sábado, 29 de junho de 2019

Solenidade de São Pedro e São Paulo – Mt 16,13-19:


A cada ciclo litúrgico que a Igreja vive, somos convidados a fazer a memória de Pedro e de Paulo. Para isto, a liturgia nos propõe a perícope pertencente ao capítulo dezesseis do Evangelho segundo São Mateus (Mt 16,13-19).


É oportuno situar o texto ao interno do contexto para retirarmos a mensagem essencial do Evangelho. O texto que hoje temos começa no v.13. Mas ele iniciara com duas situações que servem de estopim para a narrativa que se segue. O primeiro acontecimento foi uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, os quais pediram a ele um sinal de que seria realmente o messias (Mt 16,1-4). Ora, Jesus, a esta altura do evangelho, já havia realizado muitos sinais e realizado muitos ensinamentos. A segunda situação foi motivada pela advertência que feita aos discípulos para que estes tomassem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). O fermento dos fariseus a que Jesus se refere consiste numa ideia errada que nutriam em relação a Deus e ao messias, bem como a própria maneira hipócrita de viver. Agora pode-se entrar no horizonte do texto de hoje.

Mateus indica geograficamente a seus leitores-discípulos onde o fato se dá. “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe” (v.13a). Cidade situada ao norte de Israel; dedicada à Cesar, imperador romano. Sede do poder romano na província da Palestina e, portanto, lugar de culto ao imperador e de cultivo da ideologia imperial. Um território pagão. Por outro lado, Cesaréia fica distante de Jerusalém, sede do poder religioso. Jesus e seus discípulos encontram-se longe das influências do poder religioso. Ali poderiam fazer uma experiência nova e pura com Deus em Jesus.

“ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” (v. 13b). Filho do Homem é aquela personagem bíblica de que nos fala a literatura apocalíptica de Dn 7. É o encarregado por Deus de executar o Seu Senhorio e vontade na história. É o plenipotenciário enviado em nome de Deus. Jesus se identifica e reconhece-se a partir desta personagem. Mas a personagem alude também a sua condição humana.

É verdade que não há concordância entre os biblistas a respeito da intencionalidade de Jesus na pergunta. Uns alegam que ele estaria preocupado com sua auto imagem. Outros, que ele não estaria preocupado com sua imagem, mas com a correta compreensão de sua pessoa e missão. Mais do que preocupado com a imagem que a multidão fazia dele, estava preocupado com a ideia que faziam de sua missão.

Segundo os discípulos, a opinião pública dizia: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). A atuação de Jesus tinha dado margem para variadas interpretações, e as figuras do passado serviam aos espectadores de Jesus fazerem alguma imagem Dele. Acontece que Jesus não foi um reformador como Elias (e Eliseu, no Antigo Testamento), muito menos como João Batista, na transição do Antigo para o Novo. Ele inaugura uma novidade em relação ao modo com de se relacionar e experimentar o Deus de Israel, e uma novidade quanto ao modo de se relacionar com o próximo. É bem verdade que o modo através do qual Jesus decide-se por viver sua missão se inseriu na tradição profética.

Mas Jesus é muito mais. Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o Ressuscitado, presente e atuante na história (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Após a resposta dos discípulos, Jesus retorna a pergunta, agora, para ele: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v.15). Trata-se de uma pergunta importante, porque ela revela como os discípulos, o círculo mais próximo e pessoal de Jesus, o concebia. Mais ainda, a reposta revelaria ainda as expectativas que traziam consigo, e qual mentalidade nutriam acerca dele.

“Tu és o Cristo, 0 Filho do Deus vivo” (v.16), responde acertadamente Simão, em nome dos doze. É uma reposta que ele dá em nome do grupo, e, portanto, eclesial. Uma profissão de fé comunitária. Os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam com Pedro.

“Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17). Jesus admira-se com a resposta tão acertada. E reconhece ser Pedro um bem-aventurado, ao compreender uma verdade muito profunda. Entretanto, seu entendimento não provém do esforço humano; só pode ser revelação do Pai dos céus. Esta bem-aventurança não provém do mérito do discípulo, mas unicamente da iniciativa de Deus (VITÓRIO, 2017, p.105).

