sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE SANTA MÃE DE DEUS - Lc 2,16-21:

 


Durante oito dias, desde a noite santa da solene vigília de natal, a Igreja permaneceu ao redor do menino e de seus pais no estábulo de Belém. Hoje, a liturgia celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica – relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Tudo o que se pode dizer acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que é e do que sempre foi dito acerca de seu filho.

Na solenidade do santo Natal, a Igreja faz a memória do mistério da Encarnação, ou seja, Deus que se fez carne, armando sua tenda entre nós (Jo 1,14). Com a solenidade de Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais a realidade deste mistério, colocando acento, agora, na humanidade do Filho.

A proclamação de Fé eclesial sobre a maternidade de Maria, que já era celebrada pela tradição orante da Igreja, possui seu contexto histórico. O bispo de Antioquia, Nestório (sec. III d.C) e seus companheiros acreditavam (de modo equivocado) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. O que, desde as primeiras profissões da fé Cristológica, a começar por Niceia (325 d.C) e culminando em Calcedônia (451 d.C), professaram o contrário. A Igreja professava já a unidade das naturezas na pessoa de Cristo. Mas somente em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou esta fé cristológica: em Jesus existe uma comunicação (de idiomas) tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo, e não só de sua humanidade. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeiro e plenamente Deus; verdadeiro e plenamente homem. Como dizia o grande Ambrósio, bispo de Milão, Maria foi primeiro mãe de Jesus no coração, para ir se tornando mãe de Deus na Carne. E isso, só foi possível mediante sua condição exemplar de discípula. É a segunda lição que o evangelho desta solenidade quer nos transmitir. Por isso, somos convidados a adentrar no seu horizonte.

A liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância. 

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico. No v.16, eles vão se certificar do evangelho que lhes fora dito pelo mensageiro celestial. O terceiro evangelho é caracterizado pelo tema da pobreza. A primeira palavra que sai da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré, é que seu projeto de vida contempla o anúncio aos pobres, e que o Espírito do Senhor estaria sobre ele, e o ungira para esta missão (Lc 4,18). Ora, entre as muitas faces do terceiro evangelho, está o aspecto da salvação para os pobres, os últimos, a inversão escatológica, onde os primeiros se tornam últimos, e os últimos se tornam os primeiros. Ora, o Evangelho de Lucas é o mais social dos escritos do NT. Lucas é plenamente o evangelista dos pobres; aqueles aos quais os anjos anunciam um evangelho de Alegria, se tornam anunciadores desta Boa Noticia.

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas. Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (hbr. shemá), que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. Por mais que a imagem da ruminação seja aplicada ao evangelho de João, podemos entender essa atitude de Maria de “guardar no coração”, como sendo uma ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma. É a postura do discípulo do Reino.

No esquema da obra lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu íntimo, ruminando-a, para, enfim, colocá-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é convidado e enxergar nela o modelo, a exemplaridade do discípulo de Jesus.

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula.

Quando proclamamos “Maria, mãe de Deus”, estamos dizendo, conforme o dogma, que ela é a mãe do Filho de Deus encarnado. Maria não se tornou uma deusa, nem entrou na Trindade. Por isso, devemos vê-la em relação às pessoas deste Deus Uno e Trino. Eis o terceiro ensinamento para solenidade de hoje.

Em relação ao Pai, Maria é uma filha predileta. Ela foi agraciada com ternura pelo Criador, que a moldou com especial carinho. Ao mesmo tempo, Maria concretiza, de forma humana, a eterna geração que o Pai realiza com o Filho, no seio da Trindade. Como toda mãe ou pai, ela é figura do amor criador de Deus-Pai. Em relação ao Filho, Maria é mãe, educadora e discípula. O seu relacionamento com Jesus supera os laços de família. Maria é mãe, mas sua missão vai mais além. Esteve junto de Jesus durante sua vida terrena e, agora, glorificada, continua junto do Filho ressuscitado, na comunhão dos Santos. No tocante ao Espírito Santo, Maria é uma pessoa plena Dele. Como perfeita discípula de Jesus, acolheu o Espírito e fez-se transparente a ele. Tornou-se um templo vivo de Deus e se transformou, por Graça, na mãe do Messias.

O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. A declaração de fé toca a vocação de cada discípulo e discípula do Reino, pertencente à comunidade eclesial, por serem, através do Batismo, Igreja. Maria é imagem da Igreja em sua dimensão glorificada. Por isso, a Igreja é mãe. E à luz da maternidade de Maria, ela gera, alimenta, dá vida e cuida dos filhos de Deus nascidos no Batismo, através da Fé que transmite, da Palavra de Deus e dos Sacramentos de Seu Filho Jesus. A Maternidade de Maria ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

REFLEXÃO PARA A NOITE SANTA DO NATAL - Lc 2,1-15:

 


A noite santa na qual a Igreja faz a memória atualizadora da completude do mistério da Encarnação, da primeira vinda do Senhor, é iluminada por esse riquíssimo texto evangélico de Lucas, Lc 2,1-15. O catequista, mais do que transmitir uma crônica de um acontecimento real, ele faz uma interpretação do acontecido à luz da fé Cristã – uma teologia da história.  

O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado (gr. Oikumênen) ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). O evangelista possui uma visão ecumênica, ou melhor, inclusiva (universal, se preferir) na transmissão de seu relato. Otaviano foi o primeiro imperador que outorgou a si o título de “Augustus”, isto é, “aquele que é digno de veneração; o poderoso; o divino”. O censo ordenado pelo imperador tinha, na verdade, a seguinte intenção: saber se a população havia aumentado para arrecadar mais impostos. Uma nota importante: sempre que os reis de Israel tomavam essa iniciativa, Deus os censurava através dos profetas, porque Ele era o único senhor do povo, e não o rei. Nesse sentido, o rei acabava usurpando o lugar de Deus na vida do povo. Do mesmo modo, a atitude do imperador anotada por Lucas indica a sua pretensão de ser senhor de tudo e estar acima de tudo. Esta visão o autor quer logo corrigir: se Cesar Otaviano “Augusto” quer elevar-se, Deus em seu mistério de amor subverte esta logica e se põe no mesmo nível da humanidade. Ele faz o movimento inverso, descendo até a humanidade marcada pela injustiça, pela dominação, pela morte. Diferentemente do imperador, que toma a vida e é sinal das estruturas de morte, Deus comunica um Evangelho de vida. É o que o evangelista tratará de transmitir no decorrer da narrativa.

Lucas nos informa os versículos seguinte (v.4-6) alguns dados importantes: José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, desposada com ele. Talvez essa palavra “desposada” já não cabe mais, pois no primeiro capitulo, Maria estava prometida em casamento a José, então casada com ele. Muito se conjectura sobre essa situação do casal, pois o casamento hebraico se dava em duas etapas: o desposamento, e a noite de núpcias. Nesse sentido, se o casal ainda estivesse na condição de desposados, então, não seriam um casal em situação regular diante da Lei de Israel. Outra contextualização importante, para não cairmos em narrativas ou interpretações romantizadas acerca do fato: José e Maria já se encontravam na cidade de Davi, ao contrário do que muito se pensa, que ao chegar em Belém, a mãe teria dado à luz. Isso é impossível pois uma viagem de Nazaré à Belém era feita a pé, algo impensável para uma mulher no último mês de gestação. Na cidade de Belém ela dá à luz ao filho primogênito. Interessante, segundo a tradição Judaica, a cidade de Davi era Jerusalém, pois foi ali que ele, enquanto rei fixou sua residência. Lucas não concorda. Ele estabelece Belém como a cidade de Davi, porque ela remete ao seu passado de simples pastor. Uma vez mais o catequista pretende transmitir uma mensagem, que é a de mostrar para seus leitores e para a geração seguinte, “o que virá a ser o menino que nasce em Belém”, isto é, qual o sentido que sua vida e missão tomarão, quais serão os destinatários de sua ação salvadora. O v. 6 nos informa que Maria dá à luz ao seu primogênito (hbr. Ya’hid/meu único), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os direitos jurídicos, e aquele que, na tradição religiosa judaica, deveria ser consagrado ao Senhor.

No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas recorre ao Livro da Sabedoria: “Envolto em faixas fui criado no meio de assíduos cuidados; "porque nenhum rei teve outro início na existência; "para todos a entrada na vida é a mesma e a partida semelhante” (Sb 7,4-6). O evangelista pretende assinalar a humanidade de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade.

O menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para eles na sala da hospedaria. Imaginemos o contexto social da época. As hospedarias eram espécies de grutas escavadas nas rochas. Dentro delas havia galerias onde era possível arrumar um cantinho para ficar, enquanto que os animais ficavam próximos às manjedouras (nos cochos), na estrebaria. Mas nem um lugar nessas galerias havia para a família de Nazaré. Então, muito provavelmente, tenham ficado numa estrebaria, ou numa gruta destinada aos pastores da região, como o resto da narrativa sugere. Lucas que mostrar que Jesus está entre os excluídos. O autor resgata, para isso, a profecia de Isaias: “O boi reconhece o seu dono; o burro o estabulo (cocho) do seu dono. Mas Israel não reconhece; meu povo não compreende” (cf. Is 1,3). Jesus está entre os não acolhidos da história. Um tema que aparecerá, novamente no Prólogo do Quarto Evangelho: “Ele veio para os seus, mas os seus não o acolheram” (Jo 1,11). Ora, se faz necessário recordar que quando a mulher paria, segundo a Lei de Israel, ela ficava impura (por conta do contato com o sangue que saia dela) e, por isso, deveria ser afastada do convívio social até o momento de sua purificação no templo, quarenta dias depois. Nesse sentido, se pode entender o motivo do casal não encontrar lugar na hospedaria e serem realocados para o lugar dos animais, e, portanto, da impureza. No recém-nascido de Belém, Deus faz seu repouso entre os impuros. E será para estes que dirigirá sua mensagem de Salvação.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Segundo o Talmud, nenhuma condição social poderia ser mais desprezada que a dessas pessoas. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, viviam muitas vezes de pequenos furtos para sobreviverem, pagãos e, por isso, não estavam habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições da pureza farisaica; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente! Eles tornam-se símbolos para todos aqueles que se encontram na exclusão.

Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. O “anjo do Senhor” aparece pela terceira vez neste bloco literário do evangelho da infância de Jesus: a primeira, no templo, comunicando a vida João à Zacarias; depois, o mesmo mensageiro, comunica a vida de Jesus à Maria. Agora, o anjo do Senhor (que, de acordo com a tradição judaica vem sempre com a espada nas mãos para exercer a justiça e castigar os pecadores e maus) aparece aos pastores – símbolos dos pecadores. Não para julgar e castigar, mas para comunicar um evangelho de vida. Lucas quer ensinar para sua comunidade que o projeto de Deus que se inaugura em Jesus envolve a todos; não exclui a ninguém; não condena os pecadores, mas os abraça. Os envolve. Por isso, o evangelista declara que a Glória (hbr. Kabod) do Senhor os envolveu. A Glória não é o brilho, o esplendor. Mas a presença real de Deus. A Presença (A Glória) de Deus (o Senhor) abraçou (envolveu) a todos, sem distinção. 

Isso é muito interessante: o anjo lhes exorta, primeiramente, a não ter medo, porque o temor para com Deus não deve ser uma barreira. Em segundo lugar, lhes dá um motivo: um evangelho de alegria para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor! A palavra Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Mas, ao mesmo tempo, era o título empregado ao imperador romano. Lucas quer assinalar que não é este o salvador. A salvação repousa no menino de Belém. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor do senhorio e da vontade de Deus. Tudo isso acontece na Cidade de Davi.

O mensageiro celestial (Deus mesmo) lhes dá um sinal para encontrar o menino: deitado numa manjedoura, envolto em faixas! É encontrar, portanto, a criança colocada no lugar da exclusão! O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso. Não poderá ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Nem no esplendor do templo de Jerusalém. Tampouco entre os poderosos. Mas colocado em meio a paus trançados – a manjedoura. Porque não havia lugar para eles (Lc 2,7). Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feitas Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos optando e empoderando-os.

Na manjedoura de paus trançados, prefigura-se o mistério da Cruz. Porque ela torna-se, na verdade, o questionamento decisivo que o Deus de Jesus faz a cada pessoa, de todos os tempos e lugares: se desejais ver e buscar um Deus forte, potente, esplendoroso, glorioso, deveis procurar outro; este “não sou eu”. Na cidade de Belém já se vislumbra o que virá ser esse menino. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. Pão repartido, moído, despedaçado na Cruz. O sinal do menino envolto em faixas é sinal da inversão escatológica: Deus que inverte a lógica dos poderosos em favor dos pequenos.

Na narrativa, imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), aparece uma multidão da corte celeste para proclamar que a Glória (presença) de Deus, desde o mais alto dos Céus, agora se faz presente na terra, na história humana para inaugurar o Shalom, a paz. Lucas faz memória também do Sl 84. A realização plena (plenitude) – Shalom da vida e do querer de Deus, comunicada e destinada a todos! Não somente aos de boa-vontade (tradução equivocada do texto, que dá a entender que só pode ser salvo quem tem a boa-vontade de fazer a vontade de Deus). Mas uma salvação que atinge e abraça a todos.

Que a festa do Natal do Senhor possa abrir as portas de nossos corações para a hospitalidade para com o irmão e a irmã que não encontram lugar em nosso meio.  Se quisermos ver o menino, deveremos lançar o olhar para a estrebaria e para a manjedoura. Ele está ali, com os últimos e excluídos.

Possamos nós estarmos entre os pastores que recebem este evangelho: Deus põe seu Agrado em nós, através de Jesus, seu Filho. Possamos estar onde o menino está; no lugar da opção feita por Deus. Eis o Mistério desta noite Santa.

Bom Natal!

 Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 25 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXVI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 9,38-48:


O evangelho deste vigésimo sexto domingo do tempo comum, continua a leitura do capítulo nono do evangelho segundo Marcos. O contexto é o mesmo do domingo anterior: Jesus ensinando os discípulos no caminho para Jerusalém. Nesta altura da catequese do evangelista, Jesus já havia feito dos anúncios a respeito de sua paixão. Mas, mesmo assim, os discípulos ainda tinham dificuldades em aceitar o caminho do mestre. Nutriam em si as ideias de grandeza, poder e exclusividades. É a essas coisas que Jesus, na narrativa de hoje procura corrigir em seus discípulos – e Marcos, à sua comunidade.

 Se tivéssemos que perguntar ao texto de Marcos, qual é a intenção de Jesus através do ensinamento contido na narrativa a seguir, poderíamos chegar a uma possível intuição: o Cristo, no tempo de sua pregação aos discípulos, e Marcos, no tempo de sua comunidade pretendem ensinar aos seus, como ser discípulo do Reino e, como não sê-lo. Em outras palavras, quem é discípulo do Reino, e por isso, se coloca no seguimento ao projeto de vida de Jesus, e quem se torna obstáculo – escândalo – para este projeto, mesmo dentro da comunidade dos discípulos.

 Devemos lembrar que, no horizonte da catequese de Marcos, o leitor-discípulo se encontra na segunda parte, a qual se encarrega de narrar o itinerário dos discípulos com Jesus até à cruz. O texto de hoje, não deixa de ser uma exortação à comunidade acerca do seu modo de ser e de agir. Mas uma situação  provoca a catequese de Jesus ao grupo dos discípulos. Vamos ao texto.

 João disse a Jesus: Mestre, vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos, porque ele não nos segue” (v.38). João, filho de Zebedeu, age de modo exagerado, censurando alguém que expulsava demônios no Nome de Jesus. Este, depois de comunicar o mestre de sua atitude é repreendido. Jesus censura-lhe a incoerência. A principal incoerência dos discípulos é o exclusivismo e o fechamento, bem como a tendência ao fanatismo, como que “só nós somos os certos e podemos; ou temos poder”.  Jesus responde: “Não o proibais, pois ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem não é contra nós é a nosso favor” (v.39-40). A mensagem do mestre à João é a seguinte: na comunidade cristã não há espaço para fanáticos.

A atividade de “expulsar demônios” nos evangelhos, e principalmente em Marcos, significa a promoção da liberdade e da dignidade das pessoas. É abrir as portas do Reino de Deus, tornando-o acessível a todas as pessoas. É a difusão da boa nova que transforma vidas, rompendo com as estruturas de morte e opressão vigentes em qualquer sistema. Uma atividade assim, de promoção plena do bem das pessoas não pode ser estranha ao programa e à mensagem de Jesus, independente do grupo ou movimento a qual se pertença. Quem faz o bem ao próximo, está em sintonia com Deus.

Ora, se expulsar demônios no Nome de Jesus, ou seja, fazer e promover o bem, a libertação e a adesão ao Reino de Deus na vida das pessoas é obra de quem está em comunhão com Jesus, e que aceitou seu projeto de amor e de serviço aos irmãos, até às últimas consequências, dar um copo de água adquire a mesma força e tem a mesma importância. É o que pretende ensinar Jesus através do dito contido no v.41. Este gesto era, para a mentalidade semita, uma das maiores demonstrações de hospitalidade e acolhida. A recompensa, aqui, significa a pertença a Jesus e sua comunidade. O ensinamento que ressoa através deste versículo é o seguinte: eles não devem esperar muita coisa, nem grandes adesões; basta um simples gesto de reconhecimento da pertença a Cristo, para que os destinatários sejam recompensados, ou seja, entrem em comunhão com sua vida.

No entanto, quem pretende seguir o caminho oposto, o do exclusivismo, do fechamento e do fanatismo; bem como da grandeza e do poder acaba se tornando ocasião de escândalo. A palavra escândalo vem do grego σκανδαλίζω / eskhandalos, que significa pedra (lit. pedra de tropeço). No ensinamento de Jesus quem age desta forma se torna oposição para o projeto de Deus, e põe obstáculos aos pequeninos impedindo que eles se acheguem à Deus. Os pequeninos são símbolos para os excluídos, os marginalizados, os pobres, os pecadores que estão aderindo à mensagem de Jesus. Escandalizar, aqui, é criar obstáculo ou impedimento à fé e à vida digna. O maior exemplo de escândalo numa comunidade são o espírito de fechamento, exclusivismo, fanatismo, a grandeza e busca pelo poder.

Qual a sentença de Jesus: “ser lançado ao mar com uma pedra de moinho”. Primeiramente, uma pedra de moinho pesava uma tonelada. Em segundo lugar, o mar representava toda a impossibilidade de salvação, pois simbolizava a força antagônica à Deus; significava ainda a impossibilidade de salvação do corpo da pessoa, devido a dificuldade de ser encontrada, não podendo receber uma sepultura digna e, consequentemente, não tendo direito à ressurreição dos mortos do último dia, conforme acreditavam os judeus. Por isso, a nível de curiosidade, a morte por afogamento era muito temida no tempo de Jesus pelos judeus. Com esse dito do v.42, Jesus quer chamar a atenção dos discípulos para o perigo da autocondenação, quando este se torna ocasião de escândalo (obstáculo).

Em seguida, Jesus orienta que se as mãos, os pés e os olhos são ocasiões – favorecem – ao pecado, devem ser cortados e jogados na ghena, no fogo que não se apaga. Muito cuidado com a interpretação deste dito, pois ele não pode ser entendido literalmente Jesus, através destes conselhos orienta que seja cortado o mal pela raiz: aquilo que leva mãos, pés e olhos a serem ocasião de escândalos deve ser “cortado” (tirado fora) da vida do discípulo. A mão, o pé e o olho (cf. vv. 43-47) eram, de fato, os membros do corpo responsáveis pelo bom ou mau comportamento das pessoas, segundo a mentalidade semita.

As mãos, representam todo o agir da pessoa, e a geração e transmissão de vida e de bênçãos. Os pés representam a conduta (símbolo do caminhar), podendo levar a pessoa por caminhos justos e injustos; é melhor não ter pé do que andar por caminhos errados. O olho, como “lâmpada do corpo” (cf. Mt 6,22) é a porta de entrada dos sentimentos e desejos alimentados no coração da pessoa; tudo o que é pensado e discernido no coração, sentimentos bons e maus, passa pelo olho.

Que o evangelho de hoje ilumine nosso discipulado e nos ajude a podar tudo o que leva-nos a ser sinal de escândalo no seguimento a Jesus.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 18 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 9,30-37:


 

O Evangelho deste vigésimo quinto domingo do tempo comum apresenta o segundo anuncio da paixão feito por Jesus aos seus discípulos. Em continuidade temática ao evangelho da semana passada, onde Jesus, após a confissão de fé da comunidade dos Doze, fizera sua catequese aos discípulos sobre o seu modo de ser e agir como messias, Marcos nos narra mais um ensinamento do mestre sobre o seu messianismo.

O texto de que meditaremos situa-se após o episódio da transfiguração (cf. Mc 9,2-13) e a expulsão de um espírito impuro de um jovem epilético (cf. Mc 9,14-29), podendo ser dividido em duas partes, onde a primeira situa-se no caminho de Jesus e dos discípulos pela Galileia (vv.30-32). Enquanto que a segunda parte se desenvolve ao interno de uma casa (vv. 33-37). Dois ambientes importantes para a pedagogia do evangelista, pois o caminho alude à condição da própria comunidade cristã dos primeiros séculos, em especial a de Marcos, que se encontrava sem lugar físico e seguro para reunir-se em face à ruptura, perseguição e expulsão dos judeus-cristãos das sinagogas judaicas.  Caminho tem a ver com instabilidade, com perigo, mas também com a dinâmica missionária da comunidade cristã: uma comunidade em caminho e em saída. E a casa, por outro lado, representa a necessidade da acolhida, das relações fraternas que devem permear a vida da comunidade cristã: um lugar de compreensão, acolhida e vivência do amor fraterno. Vamos ao texto.

Dos v.30-31, o evangelista nos informa que Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia, só que em segredo. Jesus pretendia ensinar seus discípulos a sós. Ele havia percebido, no episódio da confissão de fé em Cesareia, que a mentalidade dos discípulos sobre ele e seu messianismo estavam equivocadas. Por isso, decide-se por levar os doze a parte para ensiná-los. Era necessários estar a sós com eles para intensificar a catequese.

Mas o que os discípulos não compreendiam? Justamente o fato de Jesus viver sua missão (seu messianismo) na ótica da paixão e do sofrimento. Isso não entrava na cabeça dos que desejavam e esperavam um messias de acordo com as ideologias nacionalistas da época: um político ou estadista que viria restaurar o trono e o ideal davídico. Eles não aceitavam o fato de um messias servo, que devesse sofrer até às últimas consequências. O serviço é uma lógica difícil de se assimilar para quem só tem em mente o poder e a dominação.

Qual o conteúdo deste ensinamento de Jesus? Ele mesmo responde, dizendo que “O Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão. Mas, três dias após sua morte, ele ressuscitará” (v. 31bc). Esse é o segundo anúncio da paixão. Enquanto os discípulos, conforme a ideologia nacionalista, esperavam que o messias matasse, declarando guerra ao poder romano para recuperar o ideal davídico, Jesus afirma o contrário: é ele quem vai morrer. Mas os discípulos não compreendem, nem ao menos ousam interroga-lo. Silenciam, apenas (v.32). É o sinal de quem tem medo de confrontar-se com a realidade e prefere, ainda, refugiar-se em seus próprios esquemas, convicções ou modo de vida desconectados da realidade do seguimento ao Mestre.

O v.33 informa que Jesus e os discípulos chegam em Cafarnaum. Importante essa localização. Foi alí que tudo começara: o seguimento, a relação pessoal com Jesus, a partilha de sua vida. É necessário voltar às origens; recomeçar, ressignificar. Ora, com o caminho da paixão já anunciado por Jesus, se torna cada vez mais necessário reavivar nos discípulos as motivações para o seguimento com bastante clareza.

Jesus, então, toma a iniciativa, mesmo conhecendo-os profundamente, como o Marcos nos informa através de uma focalização interna das personagens, e os questiona acerca da conversa que vinham, ao pé do ouvido, tendo durante o caminho. Marcos ainda informa que “eles ficaram calados, pois pelo caminho tinham discutido quem era o maior” (v. 34). Com isso, o evangelista revela que os discípulos estavam em total oposição ao projeto do mestre. De fato, discutir quem é o maior, significa negar completamente o projeto de Reino de Deus como fraternidade e igualdade. Essa discussão revela ambição e alimenta rivalidade, elementos impensáveis para uma comunidade que deve viver o princípio da igualdade e do amor.

Jesus sentou-se, informa-nos Marcos. Com esse gesto ele retoma para si a imagem do Mestres que ensina seus discípulos. Ele é o único mestre e, por isso, o único maior naquele grupo. Outra atitude questionadora de Jesus: Ele chama para perto de si os doze. Através deste gesto, convida-os a retomar a condição de discípulos e a voltar aos primeiros ventos do chamado e da vocação originária, que haviam perdido devido à lógica da grandeza e da ambição que tinham alimentado. Ora, para aprender é necessário, acima de tudo, proximidade e identificação com o Mestre e com o que ele ensina.

Seu ensinamento é manifestado com clareza: “Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!” (v. 35). Os discípulos pensam em poder e grandeza, mas Jesus lhes mostra e oferece outro caminho. Só há uma forma de ser o primeiro na comunidade: tornando-se servidor de todos. Significa “renunciar a si mesmo”, como ele já tinha dito anteriormente (cf. Mc 8,34). O discipulado não é um caminho para o sucesso, mas para o serviço. 

O ensinamento de Jesus comporta também uma gestualidade profética e provocadora. O v. 36 mostra-o chamando uma criança e colocando-a entre eles. Devemos lembrar que a criança, tanto na mentalidade semítica do povo de Jesus, como na mentalidade grega era um ser desprezado por sua condição “inacabada”, ou seja, ela ainda não era gente no sentido de pertencer ao povo. Talvez Jesus não queira tanto propor em exemplo a simplicidade da criança (como em Mc 10,13-15 e Mt 18,3), mas antes mostrar que na aparente insignificância da pessoa humilde, porém integrada na obra do Reino em nome de Jesus, se torna presente a vontade do próprio Pai. Ora, a criança também é símbolo dos pequenos, excluídos e marginalizados.

O evangelho deste domingo pretende ensinar para os leitores-discípulos três coisas: 1) a verdade sobre o mestre Jesus e seu messianismo, que não é centrado no poder e na grandeza, mas no fazer-se último e servidor de todos, até às últimas consequências, na doação de sua própria vida, quer acolhendo os pequenos, quer dando de si mesmo na fidelidade ao projeto do Reino de seu Pai; 2) pretende iluminar a conduta do discípulo de Jesus, a de ser o último e servidor de todos; 3) quer orientar a vida e o proceder da comunidade dos discípulos, a Igreja:  ela deve acolher as pessoas consideradas pequenas, humildes, pobres, mulheres crianças e todas as categorias desprezadas pela sociedade, pois elas são destinatárias e protagonistas do Reino. A comunidade e o discípulo só serão, de fato, cristãs se, ao invés de excluir, acolher e reinserir os crucificados e crucificadas de hoje e de sempre.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 11 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 8,27-35:


 

O texto bíblico proposto para o vigésimo quarto domingo do Tempo Comum situa-se ao interno do capítulo oitavo do Evangelho segundo Marcos. Este capítulo é importante, pois ele delimita a transição para a segunda parte da catequese evangélica. Dos capítulos de 1 – 8, o evangelista propôs para a sua comunidade uma catequese sobre a pessoa de Jesus, fomentando no leitor-discípulo a pergunta “Quem é Jesus de Nazaré?” As respostas foram sendo dadas a partir da prática, do modo de vida, e, também, através dos gestos de poder que realizava. Todavia, quanto mais ele agia, mais dúvidas suscitava nas pessoas que o seguiam. Para que sua missão não fosse compreendida de modo errado, ordenava que não contassem nada a ninguém acerca de sua identidade após os gestos de poder que realizava.

Agora, do capítulo oitavo em diante (precisamente de Mc 9 – 16), começa um novo ciclo da atuação de Jesus que terá seu desenlace em Jerusalém, no alto do calvário. Nesta segunda parte do evangelho de Marcos, a pergunta se direciona àqueles que se propõem a segui-lo, a saber, os discípulos. O catequista bíblico quer saber se a sua comunidade está pronta para se dizer diante do mestre. Assim, perguntar-se sobre a identidade de Jesus resulta, em última análise, perguntar sobre a identidade do discípulo de Jesus, e se aquele está pronto para, de fato, acompanhá-lo até o alto da Cruz, comprometendo-se realmente com Ele.

O texto começa situando o diálogo catequético de Jesus com os discípulos. Eles estão no território de Cesaréia de Filipe. Lugar situado na fronteira entre Judeus e Gentios (pagãos). Ao mesmo tempo, a cidade funciona como um reduto dos partidários de Herodes, que viviam amistosamente com os poderes romanos. Esta localização geográfica ajuda a fomentar naqueles que ali vivem ideiais messiânicos e nacionalistas. É neste contexto que Jesus, em caminho, inaugura o ensinamento, a seguir.

Interessante notar que o evangelista informa o leitor que Jesus e seus discípulos estão em caminho. Estão em movimento, e não acomodados. O catequista faz questão de evidenciar o aspecto itinerante e a falta de comodidade no discipulado. Por isso, “o caminho” com os inerentes perigos é lugar de catequese e anúncio. Então, Jesus interroga a seus discípulos sobre a compreensão que o povo, a gente simples, tinha a seu respeito (v.27). Ele não está interessado em autopropaganda, tampouco preocupado com o que dizem a seu respeito. Ele apenas quer saber como o povo está compreendendo a sua missão. A sua preocupação não é a do inseguro: “será que gostam de mim?”, ou “estou agradando?”. Ele não está atrás de fama, na mesma medida que não quer se mal compreendido em sua missão.

Os discípulos reproduzem a mentalidade da multidão, dizendo que na cabeça deles, Jesus era compreendido com alguém dentre os profetas. Ainda que os profetas e suas mensagens sejam importantes para a vida do povo, Jesus trata de superá-los. Então, Ele questiona pessoalmente os discípulos: “E para vocês, quem sou eu?”. Pedro (v.29), em nome da comunidade dos Doze responde, confessando: “Tu és o messias”. Resposta acertada. Contudo, ordena-lhes não contar nada a respeito disso. Mais uma vez pede segredo.

Pedro, ao responder (e ao mesmo tempo confessar as expectativas do grupo), está amarrado ao ideal davídico de Messias: o descente de Davi, que viria para restaurar a realeza, bem como recuperar Israel, na base da espada. O ideal messiânico que perpassa a mentalidade dos judeus naquela época era o do messias, guerreiro, líder político e com armas nas mãos. Jesus não quis ser identificado assim. Ele sempre se esquivou dessa ideologia davídica. Por isso pediu, uma vez mais, que os doze guardassem segredo sobre sua verdadeira identidade: a de Ungido de Deus, e, portanto, Messias (gr. Kristós). Pedro responde bem, mais ainda ele está no nível da convicção e de um certo sentimento de fé, e não da fé em profundidade. Ou seja, da fé como aquela adesão, decisão e relação pessoal do discípulo com o mestre, a ponto de conformar sua vida à vida de seu mestre. É claro que o pescador de Betsaida confessa a fé da Comunidade Cristã, mas esta é uma compreensão e uma certeza posterior à ressurreição, porque naquele momento preciso eles não estavam em condições de compreender, de fato, quem era Jesus para eles.

Ciente de que eles precisavam purificar a mentalidade, ainda que tivessem respondido bem, Jesus não lhes fala a partir da categoria ou do título messias, mas lhes ensina sobre a sua missão enquanto “Filho do Homem”. É como se Jesus dissesse: Não pensem num messias que vai acabar com esse conluio de herodianos e romanos! Nem me chamem de messias! Eu vou lhes falar a respeito do Filho do Homem! Termo que pode significar tanto a simples humanidade, quanto a missão divina do protagonista do Reino de Deus (Dn 7,13-14). O Filho do Homem do qual fala Jesus deverá sofrer muito, ser desprezado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, no terceiro dia (cf. Os 6,2), ser ressuscitado por Deus.

Jesus se apresenta, então, aos doze como aquele Filho do Homem, o encarregado de Deus para inaugurar seu agir, seu querer e seu tempo na história. Mas de que modo ele fara isso? Tornando-se um servo padecente. Esse é o primeiro dos três anúncios da paixão presentes no evangelho: “sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da lei; ser morto, e ressuscitar depois de três dias” (v. 31). Ao invés de matar, o Messias Jesus é quem padece e, por consequência, essa deveria ser também a sorte dos seus discípulos.

A reação de Pedro, homem de honra, diante deste anuncio de desonra de seu mestre revela-nos bem que a sua confissão precisava ainda mais de uma purificação. Ele toma Jesus a parte e começa a censurá-lo. Fechado nas ideias de um messias nacionalista, não aceita um messias sofredor. Ele nega, assim, a sua condição de discípulo. E é, por isso, chamado a colocar-se em seu lugar por Jesus.

O v.33 apresenta uma fala severa de Jesus. Ela precisa ser bem compreendida. A tradução correta é “Venha para trás de mim, Satanás”, e não “afasta-te (ou vai para longe) de mim”. “ὀπίσω / Opísso”, é o verbo grego utilizado por Marcos, que significa “ir para atrás” é sinônimo de seguir (gr. akholutein). Como “ir atrás” é terminologia de seguimento e discipulado (cf. v. 34), Jesus ordena Simão comportar-se como discípulo e não como sabichão que quer saber melhor do que o mestre. O termo Satanás significa tentador, opositor e divisor. Jesus censura Pedro porque não pensa segundo pensa Deus, mas segundo pensam os homens (v. 27). Ele não precisa mostrar o caminho a Jesus, mas segui-lo no caminho, como explicará nas palavras a seguir.

Pedro e seus companheiros querem se desvencilhar da cruz. Jesus, ao contrário, afirma que a cruz é condição para o seguimento (v. 34). Ele repreende Pedro, mas não o expulsa do grupo. Apenas subverte sua lógica. Com isso, o evangelista ensina que a última palavra na comunidade deve ser sempre a de Jesus. O discípulo nunca deve tomar o lugar do mestre.

Acontece que Marcos não quer apenas falar do caminho de Jesus, mas também do de seus discípulos, os da primeira hora e os de sempre. Para tirar dos discípulos toda presunção de serem eles os protagonistas de uma revolução messiânica, mistura-os novamente à multidão. Então ensina, a todos: Se alguém quer vir atrás de mim (ser meu companheiro de caminhada), deve negar-se a si mesmo (como também a seus planos) e tomar sua cruz e seguir-me. Pois o que quiser salvar sua vida (literalmente “sua alma”), a perderá; mas o que perder (arriscar) sua vida por causa de mim e do Evangelho, a salvará! Com esse dito, Jesus ensina que é preciso engajar tudo o que somos para realizar (salvar) a vocação que, nele, nossa vida recebe.

Diante do texto bíblico, que acaba por ser nosso o espelho através do qual confrontamos a nossa vida, se fazem necessárias algumas provocações. 1) Quem sou eu nesta Narrativa, em que grupo estou (o das multidões, que ainda não deram um passo significativo em relação à Jesus; o dos discípulos, que tem uma ortodoxa visão a respeito da identidade de Jesus, mas que ainda não colocou sua ortodoxia em relação à ortopraxia (a relação pessoal com Jesus e o serviço aos irmãos, até o fim, assim como Ele fez); ou nos identificamos com Satanás (não uma entidade maligna que invade alguém), mas como opositores do projeto de Deus)? 2) Tenho agido de acordo com a mentalidade o opositor, tentador e divisor na vida da minha comunidade, tendo sempre a pretensão de, ao seu interno, ter a última palavra, correndo o risco de conformar Deus aos propósitos e projetos pessoais? 3) Ou tenho deixado Deus ser Deus, e conformado minha vida e discipulado ao seu projeto, no seguimento de seu Filho Jesus?

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 4 de setembro de 2021

REFLEXÃO PARA O XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 7,31-37:


Desde o domingo passado, a liturgia inseriu-nos na leitura do capítulo sétimo da catequese marcana. A narrativa meditada neste final de semana encontra-se na conclusão deste capítulo. O evangelista apresenta Jesus curando um surdo-mudo, depois de ter curado a filha de uma mulher sírio-fenícia. Com essas informações, já podemos compreender um pouco da localização geográfica de Jesus: em território pagão. Eis o texto para o vigésimo terceiro domingo do tempo comum, Mc 7,31-37.

Devemos recordar a estrutura do evangelho de Marcos, de modo a perceber a sua finalidade. Esta é a seção (da formação) da fé dos discípulos, enquadrada entre os capítulos 6,30 – 8,21. O tema da cegueira por parte dos discípulos perpassa todo este bloco narrativo, ela os impede de serem formados na Fé. Outra constatação importante é a delimitação geográfica ilustrada por Marcos. Ele nos mostra Jesus ultrapassando as fronteiras geográficas entre a Galileia e a região siro-fenícia da Decápole. Neste “cruzar as fronteiras”, o evangelista faz ver que Jesus supera as questões de pureza ritual e alimentar que separam judeus e gentios (cf. Gl 2,11-16 etc.), bem como em relação aos tradicionalismos inerentes aos preceitos da lei de Moisés, as quais eram derivações e interpretações humanas da Torah (Decálogo).

A intenção de Jesus consiste em mostrar que o Evangelho que ele anuncia não é como a lei mosaica, restritiva e exclusivista, destinada somente a um povo. Antes, é um anúncio universal, que rompe com as fronteiras e que chama a comunidade dos discípulos a acolher os que antes encontravam-se excluídos do projeto de Salvação universal, sonhado por Deus. Outra característica desta seção consiste em mostrar como deve ser o discípulo do Reino, e sobre quais fundamentos deverá estar alicerçado. Como estas intenções ficam claras no evangelho da semana passada? Quando Jesus supera e aboli para sua comunidade todas as práticas de purificação e pureza ritual, as quais separavam os judeus dos gentios. A comunidade dos discípulos do Reino deve estar aberta e disponível para todos, e alicerçada na escuta da Palavra, para, então, anuncia-la. É o que está em Jogo na narrativa evangélica de hoje. O surdo-mudo é símbolo da comunidade que precisa abrir-se à Escuta da Palavra, rompendo sua surdez, para poder anuncia-la, superando sua mudez! Depois de ter compreendido o contexto do texto, bem como o pretexto do evangelista, que não é outro que o do próprio Jesus, podemos, pois, ir ao texto bíblico.

Marcos informa-nos que Jesus saiu da região de Tiro, passando por Sidônia, rumo a região da Decápole, contornando o mar da Galileia (v.31). Um caminho inusitado, pois seria o mesmo se alguém, saindo do Rio de Janeiro para São Paulo passasse obrigatoriamente por Belo Horizonte. Não devemos nos preocupar com a veracidade da informação, porque os Evangelhos não são crônicas nem noticias de jornal, mas Teologia. Ora, Tiro, Sidônia e as dez cidades da Decápole eram terras pagãs. Com isso, o evangelista diz que, ao contrário da lei, o evangelho não é destinado apenas a Israel, mas ao mundo inteiro. Nenhuma barreira cultural ou religiosa pode impedir a difusão do evangelho, a boa notícia que, de fato, comunica vida. Na verdade, a intenção de Marcos é realmente mostrar a abertura da missão e do anúncio de Jesus aos pagãos, e de mostrar à comunidade que esse deve ser o modo de agir dela: disposta e aberta no acolhimento a todos, sem distinção, sem fronteiras e sem cálculos!

Nesse percurso trazem à Jesus um homem surdo-mudo, e pediram que ele lhe impusesse as mãos (v.32). Surdos e mudos simbolizam, na teologia dos profetas, o povo oprimido, mas, conforme acenamos acima, alude à própria comunidade cristã: fechada para ouvir a boa nova, essa se torna também incapaz de anunciar, ou seja, de falar do amor proposto por Jesus. Ela precisa ser ajudada, assim como foi o personagem surdo-mudo. A surdez era considerada uma maldição, conforme a mentalidade judaica, pois a pessoa ficava impedia e ouvir a proclamação e a explicação da Torá, a instrução divina.

Nos deteremos, agora, na atitude de Jesus e nos gestos realizados por Ele, que revelam, na verdade, a sua pedagogia. Antes, é importante notar que Ele retirou o enfermo do meio da multidão para junto de si, e o levou para um lugar afastado. É significativo este movimento de “saída do meio da multidão”, pois ela sempre teve nos evangelhos, um papel ambíguo e negativo: permeada pela indecisão, indiferença às palavras e ensinamentos de Jesus, falta de compromisso e superficialidade. Afastar-se da multidão é, também, o primeiro passo para se tornar discípulo e discípula. Mas a atitude de Jesus também revela muito da consciência que Ele tem em relação à sua missão. Não quer que os gestos de poder que realiza sejam tidos como espetáculos; que a fé se baseie numa histeria espetacular. Antes, Ele quer ensinar que a Fé é, acima de tudo, uma relação pessoal com Ele. Afastar-se não significa puritanismo nem exclusão, mas a profundidade da relação estabelecida por Jesus.

Os gestos realizados por Jesus são carregados de simbolismos. Eles significam o cuidado ímpar que Jesus dispensa a cada necessitado. Ao tocar, ele deixa sua marca no outro, transmite a sua essência. Tocando nos ouvidos, ele doou o dom da escuta ao Evangelho. Do dom da escuta, nasce o anúncio; é esse o sentido do tocar na língua com a saliva. Para a mentalidade semita, a saliva continha o espírito da pessoa. Com esse gesto, que, aos nossos olhos parece anti-higiênico, o evangelista quer ensinar que Jesus transmitiu seu espírito vivificador àquele homem, tornando-o apto também para o anúncio.

O gesto-verbal, a seguir, é de uma beleza muito profunda: “olhando para o céu, suspirou e disse: “Efatá!”, que quer dizer: “Abre-te!” (v. 34). O gesto de Jesus olhar para o céu é raro ao longo dos evangelhos. Esse gesto significa a oração e a comunhão de vida que ele tem com seu Pai. É, ao mesmo tempo, o reconhecimento dos limites das forças humanas e a confiança no divino. O imperativo “abri-te” (em aramaico: efatá) é uma ordem dada à pessoa na sua inteireza, e não apenas aos órgãos da audição e da fala. É o que o verbo grego usado pelo evangelista (gr. διανοίγω/dianóigo) quer enfatizar: abrir completamente, escancarar. Assim deve ser o ser humano diante do Evangelho, para que ele possa ser um elemento transformador na vida das pessoas.   

Marcos nos informa a respeito do enfermo que “imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade” (v. 35). Ora, dado o encontro que este homem teve com Jesus, sua mudança foi radical; é o que a Palavra de Jesus é capaz de realizar no ser humano. O evangelista insiste, com isso, na urgência com que a comunidade cristã e o discípulo devem estar atentos ao Evangelho. É preciso ter ouvidos abertos e atentos para ouvir, e a língua livre para anunciar; o que importa é ter coração disponível para o amor, e não centrado nas diferenças ou no exclusivismo como a comunidade cristã estava tentada a viver, reproduzindo os mesmos sistemas do judaísmo antigo. Ela, pelo contrário, deve estar aberta para acolher a Palavra de Jesus, e disponível para anuncia-la a todos, sem distinção!

Em seguida (v.36), Jesus ordena ao homem que não conte nada a ninguém, que não divulgue o fato. Ele não quer que sua missão seja má compreendida, e não deseja que a fé em Deus, que é fundamentalmente uma relação, bem como seu projeto sejam encarados como algo mágico ou supersticioso. Jesus é bem consciente de sua missão e de seu messianismo, que consiste em trilhar os caminhos do Servo de YHWH, sofredor e obediente, que não se exalta nem chama a atenção por aquilo que faz, mas pelo o que é. Por isso, Ele pede segredo. Um segredo messiânico, ou seja, que guarda e conserva a verdadeira identidade de Jesus, que será revelada – nos planos narrativos de Marcos – somente na Cruz, quando um centurião romano, pagão, faz sua profissão de Fé, confessando Jesus como o verdadeiro Filho de Deus. A pedagogia deste segredo pode ter surgido do próprio Jesus em decorrência da autocompreensão que ele possuía de si e de seu ministério; de Marcos, como sendo um recurso pedagógico para que a sua comunidade fosse descobrindo correta, e paulatinamente, a identidade de Jesus de Nazaré, como Filho de Deus; como bem poderia ter sido uma consciência que a própria comunidade ia adquirindo em relação à Jesus. Mas, se quiséssemos, poderíamos pensar na seguinte resposta: Jesus pede segredo porque, na verdade, tem muito mais importância Quem ele É, e a relação pessoal que o discípulo estabelece com ele, do que aquilo que ele pode (ou não) realizar. Nem sempre Deus nos concede aquilo que queremos.

No v.37 temos o desfecho da narrativa. Mesmo diante da orientação dado por Jesus, para que não se divulgasse o fato, “Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (v. 37). Ora, fazer bem todas as coisas é a característica do Deus Criador que, ao final de cada obra criada, contemplava que aquilo era muito bom (cf. Gn 1). Fazer bem as coisas é, portanto, agir como Deus. Fazer os surdos ouvir e os mudos falar é a realização das expectativas messiânicas anunciadas pelo profeta Isaías (cf. Is 35,5), o que significa uma nova criação. Assim, Jesus, restituindo a vida e a dignidade àquele homem, re-cria à imagem do Pai, fazendo bem, e elevando a criação ao sua máxima realização (cf. CORNELIO,F, Homilia Dominical, in, porcausadeumcertoreino.blogspot).

A partir do texto, quem somos? Nos encontramos entre a multidão, que ainda não fez sua opção por Jesus, não ouviu sua Palavra, nem se colocou a anunciá-la? Estamos na mesma situação do surdo-mudo, em decorrência da dureza de nosso coração? Que a ordem “abre-te” dada por Jesus possa, de fato, ressoar em nós, abrindo-nos para proclamação do Amor de Deus aos irmãos, aos mais excluídos; sem qualquer distinção. Que possamos assumir as mesmas atitudes de Jesus: olhar com olhos de misericórdia para o irmão, seja ele quem for, e, ao mesmo tempo tocar a carne de Jesus, ao tocar a carne dos irmãos.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré /Arquidiocese de Botucatu-SP. 

sábado, 28 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA O XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mc 7,1-23:


 

A liturgia dominical propõe para a nossa meditação o texto do capítulo sétimo do evangelho de Marcos, retomando, assim, a leitura da sua catequese evangélica proposta para este ciclo litúrgico. A pedagogia litúrgica é sugestiva, ainda que pareça provocar a quebra na sequência das leituras bíblicas. Através de quatro domingos ela nos colocou em contato com a catequese do Quarto Evangelho, com a leitura do capítulo sexto, o discurso acerca do pão da vida. Nele, Jesus se apresenta como pão vivo que tem a missão de alimentar a vida das pessoas. Na medida em que Ele e seu projeto se apresentam como proposta de vida, as lideranças religiosas de seu tempo, bem como a própria religiosidade, com suas tradições humanas, emergem como símbolo e força de morte, colocando-se contrárias ao querer de Deus que se manifesta através de Jesus. Feita esta consideração inicial, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje.

O capítulo sétimo começa com uma informação importante oferecida pelo evangelista Marcos: “Os fariseus e alguns mestres da Lei vieram de Jerusalém e se reuniram em torno de Jesus” (v.1). Compreendendo as personagens: os fariseus são aquele grupo conhecedor das tradições antigas, dos preceitos e das leis do povo de Israel. Por observarem-nas acham-se superiores dos demais, e, por isso, vivem separados do restante da população. O mesmo vale para os mestres da lei, são versados nas Escrituras. Agora, atenção para o verbo que o evangelista Marcos utiliza para ilustrar a atitude desses dois grupos: é o verbo synago (gr. συνάγω), do qual deriva a palavra Sinagoga, que significa reunião. O evangelista quer ilustrar com esse verbo que a atitude e a intenção destes grupos em relação à Jesus têm suas raízes nas tradições e nos costumes cultivados no ambiente sinagogal. Mas qual a gravidade do fato que faz com que estes dois grupos se dirijam até Jesus?

O v.2 responde: “Eles viam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as terem lavado”. Não se trata de uma questão higiene, mas de pureza ritual. E o evangelista continua explicando para seu leitor, que não é judeu, mas que se encontra em Roma pelos idos dos anos 65-70 d.C, os hábitos e os costumes judaicos relativos à pureza ritual (v.3-5). E acusação é a de que os discípulos de Jesus não se comportam segundo a tradição dos antigos. Para os hebreus, Moisés no monte Sinai havia recebido a Lei de Deus na sua forma escrita (os cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco) e oral (comentada), e esta seria mais tarde culminaria no famoso Talmud, o conjunto das tradições antigas do povo de Israel. Detalhe: no livro do Levítico, encontramos o capítulo onze, o qual trata, do começo ao fim, do que é puro e do que é impuro.

De 6-8, Jesus responde aos fariseus e aos mestres da Lei, os teólogos oficiais da sociedade de seu tempo: “Bem profetizou Isaías a vosso respeito, hipócritas, como está escrito: Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens”. Os líderes do povo são chamados por Jesus de hipócritas. O termo remete às máscaras que os atores gregos usavam nas peças de teatro. Ele está denunciando que a religiosidade e a forma em que viviam eram pura encenação. A religiosidade estava descomprometida da vida do povo, se tornou um gesto exterior e não mais uma atitude que brota da interioridade, é o que Jesus quer dizer ao tomar o profeta Isaias emprestado no tocante ao coração. O coração é a sede das escolhas e das opções, bem como dos pensamentos do homem, conforme a antropologia bíblica. Ele desempenha a mesma função da consciência para nós ocidentais. Ou seja, a prática religiosa está distante do coração, lugar de onde Deus pode falar e ser escutado. Logo, está distante do querer de Deus. E o pior: acabam elevando tradições humanas ao alto grau de vontade divina. Esta é a hipocrisia denunciada por Jesus. Os chefes do povo acabaram por subverter o querer e a vontade de Deus. Pretendendo-se legisladores sobre o que é puro e o que não é.

A partir do v.14, Jesus ressignifica a questão para seus ouvintes. Com dois verbos no imperativo, “escutai” e “compreendei”, ele pretende chamar a atenção dos discípulos para um ensinamento importante: “o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior”. Novamente Jesus insiste na temática da interioridade, que acena para o coração como sede do pensamento e da ação; dali brotam as ações que tornam a pessoa impura. São elencadas doze atitudes, e todas elas fora do campo religioso, cultual, ou seja, daquele âmbito permeado pelas questões de pureza e impureza. 

São doze atitudes ligadas ao campo das relações humanas, isto é, relacionadas à possibilidade de ruptura com o mandamento do amor ao próximo. O número doze na tradição bíblica simboliza totalidade. O que Jesus quer ressignificar para seus discípulos e que o evangelista Marcos transmite para sua comunidade e para nós é que todas as atitudes que desarmonizam a relação com o outro se tornam oportunidade para afastamento do querer e do projeto de Deus. Isto é o que torna o ser humano impuro.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 21 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA O XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM – Jo 6,60-69:

 


O texto que hoje meditamos situa-se no final do capítulo sexto do evangelho segundo João. Para compreendermos esta narrativa convém fazer uma retrospectiva das temáticas apresentadas até aqui, cuja intenção foi a de levar os discípulos ouvintes, através do sinal da condivisão dos pães, a uma decisão em relação a Jesus. Pudemos contemplar o gesto realizado por ele, o qual acenava para a entrega de sua vida, tornando-se pão para os outros, simbolizada no dom dos pães (cf. Jo 6,1-15). Após o sinal realizado, a multidão, maravilhada, quis levá-lo para proclama-lo rei, para, assim, ter pão com fartura e não morrerem de fome. Jesus, não querendo que seu ministério fosse confundido, retira-se para ou outro lado do mar de Tiberíades.

A multidão segue Jesus até a outra margem e o encontra na sinagoga de Cafarnaum. Lá, ele percebe que deverá catequizar aquela gente, bem como os discípulos acerca do sentido do sinal realizado (cf. 6,24-35). E começa a ensinar lhes a respeito do Pão (símbolo para a sabedoria de Deus) que desceu do céu. Mais adiante, ele identificará este Pão à sua história existencial, a sua carne para a vida do mundo. É possível entender este capítulo sexto como sendo dividido em duas partes: um discurso de Jesus, repleto da linguagem sapiencial, e um discurso eucarístico, fruto da interpretação da comunidade. Ora, o que Jesus propõe ao dizer que é o Pão da Vida, nós o celebramos quando nos alimentamos com o pão eucarístico, ponto de referência de nossa comunidade.

Para compreendermos os versículos finais deste capítulo sexto é importante olhar para o contexto da comunidade de João, e operarmos aquela técnica já conhecida por nós como “fusão de horizontes”, a saber, o horizonte do tempo de Jesus e o horizonte do tempo da comunidade joanina (que se prolonga nas comunidades ao longo da história). A comunidade do Quarto Evangelho, naqueles anos 90 sofria forte perseguição das autoridades Judaicas, as quais reformulavam o judaísmo daquele período, chegando ao extremo de expulsar das sinagogas todos aqueles que não aderissem às mudanças impostas. Um destes grupos eram os dos seguidores de Jesus. A sinagoga representava para eles uma certa segurança social pois asseguravam-lhes a identidade étnica – o pertencimento a um povo. Ao serem expulsos das sinagogas, os seguidores de Jesus ficavam sem qualquer referência social. Nesse contexto, muitos dos que se diziam seguidores do Nazareno começaram a enfraquecer na fé, a ponto de abandona-la, deixando também a vida de comunidade. Assim, João faz um raio-x das comunidades cristãs naquele período, inclusive da sua própria, as quais se encontravam-se arrefecidas na vida de fé e em crise. Este contexto é importante para compreender o texto a seguir. Ainda que optemos por pinçar alguns versículos para elucidá-los bem e retirar-lhes a mensagem central.

“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (v.60). O evangelista emprega o adjetivo grego sklerós (gr. Σκληρός), que significa duro, difícil, insuportável; mas também inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio e o modo de vida de Jesus pareciam insuportáveis. Mas porque a palavra de Jesus é considerada dura por eles? Porque exige e se espera um comprometimento para com ela: diante dela, é preciso tomar uma decisão firme; é preciso crescer na consciência de tornar-se alimento para os outros, assumindo as mesmas opções de Jesus e suas consequências. Até aquele momento, Jesus sofrera oposição por parte das autoridades do povo, e certa incompreensão da multidão. Nunca dos discípulos. O evangelista informa, ainda, que eles estão murmurando. A murmuração remete ao mesmo pecado do povo no AT, e, de quebra, agindo da mesma forma que as autoridades do povo agiram ao escutar o ensino de Jesus. O verbo murmurar, como emprega o evangelista expressa uma revolta contra Deus; é a negação da fé.

Os que esperavam um rei e messias que lhes resolvesse os problemas que eles mesmos poderiam resolver, não conseguem aceitar a imagem de um Filho do Homem que revelará Deus através da doação de si e da própria carne. Por isso, nos vv.64-65, Jesus diz que eles são ainda “carne”, ou seja, humanidade fechada sobre si. Eles precisam se converter para compreender a missão de Jesus. E compreendê-lo é missão e obra do Espírito de Deus. Em contraposição a carne (humanidade fechada em si), Jesus diz que suas palavras são Espírito e Vida. Espírito indica a realidade de Deus; e vida acena para o Dom de Deus. Nesse sentido, a “carne” (no sentido de autossuficiência humana), não serve para entender a palavra de Jesus, nem para a transformação da gente.

Jesus sabia que nem todos os que se diziam discípulos aderiam concretamente à sua Palavra, nem acreditavam nele. No v.66 o evangelista descreve a atitude e opção contrária ao projeto de Jesus: “A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele”. A palavra de Jesus é uma “espada de dois gumes” (Is 49,2; Ap 19,15), que opera um corte radical entre a fé e a incredulidade. Entre os que se dizem discípulos, muitos voltam as costas para Jesus. A desistência entre os discípulos aconteceu porque nem todos estavam dispostos a aderir com amor e fidelidade aos compromissos do seguimento e do discipulado. Um seguimento superficial não se sustenta diante das “palavras duras” a serem assimiladas e vividas pelos discípulos. Por isso, muitos desistiram de continuar o seguimento.

Ora, a novidade trazida por Jesus também traz em si a dureza (a firmeza, a constância e a fidelidade) da decisão em vista de sua Pessoa. Mas nem diante da desistência daqueles discípulos, Jesus mudou seu projeto. Ele não é um líder frouxo, que, com medo ou com vontade de agradar, muda os planos só para não perder fã-clube. Tentação muito presente em nossas comunidades eclesiais, bem como nos seus líderes. Jesus, ao contrário, permanece fiel ao seu projeto, que é a missão confiada pelo Pai.

Diante da recusa e do abandono dos outros que se diziam discípulos, Jesus dirige o olhar e a interrogação aos doze: “Vós também vos quereis ir embora?” (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, afirma as convicções do seu projeto: é mais fácil ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar os sistemas e, assim, iniciar a construção de um mundo novo repleto de amor, justiça, fraternidade e paz (cf. CORNÉLIO, F, Homilia Dominical).

Pedro, em nome de todos, responde com uma genuína profissão de fé: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (v.68-69). A profissão de fé é autêntica, nos mostram os verbos, que, no texto grego estão no tempo perfeito, com efeito no presente. É como se ele, em nome da comunidade dissesse: “nós temos fé firme e conhecimento seguro!”. Em outras palavras, é um modo de mostrar que a opção da comunidade em favor de Jesus é genuína. Os autênticos discípulos optaram pelo projeto de Jesus e conseguiram sair da superfície do sinal realizado no começo. As palavras de Jesus contêm vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados. Quem o reconhece como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé.

Agora, cabe a decisão única e pessoal do discípulo. Aderir às palavras de Jesus com firmeza e fidelidade (a dureza ressignificada). Ou fazer o caminho contrário, assumindo aquela dureza de coração (a dureza negativa, que fecha e isola), contrária ao projeto de Deus em Jesus. Quem somos, a partir deste texto?

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 14 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA - Lc 1,39-56:


 

A Igreja celebra neste final de semana a Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada, acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Diz-se suficientemente sobre ela porque foi afirmado primeira e suficientemente acerca de Jesus. O dogma mariano da assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. A fé na eternidade junto de Deus

A proclamação de fé acerca da assunção de Maria aos céus reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor. Mas só é possível dizer que Deus assumiu a vida inteira de Maria porque ela assumiu viver segundo o projeto de Deus, enquanto verdadeira discípula do Reino. No Evangelho de Lucas, ela é o exemplo que deve ser assumido por todos aqueles que querem ser discípulos de Jesus e viver segundo a ética do Reino. O evangelista faz questão de tipificar em Maria as atitudes fundamentais que a pessoa deve possuir para se tornar discípulo e discípula do Reino: ouvir a Palavra de Deus, acolhê-la (rumina-la) e frutifica-la através da vida concreta, em amor e serviço aos outros. Estas características estão bem ilustradas na cena da Anunciação do Anjo à Maria. Esta narrativa é que nos permite compreender o evangelho proposto para a Solenidade da Assunção de Nossa Senhora, Lc 1,39-56.

Na cena anterior (Lc 1,25-38), Maria, ao encarnar em si Palavra geradora de vida, tornar-se serva desta mesma Palavra e parte apressadamente para a região montanhosa da Judéia, num subúrbio, a fim de dispensar sua assistência a sua parenta, Isabel, de idade avançada e gravida. A esterilidade era uma vergonha naquele tempo. Maria decide-se por viver a Palavra de Deus colocando-se ao lado dos envergonhados e humilhados. Assume, portanto, a Palavra libertadora e geradora de vida sendo instrumento de libertação. Isso posto, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje.

Na casa de Zacarias, ocorre o encontro entre as duas mulheres. Maria, por primeiro saúda Isabel (mas aqui fica-nos obscura a saudação, o que não quer dizer que não possamos intuir o que se tenha dito: provavelmente tenha desejado a Paz – Shalom). Todavia, para nós, interessa que o Fruto do Espírito, Jesus, saúda o sinal do Espírito, João. Saúda-o com a paz e a certeza de que o tempo messiânico havia chegado (v.39-41).

Então, Isabel profere uma benção à Maria: uma Berakah. Precisamos compreender que a benção bíblica é sempre, e, em primeiro lugar, uma “bendizência (louvor)” a Deus por aquilo que ele fez. Não se trata de um ato mágico. A fé judaico-cristã não admite qualquer compreensão ou concepção mágica nas mediações religiosas. Isabel bendiz a Deus pelo acontecido em Maria e com ela mesma. A mãe de João reconhece, pelo Espírito, Aquele que está presente no seio de Maria. O estremecimento de João desde o seio de sua Mãe, indica que desde o ventre materno ele já profetiza a vinda do Senhor. Já O sente, e manifesta Sua presença (v.42).

O evangelista faz aqui um midrash – uma interpretação – do texto de 1Cr 15,28 e 2Cr 5,13, onde o povo aclama a presença de Deus na Arca da Aliança. Também Davi, quando da visita da Arca em sua casa, exclama: “como poderá vir a mim a Arca do Senhor? (cf 2Sm 6,9)”, acolhendo-a, depois, com jubilo e danças. Estes textos servem de pano de fundo para esta narrativa da visita a Isabel. Maria é, agora, a Arca que traz a presença salvífica do Senhor, em meio ao povo. Então, a mãe de João Batista profere uma bem-aventurança à Maria: “bem-aventurada aquela que acreditou”. O acento, aqui, recai sobre o verbo “Acreditar (gr. πιστεύω/pisteûo)”. É mulher feliz (bem-aventurada) porque acreditou na Palavra que Deus lhe dirigiu.  

Então Maria responde à Isabel, como que em coro com ela, pronunciando um canto de ação de Graças, composto por muitos versículos dos salmos, e de outros textos do AT. Mas logo passa a lembrar o cântico de Ana, mãe de Samuel, que também não podia ter filhos. Maria assume em si todos os filhos frutos da promessa da graça de Deus, unindo seu cântico de agradecimento com aquele de Ana (1Sm 2). Deus levanta os humilhados, porque Maria é uma humilhada, no sentido de que ela é uma menina ainda; que não tinha, até aquele momento, um lugar na sociedade. Lembremos que era ela apenas desposada. Se alguém ficasse sabendo de que ela estava grávida, ainda prometida em casamento, isso seria uma grande humilhação e vergonha.

A melhor tradução para esse versículo seria: “Porque olhou para a humilhação (gr. ταπείνωσις / tapeînosis) de sua serva”. Maria não é humilde naquele sentido de uma virtude de que tanto podemos nos gabar, mas a humilhada, uma Anih, junto com os Anawim, os pobres, humilhados e oprimidos, que recorrem a Deus por socorro. Portanto, o Deus de Israel é aquele que levanta da humilhação os humilhados.

O v.50 mostra o tema da misericórdia, o qual é muito precioso para Lucas. Ele se faz presente em todo o contexto do evangelho. No seu cântico, Maria se apropria de toda a história de Israel (v.51). Ela canta, anunciando profeticamente as História da tradição de Israel, no intuito de mostrar a atuação do Todo-poderoso – El Shaday – que fez grandes coisas. Todas estas tradições histórico-salvíficas ressoam no Magnificat de Maria.

Os v.52-53 são muito interessantes, uma vez que acenam para a chamada inversão escatológica que Deus opera na história; a subversão dos valores e das categorias conforme a lógica do Reino. Aqui estão dois versículos que contam essa inversão, “Deus derruba dos tronos os poderosos e eleva os humilhados, enchendo de bens os famintos e despedindo de mãos vazias os ricos”; ou seja, os valores dos poderosos, segundo a carne, não valem mais no tempo do Espírito. Os poderosos perdem seu poder, os humilhados são exaltados. Maria termina cantando a realização das promessas ao servo Israel (Jacó e todo povo). A serva Maria identifica-se com o servo Israel, ou seja, o povo que está à disposição de Deus.

A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: “A Arca de YHWH ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e YHWH abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista.

Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história. Isto significa assumir o projeto amoroso de Deus, o que resulta ser por Deus, em Jesus, assumido para a vida eterna que já começa a ser vivida nesta história.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

REFLEXÃO PARA O XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Jo 6,41-51:


 

A leitura do capítulo sexto do evangelho de Joao continua a iluminar a liturgia dominical deste décimo oitavo domingo do tempo comum, e, com isso, o processo da decisão/opção do discípulo do Reino pró ou contra Jesus. O Sinal realizado por Ele, a condivisão dos pães e dos peixes, havia despertado interesse (ainda que no nível da materialidade do sinal, ao saciar a fome) na multidão, mas não ainda uma decisão autêntica por parte dela. Procuram a Jesus porque ficaram satisfeitos. Não porque queriam estabelecer uma relação pessoal com Ele.

O gesto da condivisão simbolizava a partilha de sua vida. Vida partilhada através do Pão (da sabedoria divina) que vêm do céu. Mesmo assim, seus ouvintes, presos as tradições e sistemas antigos, não conseguem assimilar a novidade trazida por Jesus. Mas, como um mestre paciente, continua seu ensinamento na sinagoga de Cafarnaum.

Descontentamento! No longo discurso de Jesus na sinagoga de Cafarnaum, após a condivisão dos pães, Ele começa a descontentar as pessoas. Descontentou a multidão, que queria proclamá-lo rei; descontenta os chefes religiosos (como veremos na narrativa de hoje); e, por fim, descontentará, também, os seus discípulos. Alguns o abandonarão imediatamente.

No v.41, João nos informa que os Judeus começaram a murmurar. Por “Judeus” se deve sempre entender que o evangelista se refere às autoridades e as lideranças religiosas do povo. Elas murmuram. O ato da murmuração deve remeter o leitor-discípulo ao tempo do Livro do Êxodo, onde o povo também murmurava contra Deus e Moisés no deserto. Mas o motivo da murmuração residia no dito de Jesus, “Eu sou o Pão que desceu do céu”. Por que eles murmuram? Primeiramente, porquê na autoproclamação de Jesus, ele se apresenta com a solene identificação “Eu Sou”, formula da identificação do Nome divino, no Antigo Testamento.

A mentalidade e a instituição religiosa do tempo de Jesus têm sua origem no distanciamento entre Deus e o homem. No meio desta distância situa-se o poder religioso como mediação entre o humano e o divino. Jesus veio para eliminar esta distância! Trouxe Deus até o homem. Algo intolerável para os que se serviam do poder religioso.

Para desacreditar a Jesus, eles começam a atacá-lo desde sua origem: “Não é este Jesus, o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe? Como então pode dizer que desceu do céu?” (v.42). É fácil compreender o que eles pretendem insinuar: “que um homem reivindique para si a identidade divina é inaceitável! Inadmissível! É uma blasfêmia!”. Ora, para aquelas autoridades religiosas, ciosas do poder e fechadas para a novidade trazida por Jesus, o projeto de Deus para a humanidade acaba sendo uma blasfêmia que merece morte.

Jesus censura a murmuração, pois para os hebreus no deserto esta atitude teve consequências trágicas (Ex 16,2.7; Nm 14,2.27). A atitude da murmuração acaba sendo uma contestação e uma rejeição à graça e ao poder de Deus, e, nesse sentido, um pecado. É a atitude do rebelde, do resistente e do fechado em si, que rejeita a novidade provinda de Deus. O murmúrio das autoridades religiosas contra Jesus é, portanto, a confirmação do fechamento de Israel, desde o antigo êxodo, à proposta libertadora de Deus, levada a cumprimento em Jesus de Nazaré.

Só o verdadeiro fiel pode entender que a origem humana de Jesus não contradiz sua origem e missão divinas. Mas, não adianta explicar isso a quem não quer acreditar. Ora, Jesus não está falando com crianças ou pessoas sem instrução. Seus ouvintes são as autoridades e lideranças religiosas. São os especialistas nos assuntos sagrados. Acontece que eles já fizeram sua opção contra Jesus. Estão decididos a não aceitar e compreender.

No v.45, Jesus continua: “Está escrito nos Profetas: “Todos serão discípulos de Deus. Ora, todo aquele que escutou o Pai e por ele foi instruído, vem a mim”. Mas só se pode tornar discípulo de Deus através de seu revelador. Ninguém (senão Ele) viu Deus (cf. 1,18). Só Jesus, que vem de junto do Pai, é que o viu e pode dá-lo a conhecer (cf. 3,14). Conhecer o Pai por intermédio de Jesus implica seguir os passos de Jesus, seu caminho e procedimento. “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. O conhecimento que se adquire sendo discípulo de Deus, por mediação de Jesus, não é um conhecimento teórico, porém, prático. (cf. 14,6-9). O que ele quer dizer com “todos serão discípulos de Deus”, é que ninguém mais ensinará uma lei, mas um modo de vida pautado no Amor.

Com um solene “amém, amém eu vos digo (Em verdade, em verdade...)”, que indica que o que virá a seguir resulta num ensinamento importante, Ele declara: “quem crê, possui a vida eterna”. Todavia, o texto grego não traz o artigo “a”. A melhor tradução seria “Quem crê possui Vida eterna”. Crer (gr. pistêuo), aqui, significa deixar-se conduzir pelo Evangelho, aceitando-o como único programa de vida. Aquele que adere ao Evangelho de Jesus possui vida eterna, a qual não é uma vida no além, como prêmio para quem praticou boas obras, mas um dom oferecido já nesta vida a quem conduz a sua existência de acordo com o Evangelho. Essa, a vida eterna é a vida conduzida conforme a de Jesus, a qual nem a morte é capaz de destruí-la.

“Eu sou o pão da vida” (v.48), novamente, com a fórmula de revelação do nome divino, Jesus faz uma autoproclamação. A qual gera mais um descontentamento naqueles que o escutam, através do dito contido no v.49, “Os vossos pais comeram o maná no deserto e, no entanto, morreram”. Esta declaração é explosiva, porque através dela, Jesus afirma a superação do Êxodo e de todo o sistema religioso de sua época. Ora, Jesus poderia ter dito “os nossos pais”, mas prefere polemizar: “os vossos pais comeram o maná e morreram”. Jesus não segue a sombra daqueles pais, mas vive e segue a vontade de Seu Pai, por isso toma distância das lideranças do povo. Jesus supera, com sua práxis de vida, as mediações e instituições judaicas. Todos aqueles que seguiram Moisés, no deserto e no Êxodo, estão mortos. Nem mesmo Moisés entrou na terra prometida.

Então, Jesus diz: “Eis aqui o pão que desce do céu: quem dele comer, nunca morrerá” (v.50). Comer, na tradição bíblica, não consiste somente num ato ou necessidade biológica-física, mas num processo de assimilação. Quem assimila (come) o ensinamento de Jesus (simbolizada pelo Pão, pois este sempre remete à Sabedoria divina), suas escolhas, seu modo de ser e viver, eterniza sua existência e faz acontecer um dinamismo de amor que faz com que sua vida seja indestrutível, de modo que ela se torna lugar para a vida de Jesus. Quem come do Pão de Jesus, tem a vocação e o compromisso ético de fazer-se pão para a vida dos irmãos e das irmãs.

O Quarto Evangelho é todo tecido em símbolo e imagens riquíssimas. Na conclusão deste discurso de Jesus, encontramos, no v.51 outro ensinamento: “E o pão que eu darei é a minha carne dada para a vida do mundo”. É próprio do autor do evangelho joanino trabalhar com o termo “carne (Sarx)”, que remete àquilo que é de mais precário e finito na constituição do ser humano. Indica o homem na sua debilidade e caducidade. Jesus quer faze-los despertar para uma novidade profunda: não existe dom de Deus que não passe pela humanidade, quanto mais humano, quanto mais sensível as necessidade e os sofrimentos dos outros; mais se manifesta o divino no ser humano.

Em 6,51 não se trata apenas do pão da sabedoria que o Pai dá, por meio do ensinamento de Jesus, mas do pão que Jesus dá: sua “carne”, a vida humana, da qual ele vai despojar-se para que o mundo tenha Vida. Antes, o pão do qual Jesus falava significava sua mensagem a respeito do Pai. Agora é focalizado seu ato central, o dom de sua vida (carne e sangue) na cruz. Acolher Jesus como pão descido do céu significa aderir a ele, reconhecendo-o como único mediador e revelador do Pai. Recebe-lo como alimento perene consiste em assimilar o seu Evangelho como único programa de vida a ser vivenciado.

Todavia, é ainda e sempre, uma decisão a tomar. Uma opção por fazer. Uma vida e obra a se assimilar.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.