A Igreja inicia um tempo litúrgico e com ele um ciclo de leituras bíblicas evangélicas retiradas do evangelho segundo Mateus aos domingos. Este tempo chamado de advento é marcado pelas dinâmicas da espera, da vigilância e também pelo constante apelo à conversão. Ele se divide em dois ciclos: os dois primeiros domingos, e, consequentemente as duas primeiras semanas são marcadas pela temática da segunda vinda do Senhor. Por isso, as celebrações semanais e dominicais serão iluminadas por textos bíblicos de caráter escatológicos, isto é, que tratam de temas relacionados ao fim, às renovações históricas e cósmicas, e, por isso, revestidos de uma linguagem pura e essencialmente simbólica. O tempo do advento tem a intenção pedagógica de ensinar a partir dos dois primeiros domingos, que tratam da segunda vinda de Cristo, precisamente que é para esta segunda vinda que devemos esperar e nos empenhar. Uma vez que a primeira vinda do Senhor, no Santo Natal, nós já o celebramos constantemente na liturgia. Os dois últimos finais de semanas, que já estarão praticamente no segundo ciclo do advento, de 17 a 24 de dezembro, já tocarão na temática da primeira vinda de Jesus celebrada litúrgico-sacramentalmente através das solenidades do Santo Natal.
O texto que temos para a nossa meditação é um pouco difícil. Não por sua interpretação, mas devido ao fato de que ele está fora de seu contexto próximo. Sempre se correrá o risco de interpretar equivocadamente o texto, quando retirado do seu contexto, traindo, inclusive, as intenções do próprio evangelista. Por isso, se faz necessário contextualizá-lo. A liturgia propõe para a abertura do tempo do advento – e, do novo ciclo litúrgico – um trecho do capítulo vinte e quatro do evangelho de Mateus. Neste capítulo, o autor do evangelho apresenta o último discurso de Jesus, o “discurso final” (ou, discurso escatológico), através do qual, tratará de recuperar o ensinamento do Cristo para seus discípulos acerca eventos relacionados ao fim. Por isso, discurso final.
O tema do fim do mundo, da história e da realidade devem ser sempre refletidos e entendidos não como fim catastrófico ou trágico, mas como um convite a uma nova história. O fim na bíblia nunca é fim de um mundo, mas fim de uma época/era a fim de que outra, totalmente nova, possa surgir. Para falar do surgimento desta nova era (no sentido mais positivo do termo), os autores sagrados se servem sempre de uma linguagem com um vocabulário carregado de elementos e termos simbólicos. Principalmente quando os destinatários da mensagem estão em risco, em crise e em dificuldades, ou mesmo a fé encontra-se fria e desalentada. Esta linguagem, além de simbólica, é cifrada e codificada através de elementos já presentes na tradição religiosa da comunidade: são textos do Antigo Testamento, revestidos do gênero literário apocalíptico, que todos já conheceram uma primeira vez, e, que, portanto, não parecerá complicado para eles entender a mensagem. Os autores do Novo Testamento, cada um a seu modo, se serviram deste recurso para transmitir suas catequeses a respeito do ensinamento de Jesus sobre as coisas tocantes ao momento do fim. Assim deve ser compreendida esta parte do chamado discurso final do Senhor ao interno do evangelho mateano.
Por último, o tema do fim deve ser entendido também como “a meta”, “a orientação”, “a plenitude”. A novidade apresentada pelo Novo Testamento é justamente esta: a partir de Jesus, e, através dele, Deus inaugura o tempo pleno de seu agir. Jesus é a novidade, a ultimidade, a meta e a orientação da vida de todo o ser humano, ao mesmo tempo em que Ele apresenta a meta definitiva e plena para a qual toda a criação e o gênero humano tendem: a vida em Deus, que chamamos salvação. Nesta perspectiva é que se deve orientar a interpretação destes discursos finais de Jesus nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). Eles tem a intenção de preparar, animar e chamar à reflexão os discípulos de todos os tempos e lugares para que saibam discernir e acolher os sinais dos tempos que são plenos, a fim de sempre acolher em suas vidas a novidade do Deus-conosco, presente em Jesus de Nazaré.
A fim de se compreender melhor o texto evangélico deste primeiro domingo do advento, se faz necessário lançar um olhar retrospectivo para os versículos anteriores, através dos quais Jesus dirige palavras duras contra o templo, contra a cidade santa (cf. 24,1-25), e causa desconforto nos discípulos com as mesmas palavras simbólicas referentes aos sinais cósmicos e terrestres (26-34), que geram e alimentam a expectativa deles acerca do momento em que tudo isso se realizará. Diante disso, em Mt 24,35, Jesus adverte a seus discípulos que aquela geração não passará sem que tudo isso aconteça, mesmo tendo passado o céu e a terra. E, tranquilizando a inquietação dos discípulos, declara no v.36 que, sobre aquele dia, somente o Pai tem conhecimento de quando será. É, precisamente, sobre este tema que Jesus quer trabalhar com seus discípulos, isto é, o modo (o “como”) através do qual o discípulo, se ele desejar ser, de fato, discípulo do Reino e de Jesus, deverá balizar e pautar a sua vida, e não sobre o “quando”, ou seja, sobre dia e a hora exatas em que Deus plenificará definitivamente esta história, o mundo e a vida de seus filhos e filhas; este dia Ele somente é quem sabe, portanto, isto não poderá ser o centro da ocupação e da preocupação do discípulo e da discípula. Antes, deverá preocupar o discípulo o modo e a forma como ele acolhe e vive o tempo novo e definitivo que é inaugurado em Jesus, o Cristo. Acerca deste modo, ou seja, deste comportamento, desta forma de ser e de agir, que Jesus quer ensinar os seus discípulos de ontem e de hoje através deste trecho contido em Mt 24,37-44.
“A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé” (v. 37). Jesus recuperar para seus ouvintes a realidade vivida nos tempos de Noé. O que representa este elemento simbólico do dia de Noé? O dia de Noé faz referência ao dilúvio. Este, não pode ser interpretado como o fim do mundo, mas o surgimento de uma nova humanidade, em Gn 6 – 7. A vinda do filho do homem acontece, justamente, para propor uma nova forma de vida, uma humanidade renovada. Já se sabe que esta personagem “filho do homem” pertence ao capítulo sétimo do Livro de Daniel, e se trata de um ser (humano) que realiza o querer divino na história com sua própria vida; é aquele que executa o projeto de Deus; que leva a termo o senhorio e o juízo divinos. Filho do Homem não significa a natureza humana apenas, mas a humanidade marcada pela condição divina. Com esta personagem também, é que Jesus se assemelhará, além da daquelas do servo e justo sofredor de Deus. Agora, este não é um privilégio somente de Jesus, mas uma forma de vida oferecida a todo aquele que se coloca no caminho e no seguimento a Ele ao Reino. Filhos e filhas de Deus, porque decidiram-se a viver segundo a vida do Filho, que se fez homem.
Mas, para que o dom de Deus, o tempo de uma nova vida e da renovação constantes trazidas por Jesus, não passe despercebido ao homem a mulher, a cada pessoa, estes não podem ser indiferentes ao acontecimento da vinda e da vida do Filho do Homem, como foi aquela geração do tempo de Noé, diante do apelo de Deus. Como eles viviam? Jesus mesmo recorda que, “nos dias, antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (v.38). Jesus fala das atitudes de comer, beber e casar-se. E esse dito precisa ser bem entendido, de modo a evitar interpretações moralizantes e desconectadas da vida. O casamento e as refeições eram, no tempo da sociedade de Jesus acontecimentos comuns e normais. Jesus está evocando a normalidade, a cotidianidade, o comum enquanto lugar do acontecimento do extraordinário do agir de Deus, e não no extraordinário, no tremendo, no fascínio, no chamativo e gritante. No entanto, é no “aí e no agora” que Deus acontece. Sabiamente dizia Santa Teresa de Jesus (Ávila, Espanha – Séc. XVI): “Deus está entre as panelas também”.
