sábado, 8 de junho de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DE PENTECOSTES - Jo 20,19-23:




O tempo pascal chega a sua plenitude com o a solenidade de Pentecostes. O Mistério Pascal do Senhor, que compreendem os eventos de sua paixão, morte e ressurreição, engloba a ascensão e o Pentecostes. Cumprindo sua promessa, o Senhor não nos deixa sozinhos. Envia seu Espírito para performar a vida dos discípulos e discípulas de todos os tempos e lugares, inscrevendo (escrevendo a partir de dentro) neles a Sua vida.

O Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico judaico, juntamente com as festas da páscoa e das tendas. Era celebrada cinquenta dias após a páscoa. Na Bíblia hebraica é chamada de “festa das semanas”, pois contavam-se sete semanas após a páscoa, mais um dia, o que totalizava cinquenta dias. Por isso, ganhou o nome de “pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecoste) a partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente quinquagésimo dia (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32). Como todas as festas judaicas, também pentecostes tem suas origens ligadas à vida agrícola do povo; era a festa da colheita. Os peregrinos iam a Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus. Com o passar do tempo, essa festa foi perdendo sua relação com a agricultura, e foi ganhando um novo significado, com uma conotação mais religiosa. O motivo da celebração passou, então, a ser o agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições, iam a Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei dada através de Moisés. Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos, se serve desse contexto e faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa judaica de pentecostes, como artifício literário e teológico, para ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo. Para permanecer fiel a Jesus e ao seu Evangelho, a comunidade cristã já não necessita das prescrições da Lei de Moisés, deve apenas estar sensível e aberta aos dons do Espírito Santo (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. Porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

O evangelho que a liturgia de hoje nos convida a meditar encontra-se no capítulo 20 do Evangelho segundo João. Em duas ocasiões João fala do dom do Espírito neste bloco literário do Livro da Glória. A primeira ocasião é na narrativa da paixão, quando Jesus, do alto da cruz entrega – doa – seu Espírito, e nesta pequena perícope que agora visualizamos, Jo 20,19-23.

Enquanto os hebreus celebravam o dom da Lei, a comunidade cristã celebra o dom do Espírito. Com Jesus não existe mais uma lei externa ao homem a ser observada, mas uma força e dinâmica interna a acolher que irradia um dinamismo de vida e de amor. Este é o dom do Espirito.

O evangelista situa o leitor-discípulo no tempo e no espaço da narrativa, divergindo completamente da cronologia de Lucas (At 2,1-11), narrando no mesmo dia da ressurreição do Senhor o dom de Seu Espírito, porque para o autor e sua comunidade, o sistema levítico-cultual e a lei judaica, bem como toda sua tradição religiosa e liturgia foram superados por Jesus através da práxis de sua vida – há exegetas que preferem o termo substituição à superação. O autor do Quarto Evangelho não quer que a sua comunidade se paute, novamente, pelos esquemas do judaísmo. Por isso, o dom do Espírito, da parte de Jesus, acontece naquele primeiro dia da semana, o domingo pascal da ressurreição do Senhor.  O catequista bíblico rememora o fato de que os discípulos encontravam-se fechados por medo dos judeus (quando se fala de judeus no evangelho joanino, o autor se refere às autoridade do povo judeu, e não ao povo). Não era somente Jesus o procurado e tido como perigoso, mas a sua doutrina e o seu grupo também o eram.

As portas fechadas e o medo indicam a situação da comunidade: amedrontada e paralisada. O medo é o contrário da Fé, na teologia bíblica. Apesar do medo, o fato de estarem reunidos já acena para um sinal de esperança. João, por gostar sempre da técnica do contraste (luz / trevas; noite (escuridão) / madrugada (alvorecer)), realça como podemos ver, uma vez mais, a oposição e mudança entre o medo que os discípulos sentiam para a alegria que nasce a partir da manifestação de Jesus, que se coloca no meio deles (v.19a). Quando o ressuscitado se manifesta a sua comunidade, ele se coloca no meio deles. O evangelista João quer ensinar que, ao interno da comunidade todos devem referenciar a sua vida a Jesus, que é o centro e fundamento dela. Se Jesus está no meio (ao centro), então não existe maior nem menor, não existe o mais importante ou menos importante; todos são iguais.

Para que os dons do Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a sua centralidade na comunidade seja respeitada; isso vale para todos os tempos e lugares. Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro do seu existir esteja o Ressuscitado e somente Ele, pois é Ele o único ponto de referência e fator de unidade (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Jesus comunica o primeiro dom: “Paz a vós” (v.19b). O texto grego não permite ver este dito de Jesus apenas como uma saudação, “a paz esteja convosco”. É, antes, e acima de tudo, um dom que se comunica. A paz que Jesus comunica é aquele shalom, que corresponde a tudo aquilo que concorre para a felicidade do homem. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (Paz) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento (o Shalom) que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). O Jesus joanino, ao desejar a Paz (Shalom) pretende ensinar que através do Dom de sua vida vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada! Tudo encontra-se plenificado ou superado (cf. KONINGS, 2005, p. 355).

Em seguida, mostra-lhes as mãos e o lado, os sinais de sua paixão morte. O crucificado é o ressuscitado. Ele carrega consigo os sinais de sua paixão e morte, reafirmando aos discípulos que há uma continuidade de identidade. Não se trata de outro Jesus, mas o mesmo Jesus de Nazaré, crucificado, e agora, ressuscitado. O crucificado é o glorificado, e mais uma vez João opera seu contraste. Vendo isto, os discípulos ficaram alegres, por verem o Senhor. Os discípulos passam do medo à alegria ao verem os sinais da vida de Jesus, as mãos e o lado.

