sábado, 2 de janeiro de 2021

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR - Mt 2,1-12:

O evangelho proposto para a solenidade da Epifania do Senhor é retirado da catequese mateana, Mt 2,1-12. O texto bíblico situa-se ao interno das narrativas da infância de Jesus. Os textos referentes à infância de Jesus não possuem a finalidade de ser uma crônica exata dos acontecimentos e dos fatos. A propósito, nenhum dos quatro evangelhos canônicos o são. Eles são narrativas das experiências das respectivas comunidades de fé em torno de Jesus crucificado-ressuscitado, que tratam de confessar e proclamá-lo como Senhor e Cristo à luz de todos os acontecimentos pascais. Nesse sentido, a fé pascal ilumina toda trajetória da vida de Jesus. Por isso, os evangelhos não são cronologias para a vida de Jesus, mas narrativas de uma experiência comunitária de fé. Portanto, são teologias (cristologias, soteriologia) acerca de Jesus. Isso posto, torna-se seguro afirmar que a narrativa proposta para a liturgia de hoje é uma teologia narrativa elaborada por Mateus, a fim de transmitir uma mensagem para a sua comunidade dos anos 80 d.C e para os discípulos de todos os tempos e lugares, a respeito de Jesus de Nazaré. O autor, através dos versículos de hoje, quer responder para a comunidade quem é esse Jesus por quem eles estão sofrendo.

Mateus, ao escrever o seu Evangelho, serve-se de todo o patrimônio religioso-histórico do povo de Israel. Ele, adotando as técnicas rabínicas de escrita e de explicação, opera uma releitura das tradições religiosas e históricas do povo através do midrash – a reinterpretação dos textos legislativos e narrativos da Torah. Para o evangelista, Jesus assume e revive, através de sua vida, toda a história e toda a tradição de seu povo. O mesmo pode ser dito ao contrário, Mateus faz incidir sobre Jesus todas as personagens, tradições e história de Israel sobre Jesus com a seguinte finalidade: fazer crescer em sua comunidade a convicção de Jesus de Nazaré é o Messias enviado por Deus.

O texto proposto para hoje enquadra-se naquele estilo dito acima e nas intenções do evangelista. A narrativa de hoje apresenta a visita dos sábios estrangeiros vindos do Oriente pagão ao recém-nascido, trazendo-lhe presentes. Para construir esta narrativa, ele se serve de um texto do Antigo Testamento, a visita da rainha de Sabá ao sábio rei Salomão, o descendente de Davi, em 1Rs 10 (// 2Cr 9). Ela se dirige à Judá para colocar a prova a sabedoria de Salomão. A sabedoria de Deus, da qual Salomão compartilha atraiu os estrangeiros. É uma forma de se dizer que esta mesma sabedoria não conhece limites. Não tem fronteiras. Ela extrapola os muros de Judá e chega às nações. Mas na narrativa evangélica, o catequista bíblico, mesmo servindo-se da técnica da reinterpretação dos textos antigos, na perspectiva de uma continuidade histórica, opera uma superação. Na cena da visita dos sábios do Oriente, são os mesmos sábios (magos; estudiosos dos astros) que se deixam interpelar e se render pela sabedoria de Deus revelada naquele pequeno recém-nascido. Isto posto, podemos contemplar narrativa bíblica.

“Tendo nascido Jesus na cidade de Belém, na Judéia, no tempo do rei Herodes, eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: ‘Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo’” (v. 1-2). Os dois primeiros versículos introduzem a narrativa no tempo e no espaço. Mateus bebe da mesma tradição de Lucas e confirma o nascimento de Jesus, em Belém, no período de Herodes Antípas (rei asmoneu, e, portanto usurpador). Mas o que deve chamar a nossa atenção é a chegada de três estrangeiros de profissão duvidosa, que já surpreendem os leitores do evangelho, provocando certa inquietação. O evangelista usa o termo “mago” (gr. μάγος). Estes não eram bem vistos segundo a Lei de Israel. A magia e quem a praticava deveriam ser banidos do meio do povo, de acordo com a prescrição de Lv 19 e também, posteriormente, no Talmud se lê que “aquele que aprende qualquer coisa relacionado à magia deverá morrer”.

Os primeiros a receberem a boa notícia do nascimento de Jesus Messias são os estrangeiros, pagãos e de profissão duvidosa. Há aqui uma mensagem importante a ser retida do texto. A salvação, que representa todo o projeto de vida e benção que Deus oferece em primeiro lugar ao povo de Israel, não é um privilégio exclusivo, mas inclusivo. É um convite destinado a todos, sem distinção e restrição. Ora, Mateus identifica os visitantes como forasteiros, estrangeiros. Estes, no tempo e na sociedade de Jesus e na qual encontra-se inserida a comunidade de Mateus não são bem vistos. São pessoas a serem temidas. Mas ao interno dos Evangelhos, os estrangeiros não são vistos sob perspectivas negativas, antes, positiva pois são destinatários do projeto salvífico de Deus. Eles não devem ser vistos como aproveitadores e usufruidores, que só retiram e tomam dos outros, como nossa sociedade atual pensa e teme, mas como pessoas que podem oferecer algo. E o que eles oferecem é o testemunho de uma boa noticia de salvação que se estende a todos. Mas, diante de tal notícia, Herodes, o rei posto, se perturba. Mateus acrescenta que também Jerusalém compartilha do mesmo estado de ânimo. O rei e a cidade santa são símbolos do poder, da dominação, da tirania. Se perturbam porque sentem-se ameaçados em sua zona de conforto. Ao contrário do que pensam essas estruturas, o messianismo de Jesus não será exercido pela força, pelo poder e pela dominação, mas através do serviço, do amor e da misericórdia oferecida por Deus através Dele.

Enquanto a relação com Deus, monopolizado pela elite religiosa, era mediada por uma casta sacerdotal corrompida e através de sacrifícios e ofertas, em Jesus é Deus quem se manifesta plenamente, sendo Ele mesmo quem à humanidade se oferece, ao invés de exigir oferendas. Por isso, “o rei Herodes ficou perturbado, assim como toda Jerusalém” (v. 3), pois viam que um novo tempo estava surgindo, novas relações estavam sendo gestadas, uma sociedade alternativa estava nascendo, enfim, o Reino de Deus estava começando e, portanto, todos os reinos humanos deveriam desaparecer (CORNÉLIO, F, Homilia Dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).   

Acontece que esta salvação não reside em Jerusalém, centro do poder religioso e político do povo. Consultando as elites religiosas, experts nas Escrituras, obtém-se a informação sobre o lugar do nascimento do novo rei: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo algum és a menor entre as principais cidades de Judá, porque de ti sairá um chefe que vai ser o pastor de Israel, o meu povo” (v.6). Mateus se serve da profecia antiga de Miqueias. Em Belém. Fora de Jerusalém, portanto. Ali não encontram o novo rei e sua luz. Só encontram a falsidade, a tirania, o poder e as trevas. Interessante. Mateus não informa que a luz que havia guiado os visitantes pagãos continuava brilhando sobre a cidade santa. Ao contrário, somente quando eles se afastam de Jerusalém e da influência de Herodes é que podem novamente contemplar a luz que lhes havia atraído. Os magos partem, pois, para Belém. Em Jerusalém, naquele ambiente de trevas, corrupção, poder, falsidade e tirania, eles não puderam fazer uma experiência autêntica de Deus.

Ao retomarem o caminho, a estrala/luz volta a brilhar e a atraí-los. A alegria os assalta novamente (v.9-10). Chegam, pois, ao lugar indicado. O evangelista descreve a atitude dos visitantes: “Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Ajoelharam-se diante dele, e o adoraram. Depois abriram seus cofres e lhe ofereceram presentes: ouro, incenso e mirra” (v.11). O evangelista utiliza o verbo “adorar” (gr. προσκυνέω / proskinêo). Verbo utilizado somente para a atitude do homem em relação à Deus. Ele quer ensinar para a sua comunidade que os magos reconheceram no menino a presença de Deus que os atraiu para lá.

Os visitantes apresentam seus dons ao recém-nascido: ouro, incenso e mirra. Uma correta interpretação se faz necessária. Muitas vezes se romantizou demais a oferta dos magos, aludindo aos sofrimentos inerentes a vida de Jesus, ou mesmo sua divindade ou realeza. Os presentes não querem aludir ao destino de Jesus. Eles simbolizam a vocação que Israel não consegui responder, de acordo com Mateus. O ouro está ligado à realeza de Deus, e, na tradição de Israel, o povo é vocacionado a se tornar um “povo de reis”. O incenso, é a oferta que os sacerdotes oferecem no templo; as Escrituras afirmam que Israel é convocado por YHWH a ser um “povo sacerdotal”. A mirra é um perfume utilizado nas núpcias do casal; segundo a tradição profética, Israel é a figura da esposa desposada por Deus, o marido. De acordo com o evangelista, este projeto de “povo de reis, sacerdotal, e esponsal”, não pertence mais tão somente à Israel, mas, nos magos que trazem estas ofertas, encontra-se aberto a todas as nações. É uma proposta dirigida a toda a humanidade através da manifestação que Deus realiza em Jesus.

“Avisados em sonho para nãos voltarem a Herodes, os magos retornaram para sua terra seguindo outro caminho” (v. 12). Seguir outro caminho é a primeira atitude de quem faz um encontro autêntico com Jesus. Desse encontro, surge uma nova maneira de relacionar-se com Deus e com o próximo. Para viver bem a nova relação com Deus é necessário desviar-se das antigas rotas e estruturas. A experiência autêntica com Deus, portanto, provoca no ser humano a necessidade de percorrer novos caminhos, o que pode ser compreendido como uma nova maneira de viver, com novas atitudes parecidas com as de Jesus (CORNELIO, F, Homilia Dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br) 

O evangelho da solenidade da Epifania aponta para três ensinamentos importantes: 1) Jesus, em sua vida e missão superará, de longe, todas as expectativas em relação ao descendente dravídico. Por mais que seja identificado, num primeiro momento, como o novo Davi, a partir da releitura feita de 1Rs 10. 2) A salvação não é um privilégio exclusivo de poucos, mas inclusivo para todos. 3) É possível aprender sobre Deus – realizar uma experiência com Ele – também com os que são de fora; com os que pensam e vivem de modo diverso. O outro que pensa e vive diferente não é um inimigo a ser vencido, um oponente a ser derrotado, um adversário ou “herege” a ser combatido. O outro é um irmão. E, comigo, chamado igualmente a participar deste projeto de vida plena revelado integralmente a todos. Indistintamente.

Pe. João Paulo Sillio.

Paroquia Sagrada Família / Arquidiocese de Botucatu – SP. 

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