A Igreja celebra neste final de semana a Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada, acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Diz-se suficientemente sobre ela porque foi afirmado primeira e suficientemente acerca de Jesus. O dogma mariano da assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. A fé na eternidade junto de Deus
A proclamação de fé acerca da assunção de Maria aos céus reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor. Mas só é possível dizer que Deus assumiu a vida inteira de Maria porque ela assumiu viver segundo o projeto de Deus, enquanto verdadeira discípula do Reino. No Evangelho de Lucas, ela é o exemplo que deve ser assumido por todos aqueles que querem ser discípulos de Jesus e viver segundo a ética do Reino. O evangelista faz questão de tipificar em Maria as atitudes fundamentais que a pessoa deve possuir para se tornar discípulo e discípula do Reino: ouvir a Palavra de Deus, acolhê-la (rumina-la) e frutifica-la através da vida concreta, em amor e serviço aos outros. Estas características estão bem ilustradas na cena da Anunciação do Anjo à Maria. Esta narrativa é que nos permite compreender o evangelho proposto para a Solenidade da Assunção de Nossa Senhora, Lc 1,39-56.
Na cena anterior (Lc 1,25-38), Maria, ao encarnar em si Palavra geradora de vida, tornar-se serva desta mesma Palavra e parte apressadamente para a região montanhosa da Judéia, num subúrbio, a fim de dispensar sua assistência a sua parenta, Isabel, de idade avançada e gravida. A esterilidade era uma vergonha naquele tempo. Maria decide-se por viver a Palavra de Deus colocando-se ao lado dos envergonhados e humilhados. Assume, portanto, a Palavra libertadora e geradora de vida sendo instrumento de libertação. Isso posto, podemos adentrar no horizonte do texto de hoje.
Na casa de Zacarias, ocorre o encontro entre as duas mulheres. Maria, por primeiro saúda Isabel (mas aqui fica-nos obscura a saudação, o que não quer dizer que não possamos intuir o que se tenha dito: provavelmente tenha desejado a Paz – Shalom). Todavia, para nós, interessa que o Fruto do Espírito, Jesus, saúda o sinal do Espírito, João. Saúda-o com a paz e a certeza de que o tempo messiânico havia chegado (v.39-41).
Então, Isabel profere uma benção à Maria: uma Berakah. Precisamos compreender que a benção bíblica é sempre, e, em primeiro lugar, uma “bendizência (louvor)” a Deus por aquilo que ele fez. Não se trata de um ato mágico. A fé judaico-cristã não admite qualquer compreensão ou concepção mágica nas mediações religiosas. Isabel bendiz a Deus pelo acontecido em Maria e com ela mesma. A mãe de João reconhece, pelo Espírito, Aquele que está presente no seio de Maria. O estremecimento de João desde o seio de sua Mãe, indica que desde o ventre materno ele já profetiza a vinda do Senhor. Já O sente, e manifesta Sua presença (v.42).
O evangelista faz aqui um midrash – uma interpretação – do texto de 1Cr 15,28 e 2Cr 5,13, onde o povo aclama a presença de Deus na Arca da Aliança. Também Davi, quando da visita da Arca em sua casa, exclama: “como poderá vir a mim a Arca do Senhor? (cf 2Sm 6,9)”, acolhendo-a, depois, com jubilo e danças. Estes textos servem de pano de fundo para esta narrativa da visita a Isabel. Maria é, agora, a Arca que traz a presença salvífica do Senhor, em meio ao povo. Então, a mãe de João Batista profere uma bem-aventurança à Maria: “bem-aventurada aquela que acreditou”. O acento, aqui, recai sobre o verbo “Acreditar (gr. πιστεύω/pisteûo)”. É mulher feliz (bem-aventurada) porque acreditou na Palavra que Deus lhe dirigiu.
Então Maria responde à Isabel, como que em coro com ela, pronunciando um canto de ação de Graças, composto por muitos versículos dos salmos, e de outros textos do AT. Mas logo passa a lembrar o cântico de Ana, mãe de Samuel, que também não podia ter filhos. Maria assume em si todos os filhos frutos da promessa da graça de Deus, unindo seu cântico de agradecimento com aquele de Ana (1Sm 2). Deus levanta os humilhados, porque Maria é uma humilhada, no sentido de que ela é uma menina ainda; que não tinha, até aquele momento, um lugar na sociedade. Lembremos que era ela apenas desposada. Se alguém ficasse sabendo de que ela estava grávida, ainda prometida em casamento, isso seria uma grande humilhação e vergonha.
A melhor tradução para esse versículo seria: “Porque olhou para a humilhação (gr. ταπείνωσις / tapeînosis) de sua serva”. Maria não é humilde naquele sentido de uma virtude de que tanto podemos nos gabar, mas a humilhada, uma Anih, junto com os Anawim, os pobres, humilhados e oprimidos, que recorrem a Deus por socorro. Portanto, o Deus de Israel é aquele que levanta da humilhação os humilhados.
O v.50 mostra o tema da misericórdia, o qual é muito precioso para Lucas. Ele se faz presente em todo o contexto do evangelho. No seu cântico, Maria se apropria de toda a história de Israel (v.51). Ela canta, anunciando profeticamente as História da tradição de Israel, no intuito de mostrar a atuação do Todo-poderoso – El Shaday – que fez grandes coisas. Todas estas tradições histórico-salvíficas ressoam no Magnificat de Maria.
Os v.52-53 são muito interessantes, uma vez que acenam para a chamada inversão escatológica que Deus opera na história; a subversão dos valores e das categorias conforme a lógica do Reino. Aqui estão dois versículos que contam essa inversão, “Deus derruba dos tronos os poderosos e eleva os humilhados, enchendo de bens os famintos e despedindo de mãos vazias os ricos”; ou seja, os valores dos poderosos, segundo a carne, não valem mais no tempo do Espírito. Os poderosos perdem seu poder, os humilhados são exaltados. Maria termina cantando a realização das promessas ao servo Israel (Jacó e todo povo). A serva Maria identifica-se com o servo Israel, ou seja, o povo que está à disposição de Deus.
A conclusão do texto reafirma a imagem de Maria como nova arca da nova aliança: “Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa” (v. 56). Uma expressão muito parecida aparece em 2Sm 6,11: “A Arca de YHWH ficou três meses na casa de Obed-Edom de Gat, e YHWH abençoou a Obed-Edom e a toda a sua família”. A presença de Maria na casa de Isabel foi, com certeza, a confirmação da bênção de Deus sobre ela, seu esposo Zacarias e o filho esperado, João Batista.
Na arca da nova aliança não há tábuas da Lei, não há norma nem preceito, há apenas Jesus, expressão máxima do amor e da misericórdia de Deus para com toda a humanidade. O tempo de permanência de quem irradia o Espírito Santo e a alegria do Evangelho, como fez Maria e assim devem fazer os discípulos de todas as épocas, é o suficiente para ressignificar a vida e ler os acontecimentos do presente à luz de tudo o que Deus tem realizado ao longo da história. Isto significa assumir o projeto amoroso de Deus, o que resulta ser por Deus, em Jesus, assumido para a vida eterna que já começa a ser vivida nesta história.
Pe. João Paulo Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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