sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

HOMILIA PARA O IV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 1,21-28:

 


O quarto domingo do tempo comum continua para nós a meditação do capítulo primeiro da catequese de Marcos. A fim de compreendê-la, uma pergunta percorre todo o [primeiro] evangelho: Quem é Jesus de Nazaré? O autor coloca este questionamento para além da pessoa histórica do Galileu. Ele tem a finalidade de ensinar para a sua comunidade a verdadeira identidade de Jesus. O texto bíblico proposto pela liturgia dominical apresenta este questionamento através da narrativa da liberação da consciência do “endemoninhado” da Sinagoga. Nesta cena, são postas em evidência a identidade de Jesus e a questão da Sua autoridade. O evangelista articula as duas temáticas num mesmo relato.

Mc 1,21-28 está intrinsecamente relacionado com o trecho anterior, no qual Jesus chamou os quatro primeiros discípulos para a missão de serem pescadores de homens (Mc 1,14-20). Pescar gente, na intenção do evangelista significava retirar as pessoas das circunstâncias, sistemas e situações de morte e promover a vida mesma de Deus na vida do indivíduo, contida no anúncio libertador do Reinado de Deus. Ora, a atividade de Jesus consiste em salvar a vida das pessoas do âmbito da Morte. Por isso, a narrativa é, na verdade, a pesca da qual Jesus falou aos discípulos. Muito significativo é o fato de os discípulos o acompanharem através desta jornada missionária que o mestre realiza. Curioso, todavia, é o fato de que Marcos não mostra os discípulos com Jesus precisamente na sinagoga, como veremos a seguir. Contudo, num só dia, o evangelista vai exemplificando através dos gestos que Jesus realiza, o que significa verdadeiramente pescar gente: a liberação do “endemoninhado”, a cura da sogra de Pedro (Mc 1,29), a purificação do leproso (Mc 1,40). Esta pesca de gente não é uma metáfora, mas a concretização do querer de Deus e do agir de Deus através de Jesus.

Mas, para onde vai Jesus com seus discípulos pescar gente? Nos lugares difamados e desprestigiados, frequentados pelos pecadores? Categoricamente, não! Ele inicia a sua pesca – a atividade geradora de vida – ao interno das estruturas de seu tempo. Feitas estas considerações a nível de contextualização, podemos adentrar no horizonte do texto.

“Estando com seus discípulos em Cafarnaum, Jesus, num dia de sábado, entrou na sinagoga e começou a ensinar” (v.21). O evangelista nos situa no tempo e no espaço. Jesus está em Cafarnaum, na Galileia. É Shabat, isto é, dia de Sábado. Neste dia, o judeu piedoso observa a prescrição da Lei de parar com seus afazeres, para orientar-se para Deus e repousar. Se reúnem na sinagoga para ouvirem a Palavre de Deus. Marcos mostra Jesus cumprindo o preceito. Vai à sinagoga. O verbo “entrar” é utilizado no singular. Algo estranho? Não seria mais lógico que a frase fosse gramaticalmente escrita “Estando Jesus com seus discípulos em Cafarnaum, em dia de sábado entraram na sinagoga?” O autor faz de propósito ao utilizar o verbo no singular. A intenção é a de ensinar para sua comunidade que os discípulos ainda não estão prontos para o que acontecerá.

Na sinagoga, Jesus se põe a ensinar. Ele não participa do culto sinagogal. O evangelista, com o adverbio “imediatamente” enfatiza que a ação de Jesus é ensinar. E a reação dos que ali se encontram é de admiração. “pois ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (v.22). Marcos faz notar ao seus leitores-ouvintes o tema da exousia de Jesus que chama a atenção da plateia. Ele ensina de modo diferente dos mestres da lei. A Sua autoridade (gr. ἐξουσία) consiste na coerência de Sua vida. O falar coincide com o agir; o Seu agir confirma sua palavra, que, em última análise, é a Palavra do próprio Deus. A autoridade na bíblia consistia no mandato divino que Deus havia dado aos profetas para pregar a Palavra, a fim de fazê-la conhecida. A autoridade de Jesus revela que Ele é o enviado da parte de Deus para pregar a Boa-Notícia do Reino. Nesse sentido, as pessoas presentes na sinagoga escutam e sentem no ensinamento de Jesus a Palavra de Deus. Nessa ordem, o ensino dos líderes religiosos do povo caia no descrédito.

Por três vezes o evangelista mostra Jesus ao interno da sinagoga. Ali emergirão situações de conflitos. O número três é simbólico, não se trata de uma grandeza matemática. Ele substitui o adverbio “sempre”. O catequista pretende acenar para o fato de que “sempre” que Jesus entra numa sinagoga, emergem situações polêmicas, controvérsias, conflitos. Jesus e os lugares sagrados de sua época tornam-se incompatíveis. As instituições de seu tempo encontram-se atrofiadas. Não conseguem suportar a novidade anunciada por Jesus. Por isso, tornam-se enredadas nos sistemas e nas situações de morte.

A cena a seguir serve de metáfora para o que foi dito acima. “Estava então na sinagoga um homem possuído por um espírito mau” (v.23). Curioso, que no texto original, Marcos identifica a sinagoga como sendo um espaço que não serve mais à Jesus e seus discípulos, bem como para a própria comunidade cristã. No seu evangelho, as casas emergem como lugares apropriados para se fazer experiência com a Palavra de Deus que Jesus anuncia. As casas das pessoas passam a ser um lugar onde se faz uma experiência de vida com Deus. A sinagoga dos líderes religiosos se torna espaço de morte. Lugar de alienação da consciência e da experiência de Deus através de uma prática desconectada da vida concreta, que não projeta para a liberdade enquanto filhos de Deus, mas oprime, domina e aprisiona.

Ora, esperava-se da sinagoga um lugar sadio e repleto da presença de Deus, por ser ali o lugar do estudo de Sua Palavra. Mas o que há de errado ali? Um homem com um espírito impuro, como literalmente escreve Marcos. O evangelista, através desta personagem, denuncia uma instituição religiosa que, com o seu ensinamento, mais do que aproximar o homem de Deus, o afasta. Tanto que, ele é o único personagem presente ao interno da sinagoga. O sistema religioso da época não se dava conta de que a impureza residia ao interno de suas estruturas, como efeito e fruto de seus ensinamentos. O evangelista enfatizou no começo da narrativa, com o adverbio “imediatamente”, que Jesus começou a ensinar na sinagoga. Com o mesmo adverbio ele indica o surgimento de resistências diante da pregação de Jesus, a partir da manifestação do homem possuído pelo espírito impuro.

Por quatro vezes Jesus confrontará alguém possuído por um espírito impuro (gr. πνεύματι ἀκαθάρτῳ / pneúmati akathárto). Não há equívocos neste termo. Não há espaço para dramatizações medievais pitorescas e fantasiosas. O que se pretende dizer com “espírito impuro”? O termo espírito indica uma energia (um dinamismo) que, segundo a concepção judaica da época, quando provém de Deus se chama santa porque santifica a pessoa, separando-a do mal; quando esta energia provém da realidade contrária a Deus, se chama impura, porque mantém o objeto ou o indivíduo na esfera das trevas, distante de Deus. Tornando-se, inclusive, opositor de Deus.

Quem é este homem possuído por um espírito impuro? É um individuo que aderiu voluntária, livre e acriticamente à um sistema de valor e a uma doutrina que o torna refratário e hostil ao ensinamento de Jesus, a ponto de interrompê-lo, uma vez que seu ensinamento provocava adesão à sua pessoa. A adesão que provoca e desestabiliza as estruturas e as lideranças religiosas de seu tempo.

No v.24, Marcos dá voz a esta personagem: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus”. Estranho. É um indivíduo, e fala no plural. Por quê? O evangelista está denunciando um grupo que se sente ameaçado pelo ensinamento de Jesus. São as lideranças judaicas, os escribas, mestres da lei, que veem seu autoritarismo, prestígio e poder de dominação sendo arruinados pela autoridade de Jesus, seu modo de viver e de falar.  Serão eles que Jesus denunciará por estarem ensinando preceitos humanos ao invés da Palavra de Deus. Eles anulavam a Palavra de Deus com suas tradições e preceitos. Este homem possuído pelo espírito impuro – que é símbolo da autoridade dos escribas – que aderiu cega, voluntária e livremente a ela, reage contra Jesus porque sente-se ameaçado em sua zona de conforto e desacreditado diante daquilo que aprendeu. Sente-se perdido e questionado em sua própria existência.

De forma muito hábil, Marcos joga com a personagem do homem obsesso. Ele faz com que o individuo tente reinserir Jesus no âmbito da tradição religiosa, chamando-o de “o Santo de Deus”. Uma expressão que indicava o messias esperado, que interpretaria a Lei de Deus a faria ser observada. “Jesus o intimou: Cala-te e sai dele! Então o espírito mau sacudiu o homem com violência, deu um grande grito e saiu” (v.25-26). Jesus interrompe o homem com uma réplica que impossibilita todo o diálogo. No confronto entre o homem possuído pelo espírito impuro e o homem possuído pelo Espírito Santo, é este último que sai vencedor. Mas a libertação não vem sem sofrimento. Ora, deparar-se com o fato de que tudo aquilo que um dia aprendeu como certo, agora, diante de Jesus se desfaz, mediante seu ensino com autoridade, gera uma laceração muito grande, que, de certo modo, descontrói.

A ordem para que o homem se cale é, no horizonte da catequese de Marcos, um motivo literário chamado de segredo messiânico. Este tema é pedagógico e teológico. Pedagógico porque tem a função de conduzir o leitor-discípulo para a realidade teológica de Jesus. Teológico, porque acena para revelação de sua identidade verdadeira, que só acontecerá em Mc 15, com a proclamação feita pelo oficial romano, confessando Jesus como Filho de Deus. A represália ao homem possuído pelo espírito impuro serve de admoestação para que o público que rodeia Jesus não compreenda ou faça uma imagem equivocada dele e de sua missão. Para poder confessá-lo como Santo de Deus, de fato, se fará necessário percorrer o caminho e o sentido de Sua vida até as últimas consequências. Este é o caminho do discípulo.

“E todos ficaram muito espantados e perguntavam uns aos outros: O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (v.27). Os que estavam na sinagoga ficaram admirados novamente. E, literalmente, exclamam: “uma doutrina nova?”. O evangelista faz uso deste termo para dizer para sua comunidade que a ação de Jesus é total e qualitativamente superior ao ensino dos escribas, mestres da lei. Qual seria esta doutrina nova? O fato de que Deus não se manifesta na doutrina-ensinamento dos escribas, mas na nova atividade libertadora de Jesus, que transmite e gera vida. Por isso (sem querer me deter muito sobre esta temática, uma vez que ela ocuparia muito mais do que uma reflexão dominical), a atividade exorcista de Jesus não pretende ser uma crônica dos fatos. O evangelista não tem o interesse que ronda o imaginário da tradição extrabíblica. O catequista bíblico tem a intenção de ensinar para a sua comunidade que o Reino que Jesus proclama e vive só pode ser aceito na liberdade da consciência, na adesão voluntária e sem qualquer impedimento que possa provocar, no mesmo ser humano, a alienação, a escravidão e qualquer tipo de opressão oriunda das realidades e situações coniventes com as forças contrárias ao querer e ao projeto de Deus.

A nova doutrina de Jesus é a sua vida e missão que tem a autoridade para promover a libertação e a vida plena de Deus, a qual supera qualitativamente o espírito impuro das estruturas antigas e caducas. O ensinamento de Jesus é uma palavra autorizada – e com autoridade – que gera e promove vida naquele o acolhe.

Um adendo se faz necessário. Nunca se falou tanto de demônios (moralismos e doutrinações alienadoras) do que no cristianismo atual, por mais incrível que pareça. Tais mentalidades, associadas a esses espetáculos parecem atrair as pessoas, hoje, ao interno de nossas comunidades eclesiais, muito mais do que o próprio e fundamental convite ao seguimento a Jesus; do que o discipulado do Reino. O espetáculo sensacionalista, histérico, emotivo, "dogmaticista" (doutrinador) e moralizante vêm atraindo muito mais que a pregação do Evangelho de Cristo e sua vivência encarnada na história, no serviço aos irmãos ao interno e externo da comunidade. Ao espetáculo, o lugar de honra. Ao Evangelho - que realmente liberta a consciência e o agir -, a porta da rua, pois este não rende comunidades cheias. Estejamos atentos. 

A pergunta é sempre válida. Quem somos, a partir do horizonte do texto? Como se encontram as nossas comunidades ditas cristãs? São espaços da pesca de gente, ou reduto das pessoas puramente doutrinadas e alienadas, como nas sinagogas?

Pe. João Paulo Sillio.

Paroquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 23 de janeiro de 2021

HOMILIA PARA O III DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 1,14-20:

 


O evangelho proposto para este terceiro domingo do tempo comum situa-se em Mc 1,14-20. O evangelista informa o leitor-ouvinte acerca do começo da missão de Jesus. Ela delimita-se a partir de um marco, a prisão do Batista. O evangelista situa o leitor no espaço geográfico: a atividade de Jesus inicia-se na Galiléia. Terra de ninguém. Mal vista pelos judeus do sul. Marcos coloca ali o início da missão de Jesus.

O conteúdo desta missão é bem explicitado pelo próprio Jesus: “Jesus foi para a Galiléia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (v.14-15). É uma boa-notícia que se inaugura através da vida de Jesus, que, do mesmo modo, trata-se da Deus mesmo atuando na história através da vida e das ações de Jesus. Este é um tempo novo e, ao mesmo tempo, pleno. Ela consiste no fato de que Deus é totalmente diverso daquilo fora ensinado e pregado pelos antigos. O Deus de Jesus é um Deus completamente novo – conforme se desvelará ao longo do evangelho – porque apresenta um amor incondicional e que não leva em conta os méritos do homem, mas tão somente as suas necessidades. Por isso, Marcos define o tempo em quem esta boa-noticia chega não como tempo cronológico que se acabada, mas como tempo definitivo e plano, Kairós (gr. καιρὸς). O conteúdo desta boa notícia (Evangelho), neste tempo oportuno (Kairós) consiste no seguinte: “o Reino de Deus está próximo”. Literalmente, “se aproximou”, “chegou”.

Na teologia e exegese bíblica atuais, o conceito bíblico de Reino de Deus não pode ser resumido tão somente a um espaço. O conceito de Reino de Deus – ou Reinado – consiste na atuação de Deus; o seu Senhorio agindo na história através de seu enviado. Por isso, o Reino de Deus é uma pessoa que revela o agir e o querer de Deus mesmo na realidade, Jesus. Este é o conteúdo do anúncio feito por ele através do dom de sua vida e missão. Mas é sempre importante ter em mente o seguinte: por mais que o Reino seja o Reinado – o senhorio – de Deus, sua ação através de Jesus, existe uma ética, um agir e ser que são frutos da adesão que cada homem e mulher fazem em relação ao projeto de Deus revelado por Jesus. Este agir e ser – ethos – que brota da opção por Jesus torna-se a visibilização concreta e histórica do mesmo agir de Deus, e, portanto, seu Reino. Sempre vivo, atuante e, constantemente, edificado nesta história, ainda que não encontre aqui o seu fim e sua plenitude.

O Reino anunciado por Jesus, que é projeto do Pai, é a Sua própria atuação na história e que encontra sua concretude na vida de todo aquele que adere a Jesus e o tem como modelo para sua vida. A este agir e ser, o evangelista define como Conversão, explicitado pelo convite a todo aquele que decidiu-se por Jesus: conversão; “convertei-vos”. O autor usa aqui o verbo metânoeho (gr. μετανοέω). Que não é uma mudança de rumo ou de direção. Tampouco é a conversão da qual falava o Batista, aquela religiosa e institucional. Trata-se de uma mudança de mentalidade. É uma atitude que brota da interioridade humana, que passa a delimitar o agir da pessoa. É o convite a viver a vida segundo a mentalidade, as opções e as escolhas inerentes ao projeto de Deus que vai se desvelando segundo a vida e a missão de Jesus. Este anúncio proclamado pelo pregador galileu evoca uma radical transformação. Para crer nesta boa-nova é preciso uma conversão, uma transformação de atitude e mente. Deus exerce seu senhorio (Reinado), não através de leis exteriores aos homens, mas comunicando a estes Sua mesma capacidade de amar, de colocar-se ao lado dos pequenos, dos excluídos; se abaixar para servir o outro. É um Reino onde compartilha para se viver plenamente!

O evangelista Marcos situa Jesus às margens do Mar da Galileia. Na teologia de Marcos, o Mar da Galileia remonta a outro mar: aquele, através do qual o povo, no Êxodo, atravessou para se ver livre da vida da escravidão. Para o autor, Jesus é aquele que inaugurará o novo Êxodo para a humanidade que aderiu ao projeto de Deus manifestado em seu Cristo. O mar é símbolo das forças opostas ao querer e ao projeto de Deus. Ao colocar Jesus nas margens do mar da Galileia, o catequista bíblico pretende ensinar para a sua comunidade que com Jesus, o discípulo deverá refazer sempre sua caminhada, optando pelo projeto de vida plena, atravessando o mar como o povo fez nas aventuras exodais. Mas será sempre nas margens que, aquele que aderiu ao projeto de Jesus e do Pai, deverá andar e se permitir encontrar, a fim de encontrar os que foram marginalizados. A opção do discípulo deverá ser semelhante à do mestre.  

Nas margens, Jesus encontra os pescadores. Símbolos de uma realidade e sociedade que promove marginalização. Também eles se encontram nesta situação. Mas é com estes que Jesus quer contar como colaboradores. Primeiro, Simão e seu irmão André. Estavam lançando as redes. A estes, Jesus diz: “Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens”. Qual o significado do convite de Jesus? Dissemos que o Reino anunciado por Jesus é um reino de vida plena, que se coloca sempre a serviço e ao lado dos que estão sem vida e encontram-se marginalizados, onde não há espaço para pensar em si mesmo e nos próximos benefícios. O que fazem os pescadores? Ao pescarem, primeiramente pensam em suas próprias necessidades. “Pescar homens” significa retirar o ser humano das condições e das situações que representam a não-vida, pois o mar, como dissemos acima, é símbolo para as forças hostis e de morte. É a capacidade de desenvolver a missão de gerar vida aos outros, não mais pensando em seus próprios interesses, mas visando a salvação do irmão. É a reorientação da própria vida: “vir após mim” significa renunciar aos próprios interesses e abrir-se a capacidade de retirar para fora as pessoas que estão presas em sistemas de morte, a fim de recobrar a própria plenitude de vida.

Os versículos finais introduzem mais duas personagens: os filhos de Zebedeu, Tiago e João. O narrador nos informa que eles estão consertando as redes em companhia de seu pai. Jesus passa por eles, faz-lhes o convite e, imediatamente, deixando tudo, colocam-se no seguimento a Jesus. É interessante que este convite fica oculto. O evangelista não dá a conhecer ao leitor o que teria dito o Cristo para os dois irmãos. O que leva o leitor à seguinte mensagem: a uns o Senhor chama para pescar; a outros, para consertar (tecer) as redes, ou seja, há uma multiplicidade de dons a serem realizados, mas um só é o chamado. Ao seguimento, ao discipulado a Jesus, a capacidade de descentrar-se de si para colocar-se em relação aos outros, cooperando na promoção do dinamismo libertador e de vida que Reinado de Deus propõe.

O anúncio do Reino é uma proclamação de vida para todos. Como venho cooperando com chamado que o Senhor dirige a mim? Como tenho respondido ao convite para o Discipulado ao Senhor do Reino? Como nossas comunidades vêm se comportando diante do chamado do a serem pescadores de homens e consertadoras de rede? Deus, em Jesus, chamou-nos a todos. Basta-nos a coragem para descobrirmos em quê podemos ser pescadores de homens; como podemos gerar vida para aqueles que se encontram sem vida, nas margens da história e da realidade, na beira do caminho.

Pe. João Paulo Sillio

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 16 de janeiro de 2021

HOMILIA PARA O II DOMINGO DO TEMPO COMUM - Jo 1,35-42:



O segundo domingo do tempo comum, nos introduz no Evangelho segundo João. No domingo anterior, a Igreja celebrava o Batismo do Senhor, e as personagens do Batista e de Jesus retornam, mas sob a perspectiva do Quarto Evangelho. O texto que a liturgia dominical nos faz entrar em contato é Jo 1,35-42, a semana inaugural de Jesus, no evangelho joanino.

O texto de hoje encontra-se, portanto, no Livro dos Sinais e corresponde à semana inaugural do ministério de Jesus, que inicia-se imediatamente o seu batismo. Esta semana desenvolve-se com as narrativas concernentes a João Batista e seu testemunho, culminando no sétimo dia, com o relato do primeiro sinal realizado por Jesus em Caná, na Galiléia (Jo 1,19 – 2,11). O evangelista delimita os dias com o termo, “na manhã (no dia) seguinte”. Ele esquematiza a semana inaugural da missão de Jesus a partir da mesma estrutura narrativa do Livro do Gênesis. Lá, o autor sagrado narra, dia após dia, o evento da criação. Servindo-se deste mesmo esquema, João quer ensinar para a sua comunidade que a semana inaugural da missão de Jesus é uma atividade através da qual inaugura-se a nova criação.

A nova criação é anunciada através da declaração da primeira personagem que o evangelista insere em sua narrativa, o Batista, o qual é introduzido acompanhado de seus discípulos (v.35). Mas antes desta proclamação, chama-nos a atenção o termo utilizado aqui no v.36 pelo evangelista: “vendo Jesus passar, disse: Eis o Cordeiro de Deus!” O verbo ver (Blepein,w; que aqui aparece como ἐμβλέψας / emblépsas) tem o sentido de olhar para dentro, a fim de conseguir captar a essência, a identidade. Ou seja, é a capacidade de captar a verdadeira identidade de algo ou alguém. Ele aparece duas vezes. O batista “vê” em Jesus a sua verdadeira identidade messiânica. Ele consegue captar, a partir de dentro, quem é aquele que está passando diante de si. É interessante que o verbo que descreve a ação de Jesus é um verbo de movimento. Enquanto João é narrado sem qualquer indicativo de movimento. A missão do Batista chegou ao fim. A de Jesus, está no começo.

“Eis o Cordeiro de Deus!” (v.36), declara João, o Batista. Esta afirmação revela duas dimensões da identidade de Jesus: cordeiro de Deus e Filho de Deus, porque batiza com o Espírito de Deus (vv. 32-34). Pode ser que, como bom judeu, o evangelista tenha se apropriado do ambiente levítico-cultual dos sacrifícios de expiação dos pecados, realizados no templo de Jerusalém. Os judeus costumavam oferecer, diariamente, no Templo, cordeiros para expiar os pecados. Deste modo, alguém que reconcilia as pessoas com Deus pode ser comparado ao cordeiro do sacrifício é o que sugere Is 53,4-12 a respeito do Servo Sofredor. Todavia, como o Quarto Evangelho é o escrito ruminado (digerido, discernido desde a experiência fundante da comunidade com Jesus) a imagem do cordeiro evoca, sem sombra de dúvidas, o cordeiro pascal, o qual Moisés ordenou (cf. Ex 12) a cada hebreu e seus familiares, matassem e o comessem. A carne do cordeiro, daria força na jornada que os hebreus teriam de realizar. O autor do evangelho identifica a Jesus como o cordeiro, cuja a carne dará força para este novo caminho. Ora, a carne, na tradição bíblica, é sinônimo da história humana. Ou seja, na perspectiva do catequista bíblico, a carne do cordeiro de Deus que deve ser comida será a história (com todas as suas opções, escolhas e atitudes) de Jesus que o fiel-discípulo e leitor do evangelho precisará assimilar. Só assim poderá tomar parte do discipulado, do seguimento a Jesus..

“Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus” (v.37). Dois discípulos se colocam em movimento. Um será logo identificado. André é seu nome. Mas o outro não recebe nome. João faz de propósito. Quando o leitor se depara com uma personagem bíblica que não possui nome, o leitor deve se identificar com ela; fazer dela um espelho para si. O discípulo que não tem nome é o discípulo que iniciou agora a sua caminhada na fé. Este, portanto, é a imagem exemplar para todo aquele que se propõe a seguir a Jesus. Ele se tornará o discípulo amado, aquele que reconhecerá Jesus em sua real identidade e que viverá a mesma vida do Senhor.

Na ordem da narrativa, Jesus percebe que está sendo seguido. Imediatamente se volta para os dois e lhes pergunta: “'O que estais procurando?” (v.38). Ele não pergunta “quem vocês estão procurando”, mas “o que”? Ou seja, que expectativas os está movendo. Eles perguntam a Jesus onde mora, e Ele lhes responde: “vinde ver” (v.39). Foram e ficaram com Ele. Naquele tempo, o discípulo não só recebia as lições do mestre, mas também convivia com ele, de modo a estabelecer uma profunda relação e comunhão de ideias e de vida com o mestre. O tema da habitação é recorrente no Quarto Evangelho. Para o autor e sua comunidade, Jesus é a morada de Deus. Jesus habita, onde está o amor de Deus. Essa é a morada, o endereço de Deus em Cristo.

O Evangelista anota o horário. “Era por volta das quatro da tarde”. Já se aproximava o pôr-do-sol. Era o fim da jornada. Todavia, ao entardecer, conforme o costume de se contar as horas e de dividir os dias na tradição do povo de Jesus, se inaugurava um novo dia. Está, portanto, para iniciar um novo dia, aquele que iniciará a atividade e a missão de Jesus.

Outro discípulo é inserido na narrativa, Simão, irmão de André, o qual, ao iniciar o novo dia, vai em busca de seu irmão. Mas a reação de Simão, diante da novidade do anúncio é intrigante. Ele não esboça reação alguma ao receber a notícia do encontro do messias. Nem uma palavra sequer Simão verbaliza. Parece que ele se assemelha a um peso morto. Fato é que precisa ser conduzido por André. O fato de ser conduzido acena para as resistências que o discípulo ainda possui.

“Jesus olhou bem para ele e disse: ‘Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas’ (que quer dizer: Pedra)” (v.42). Pela segunda vez aparece o verbo “ver”, que, como dissemos acima, indica a capacidade de ver por dentro, a real identidade de uma pessoa. Agora, este verbo é realizado por Jesus em relação à Simão. Jesus faz uma radiografia de Simão “Tu és Simão, filho de João”. “Filho”, aqui, indica que Simão é um discípulo do Batista. Naquela época, os discípulos eram considerados como que filhos de seus mestres. É o discípulo perfeito, ideal, do Batista. E Jesus acrescenta: “tu serás chamado Cefas”, que é traduzido pelo evangelista por “pedra”. Ele não troca o nome de Simão, e nunca se referirá a este chamando-o Cefas ou Pedro. Trata-se aqui de um expediente literário utilizado pelo evangelista no decorrer de seu evangelho. Por que? Pedra é um adjetivo negativo que indica endurecimento deste discípulo. O evangelista se apropriará deste adjetivo para revelar ao seu leitor o papel deste discípulo. Quando este discípulo estiver em sintonia com Jesus, o autor o apresentará como o nome de Simão. Ao apresentar o discípulo em contraste com o mestre, o catequista o chamará de Simão-Pedro (pedra), indicando sua teimosia e resistência. Por fim, quando o discípulo estiver na contramão do projeto de Jesus, contrário a Ele, então o evangelista o apresentará pelo adjetivo Pedro (a pedra).

Curiosamente, no evangelho joanino, Jesus não convida Simão a segui-lo. O mestre o radiografou a partir de dentro. Sabe que existem muitas coisas ainda a serem ressignificadas e ensinadas ao discípulo. Somente ao final deste evangelho, quando Jesus terá demolido as expectativas de todos os discípulos em relação à sua identidade e missão, através de seu mistério de morte e vida, é que lhe fará o chamado a Simão, “Segue-me” (Jo 21).

Com qual das personagens nós e nossas comunidades podem ser identificadas? Nossas comunidades sabem apontar a Jesus como o Cordeiro de Deus? Responder a estas duas perguntas é tarefa daquele e daquela que decidiu-se por ficar com Jesus.

Pe. João Paulo Sillio.

Paroquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 9 de janeiro de 2021

HOMILIA PARA O BATISMO DO SENHOR - Mc 1,7-11:


 

A liturgia deste domingo, na qual a Igreja faz a memória do batismo do Senhor, retoma a leitura do Evangelho segundo Marcos, retirado do primeiro capítulo de sua catequese, Mc 1,7-11. O qual tem a intenção de revelar a missão e a identidade de Jesus, e não um fato. Mas, também, revelar a tarefa e a identidade dos discípulos e da comunidade: a de participar na missão e na vida do Senhor, investidos – como Jesus – do Espírito de Deus e ser reconhecidos como os filhos e filhas amados de Deus, em Jesus.

Após anunciar o início de seu Evangelho, de sua boa notícia, e respaldá-lo sobre as escrituras antigas, o evangelista apresenta sua primeira personagem. Um tal João, cujo nome hebraico significa “Deus é Misericórdia (Deus é Graça)”. Ele realiza uma prática já existente nos costumes do povo: um banho ritual. O que ele significa? Sem recorrer ao significado litúrgico propriamente, “batizar” significa imergir/mergulhar. Era um rito com o qual se indicava uma nova realidade na pessoa. Por exemplo, um escravo, para indicar sua liberdade passava pelas águas para representar seu novo estado de vida, ao sair da água. Nesse sentido, o batismo era uma forma de morte para o passado a fim de se iniciar uma vida nova. Na perspectiva de João, o batismo que pregava e realizava era destinado à conversão.

O evangelista sublinha o lugar geográfico do rio Jordão. Ele não é só uma localização espacial, mas um lugar teológico também. Na tradição do Pentatêuco, o Jordão era tido como o último lugar de travessia por onde o povo teria que passar para entrar, conquistar e possuir a terra prometida, saindo da vida da escravidão e passando para uma vida de liberdade e totalmente nova. Interessante que os que acorrem à João, no deserto, a fim de serem batizados, não são somente os da região da Judeia, mas todos os habitantes de Jerusalém. Outro aspecto para o qual Marcos nos chama a atenção é o caminho contrário que os habitantes de Jerusalém assumem. Eles vão na direção oposta à capital, que, na tradição religiosa é o lugar sagrado, a terra prometida. É uma forma de se dizer que aquela terra de promessa havia se transformado numa terra de escravidão, da qual se deve sair. No ato de sair de Jerusalém, se reconhece que a conversão e o perdão para os pecados não podem estar encerrados nos sacrifícios, nas prescrições da Lei, mas no profundo e sincero movimento interior de mudança de vida, e, por isso, acorrem à João.

No v.7, a personagem João declara: “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias”. O evangelista trata de colocar o batista em seu devido lugar. No horizonte das primeiras comunidades, um certo grupo de discípulos do Batista ainda existentes, defendiam a superioridade de João em relação a Jesus, argumentando com o fato de que ele havia batizado o Cristo. Marcos e Mateus narram o batismo de Jesus, com finalidade teológico-narrativa, ou seja, pretendendo dissipar esta polêmica ao interno das primeiras comunidades.

Marcos e Mateus esclarecem este mal-entendido através dos ditos contidos em relação à Jesus que saem da boca do Batista: o mais forte (gr. ὁ ἰσχυρότερός / hó Ischiróteros) é aquele que vem depois de João, Jesus. O evangelista pretende dizer à sua comunidade que Jesus, aquele que virá depois de João, será em qualidade, dignidade e pela atividade, superior ao batista. O catequista bíblico para enfatizar esta mensagem se serve também da lei do levirato (lit. Levir, palavra hebraica para cunhado; Gn 38; Dt 25). Em que consistia esta lei? Quando uma mulher ficava viúva, e sem filhos, o cunhado tinha a obrigação de inseri-la em sua família, gerando com ela um filho. Este, do sexo masculino, deveria receber o nome do falecido. De modo que o nome do defunto se perpetuasse na história. Se por motivo financeiros, aquele cunhado não tivesse condições de assumi-la, então o segundo na escala hierárquica da família o deveria fazer (isso para evitar com que a mulher fosse expulsa do clã e jogada na sarjeta). O segundo deveria, então, proceder com a cerimônia do descalço. Este se ajoelhava, desamarrava as correias da sandália da mulher, tomava-a em suas mãos e cuspia nela. Com este gesto, pretendia-se dizer que o direito de desposar aquela mulher já não era mais do primeiro: “o teu direito de tomar e fecundar esta mulher agora pertence a mim”. Através deste pano de fundo da lei do levirato, Marcos quer mostrar para a sua comunidade que o Batista não é o noivo a desposar a viúva, símbolo para o povo de Israel. O noivo é aquele que vêm em seguida, Jesus.   

Mas, de verdade, o que faz João, ou, de outro modo, o que não faz? O que ele faz é explicitado no v.8a: “Eu vos batizei com água”. Ou seja, o batizador é um instrumento para a mudança de vida e de mentalidade. O que ele não pode fazer é outra coisa: batizar com o Espírito Santo. Ou seja, João não pode comunicar o dinamismo de vida de Deus que é capaz de fazer com que o ser humano viva esta nova realidade iniciada pela conversão e pelo perdão dos pecados. Este é, portanto, o anúncio da vida de Jesus, que é aquele que batizará com o Espírito Santo, aquele que insere o homem e a mulher no horizonte da vida mesma de Deus, e esta será a atividade e a missão de Jesus.

O evangelista insere Jesus na narrativa. Diz que ele veio até o Jordão para ser batizado por João. O leitor, a partir daqui, já se questiona: se o batismo pregado e realizado pelo batista é uma prática de conversão e perdão dos pecados, por que Jesus – declarado como filho de Deus pela pregação da comunidade – se batizou? Porque, na perspectiva de Marcos o batismo de Jesus se entende de duas maneiras: 1) Jesus é o novo Josué, que tem a missão de inaugurar o novo êxodo na história do povo e da humanidade. O Jordão representa a fronteira entre o deserto e a terra prometida, na história de Israel. Com Jesus, o homem a mulher são convidados a passarem da terra da escravidão em que havia se tornado a terra da promessa, para refazer com Ele, o caminho do projeto e do querer de Deus, que é salvar a humanidade (Jesus é a tradução de Yehoshua (Y’eshua”) que é o mesmo nome de Josué). 2) O batismo era um símbolo de morte para o passado. Também para Jesus o batismo tem significado de morte. Não para o passado pecador, porque Jesus não o tem, mas em vista da sua entrega futura na cruz. Em seu batismo, Jesus quer testemunhar sua fidelidade ao querer do Pai, ainda que esta fidelidade seja colocada a prova pela morte. Marcos narra que Jesus desceu às águas, gesto alusivo à morte, mas, em seguida, saiu do Jordão. Esta ação alude, pois, à ressurreição. O mistério da vida de Jesus, todo o projeto do Reino que ele assume com fidelidade em relação ao Pai, não para na morte. É coroada com a ressurreição.

A cena seguinte, no v.10, é muito importante: “E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele”. A tradução correta não é “o céu se abriu”, mas “rasgou-se”. O evangelista antecipa aqui o que acontecerá com o véu do templo que separava o santuário do Santo dos santos, após a morte de Jesus: rasgou-se (Mc 15,38). Ora, aquilo que se abre, pode, naturalmente fechar-se. Mas aquilo que se rasga não pode mais se recompor. Na mentalidade do povo de Israel, Deus, em sua ira teria se ocultado nos céus. O que Marcos quer ensinar é que essa mentalidade está ultrapassada, pois a partir do momento em que Deus vê seu filho no Jordão, o desejo de manifestar quem Ele é realmente – amor incondicional – os céus não se abrem, mas se rasgam: a partir de Jesus e com Ele, a comunicação entre Deus e a humanidade será permanente e ininterrupta.

Marcos continua a narrativa dizendo que “o Espírito, como pomba, desceu sobre ele” (v.10b). O evangelista recorre a imagem da pomba. Ela tem a capacidade de criar afeição com seu ninho original. Mesmo o deixando, sempre retorna ao seu ninho, jamais abandonando-o. O evangelista quer ensinar para a sua comunidade que Jesus é a morada plena e definitiva do Espírito de Deus. Através de seu batismo, Jesus é investido pelo Espírito, toda a totalidade e plenitude da energia vital de amor da parte de Deus, tornando-se, assim, sua morada. Mas também na morte de Jesus, esta temática do Espírito retorna. Em Mc 15, Jesus, depois de um forte grito, entrega seu Espírito. Aquele Espírito que recebera em plenitude, no batismo, Jesus, em sua morte, O entrega a todos aqueles que aderiram ao seu modelo de vida. 

“E do céu veio uma voz: 'Tu és o meu Filho amado, em ti ponho meu bem-querer.” (v.11). Para coroar a teofania – a manifestação divina – ocorrida no batismo, ouve-se a Voz. O termo “voz” (gr. φωνὴ) aparece aqui e em Mc 15, novamente, na narrativa da paixão de Jesus. Lá, Ele solta um grito, não de angustia, mas de confiança. Aqui, nesta cena, ouve-se a voz que proclama a Jesus como Filho Amado (gr. υἱός μου ὁ ἀγαπητός), o filho predileto. Predileto não porque foi dotado de privilégios da parte de Deus, mas precisamente porque cumpre e realiza todo o querer do Pai através de sua fidelidade. Este mesmo termo usado na narrativa, o catequista bíblico o usará quase que de modo semelhante, ao colocar na boca do centurião romano a profissão de fé de que aquele Jesus crucificado é, verdadeiramente, Filho de Deus. O bem-amado do Pai.

O batismo de Jesus é a sua investidura, pelo poder/dinamismo do Espírito, para realizar o querer e o projeto de amor e salvação queridos pelo Pai. O batismo que recebe todo o fiel cristão é a sua investidura para tomar parte da mesma missão de Jesus: realizar e revelar o projeto e o querer amoroso e gerador de vida de Deus, o Pai, na força do Espírito de Jesus. A todos os seus filhos e filhas ele dirige a mesma voz: Este é o meu filho/minha filha amado (a). Se cada um desejar colocar em prática a sua vida em relação ao projeto amoroso de Deus, cooperando com a missão de Jesus.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 2 de janeiro de 2021

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR - Mt 2,1-12:

O evangelho proposto para a solenidade da Epifania do Senhor é retirado da catequese mateana, Mt 2,1-12. O texto bíblico situa-se ao interno das narrativas da infância de Jesus. Os textos referentes à infância de Jesus não possuem a finalidade de ser uma crônica exata dos acontecimentos e dos fatos. A propósito, nenhum dos quatro evangelhos canônicos o são. Eles são narrativas das experiências das respectivas comunidades de fé em torno de Jesus crucificado-ressuscitado, que tratam de confessar e proclamá-lo como Senhor e Cristo à luz de todos os acontecimentos pascais. Nesse sentido, a fé pascal ilumina toda trajetória da vida de Jesus. Por isso, os evangelhos não são cronologias para a vida de Jesus, mas narrativas de uma experiência comunitária de fé. Portanto, são teologias (cristologias, soteriologia) acerca de Jesus. Isso posto, torna-se seguro afirmar que a narrativa proposta para a liturgia de hoje é uma teologia narrativa elaborada por Mateus, a fim de transmitir uma mensagem para a sua comunidade dos anos 80 d.C e para os discípulos de todos os tempos e lugares, a respeito de Jesus de Nazaré. O autor, através dos versículos de hoje, quer responder para a comunidade quem é esse Jesus por quem eles estão sofrendo.

Mateus, ao escrever o seu Evangelho, serve-se de todo o patrimônio religioso-histórico do povo de Israel. Ele, adotando as técnicas rabínicas de escrita e de explicação, opera uma releitura das tradições religiosas e históricas do povo através do midrash – a reinterpretação dos textos legislativos e narrativos da Torah. Para o evangelista, Jesus assume e revive, através de sua vida, toda a história e toda a tradição de seu povo. O mesmo pode ser dito ao contrário, Mateus faz incidir sobre Jesus todas as personagens, tradições e história de Israel sobre Jesus com a seguinte finalidade: fazer crescer em sua comunidade a convicção de Jesus de Nazaré é o Messias enviado por Deus.

O texto proposto para hoje enquadra-se naquele estilo dito acima e nas intenções do evangelista. A narrativa de hoje apresenta a visita dos sábios estrangeiros vindos do Oriente pagão ao recém-nascido, trazendo-lhe presentes. Para construir esta narrativa, ele se serve de um texto do Antigo Testamento, a visita da rainha de Sabá ao sábio rei Salomão, o descendente de Davi, em 1Rs 10 (// 2Cr 9). Ela se dirige à Judá para colocar a prova a sabedoria de Salomão. A sabedoria de Deus, da qual Salomão compartilha atraiu os estrangeiros. É uma forma de se dizer que esta mesma sabedoria não conhece limites. Não tem fronteiras. Ela extrapola os muros de Judá e chega às nações. Mas na narrativa evangélica, o catequista bíblico, mesmo servindo-se da técnica da reinterpretação dos textos antigos, na perspectiva de uma continuidade histórica, opera uma superação. Na cena da visita dos sábios do Oriente, são os mesmos sábios (magos; estudiosos dos astros) que se deixam interpelar e se render pela sabedoria de Deus revelada naquele pequeno recém-nascido. Isto posto, podemos contemplar narrativa bíblica.

“Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’” (v. 1-2). Os dois primeiros versículos introduzem a narrativa no tempo e no espaço. Mateus bebe da mesma tradição de Lucas e confirma o nascimento de Jesus, em Belém, no período de Herodes Antípas (rei asmoneu, e, portanto usurpador). Mas o que deve chamar a nossa atenção é a chegada de três estrangeiros de profissão duvidosa, que já surpreendem os leitores do evangelho, provocando certa inquietação. O evangelista usa o termo “mago” (gr. μάγος). Estes não eram bem vistos segundo a Lei de Israel. A magia e quem a praticava deveriam ser banidos do meio do povo, de acordo com a prescrição de Lv 19 e também, posteriormente, no Talmud se lê que “aquele que aprende qualquer coisa relacionado à magia deverá morrer”.

Os primeiros a receberem a boa notícia do nascimento de Jesus Messias são os estrangeiros, pagãos e de profissão duvidosa. Há aqui uma mensagem importante a ser retida do texto. A salvação, que representa todo o projeto de vida e benção que Deus oferece em primeiro lugar ao povo de Israel, não é um privilégio exclusivo, mas inclusivo. É um convite destinado a todos, sem distinção e restrição. Ora, Mateus identifica os visitantes como forasteiros, estrangeiros. Estes, no tempo e na sociedade de Jesus e na qual encontra-se inserida a comunidade de Mateus não são bem vistos. São pessoas a serem temidas. Mas ao interno dos Evangelhos, os estrangeiros não são vistos sob perspectivas negativas, antes, positiva pois são destinatários do projeto salvífico de Deus. Eles não devem ser vistos como aproveitadores e usufruidores, que só retiram e tomam dos outros, como nossa sociedade atual pensa e teme, mas como pessoas que podem oferecer algo. E o que eles oferecem é o testemunho de uma boa noticia de salvação que se estende a todos. Mas, diante de tal notícia, Herodes, o rei posto, se perturba. Mateus acrescenta que também Jerusalém compartilha do mesmo estado de ânimo. O rei e a cidade santa são símbolos do poder, da dominação, da tirania. Se perturbam porque sentem-se ameaçados em sua zona de conforto. Ao contrário do que pensam essas estruturas, o messianismo de Jesus não será exercido pela força, pelo poder e pela dominação, mas através do serviço, do amor e da misericórdia oferecida por Deus através Dele.

Enquanto a relação com Deus, monopolizado pela elite religiosa, era mediada por uma casta sacerdotal corrompida e através de sacrifícios e ofertas, em Jesus é Deus quem se manifesta plenamente, sendo Ele mesmo quem à humanidade se oferece, ao invés de exigir oferendas. Por isso, “o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém” (v. 3), pois viam que um novo tempo estava surgindo, novas relações estavam sendo gestadas, uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus estava começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).   

Acontece que esta salvação não reside em Jerusalém, centro do poder religioso e político do povo. Consultando as elites religiosas, experts nas Escrituras, obtém-se a informação sobre o lugar do nascimento do novo rei: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo” (v.6). Mateus se serve da profecia antiga de Miqueias. Em Belém. Fora de Jerusalém, portanto. Ali não encontram o novo rei e sua luz. Só encontram a falsidade, a tirania, o poder e as trevas. Interessante. Mateus não informa que a luz que havia guiado os visitantes pagãos continuava brilhando sobre a cidade santa. Ao contrário, somente quando eles se afastam de Jerusalém e da influência de Herodes é que podem novamente contemplar a luz que lhes havia atraído. Os magos partem, pois, para Belém. Em Jerusalém, naquele ambiente de trevas, corrupção, poder, falsidade e tirania, eles não puderam fazer uma experiência autêntica de Deus.

Ao retomarem o caminho, a estrala/luz volta a brilhar e a atraí-los. A alegria os assalta novamente (v.9-10). Chegam, pois, ao lugar indicado. O evangelista descreve a atitude dos visitantes: “Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra” (v.11). O evangelista utiliza o verbo “adorar” (gr. προσκυνέω / proskinêo). Verbo utilizado somente para a atitude do homem em relação à Deus. Ele quer ensinar para a sua comunidade que os magos reconheceram no menino a presença de Deus que os atraiu para lá.

Os visitantes apresentam seus dons ao recém-nascido: ouro, incenso e mirra. Uma correta interpretação se faz necessária. Muitas vezes se romantizou demais a oferta dos magos, aludindo aos sofrimentos inerentes a vida de Jesus, ou mesmo sua divindade ou realeza. Os presentes não querem aludir ao destino de Jesus. Eles simbolizam a vocação que Israel não consegui responder, de acordo com Mateus. O ouro está ligado à realeza de Deus, e, na tradição de Israel, o povo é vocacionado a se tornar um “povo de reis”. O incenso, é a oferta que os sacerdotes oferecem no templo; as Escrituras afirmam que Israel é convocado por YHWH a ser um “povo sacerdotal”. A mirra é um perfume utilizado nas núpcias do casal; segundo a tradição profética, Israel é a figura da esposa desposada por Deus, o marido. De acordo com o evangelista, este projeto de “povo de reis, sacerdotal, e esponsal”, não pertence mais tão somente à Israel, mas, nos magos que trazem estas ofertas, encontra-se aberto a todas as nações. É uma proposta dirigida a toda a humanidade através da manifestação que Deus realiza em Jesus.

“Avisados em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho” (v. 12). Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com o próximo. Para viver bem a nova relação com Deus é necessário desviar-se das antigas rotas e estruturas. A experiência autêntica com Deus, portanto, provoca no ser humano a necessidade de percorrer novos caminhos, o que pode ser compreendido como uma nova maneira de viver, com novas atitudes parecidas com as de Jesus (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br) 

O evangelho da solenidade da Epifania aponta para três ensinamentos importantes: 1) Jesus, em sua vida e missão superará, de longe, todas as expectativas em relação ao descendente dravídico. Por mais que seja identificado, num primeiro momento, como o novo Davi, a partir da releitura feita de 1Rs 10. 2) A salvação não é um privilégio exclusivo de poucos, mas inclusivo para todos. 3) É possível aprender sobre Deus – realizar uma experiência com Ele – também com os que são de fora; com os que pensam e vivem de modo diverso. O outro que pensa e vive diferente não é um inimigo a ser vencido, um oponente a ser derrotado, um adversário ou “herege” a ser combatido. O outro é um irmão. E, comigo, chamado igualmente a participar deste projeto de vida plena revelado integralmente a todos. Indistintamente.

Pe. João Paulo Sillio.

Paroquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP.