O texto que hoje meditamos situa-se no final do capítulo sexto do evangelho segundo João. Para compreendermos esta narrativa convém fazer uma retrospectiva das temáticas apresentadas até aqui, cuja intenção foi a de levar os discípulos ouvintes, através do sinal da condivisão dos pães, a uma decisão em relação a Jesus. Pudemos contemplar o gesto realizado por ele, o qual acenava para a entrega de sua vida, tornando-se pão para os outros, simbolizada no dom dos pães (cf. Jo 6,1-15). Após o sinal realizado, a multidão, maravilhada, quis levá-lo para proclama-lo rei, para, assim, ter pão com fartura e não morrerem de fome. Jesus, não querendo que seu ministério fosse confundido, retira-se para ou outro lado do mar de Tiberíades.
A multidão segue Jesus até a outra margem e o encontra na sinagoga de Cafarnaum. Lá, ele percebe que deverá catequizar aquela gente, bem como os discípulos acerca do sentido do sinal realizado (cf. 6,24-35). E começa a ensinar lhes a respeito do Pão (símbolo para a sabedoria de Deus) que desceu do céu. Mais adiante, ele identificará este Pão à sua história existencial, a sua carne para a vida do mundo. É possível entender este capítulo sexto como sendo dividido em duas partes: um discurso de Jesus, repleto da linguagem sapiencial, e um discurso eucarístico, fruto da interpretação da comunidade. Ora, o que Jesus propõe ao dizer que é o Pão da Vida, nós o celebramos quando nos alimentamos com o pão eucarístico, ponto de referência de nossa comunidade.
Para compreendermos os versículos finais deste capítulo sexto é importante olhar para o contexto da comunidade de João, e operarmos aquela técnica já conhecida por nós como “fusão de horizontes”, a saber, o horizonte do tempo de Jesus e o horizonte do tempo da comunidade joanina (que se prolonga nas comunidades ao longo da história). A comunidade do Quarto Evangelho, naqueles anos 90 sofria forte perseguição das autoridades Judaicas, as quais reformulavam o judaísmo daquele período, chegando ao extremo de expulsar das sinagogas todos aqueles que não aderissem às mudanças impostas. Um destes grupos eram os dos seguidores de Jesus. A sinagoga representava para eles uma certa segurança social pois asseguravam-lhes a identidade étnica – o pertencimento a um povo. Ao serem expulsos das sinagogas, os seguidores de Jesus ficavam sem qualquer referência social. Nesse contexto, muitos dos que se diziam seguidores do Nazareno começaram a enfraquecer na fé, a ponto de abandona-la, deixando também a vida de comunidade. Assim, João faz um raio-x das comunidades cristãs naquele período, inclusive da sua própria, as quais se encontravam-se arrefecidas na vida de fé e em crise. Este contexto é importante para compreender o texto a seguir. Ainda que optemos por pinçar alguns versículos para elucidá-los bem e retirar-lhes a mensagem central.
“Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?” (v.60). O evangelista emprega o adjetivo grego sklerós (gr. Σκληρός), que significa duro, difícil, insuportável; mas também inadmissível, ofensivo e violento. Os discípulos se sentiam incapacitados para continuar no seguimento, uma vez que o anúncio e o modo de vida de Jesus pareciam insuportáveis. Mas porque a palavra de Jesus é considerada dura por eles? Porque exige e se espera um comprometimento para com ela: diante dela, é preciso tomar uma decisão firme; é preciso crescer na consciência de tornar-se alimento para os outros, assumindo as mesmas opções de Jesus e suas consequências. Até aquele momento, Jesus sofrera oposição por parte das autoridades do povo, e certa incompreensão da multidão. Nunca dos discípulos. O evangelista informa, ainda, que eles estão murmurando. A murmuração remete ao mesmo pecado do povo no AT, e, de quebra, agindo da mesma forma que as autoridades do povo agiram ao escutar o ensino de Jesus. O verbo murmurar, como emprega o evangelista expressa uma revolta contra Deus; é a negação da fé.
Os que esperavam um rei e messias que lhes resolvesse os problemas que eles mesmos poderiam resolver, não conseguem aceitar a imagem de um Filho do Homem que revelará Deus através da doação de si e da própria carne. Por isso, nos vv.64-65, Jesus diz que eles são ainda “carne”, ou seja, humanidade fechada sobre si. Eles precisam se converter para compreender a missão de Jesus. E compreendê-lo é missão e obra do Espírito de Deus. Em contraposição a carne (humanidade fechada em si), Jesus diz que suas palavras são Espírito e Vida. Espírito indica a realidade de Deus; e vida acena para o Dom de Deus. Nesse sentido, a “carne” (no sentido de autossuficiência humana), não serve para entender a palavra de Jesus, nem para a transformação da gente.
Jesus sabia que nem todos os que se diziam discípulos aderiam concretamente à sua Palavra, nem acreditavam nele. No v.66 o evangelista descreve a atitude e opção contrária ao projeto de Jesus: “A partir daquele momento, muitos discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele”. A palavra de Jesus é uma “espada de dois gumes” (Is 49,2; Ap 19,15), que opera um corte radical entre a fé e a incredulidade. Entre os que se dizem discípulos, muitos voltam as costas para Jesus. A desistência entre os discípulos aconteceu porque nem todos estavam dispostos a aderir com amor e fidelidade aos compromissos do seguimento e do discipulado. Um seguimento superficial não se sustenta diante das “palavras duras” a serem assimiladas e vividas pelos discípulos. Por isso, muitos desistiram de continuar o seguimento.
Ora, a novidade trazida por Jesus também traz em si a dureza (a firmeza, a constância e a fidelidade) da decisão em vista de sua Pessoa. Mas nem diante da desistência daqueles discípulos, Jesus mudou seu projeto. Ele não é um líder frouxo, que, com medo ou com vontade de agradar, muda os planos só para não perder fã-clube. Tentação muito presente em nossas comunidades eclesiais, bem como nos seus líderes. Jesus, ao contrário, permanece fiel ao seu projeto, que é a missão confiada pelo Pai.
Diante da recusa e do abandono dos outros que se diziam discípulos, Jesus dirige o olhar e a interrogação aos doze: “Vós também vos quereis ir embora?” (v. 67). Com essa pergunta, Jesus mostra seu respeito pela liberdade de cada pessoa e, sobretudo, afirma as convicções do seu projeto: é mais fácil ficar sem discípulos do que mudar o seu programa. Suas exigências são inegociáveis. Em uma sociedade dominada pelo egoísmo, injustiça, privação de liberdade, exclusão e hipocrisia, as “palavras duras” são necessárias para desestabilizar os sistemas e, assim, iniciar a construção de um mundo novo repleto de amor, justiça, fraternidade e paz (cf. CORNÉLIO, F, Homilia Dominical).
Pedro, em nome de todos, responde com uma genuína profissão de fé: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós cremos firmemente e reconhecemos que tu és o Santo de Deus” (v.68-69). A profissão de fé é autêntica, nos mostram os verbos, que, no texto grego estão no tempo perfeito, com efeito no presente. É como se ele, em nome da comunidade dissesse: “nós temos fé firme e conhecimento seguro!”. Em outras palavras, é um modo de mostrar que a opção da comunidade em favor de Jesus é genuína. Os autênticos discípulos optaram pelo projeto de Jesus e conseguiram sair da superfície do sinal realizado no começo. As palavras de Jesus contêm vida eterna, as únicas que podem restituir vida em abundância e esperança para todos, sobretudo os mais necessitados. Quem o reconhece como o “Santo de Deus” não se deixa escandalizar pelas suas declarações como pão descido do céu; pelo contrário, nessas palavras encontra forças para crescer na fé.
Agora, cabe a decisão única e pessoal do discípulo. Aderir às palavras de Jesus com firmeza e fidelidade (a dureza ressignificada). Ou fazer o caminho contrário, assumindo aquela dureza de coração (a dureza negativa, que fecha e isola), contrária ao projeto de Deus em Jesus. Quem somos, a partir deste texto?
Pe.
João Paulo Sillio.
Santuário
São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.
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