O que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de mundo que só tem espaço para quem aceita a condição pertencer ao mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro consiste em abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por essa (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

“Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus declara Simão-Pedro como rocha firme devido à Fé que professara. O acento aqui não recai sobre o discípulo Pedro, mas sobre a Fé que ele, conjuntamente com a comunidade dos discípulos, a Igreja, professa. A pedra firme por sobre o qual se edifica a comunidade dos crentes em Cristo é o conteúdo e núcleo da Fé professada pelo discípulo. Pedro, na verdade, é o garantidor da unidade em torno desta Fé. Esta não se baseia num conjunto de ideias ou de proclamações dogmáticas, mas se embasa numa pessoa: o Messias e Filho do Deus vivo, Jesus de Nazaré.

É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”, que foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada (CORNÉLIO, F, Homilia Domincal, in, porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Só aqui e em Mt 18,17, o evangelista chama de “Igreja” a comunidade dos discípulos do Reino, evocando o antigo povo de Deus (hbr. qahal). A missão da igreja consiste em ser, na história humana, um sinal da presença do Reino, vivendo os seus valores e o seu projeto.

A chave simboliza a autoridade conferida a Pedro, da qual a comunidade também participa. Mais que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na terra. A comunidade recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expresso nas bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar” são, acima de tudo, responsabilidades, e não um poder.

O texto litúrgico de hoje termina, mas, ao mesmo tempo encaminha para conclusão do capítulo dezesseis, o qual apresenta o primeiro anúncio da paixão, que visa abrir a compreensão dos discípulos para que comecem a compreender o verdadeiro modo pelo qual Jesus decide-se encaminhar a sua vida e missão, vaticinando a eventualidade de sua paixão e morte, coroadas pelo evento redentor e salvífico da ressurreição. O modo pelo qual Jesus exercerá plenamente seu messianismo é o modo da cruz. O caminho da cruz que foi assimilado, com não pouca dificuldade, pelo discípulo Simão-Pedro, através de sua vida gasta pelo Evangelho da libertação e da Graça.

A pergunta que Jesus faz aos discípulos se direciona também à nós. 1) Quem é Jesus de Nazaré para mim? 2) Qual a ideia de messias e Filho de Deus possuo e fiz experiência? O triunfalista, opressor, belicoso, poderoso? Ou o messias e Filho de Deus que realiza sua missão através da obediência ao Pai e ao projeto do Reino, vivendo uma existência em amor, compaixão, misericórdia e serviço aos irmãos?

Que Pedro e Paulo nos ajudem através da Fé que viveram e professaram, através da entrega de suas próprias vidas.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DO CORPO E DO SANGUE DO SENHOR (Corpus Christi – ano C) – Lc 9,11b-17:




A Liturgia de hoje retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas e, apropria-se, para esta Solenidade do Corpo e do Sangue do Senhor, do capítulo nono do terceiro evangelho, a partir do v.11b, onde se narra o episódio do que ficou conhecido como multiplicação dos pães.

Para compreender esta perícope de Lc 9,11b-17, é preciso situar o capítulo desde o começo. Os vv.1-6 abrem o capítulo narrando o envio do grupo dos Doze para a missão, por parte de Jesus. Os versículos seguintes (v.7-9) reinsere a figura de Herodes, que reconhece ter matado o Batista, e dando a sua impressão sobre a pessoa de Jesus. Lucas volta, novamente, o foco da narrativa para os discípulos no v.10, ao narrar o retorno dos Doze da missão. Do v.11 em diante, tem-se, pois a narrativa bíblica desta solenidade.

Outro elemento que deve chamar a nossa atenção é a localização geográfica na qual se narra toda a ação de Jesus até o presente momento. Ele está percorrendo a Galileia: terra de gente simples, empobrecida pelo poder vigente e pela cultura social e religiosa da época; lugar de pessoas pagãs, segundo o raciocínio do povo do sul; recôndito da marginalização e da exclusão. A narrativa que temos diante de nós apresenta, pois, o ponto alto da missão de Jesus na Galileia, a ser demonstrado pelo gesto que ele realizará a seguir. Com este episódio, Lucas recupera o dito de Jesus na Sinagoga de Nazaré, que contém o seu discurso inaugural e programático: “ungiu-me para anunciar a Boa Nova aos pobres, aos cegos a recuperação da vista, a libertação aos cativos e aos oprimidos, e anunciar o ano favorável de YHWH” (Lc 4,16).

Agora pode-se adentrar no horizonte do texto. O v.11 inicia, dizendo que Jesus levou os doze para um lugar próximo de Betsaida, deserto e afastado. Talvez para que pudessem restabelecer as energias depois de uma jornada intensa de trabalho e missão. Mas a multidão não alivia, e vai ao encontro de Jesus, que estava cuidando deles. Jesus as acolhe e começa a ensinar e curar os que necessitavam.

Até aquele momento, os discípulos tiveram contato com a vida de Jesus para poderem, futuramente, assumir a missão confiada. Ora, estamos no capítulo nono, o qual inicia a viagem de subida para Jerusalém (que é uma catequese que visa preparar bem o discípulo do reino). Mas eles demonstram não terem compreendido ainda a dinâmica da vida e da existência de Jesus. Prova disso é o fato de se aproximarem dele para pedir que despedisse a multidão, dado o lugar deserto e a hora avançada.

Lucas põe o acento na informação de ser ali um lugar deserto. Ele é mencionado, aqui, para relembrar a experiência do Êxodo dos hebreus. Da mesma forma que YHWH interveio para libertar seu povo da opressão do Egito, e atraiu-os ao deserto para alimentá-lo, o Pai atrai para Jesus o povo faminto e oprimido para alimentá-los com sua Palavra (ensinamento) e com sua ternura e cuidado (as curas). O evangelista quer ensinar para sua comunidade que, a partir de Jesus, começa um novo e definitivo Êxodo.

No v.13, Jesus ordena: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Como inaugurador de um novo êxodo, Ele quer ensinar e orientar seus discípulos a saírem de si e romperem com a logica do pensar em si mesmo somente, para abri-los em relação aos outros; a quebrar com o esquema do cada um por si, muito propagado através da ideologia do império romano e pela religiosidade individualista e intimista do judaísmo da época. Através desta ordem, Jesus ensina aos seus a se preocuparem e solidarizarem-se com os outros.

Jesus vence a tentação dos apóstolos - que espelha a prática de Herodes e dos poderosos - e os desafia a buscar uma alternativa. Eles continuam agarrados ao “cada um por si...”; Jesus ordena preocupar-se pelos outros, ou seja, solidarizar-se: “Vocês é que têm de lhes dar de comer”.

Ainda no v.13, os discípulos respondem que só possuem cinco pães e dois peixes. Mas, para Jesus, isto é o suficiente. O resultado de 5 + 2 é 7, número que na teologia bíblica significa plenitude. O Jesus de Lucas quer ensinar para os seus (e para nós, hoje) que Deus dispõe tudo (da sua plenitude) para todos. Em seguida, no v.14, Jesus orienta aos discípulos que façam sentar a multidão em grupos de 50 pessoas, perfazendo um total de 100 grupos. Cinquenta e cem são números perfeitos (completos), que também acenam para a completude.

Jesus dá, então, o exemplo. “Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão” (v.16). Elevar os olhos para céu (âmbito da morada de Deus), significa orientar toda a sua ação para Deus; abençoa aqueles dons, parte e reparte-os entre os discípulos, para que fizessem o mesmo com a multidão. É Jesus quem inicia o gesto de condividir os alimentos e colocar em comum o que se tem, e este ecoa entre a multidão, que vendo o exemplo, faz o mesmo.  Por isso, esta perícope merece ser chamada de Condivisão dos pães. Pois o gesto de Jesus não é um ato mágico, senão, um apelo ao projeto de comunhão, solidariedade e partilha, que fazem parte do projeto criador e salvador de Deus.

Onde está, então, o “milagre” da multiplicação? Ele está no fato de Jesus qualificar aquele gesto de condividir (por em comum / partilhar) como sendo da vontade de Deus, através da bênção que profere sobre os alimentos. Dito de outro modo, a Bênção que Jesus profere indica que a partilha e a condivisão representam a vontade e o querer de Deus, desde a criação.

“Todos comeram e ficaram satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram” (v.17). Quando a comunidade partilha e coloca em comum o que tem, realiza, então a vontade de Deus; atualiza e assume a mesma vida, existência e missão de Jesus em seu meio; alimenta (cuida e acolhe) os irmãos (a todos, e, em especial, os pobres, excluídos e marginalizados), ninguém passa necessidade e ainda superabunda. Nesse sentido, a comunidade assume uma vida eucarística no modo de Jesus.

