O segundo domingo do tempo comum, nos introduz no Evangelho segundo João. No domingo anterior, a Igreja celebrava o Batismo do Senhor, e as personagens do Batista e de Jesus retornam, mas sob a perspectiva do Quarto Evangelho. O texto que a liturgia dominical nos faz entrar em contato é Jo 1,35-42, a semana inaugural de Jesus, no evangelho joanino.
O texto de hoje encontra-se, portanto, no Livro dos Sinais e corresponde à semana inaugural do ministério de Jesus, que inicia-se imediatamente o seu batismo. Esta semana desenvolve-se com as narrativas concernentes a João Batista e seu testemunho, culminando no sétimo dia, com o relato do primeiro sinal realizado por Jesus em Caná, na Galiléia (Jo 1,19 – 2,11). O evangelista delimita os dias com o termo, “na manhã (no dia) seguinte”. Ele esquematiza a semana inaugural da missão de Jesus a partir da mesma estrutura narrativa do Livro do Gênesis. Lá, o autor sagrado narra, dia após dia, o evento da criação. Servindo-se deste mesmo esquema, João quer ensinar para a sua comunidade que a semana inaugural da missão de Jesus é uma atividade através da qual inaugura-se a nova criação.
A nova criação é anunciada através da declaração da primeira personagem que o evangelista insere em sua narrativa, o Batista, o qual é introduzido acompanhado de seus discípulos (v.35). Mas antes desta proclamação, chama-nos a atenção o termo utilizado aqui no v.36 pelo evangelista: “vendo Jesus passar, disse: Eis o Cordeiro de Deus!” O verbo ver (Blepein,w; que aqui aparece como ἐμβλέψας / emblépsas) tem o sentido de olhar para dentro, a fim de conseguir captar a essência, a identidade. Ou seja, é a capacidade de captar a verdadeira identidade de algo ou alguém. Ele aparece duas vezes. O batista “vê” em Jesus a sua verdadeira identidade messiânica. Ele consegue captar, a partir de dentro, quem é aquele que está passando diante de si. É interessante que o verbo que descreve a ação de Jesus é um verbo de movimento. Enquanto João é narrado sem qualquer indicativo de movimento. A missão do Batista chegou ao fim. A de Jesus, está no começo.
“Eis o Cordeiro de Deus!” (v.36), declara João, o Batista. Esta afirmação revela duas dimensões da identidade de Jesus: cordeiro de Deus e Filho de Deus, porque batiza com o Espírito de Deus (vv. 32-34). Pode ser que, como bom judeu, o evangelista tenha se apropriado do ambiente levítico-cultual dos sacrifícios de expiação dos pecados, realizados no templo de Jerusalém. Os judeus costumavam oferecer, diariamente, no Templo, cordeiros para expiar os pecados. Deste modo, alguém que reconcilia as pessoas com Deus pode ser comparado ao cordeiro do sacrifício é o que sugere Is 53,4-12 a respeito do Servo Sofredor. Todavia, como o Quarto Evangelho é o escrito ruminado (digerido, discernido desde a experiência fundante da comunidade com Jesus) a imagem do cordeiro evoca, sem sombra de dúvidas, o cordeiro pascal, o qual Moisés ordenou (cf. Ex 12) a cada hebreu e seus familiares, matassem e o comessem. A carne do cordeiro, daria força na jornada que os hebreus teriam de realizar. O autor do evangelho identifica a Jesus como o cordeiro, cuja a carne dará força para este novo caminho. Ora, a carne, na tradição bíblica, é sinônimo da história humana. Ou seja, na perspectiva do catequista bíblico, a carne do cordeiro de Deus que deve ser comida será a história (com todas as suas opções, escolhas e atitudes) de Jesus que o fiel-discípulo e leitor do evangelho precisará assimilar. Só assim poderá tomar parte do discipulado, do seguimento a Jesus..
“Ouvindo essas palavras, os dois discípulos seguiram Jesus” (v.37). Dois discípulos se colocam em movimento. Um será logo identificado. André é seu nome. Mas o outro não recebe nome. João faz de propósito. Quando o leitor se depara com uma personagem bíblica que não possui nome, o leitor deve se identificar com ela; fazer dela um espelho para si. O discípulo que não tem nome é o discípulo que iniciou agora a sua caminhada na fé. Este, portanto, é a imagem exemplar para todo aquele que se propõe a seguir a Jesus. Ele se tornará o discípulo amado, aquele que reconhecerá Jesus em sua real identidade e que viverá a mesma vida do Senhor.