É importante recordar: Nas mãos e no lado de Jesus está a sua identidade de quem viveu para servir e amar. As mãos são símbolo e recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos que tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (cf. Mc 1,40), mãos que acariciaram crianças, gerando revolta nos discípulos (cf. Lc 18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (cf. Jo 9,6), mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (cf. Lc 4,40; 13,13), mãos que lavaram os pés dos discípulos (cf. Jo 13,1-12); enfim, são mãos que promoveram a vida e combateram o mal. Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou-os infinitamente (cf. Jo 13,1), e continua amando da mesma forma. As mãos e o lado de Jesus são a síntese da sua vida, da sua mensagem e da sua práxis (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

Novamente Jesus comunica a Paz. Mas desta vez, o dom da paz que Ele comunica é para que os discípulos a comuniquem aos outros. Em seguida, acrescenta: “Como o Pai me enviou, eu também vos envio” (v.21b). O Pai enviou a Jesus para manifestar visivelmente sua Glória. Ou seja, sua presença através da vida vivida em amor até o fim. O Pai enviou o Filho para manifestar seu Amor. E este amor foi manifestado através de uma vida que se coloca a serviço em amor gênero pelos outros. O que Jesus manifestou e visibilizou no episódio do lava-pés. “Eu também vos envio”: a comunidade toma parte da missão da vida e missão de Jesus. Mas o dever da comunidade não é o de ir a anunciar, propor ou impor uma lei ou doutrina, e sim comunicar o amor. Como o Pai enviou o Filho para manifestar o seu amor, a comunidade, deve ser a testemunha visível do amor generoso e doador de vida do Pai e do Filho, que se torna serviço aos irmãos.

Em seguida, Jesus sopra sobre os discípulos: “E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Gesto que o evangelista toma e assimila do Livro do Gênesis, quando da narrativa da criação (Gn 1,1 – 2,25), o Senhor sopra nas narinas do homem formado do barro, um sopro de vida, que o faz um ser vivente. O gesto de Jesus, narrado por João, trata-se uma recriação. A ressurreição e o Dom do Espírito são os sinais efetivos da nova criação realizada em Cristo Jesus. E, diz: “recebei o Espírito Santo”. No texto grego, não aparece o artigo definido masculino “o Espírito”, mas “Recebei Espírito Santo”. Jesus havia dito anteriormente que daria o Espírito sem medida.  O dom do Espírito é total. Ele é o Dom em plenitude. É Santo não pela sua qualidade divina somente, mas por aquilo que realiza: santifica. Santo, na teologia bíblica, significa separado. Mas separado para que e de quem? Santo é tudo aquilo ou todos aqueles que são separados do maligno. O Espírito é Santo porque separa da esfera do mal a pessoa que O acolhe, para fazer vive-la no projeto de Deus, que é dinamismo de amor e vida plena.

“A quem perdoardes os pecados, estes lhes serão perdoados. A quem não os perdoardes, eles lhes serão retidos” (v.23). Como entender estas palavras de Jesus? Comecemos pelo termo Pecado. Pecado na bíblia não significa propriamente uma atitude moral, ou mesmo a culpabilidade moral da pessoa. Mas, primeiramente a atitude de não-escuta da Palavra de Deus, que leva à situação de injustiça. Ou seja, pecado refere-se a situação de passado injusto (de não-vontade de Deus) do individuo. Nesse sentido, Jesus não está dando um poder a alguns, mas uma responsabilidade a toda a comunidade cristã.

A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se presente em todas as situações para, assim, tornar presente também o Ressuscitado com a sua paz, suas mãos e seu coração; e é o Espírito Santo quem a habilita a fazer isso (CORNÉLIO, F, Homilia dominical, in. porcausadeumcertoreino.blogspot.br).

A comunidade cristã deve ser luz e irradiar esta luz de vida e amor para a humanidade, de acordo com a vida e o amor de Jesus. Todos aqueles que veem, recebem e assimilam a vida, o amor e o testemunho da comunidade e são atraídos por este amor e vida de Jesus, aderindo a ele, tem o seu passado injusto cancelado. Aqueles que renegam este modo de vida e amor de Jesus irradiados pela comunidade permanecem nas traves e sobre o domínio do pecado. Mas os pecados ficarão retidos também quando houver omissão da comunidade da vida e do testemunho da comunidade cristã.

Nesse sentido, o envio e o mandato que Jesus confere à comunidade não são para julgar ou condenar, mas oferecer a todas as pessoas uma proposta de plenitude de vida. Desta vida no Espírito de Jesus somos tornados participantes pelo batismo-crisma: fomos investidos pelo Espírito, que inscreve a letra de Cristo na página de nossa vida, para vivermos a própria vida do Senhor. O Espírito Santo inscreve (escreve a partir de dentro) Cristo em nós. A este Dom que o Senhor nos dá, chamamos Graça. A Graça é Cristo em nós através de seu Espírito, que nos faz filhos no Filho, a fim de vivermos como este mesmo Filho de Deus.

O texto nos questiona: 1) Estamos celebrando o Pentecostes. Já faz cinquenta dias que estamos envolvidos pela ressurreição do Senhor. Por isso, qual a nossa condição e predisposição interior: amedrontados e fechados (paralisados na vida da fé e na missão), ou alegres e reedificados na Fé, pela virtude do Ressuscitado, que é seu Espírito em nós? 2) Nossas comunidades encontram-se ressuscitadas e animadas conforme o Espírito, ou seja, conseguem testemunhar Cristo Ressuscitado para o mundo, e, com isso, viver a missão confiada?

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP.

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