Seria uma incoerência de nossa parte, partirmos o pão-corpo sacramental do Senhor em nossas Eucaristias, quando não partilhamos o pão cotidiano com o irmão. O que celebramos – enquanto um “nós eclesial” – em nossa liturgia deve ecoar na vida concreta. Ao nos alimentarmos do corpo e do Sangue do Senhor, somos eucaristizados em seu Corpo real e, portanto, eclesial, para sermos no mundo e na história suas mãos realizadoras da partilha, seus pés que vão ao encontro do irmão e seu coração, colocando-nos à serviço dos irmãos. Nisto consiste fazer comunhão (relação existencial, vital e sacramental) com o Corpo e com o Sangue do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 15 de junho de 2019

Homilia para a Solenidade da Santíssima Trindade – Jo 16,12-15:




Celebra-se em toda a Igreja a solenidade da Santíssima Trindade, ao interno do tempo comum, já retomado após Pentecostes. No entanto, a liturgia ainda propõe a leitura do Quarto Evangelho. A perícope oferecida é a que se encontra no capítulo dezesseis do Evangelho segundo João. O presente texto, Jo 16,12-15, nos mergulhar na solenidade de hoje.

O capítulo dezesseis encontra-se, como já estamos familiarizados, na segunda parte do evangelho joanino. Precisamente no chamado testamento de Jesus, a grande catequese-ensino do Senhor que acontece ao redor da mesa, naquela ceia de despedida às vésperas da páscoa judaica. Ao redor da mesa, Jesus revela o conteúdo do seu testamento, ou seja, o dom da sua vida (simbolizado pelo gesto do Lava-pés, em Jo 13) e o mandamento novo do amor, através do qual a comunidade dos discípulos se pautará em viver, animada pelo Dom do Espírito. Continuando e atualizando a vida e a missão de Jesus. E, para que a comunidade tenha a força para viver conforme Seu modelo de vida promete, então, o Dom do Espírito.

O texto proposto pela liturgia é retomado a partir do v.12. Jesus firma aos discípulos sentados ao seu redor, na ceia: “Tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora”. O Espírito será o intérprete da vida de Jesus para a comunidade. Mas isso só será possível mediante o evento de Sua morte-ressurreição. Pois será somente a partir da ressurreição que a comunidade poderá reler a vida, missão, obra e ensinamento de Jesus, com auxílio do Espírito. A ressurreição de Jesus e o Dom de Seu Espírito permitirão à comunidade atualizar a vida e a presença do Senhor no meio deles. De fato, seria impossível compreender as coisas antes que elas aconteçam.

Por cinco vezes, durante o discurso, Jesus promete enviar o Espírito Santo quando retornar para o mundo do Pai (cf. 14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos não permanecerão sozinhos, pois através do Espírito, a presença de Jesus se eternizará no meio deles. O Evangelho de hoje contém a quinta e última promessa (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

O Jesus joanino adjetiva o Seu Espírito como “Espírito da verdade”. Verdade no evangelho joanino significa “amor/fidelidade”. Não se trata de uma verdade abstrata, filosófica ou racional. A fidelidade/amor é o modo através do qual Jesus decide-se por viver em relação ao Pai que é amor fiel, e em relação às pessoas. Por isso, não se trata de uma verdade estática, mas dinâmica.

As “coisas futuras” que serão anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade cristã – Igreja – sempre encontrará situações novas e surpreendentes ao longo da história. Independente da época, deverá interpretar tais circunstâncias à luz de tudo o que Jesus ensinou. Só é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Evidentemente, não se trata da solenidade de Pentecoste, mas Jesus esclarece o que faz o Espírito: “Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (v. 14). O Espírito faz a comunidade compreender que Jesus é vencedor. É o Espírito que agirá na ressurreição de Jesus, tornando sua existência e vida em existência e vida salvíficas. Ele atualiza na vida da comunidade a própria vida de Jesus.

O eco trinitário que emerge do texto de hoje encontra-se no v.15: “Tudo o que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos anunciará, é meu”. Vê-se aqui o tema do amor (comunhão) e da unidade existentes entre Jesus e o Pai. É sob o mistério da comunhão, amor e unidade que o Deus uno e trino pauta o seu viver desde o interno de sua vida intra-divina. Esta vida, num mesmo mistério de amor extrapola para fora da Trindade Santa e quem a revela é Jesus no Espírito.

Da vida da Trindade somos todos chamados a participar através do Batismo recebido, o qual nos dá o Dom do Espírito, que habilita a chamar Deus de Pai e Jesus de Senhor. Assim, o Espírito nos garante acesso a vida de Jesus e do Pai, porque nos leva para dentro de sua relação de comunhão e amor, para vivermos segundo a vida do mesmo Filho, inscrita em nós pelo Espírito. Ou seja, para vivermos uma vida segundo o modelo da Trindade, em amor, comunhão e unidade.

Que a vida da Santíssima Trindade, que já nos inhabita desde o Batismo, possa ser vivida através de nossa existência e mediante o testemunho de fé da comunidade cristã, a qual é espelho da comunidade perfeita formada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 8 de junho de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES - Jo 20,19-23:




O tempo pascal chega a sua plenitude com o a solenidade de Pentecostes. O Mistério Pascal do Senhor, que compreendem os eventos de sua paixão, morte e ressurreição, engloba a ascensão e o Pentecostes. Cumprindo sua promessa, o Senhor não nos deixa sozinhos. Envia seu Espírito para performar a vida dos discípulos e discípulas de todos os tempos e lugares, inscrevendo (escrevendo a partir de dentro) neles a Sua vida.

O Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da páscoa e das tendas. Era celebrada cinquenta dias após a páscoa. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas”, pois contavam-se sete semanas após a páscoa, mais um dia, o que totalizava cinquenta dias. Por isso, ganhou o nome de “pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecoste) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo dia (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32). Como todas as festas judaicas, também pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo; era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus. Com o passar do tempo, essa festa foi perdendo sua relação com a agricultura, e foi ganhando um novo significado, com uma conotação mais religiosa. O motivo da celebração passou, então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições, iam a Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei dada através de Moisés. Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto e faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa judaica de pentecostes, como artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo. Para permanecer fiel a Jesus e ao seu Evangelho, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés, deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

O evangelho que a liturgia de hoje nos convida a meditar encontra-se no capítulo 20 do Evangelho segundo João. Em duas ocasiões João fala do dom do Espírito neste bloco literário do Livro da Glória. A primeira ocasião é na narrativa da paixão, quando Jesus, do alto da cruz entrega – doa – seu Espírito, e nesta pequena perícope que agora visualizamos, Jo 20,19-23.

Enquanto os hebreus celebravam o dom da Lei, a comunidade cristã celebra o dom do Espírito. Com Jesus não existe mais uma lei externa ao homem a ser observada, mas uma força e dinâmica interna a acolher que irradia um dinamismo de vida e de amor. Este é o dom do Espirito.

O evangelista situa o leitor-discípulo no tempo e no espaço da narrativa, divergindo completamente da cronologia de Lucas (At 2,1-11), narrando no mesmo dia da ressurreição do Senhor o dom de Seu Espírito, porque para o autor e sua comunidade, o sistema levítico-cultual e a lei judaica, bem como toda sua tradição religiosa e liturgia foram superados por Jesus através da práxis de sua vida – há exegetas que preferem o termo substituição à superação. O autor do Quarto Evangelho não quer que a sua comunidade se paute, novamente, pelos esquemas do judaísmo. Por isso, o dom do Espírito, da parte de Jesus, acontece naquele primeiro dia da semana, o domingo pascal da ressurreição do Senhor.  O catequista bíblico rememora o fato de que os discípulos encontravam-se fechados por medo dos judeus (quando se fala de judeus no evangelho joanino, o autor se refere às autoridade do povo judeu, e não ao povo). Não era somente Jesus o procurado e tido como perigoso, mas a sua doutrina e o seu grupo também o eram.

As portas fechadas e o medo indicam a situação da comunidade: amedrontada e paralisada. O medo é o contrário da Fé, na teologia bíblica. Apesar do medo, o fato de estarem reunidos já acena para um sinal de esperança. João, por gostar sempre da técnica do contraste (luz / trevas; noite (escuridão) / madrugada (alvorecer)), realça como podemos ver, uma vez mais, a oposição e mudança entre o medo que os discípulos sentiam para a alegria que nasce a partir da manifestação de Jesus, que se coloca no meio deles (v.19a). Quando o ressuscitado se manifesta a sua comunidade, ele se coloca no meio deles. O evangelista João quer ensinar que, ao interno da comunidade todos devem referenciar a sua vida a Jesus, que é o centro e fundamento dela. Se Jesus está no meio (ao centro), então não existe maior nem menor, não existe o mais importante ou menos importante; todos são iguais.

Para que os dons do Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a sua centralidade na comunidade seja respeitada; isso vale para todos os tempos e lugares. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado e somente Ele, pois é Ele o único ponto de referência e fator de unidade (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Jesus comunica o primeiro dom: “Paz a vós” (v.19b). O texto grego não permite ver este dito de Jesus apenas como uma saudação, “a paz esteja convosco”. É, antes, e acima de tudo, um dom que se comunica. A paz que Jesus comunica é aquele shalom, que corresponde a tudo aquilo que concorre para a felicidade do homem. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (Paz) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). O Jesus joanino, ao desejar a Paz (Shalom) pretende ensinar que através do Dom de sua vida vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada! Tudo encontra-se plenificado ou superado (cf. KONINGS, 2005, p. 355).

