A liturgia deste domingo, na qual a Igreja faz a memória do batismo do Senhor, retoma a leitura do Evangelho segundo Marcos, retirado do primeiro capítulo de sua catequese, Mc 1,7-11. O qual tem a intenção de revelar a missão e a identidade de Jesus, e não um fato. Mas, também, revelar a tarefa e a identidade dos discípulos e da comunidade: a de participar na missão e na vida do Senhor, investidos – como Jesus – do Espírito de Deus e ser reconhecidos como os filhos e filhas amados de Deus, em Jesus.
Após anunciar o início de seu Evangelho, de sua boa notícia, e respaldá-lo sobre as escrituras antigas, o evangelista apresenta sua primeira personagem. Um tal João, cujo nome hebraico significa “Deus é Misericórdia (Deus é Graça)”. Ele realiza uma prática já existente nos costumes do povo: um banho ritual. O que ele significa? Sem recorrer ao significado litúrgico propriamente, “batizar” significa imergir/mergulhar. Era um rito com o qual se indicava uma nova realidade na pessoa. Por exemplo, um escravo, para indicar sua liberdade passava pelas águas para representar seu novo estado de vida, ao sair da água. Nesse sentido, o batismo era uma forma de morte para o passado a fim de se iniciar uma vida nova. Na perspectiva de João, o batismo que pregava e realizava era destinado à conversão.
O evangelista sublinha o lugar geográfico do rio Jordão. Ele não é só uma localização espacial, mas um lugar teológico também. Na tradição do Pentatêuco, o Jordão era tido como o último lugar de travessia por onde o povo teria que passar para entrar, conquistar e possuir a terra prometida, saindo da vida da escravidão e passando para uma vida de liberdade e totalmente nova. Interessante que os que acorrem à João, no deserto, a fim de serem batizados, não são somente os da região da Judeia, mas todos os habitantes de Jerusalém. Outro aspecto para o qual Marcos nos chama a atenção é o caminho contrário que os habitantes de Jerusalém assumem. Eles vão na direção oposta à capital, que, na tradição religiosa é o lugar sagrado, a terra prometida. É uma forma de se dizer que aquela terra de promessa havia se transformado numa terra de escravidão, da qual se deve sair. No ato de sair de Jerusalém, se reconhece que a conversão e o perdão para os pecados não podem estar encerrados nos sacrifícios, nas prescrições da Lei, mas no profundo e sincero movimento interior de mudança de vida, e, por isso, acorrem à João.
No v.7, a personagem João declara: “Depois de mim virá alguém mais forte do que eu. Eu nem sou digno de me abaixar para desamarrar suas sandálias”. O evangelista trata de colocar o batista em seu devido lugar. No horizonte das primeiras comunidades, um certo grupo de discípulos do Batista ainda existentes, defendiam a superioridade de João em relação a Jesus, argumentando com o fato de que ele havia batizado o Cristo. Marcos e Mateus narram o batismo de Jesus, com finalidade teológico-narrativa, ou seja, pretendendo dissipar esta polêmica ao interno das primeiras comunidades.
Marcos e Mateus esclarecem este mal-entendido através dos ditos contidos em relação à Jesus que saem da boca do Batista: o mais forte (gr. ὁ ἰσχυρότερός / hó Ischiróteros) é aquele que vem depois de João, Jesus. O evangelista pretende dizer à sua comunidade que Jesus, aquele que virá depois de João, será em qualidade, dignidade e pela atividade, superior ao batista. O catequista bíblico para enfatizar esta mensagem se serve também da lei do levirato (lit. Levir, palavra hebraica para cunhado; Gn 38; Dt 25). Em que consistia esta lei? Quando uma mulher ficava viúva, e sem filhos, o cunhado tinha a obrigação de inseri-la em sua família, gerando com ela um filho. Este, do sexo masculino, deveria receber o nome do falecido. De modo que o nome do defunto se perpetuasse na história. Se por motivo financeiros, aquele cunhado não tivesse condições de assumi-la, então o segundo na escala hierárquica da família o deveria fazer (isso para evitar com que a mulher fosse expulsa do clã e jogada na sarjeta). O segundo deveria, então, proceder com a cerimônia do descalço. Este se ajoelhava, desamarrava as correias da sandália da mulher, tomava-a em suas mãos e cuspia nela. Com este gesto, pretendia-se dizer que o direito de desposar aquela mulher já não era mais do primeiro: “o teu direito de tomar e fecundar esta mulher agora pertence a mim”. Através deste pano de fundo da lei do levirato, Marcos quer mostrar para a sua comunidade que o Batista não é o noivo a desposar a viúva, símbolo para o povo de Israel. O noivo é aquele que vêm em seguida, Jesus.
Mas, de verdade, o que faz João, ou, de outro modo, o que não faz? O que ele faz é explicitado no v.8a: “Eu vos batizei com água”. Ou seja, o batizador é um instrumento para a mudança de vida e de mentalidade. O que ele não pode fazer é outra coisa: batizar com o Espírito Santo. Ou seja, João não pode comunicar o dinamismo de vida de Deus que é capaz de fazer com que o ser humano viva esta nova realidade iniciada pela conversão e pelo perdão dos pecados. Este é, portanto, o anúncio da vida de Jesus, que é aquele que batizará com o Espírito Santo, aquele que insere o homem e a mulher no horizonte da vida mesma de Deus, e esta será a atividade e a missão de Jesus.
O evangelista insere Jesus na narrativa. Diz que ele veio até o Jordão para ser batizado por João. O leitor, a partir daqui, já se questiona: se o batismo pregado e realizado pelo batista é uma prática de conversão e perdão dos pecados, por que Jesus – declarado como filho de Deus pela pregação da comunidade – se batizou? Porque, na perspectiva de Marcos o batismo de Jesus se entende de duas maneiras: 1) Jesus é o novo Josué, que tem a missão de inaugurar o novo êxodo na história do povo e da humanidade. O Jordão representa a fronteira entre o deserto e a terra prometida, na história de Israel. Com Jesus, o homem a mulher são convidados a passarem da terra da escravidão em que havia se tornado a terra da promessa, para refazer com Ele, o caminho do projeto e do querer de Deus, que é salvar a humanidade (Jesus é a tradução de Yehoshua (Y’eshua”) que é o mesmo nome de Josué). 2) O batismo era um símbolo de morte para o passado. Também para Jesus o batismo tem significado de morte. Não para o passado pecador, porque Jesus não o tem, mas em vista da sua entrega futura na cruz. Em seu batismo, Jesus quer testemunhar sua fidelidade ao querer do Pai, ainda que esta fidelidade seja colocada a prova pela morte. Marcos narra que Jesus desceu às águas, gesto alusivo à morte, mas, em seguida, saiu do Jordão. Esta ação alude, pois, à ressurreição. O mistério da vida de Jesus, todo o projeto do Reino que ele assume com fidelidade em relação ao Pai, não para na morte. É coroada com a ressurreição.
A cena seguinte, no v.10, é muito importante: “E logo, ao sair da água, viu o céu se abrindo, e o Espírito, como pomba, descer sobre ele”. A tradução correta não é “o céu se abriu”, mas “rasgou-se”. O evangelista antecipa aqui o que acontecerá com o véu do templo que separava o santuário do Santo dos santos, após a morte de Jesus: rasgou-se (Mc 15,38). Ora, aquilo que se abre, pode, naturalmente fechar-se. Mas aquilo que se rasga não pode mais se recompor. Na mentalidade do povo de Israel, Deus, em sua ira teria se ocultado nos céus. O que Marcos quer ensinar é que essa mentalidade está ultrapassada, pois a partir do momento em que Deus vê seu filho no Jordão, o desejo de manifestar quem Ele é realmente – amor incondicional – os céus não se abrem, mas se rasgam: a partir de Jesus e com Ele, a comunicação entre Deus e a humanidade será permanente e ininterrupta.
Marcos continua a narrativa dizendo que “o Espírito, como pomba, desceu sobre ele” (v.10b). O evangelista recorre a imagem da pomba. Ela tem a capacidade de criar afeição com seu ninho original. Mesmo o deixando, sempre retorna ao seu ninho, jamais abandonando-o. O evangelista quer ensinar para a sua comunidade que Jesus é a morada plena e definitiva do Espírito de Deus. Através de seu batismo, Jesus é investido pelo Espírito, toda a totalidade e plenitude da energia vital de amor da parte de Deus, tornando-se, assim, sua morada. Mas também na morte de Jesus, esta temática do Espírito retorna. Em Mc 15, Jesus, depois de um forte grito, entrega seu Espírito. Aquele Espírito que recebera em plenitude, no batismo, Jesus, em sua morte, O entrega a todos aqueles que aderiram ao seu modelo de vida.
“E do céu veio uma voz: 'Tu és o meu Filho
amado, em ti ponho meu bem-querer.” (v.11). Para coroar a teofania – a manifestação
divina – ocorrida no batismo, ouve-se a Voz. O termo “voz” (gr. φωνὴ) aparece
aqui e em Mc 15, novamente, na narrativa da paixão de Jesus. Lá, Ele solta um
grito, não de angustia, mas de confiança. Aqui, nesta cena, ouve-se a voz que proclama
a Jesus como Filho Amado (gr. υἱός μου ὁ ἀγαπητός), o filho predileto.
Predileto não porque foi dotado de privilégios da parte de Deus, mas precisamente
porque cumpre e realiza todo o querer do Pai através de sua fidelidade. Este
mesmo termo usado na narrativa, o catequista bíblico o usará quase que de modo
semelhante, ao colocar na boca do centurião romano a profissão de fé de que aquele
Jesus crucificado é, verdadeiramente, Filho de Deus. O bem-amado do Pai.
O batismo de Jesus é a sua investidura, pelo poder/dinamismo do Espírito, para realizar o querer e o projeto de amor e salvação queridos pelo Pai. O batismo que recebe todo o fiel cristão é a sua investidura para tomar parte da mesma missão de Jesus: realizar e revelar o projeto e o querer amoroso e gerador de vida de Deus, o Pai, na força do Espírito de Jesus. A todos os seus filhos e filhas ele dirige a mesma voz: Este é o meu filho/minha filha amado (a). Se cada um desejar colocar em prática a sua vida em relação ao projeto amoroso de Deus, cooperando com a missão de Jesus.
Pe. João Paulo Sillio.
Paróquia Sagrada Família / Arquidiocese de
Botucatu-SP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário