metafórica do dono casa sempre atento, alerta e vigilante diante da possível vinda de um ladrão roubar/tomar lhe a casa. A espera da vinda de Deus deve ser tida como semelhante a espera do dono casa em relação ao ladrão. Certa, porém, é a vinda de Deus, não importando quando, na medida em que certa deverá ser a atitude daquele que espera, a vigilância, o modo e forma da vida do discípulo e da discípula do Reino. É com esta motivação que a liturgia nos convida a iniciar o tempo do advento, ou seja, da espera daquele que já veio uma vez e que virá uma segunda vez. 

Diante desta vinda do Senhor (sacramentalmente celebrada e vivida através da Palavra e da liturgia) estejamos vigilantes, e não indiferentes como os do tempo de Noé.

 

 

Pe. João Paulo Goes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 19 de novembro de 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – Lc 23,35-43:

 



A Igreja celebra a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Com esta celebração, encerra-se o ciclo litúrgico C, dedicado à leitura e meditação da catequese evangélica de Lucas. Por isso, nos é apresentada para a meditação eclesial o texto do “proprium” lucano das narrativas acerca da Paixão e Morte de Jesus segundo Lucas. Nesta solenidade, a sabedoria eclesial selecionou textos extraídos das narrativas da Paixão do Senhor, os quais revelam a realeza de Jesus às avessas. 

A pergunta que possivelmente poderia pairar seria, “como é possível um celebrar a realeza de uma pessoa a partir do fracasso?”, ou “Por que não mostrar a realeza de Jesus com outros textos que falam do seu retorno glorioso, ao invés destes textos que o mostram crucificado?” É bem verdade que a leitura do ciclo litúrgico A, apresenta para esta solenidade o discurso escatológico de Mt 25, através do qual o evangelista pretende mostrar como será o reinado definitivo de Deus. Os outros dois anos litúrgicos poderiam se servir de textos menos trágicos, mas optam por apresentar as narrativas concernentes à morte de Jesus na cruz, isto é, correspondem às horas finais de sua vida. Há um motivo, evidentemente.

A intenção de Lucas é a de mostrar que tipo de reinado Deus exerce em seu Cristo, e, consequentemente que rei seria Ele. Em sua narrativa da paixão-morte de Jesus, o evangelista recupera os temas que foram percorrendo e costurando sua catequese evangélica desde o início: a salvação universal, que abraça a todos, indistintamente, a qual é proclamada, a começar por Jerusalém, chegando aos confins da terra; a inclusão dos pobres e pecadores, excluídos e marginalizados; os temas da misericórdia e da graça de Deus, dos quais Jesus se torna rosto e voz da parte do Pai. Assim como as narrativas da infância anteciparam os temas da misericórdia,  da salvação universal, da inclusão dos pobres no projeto do Reino de Deus, as narrativas da paixão/morte ao apresentarem novamente estas temáticas no decurso deste bloco literário, as encerram, levando-as à plenitude, formando como que uma grande moldura que sustenta a pintura em tela do quadro do evangelho de Lucas. Isso posto, podemos meditar o texto de Lc 23,35-43.

O texto litúrgico começa a partir do v.35, situando-nos no contexto imediato, isto é, o calvário e a crucifixão. Os julgamentos diante do sinédrio (processo judaico) e o inquérito diante da autoridade romana, o procurador Pôncio Pilatos, se encarregaram de levar Jesus para ser torturado e sentenciado à pena de morte dos prisioneiros políticos, arruaceiros, subversores e revolucionários; aqueles que pudessem representar algum perigo para o Império, a crucifixão. Aos pés da cruz encontram-se os chefes religioso do povo, os soldados responsáveis pela manutenção da ordem de execução, e outras duas companhias, os malfeitores, crucificados juntos com Jesus. É importante ler os versículos seguintes em unidade.

“os chefes zombavam de Jesus dizendo: A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido! Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo! Acima dele havia um letreiro: Este é o Rei dos Judeus. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” (v.v35-39).

Os insultos que Jesus que recebe na cruz são um eco das tentações sofridas no deserto, no início de seu ministério. Por isso, estes insultos só podem ser entendidos a partir de Lc 4,1-13. As tentações foram seduções oferecidas pelo Diabo, com o propósito de fazer com que Jesus se desviasse do projeto do Pai, lhe fosse infiel, e usasse seu messianismo para benefício próprio; elas tinham a intenção de causar a divisão, a cisão, a ruptura entre Jesus e o Pai. O caminho mais fácil; a lógica do ser e do ter, do domínio, da submissão e do prestígio. Quando o tentador percebe que nada afastará Jesus da fidelidade ao Pai, em 4,13, o autor narra: “Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno”. 

Lucas coloca o calvário e a cruz como o tempo oportuno para a última tentação de Cristo. Nesse sentido, os chefes religiosos, os soldados e o malfeitor com suas zombarias e troças, personificam a figura do tentador, nos momentos finais da vida de Jesus. Assim, a Sua última tentação se dá no calvário e na cruz. Os insultos, são, na verdade, a tentação para que o Senhor se sirva de um messianismo fácil, sedutor, poderoso, espetacular; diametralmente oposto ao caminho do Messias encarnado por ele enquanto justo (Sl 22; 33; 69) e servo sofredor (Is 49 – 55). Diante da tentação de salva-se a si mesmo, Jesus oferece-se ao Pai, não respondendo através do caminho mais fácil. Torna-se, pois, rei de si mesmo e de suas vontades. De fato, é Jesus os justo fiel e servo sofredor, que escolhe o caminho da doação da própria vida, ainda que lhe venha a custar caro, até o sangue!

No meio daquele vozerio, alguém fala com consciência: um malfeitor, que provavelmente, para estar ali, deveria ter cometido um delito muito sério, que lhe custava também a vida. Ao censurar a fala do outro bandido, reconhece em Jesus o Justo, aquele que realizou durante toda a sua vida a vontade e o querer de Deus; que, ali, naquele injusto sofrimento, padece com confiança total na silenciosa presença de Deus. O Justo, na sagrada escritura é aquela pessoa que cumpre o querer de Deus; que padece sofrimentos por conta de sua fidelidade, e, mesmo assim, ainda permanece fiel à Deus. Assim é reconhecido Jesus pelo malfeitor: “Mas o outro o repreendeu, dizendo: Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal. E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (v.v. 40-42).

Jesus lhe responde com a absoluta certeza de quem confia plenamente no Deus do Reino que ele anunciou durante toda a sua vida: “Jesus lhe respondeu: Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (v.43). Só neste versículo, dois temas se entrelaçam, se correspondem e se tornam plenos: a salvação universal que Deus oferece indistintamente. O reinado de Deus em Jesus é este: o agir amoroso e misericordioso de Deus através de Jesus, sempre inclusivo e acolhedor, humanizador e gerador de novas e plenas possibilidades de vida; e, nunca poderá ser aquele outro da exclusão, da indiferença, da violência, da divisão, da lógica do “salve-se quem puder”, ou do “bandido bom é bandido morto”. Igualmente importante é o tema do Hoje salvífico de Deus: esta salvação, dom e graça, oferecida a todos, sem distinções, acontece sempre no hoje da história pessoal do indivíduo. Por isso, a vida de todo aquele se abre para acolher a vida e a história de Jesus de Nazaré, do Reino anunciado por Ele, transforma-se num encontro salvífico constante com o Deus e Pai de Jesus. 

Assim é o reinado de Deus em Jesus: amor, misericórdia, salvação universal, acolhimento. Assim é Jesus Rei, que, paradoxalmente, não reina de um trono ou de um palácio, envolvido pelas ideologias imperiais e monárquicas; não reina a partir do poder, do prestígio, da fama, da glória e da vaidade; reina desde a cruz, a expressão máxima da doação da própria vida, expressão de que o seu reinado, seu agir em nome do Deus que chama de Pai, foge dos esquemas e da lógica mundana. O discípulo que quiser tomar parte deste reinado deverá estar disposto a assimilar e assumir esta mesma lógica e dinâmica de vida de Jesus.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.  

sábado, 5 de novembro de 2022

SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS E SANTAS DE DEUS - Mt 5,1-12:


 

A solenidade de todos os santos nos propõe o capítulo quinto do Evangelho segundo Mateus. Na catequese mateana, este capítulo apresenta discurso inaugural de Jesus, encerrando-se em 7,11. Esta primeira catequese de Jesus é de fundamental importância para a comunidade dos discípulos e para as gerações futuras. Com ele, Jesus faz uma releitura ou uma reinterpretação da Lei de Deus (a Torá), contida no Decálogo. Mateus, em seu propósito catequético e literário, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido novo à Lei. Este sermão da montanha se abre com as chamadas bem-aventuranças. Elas são mais extensas em Mateus que em Lucas (cf. Lc 6), e fazem parte do gênero literário de profecia e de congratulações ou felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último alude à promessa da intervenção salvadora de Deus na história para libertar e salvar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve ao iniciar o seu primeiro discurso.

Após dar início a sua missão, depois de ser batizado por João, o batista, e ter sido tentado no deserto quarenta dias, e retornar para a Galileia e reunir um grupo que se decidira por segui-lo, o evangelista começa o capítulo quinto situando o leitor-discípulo na narrativa, num novo cenário. Jesus, seguido de seus discípulos e de uma multidão que o seguia, conforme somos informados em Mt 4,25, chegou a uma montanha ali no território da Galileia. O autor nos descreve a atitude de Jesus.

“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”.  Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar teológico). Ela remete o leitor-discípulo do primeiro evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH dera a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os fieis discípulos de sua comunidade judeu-cristã, que o que Jesus faz equipara-se e supera o gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado. 

Agora, lancemos um olhar para a multidão. Esta, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre o grupo que apenas ouve falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá o passo decisivo e qualitativo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e a vida do Senhor. Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderiram ao ensinamento de Jesus, saíram da multidão e deram o passo do discipulado, permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do Reino. O evangelista afirma que Jesus viu as multidões, mas os que se aproximaram foram os discípulos. Mas é claro que o ensinamento que Jesus dirige também contempla a multidão, visando provoca-la a dar o passo para o discipulado.

Jesus começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Ele declara serem felizes os “pobres em espirito”. É bem verdade que a tradução mais acertada desta primeira bem-aventurança, conforme nos mostra o texto grego, seria: “Bem-aventurados os pobres (com o / no) espírito...” Junção da preposição em + o, que resultaria na expressão “pobres no espírito”, ou seja, aqueles que estão no Espírito de Deus; ou “pobres com espírito de Deus...” São os pobres que, mesmo em sua condição de marginalização estão em comunhão com o Espírito de Deus. Quem são estes? Pode admitir dois sentidos, a pessoa dotada da virtude da humildade, que corresponde à interpretação dos textos de Qumran (hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico-político. Mas, por que estes são declarados felizes por Jesus? Quer seja o humilde ou o miserável, este são declarados felizes em virtude da atitude de se apresentarem diante de Deus com as mãos vazias, porque souberam abdicar da autossuficiência e do orgulho. E, mesmo sofrendo a exclusão social, se abrem para Deus e nele põem sua confiança. Aqueles que se recusam a escolher o caminho da idolatria dos bens deste mundo para mudar a situação. Jesus diz ser destes o Reino dos Céus. Em outras palavras, são chamados, em razão de sua coragem e coerência com o querer de Deus, a cooperar com a construção do Reinado de Deus no já, no aqui e no agora; e, por isso, entrarão definitivamente, no mundo dos ressuscitados para a vida.

No v.4, Jesus declara serem bem-aventurados, os aflitos (os que choram, em Lc 6). Mateus mudou a versão de Lucas embasando-se na profecia de Is 61, onde se lê que “O Senhor enviou-me para consolar os aflitos”. Os aflitos são aqueles sofrem os golpes de uma realidade que ainda está sob influência das forças contrárias ao Reino, o Mal. Vítimas da violência e da injustiça, que não tem a quem recorrer, mas que tem a Deus para consolá-las. Quando os valores do Reino não permeiam as relações interpessoais e o tecido social, as pessoas são cruelmente violentadas. São aqueles que se recusam a revidar violência com violência (Mt 5,39; Rm 12,17; 1 Ts 5,15). Jesus declara que Deus mesmo será o consolador, sofrendo com elas (Is 40,1; 61,2). A consolação prometida é a salvação final e definitiva.

Nesta mesma lógica, Jesus diz a bem-aventurança dos mansos (v.4). Os mansos, pela força de Deus, recusam-se a ser violentos e, desta forma, quebram a maldita espiral da violência. Portanto, serão herdeiros da terra que, com seu gesto de resistência não violenta, ajudaram a construir (SI 37[36]). Com certeza esta bem-aventurança foi criada por Mateus, inspirando-se no Sl 37. Diante dos outros, o manso apresenta-se desarmado, sem defesas nem esquemas ou autoproteção, colocando-se na dinâmica da não-violência. Um modelo perfeito desta bem-aventurança é o próprio Jesus (Mt 11,29, “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”.). Somente os não-violentos, aqueles que quebram a cadeia (espiral) da violência podem possuir a terra (que num sentido metafórico alude ao Reino de Deus).

A bem-aventurança relacionada aos famintos e sedentos de justiça pode ser compreendida de duas maneiras: 1) Os famintos e sedentos da justiça não têm quem os defenda, para fazer valer seus direitos. Na Lei mosaica, todos e, especialmente, os mais fracos e desprotegidos deveriam ter um protetor (go’el). No projeto de Jesus, o Pai, em pessoa, será o go’el dos discípulos do Reino. Esta bem-aventurança é difícil de traduzir do original grego, que, literalmente poderia vir traduzida assim “Felizes os famintos e sedentos da justiça”. O artigo “a” faria referência à Justiça do Reino (cf. Mt 5,20). E, sendo assim, esta bem aventurança abre-se para uma segunda interpretação: 2) os bem-aventurados por terem fome e sede da Justiça do Reino são saciados quando colaboram para que esta Justiça (que é o agir e a vontade de Deus acontecendo na história) se cumpra, ou seja, se propõem a fazer aquilo que o pai quer.

No v.7, Jesus declara: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Um tema muito querido por Mateus. A misericórdia na bíblia não se trata de um sentimento, mas de uma atitude operativa em favor do outro. É uma atitude relacionada à vida concreta. Na mentalidade do evangelista, o Pai, no último juízo, se mostrará misericordioso com aqueles que viveram a experiência do amor e da misericórdia em relação ao próximo. Quem tem o coração e a vida cheios da misericórdia puderam assimilar o modo de ser de Deus, cuja bondade é eterna (SI 136 [135]). Assim,  viverá da misericórdia do Pai.

A bem-aventurança relacionada à pureza de coração deve ser entendida corretamente. São aqueles que são puros desde o íntimo do ser, para além das aparências. Não são pessoas de fachada. Sem falsidades. São transparentes, e essa condição os coloca lado-a-lado com Deus.

Os “fazedores de paz (gr. εἰρηνοποιός / eirehnopoiós)” empregam toda sua vida para construir o Shalom (paz) neste mundo, propiciando um nível de vida humano e justo onde todos desfrutem do bem-estar e da prosperidade. Serão chamados filhos de Deus por construírem o mundo desejado por Deus. São aqueles que colaboram para o diálogo, a concórdia, a reconciliação entre as pessoas, costurando novamente os fios corroídos das relações humanas e selando os laços da fraternidade. Jesus diz que, no último dia, estes serão reconhecidos solenemente por Deus como autênticos filhos seus.

Nos vv.10-12, Jesus diz diretamente aos discípulos (bem-aventurados vós...) que estes são felizes por serem perseguidos por causa da Justiça, recebendo injurias, sendo alvos de mentiras por causa dele. Os discípulos deverão se alegrar e exultar, porque a recompensa nos céus será grande. Quem assume viver a dinâmica do Reino, abraçando a causa de Jesus (o cuidado com os pobres e enfermos; acolhendo os marginalizados, excluídos; procurando e colocando-se ao lado dos pecadores, dos injustiçados, das minorias; libertando as consciências das pessoas oprimidas e chamando à conversão a todos), atrai sobre si insultos, perseguições, mentiras e maledicências. Todavia, os perseguidos por causa da justiça (o querer/vontade de Deus), não devem temer, tampouco recuar, pois já possuem a recompensa mais valiosa: o Reino dos Céus. Essas situações difíceis são para eles motivos de alegria e de exultação, contrariando as expectativas do mundo que os quer tristes, resignados e derrotados.

O Sermão da Montanha, para o leitor-ouvinte do evangelho de Mateus funciona como um caminho programático que deve tocar bem fundo na ética do discípulo do Reino; o modo de ser e agir, propostos aos que são chamados ao discipulado/seguimento ao Deus do Reino, a partir de Jesus, que, por primeiro, na concretude existencial de sua vida, se empenha por vive-las.  No discurso inaugural, bem como em toda a sua vida, Ele não prega um moralismo desencarnado da história humana. Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de vida, que tem o Pai como fundamento e modelo, e que toca a concretude da existência.

As bem-aventuranças compreendem, nesse sentido, a síntese do programa de vida de Jesus e dos discípulos e discípulas de todos os tempos e lugares. É um texto belo, mas muito fácil de ser deturpado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Aplicado à solenidade de todos os santos e santas, tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. O ensinamento contido nas Bem-aventuranças não são palavras de consolação, muito menos uma pregação moralista para suportar, tendo em vista uma recompensa celeste. É, antes, um apelo de alegria e exultação, que prepara um anúncio de libertação e intervenção de Deus. Não se trata de oito diferentes tipos de pessoas, e, sim, oito diferentes ilustrações da vida do discípulo centradas no Reino.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade existencialmente vivida. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem do evangelho, evitando que esta solenidade se transforme em mero devocionismo ingênuo ou mesmo estéril; que faça pensar ou conceber a santidade, a qual todos são chamados, em virtude do santo Batismo, como sendo algo de outro mundo ou impossível de viver; ou, pior, só possível a alguns “separados ou alienados” da realidade. A santidade vive-se na dinâmica relacional e histórica, ou seja, através das relações fraternas restauradoras da dignidade humana, nesta realidade bem concreta. Por isso, é preciso ter clareza que o programa de vida de Jesus, ilustrado pelas bem aventuranças, não se trata de um discurso alienante ou desvinculado da realidade concreta; tampouco um conjunto de ditos moralizantes, mas, como processo de seguimento e discipulado, enquanto balizas para se viver o projeto do Reino, aberto e proposto a todos os batizados e batizadas. 

No hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado, assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Será que conseguimos reconhecer os bem-aventurados de hoje?

Aprendamos também com eles.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.