Jesus se serve da realidade cotidiana, rotineira e comum mais uma vez para expressar a novidade do agir de Deus acontecendo na história. Ilustra a sua catequese, agora, com a imagem do trabalho, onde dois homens e duas mulheres estarão realizando seus afazeres, dentre os quais um será “levado” enquanto que o outro será deixado; e uma, das duas mulheres que trabalham na moenda será “levada” e a outra, não. Deve se ter presente que a expressão “ser levado(a)” não se refere a algo negativo ou castigo. Ela precisa ser compreendida da seguinte maneira: “ser levado(a)” significa ser “tomado(a)” da parte de Deus. Então, as duas personagens são “levadas” ou tomadas pelo próprio Deus. Significa que elas estão sendo acolhidas pelo próprio Deus porque souberam acolher Deus em meio à vida. Ora, o Reino de Deus é um convite para todos, mas pouco são os que aderem, uma vez que o ato de ser tomado/levado ou deixado da parte de Deus acontece diante da adesão e aceitação da conversão, da mudança da mentalidade e da vida.
Todavia, para que esta novidade de Deus agindo em meio a essa história e diante desta novidade de ser tomado da parte de Deus possam ser percebidas é necessária a vigilância, a qual é e sempre será uma das virtudes do discípulo que o ajudarão em seu modo de viver a vida e o seguimento à Jesus: “Portanto, ficai atentos! porque não sabeis em que dia virá o Senhor” (v.42). A vigilância bíblica não é uma espera passiva e descomprometida, mas a espera ativa/operante, daquele que sabe esperar cooperando com o projeto de Deus através de suas atitudes. É a espera comprometida com o agir; a capacidade de leitura da realidade unida à ação transformadora de Deus através de seus filhos e filhas. A vigilância cristã revela-se aquela grande virtude do discípulo de ver, discernir, e cooperar com agir de Deus que renova a história. Significa romper com a tentação dos braços cruzados, do sentar e esperar cair dos céus, ou do “tudo está garantido”. Ela confirma ainda mais esta lição de Jesus, de que o Reino é para todos, mas nem todos o abraçam. Porque, efetivamente, o deixam passar. Não se colocam atentos e esperançosos para acolher o Senhor que sempre vem. Nesse sentido, ela se torna o grande antidoto para indiferença daquela geração de Noé, criticada por Jesus, que não soube olhar e discernir nos acontecimentos da vida cotidiana e simples, rotineira e comum, os sinais dos tempos que Deus oferecia. E serve de lente histórica para ajudar a pessoa a perceber a vinda deste Deus que vem para tomar-nos para si.
Por isso Mateus encerra esta seção com um segundo apelo à vigilância, da parte de Jesus, ilustrado pela imagem metafórica do dono casa sempre atento, alerta e vigilante diante da possível vinda de um ladrão roubar/tomar lhe a casa. A espera da vinda de Deus deve ser tida como semelhante a espera do dono casa em relação ao ladrão. Certa, porém, é a vinda de Deus, não importando quando, na medida em que certa deverá ser a atitude daquele que espera, a vigilância, o modo e forma da vida do discípulo e da discípula do Reino. É com esta motivação que a liturgia nos convida a iniciar o tempo do advento, ou seja, da espera daquele que já veio uma vez e que virá uma segunda vez.
Diante
desta vinda do Senhor (sacramentalmente celebrada e vivida através da Palavra e
da liturgia) estejamos vigilantes, e não indiferentes como os do tempo de Noé.
Pe.
João Paulo Goes Sillio.
Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP
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