Na ordem da narrativa, Jesus percebe que está sendo seguido. Imediatamente se volta para os dois e lhes pergunta: “'O que estais procurando?” (v.38). Ele não pergunta “quem vocês estão procurando”, mas “o que”? Ou seja, que expectativas os está movendo. Eles perguntam a Jesus onde mora, e Ele lhes responde: “vinde ver” (v.39). Foram e ficaram com Ele. Naquele tempo, o discípulo não só recebia as lições do mestre, mas também convivia com ele, de modo a estabelecer uma profunda relação e comunhão de ideias e de vida com o mestre. O tema da habitação é recorrente no Quarto Evangelho. Para o autor e sua comunidade, Jesus é a morada de Deus. Jesus habita, onde está o amor de Deus. Essa é a morada, o endereço de Deus em Cristo.
O Evangelista anota o horário. “Era por volta das quatro da tarde”. Já se aproximava o pôr-do-sol. Era o fim da jornada. Todavia, ao entardecer, conforme o costume de se contar as horas e de dividir os dias na tradição do povo de Jesus, se inaugurava um novo dia. Está, portanto, para iniciar um novo dia, aquele que iniciará a atividade e a missão de Jesus.
Outro discípulo é inserido na narrativa, Simão, irmão de André, o qual, ao iniciar o novo dia, vai em busca de seu irmão. Mas a reação de Simão, diante da novidade do anúncio é intrigante. Ele não esboça reação alguma ao receber a notícia do encontro do messias. Nem uma palavra sequer Simão verbaliza. Parece que ele se assemelha a um peso morto. Fato é que precisa ser conduzido por André. O fato de ser conduzido acena para as resistências que o discípulo ainda possui.
“Jesus olhou bem para ele e disse: ‘Tu és Simão, filho de João; tu serás chamado Cefas’ (que quer dizer: Pedra)” (v.42). Pela segunda vez aparece o verbo “ver”, que, como dissemos acima, indica a capacidade de ver por dentro, a real identidade de uma pessoa. Agora, este verbo é realizado por Jesus em relação à Simão. Jesus faz uma radiografia de Simão “Tu és Simão, filho de João”. “Filho”, aqui, indica que Simão é um discípulo do Batista. Naquela época, os discípulos eram considerados como que filhos de seus mestres. É o discípulo perfeito, ideal, do Batista. E Jesus acrescenta: “tu serás chamado Cefas”, que é traduzido pelo evangelista por “pedra”. Ele não troca o nome de Simão, e nunca se referirá a este chamando-o Cefas ou Pedro. Trata-se aqui de um expediente literário utilizado pelo evangelista no decorrer de seu evangelho. Por que? Pedra é um adjetivo negativo que indica endurecimento deste discípulo. O evangelista se apropriará deste adjetivo para revelar ao seu leitor o papel deste discípulo. Quando este discípulo estiver em sintonia com Jesus, o autor o apresentará como o nome de Simão. Ao apresentar o discípulo em contraste com o mestre, o catequista o chamará de Simão-Pedro (pedra), indicando sua teimosia e resistência. Por fim, quando o discípulo estiver na contramão do projeto de Jesus, contrário a Ele, então o evangelista o apresentará pelo adjetivo Pedro (a pedra).
Curiosamente, no evangelho joanino, Jesus não convida Simão a segui-lo. O mestre o radiografou a partir de dentro. Sabe que existem muitas coisas ainda a serem ressignificadas e ensinadas ao discípulo. Somente ao final deste evangelho, quando Jesus terá demolido as expectativas de todos os discípulos em relação à sua identidade e missão, através de seu mistério de morte e vida, é que lhe fará o chamado a Simão, “Segue-me” (Jo 21).
Com qual das personagens nós e nossas comunidades podem ser identificadas? Nossas comunidades sabem apontar a Jesus como o Cordeiro de Deus? Responder a estas duas perguntas é tarefa daquele e daquela que decidiu-se por ficar com Jesus.
Pe. João Paulo Sillio.
Paroquia
Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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