Em seguida, mostra-lhes as mãos e o lado, os sinais de sua paixão morte. O crucificado é o ressuscitado. Ele carrega consigo os sinais de sua paixão e morte, reafirmando aos discípulos que há uma continuidade de identidade. Não se trata de outro Jesus, mas o mesmo Jesus de Nazaré, crucificado, e agora, ressuscitado. O crucificado é o glorificado, e mais uma vez João opera seu contraste. Vendo isto, os discípulos ficaram alegres, por verem o Senhor. Os discípulos passam do medo à alegria ao verem os sinais da vida de Jesus, as mãos e o lado.

É importante recordar: Nas mãos e no lado de Jesus está a sua identidade de quem viveu para servir e amar. As mãos são símbolo e recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos que tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (cf. Mc 1,40), mãos que acariciaram crianças, gerando revolta nos discípulos (cf. Lc 18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (cf. Jo 9,6), mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (cf. Lc 4,40; 13,13), mãos que lavaram os pés dos discípulos (cf. Jo 13,1-12); enfim, são mãos que promoveram a vida e combateram o mal. Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou-os infinitamente (cf. Jo 13,1), e continua amando da mesma forma. As mãos e o lado de Jesus são a síntese da sua vida, da sua mensagem e da sua práxis (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Novamente Jesus comunica a Paz. Mas desta vez, o dom da paz que Ele comunica é para que os discípulos a comuniquem aos outros. Em seguida, acrescenta: “Como o Pai me enviou, eu também vos envio” (v.21b). O Pai enviou a Jesus para manifestar visivelmente sua Glória. Ou seja, sua presença através da vida vivida em amor até o fim. O Pai enviou o Filho para manifestar seu Amor. E este amor foi manifestado através de uma vida que se coloca a serviço em amor gênero pelos outros. O que Jesus manifestou e visibilizou no episódio do lava-pés. “Eu também vos envio”: a comunidade toma parte da missão da vida e missão de Jesus. Mas o dever da comunidade não é o de ir a anunciar, propor ou impor uma lei ou doutrina, e sim comunicar o amor. Como o Pai enviou o Filho para manifestar o seu amor, a comunidade, deve ser a testemunha visível do amor generoso e doador de vida do Pai e do Filho, que se torna serviço aos irmãos.

Em seguida, Jesus sopra sobre os discípulos: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Gesto que o evangelista toma e assimila do Livro do Gênesis, quando da narrativa da criação (Gn 1,1 – 2,25), o Senhor sopra nas narinas do homem formado do barro, um sopro de vida, que o faz um ser vivente. O gesto de Jesus, narrado por João, trata-se uma recriação. A ressurreição e o Dom do Espírito são os sinais efetivos da nova criação realizada em Cristo Jesus. E, diz: “recebei o Espírito Santo”. No texto grego, não aparece o artigo definido masculino “o Espírito”, mas “Recebei Espírito Santo”. Jesus havia dito anteriormente que daria o Espírito sem medida.  O dom do Espírito é total. Ele é o Dom em plenitude. É Santo não pela sua qualidade divina somente, mas por aquilo que realiza: santifica. Santo, na teologia bíblica, significa separado. Mas separado para que e de quem? Santo é tudo aquilo ou todos aqueles que são separados do maligno. O Espírito é Santo porque separa da esfera do mal a pessoa que O acolhe, para fazer vive-la no projeto de Deus, que é dinamismo de amor e vida plena.

“A quem perdoardes os pecados, estes lhes serão perdoados. A quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos” (v.23). Como entender estas palavras de Jesus? Comecemos pelo termo Pecado. Pecado na bíblia não significa propriamente uma atitude moral, ou mesmo a culpabilidade moral da pessoa. Mas, primeiramente a atitude de não-escuta da Palavra de Deus, que leva à situação de injustiça. Ou seja, pecado refere-se a situação de passado injusto (de não-vontade de Deus) do individuo. Nesse sentido, Jesus não está dando um poder a alguns, mas uma responsabilidade a toda a comunidade cristã.

A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz, suas mãos e seu coração; e é o Espírito Santo quem a habilita a fazer isso (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

A comunidade cristã deve ser luz e irradiar esta luz de vida e amor para a humanidade, de acordo com a vida e o amor de Jesus. Todos aqueles que veem, recebem e assimilam a vida, o amor e o testemunho da comunidade e são atraídos por este amor e vida de Jesus, aderindo a ele, tem o seu passado injusto cancelado. Aqueles que renegam este modo de vida e amor de Jesus irradiados pela comunidade permanecem nas traves e sobre o domínio do pecado. Mas os pecados ficarão retidos também quando houver omissão da comunidade da vida e do testemunho da comunidade cristã.

Nesse sentido, o envio e o mandato que Jesus confere à comunidade não são para julgar ou condenar, mas oferecer a todas as pessoas uma proposta de plenitude de vida. Desta vida no Espírito de Jesus somos tornados participantes pelo batismo-crisma: fomos investidos pelo Espírito, que inscreve a letra de Cristo na página de nossa vida, para vivermos a própria vida do Senhor. O Espírito Santo inscreve (escreve a partir de dentro) Cristo em nós. A este Dom que o Senhor nos dá, chamamos Graça. A Graça é Cristo em nós através de seu Espírito, que nos faz filhos no Filho, a fim de vivermos como este mesmo Filho de Deus.

O texto nos questiona: 1) Estamos celebrando o Pentecostes. Já faz cinquenta dias que estamos envolvidos pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição interior: amedrontados e fechados (paralisados na vida da fé e na missão), ou alegres e reedificados na Fé, pela virtude do Ressuscitado, que é seu Espírito em nós? 2) Nossas comunidades encontram-se ressuscitadas e animadas conforme o Espírito, ou seja, conseguem testemunhar Cristo Ressuscitado para o mundo, e, com isso, viver a missão confiada?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 1 de junho de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Lc 24,46-53 (ano C)




O tempo pascal encaminha-se para sua conclusão. A liturgia da Igreja celebra neste domingo a solenidade da Ascensão do Senhor. A comunidade eclesial professa a plenitude da ressurreição do Senhor. O Senhor ressuscitado, ao retornar para o âmbito (esfera e mundo) de Deus leva consigo a natureza humana. Ele não volta sozinho para o Pai, mas leva a nossa humanidade com Ele e a orienta para seu fim último e definitivo: a vida de Deus.

A liturgia nos propõe o texto de Lc 24,46-53. Estamos no último capítulo do evangelho segundo Lucas, que iniciou com o relato do anúncio da ressurreição às mulheres, seguido da manifestação do Senhor ressuscitado aos discípulos na estrada de Emaús (Lc 24,12); narrando-se depois a manifestação à Simão e à toda a comunidade (Lc 24,34ss), até chegar à conclusão narrativa que temos diante dos olhos.

No v.46, o evangelista nos informa que Jesus explicou o sentido das escrituras aos discípulos, após comer com eles, recordando que o Cristo deveria sofrer, mas ressuscitar ao terceiro dia. Esta recordação de Jesus corrobora a fala do mensageiro celestial às mulheres logo na introdução do capítulo. Elas deveriam, juntamente com o grupo dos discípulos, recordar o que Jesus havia dito sobre o seu destino. Para se fazer a experiência com o ressuscitado, a comunidade deve fazer a memória atualizadora da vida e da missão de Jesus. Fazer memória significa atualizar sua presença assimilando na vida cotidiana a exemplaridade da vida de Jesus.

Mas Lucas toca no tema do cumprimento das escrituras. É importante que os discípulos, que ainda estavam apreensivos e decepcionados com os últimos acontecimentos, acolham o desfecho final da vida de Jesus como cumprimento das Escrituras. Só assim, poderiam aceitá-lo como o Cristo e proclamá-lo, como fizeram depois (cf. CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

Nos vv. 47-48, o Jesus de Lucas toca no tema da missão. A missão da comunidade consiste em oferecer e testemunhar a reconciliação realizada por Jesus à todos os povos. O evangelista trabalha aqui com um tema que lhe é muito caro, a universalidade da salvação: a salvação é para todos, indistintamente. Ninguém fica excluído dela. A missão é testemunhar a misericórdia de Deus através do dom da vida de Jesus. Assim, a comunidade assimila, vive e testemunha a missão de Jesus quando ela mesma assume a exemplaridade da vida dele.

O que Jesus fez deverão fazer seus discípulos. Para que os discípulos e a comunidade vivam profundamente a vida e missão de Jesus, devem ser revestidos da “força do Alto”: o Espírito Santo. Ora, a vida de Jesus foi toda pautada e conduzida pelo Espírito de Deus. No Evangelho de Lucas, tudo o que Ele realiza e vive, o faz segundo o Espírito. No relato do Batismo, é o Espírito que o investe para missão. No deserto, é o Espírito que o conduz. Na Sinagoga de Nazaré, declara-se ungido pelo Espírito. É por este momento que os discípulos deverão esperar, pela vinda da força do Alto. O evangelista usa do termo grego dynamis. A força (dynamis) do Alto é o dinamismo de vida que anima e move a vida dos discípulos e da comunidade para viver a missão, vivendo a vida mesma de Cristo.

O evangelista descreve a cena seguinte (a ascensão, propriamente dita), narrando a atitude de Jesus de “levar para fora” da cidade os discípulos, próximo à Betânia. Dois detalhes devem chamar nossa atenção. Lucas emprega um termo que alude ao tema do Êxodo. No relato da transfiguração (Lc 9), as duas personagens Moisés e Elias conversam com Jesus sobre o êxodo que ele realizaria através do dom de Sua vida, de sua Páscoa. Agora, o evangelista mostra para a sua comunidade a realização deste Êxodo. Outro detalhe é a localização, perto de Betânia. Seguir na direção de Betânia significa tomar o caminho contrário à Jerusalém; aquele caminho da entrada triunfante de Jesus na cidade santa, na ocasião da Páscoa. Se, de Betânia Jesus marcha para sua paixão e morte de cruz, seu êxodo de morte e vida, agora, na direção contrária de Jerusalém ele marcha definitivamente para junto do Pai.

Lucas narra um gesto de Jesus enquanto é levado para o alto. É a primeira vez que o evangelista narra Jesus abençoando e este gesto coincide com sua exaltação à direita de Deus, sua ascensão. A benção bíblica não é um ato mágico, uma vez que a fé de Israel não admitia nenhum aspecto de “mágico”.  A Benção é, primeiramente, uma “bendizência”, ou seja, o ato de bendizer à Deus recordando seus feitos, aquilo que realizou em favor dos seus, para tornarem-se lugar da presença de Deus. Ela assume uma dinâmica performativa, ou seja, realiza aquilo que diz, transmitindo uma força eficaz e irrevogável. A benção bíblica (que a Liturgia eclesial assumiu em seu dinamismo celebrativo-litúrgico) comunica a essência daquele que abençoa nos que são abençoados. Assim, os discípulos, que são abençoados, difundirão a bênção e, através dela, farão novos discípulos.

Depois de abençoar os discípulos, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus. É âmbito divino e expressa a condição divina. Aplicando essa imagem a Jesus, o evangelista pretende afirmar que Jesus cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a essa missão, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu e o justificou, ao entronizá-lo a sua direita. Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai (“foi levado para os céus” encontra-se na voz passiva, que indica que a ação em relação ao Filho foi realizada por Deus-Pai), assim como a ressurreição.

A sua elevação não é outra coisa que retornar ao âmbito do divino. Aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto pelas lideranças religiosas e políticas, agora está à Direita de Deus. Porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence a esfera da divindade.

Mas esta elevação-ascensão de Jesus não é uma separação ou um distanciamento do homem. O mistério deste acontecimento pretende mostrar que Ele leva com sigo a nossa humanidade, porque a fez sua, elevando e glorificando a Carne e a Natureza humana. E mais ainda, desde a plenitude de sua divindade colabora com a atividade dos seus.

“Eles o adoraram. Em seguida voltaram para Jerusalém, com grande alegria. E estavam sempre no Templo, bendizendo a Deus” (vv.52-53). Adorar é o gesto característico do reconhecimento do senhorio de Jesus. Sabem que Jesus é realmente o salvador, por isso expressam uma “grande alegria”, sentimento semelhante ao dos pastores com o anúncio do nascimento (cf. Lc 2,10). Essa “grande alegria” é uma característica essencial do discipulado, na perspectiva de Lucas; fora antecipada no início do livro por Maria (cf. 1,47), pelos pastores e pelos anjos (cf. 2,8-20), e agora toma conta dos discípulos e, através deles, se estenderá por todo o mundo (cf. CORNELIO, F, Homilia dominical, in porcausadeumcertoreino.blogspot.com).

O Evangelho de Lucas começa e termina no Templo de Jerusalém. De fato, após o prólogo, encontramos Zacarias oficiando no Templo (Lc l,5ss): é o tempo de Israel que, aos poucos, dá lugar ao tempo do Espírito que anima a comunidade cristã, a fim de que ela saiba atuar na mesma perspectiva libertadora de Jesus, segundo o Seu Espírito que inscreve no homem a vida do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP