A
Liturgia de hoje retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas e, apropria-se,
para esta Solenidade do Corpo e do Sangue do Senhor, do capítulo nono do terceiro
evangelho, a partir do v.11b, onde se narra o episódio do que ficou conhecido como
multiplicação dos pães.
Para
compreender esta perícope de Lc 9,11b-17, é preciso situar o capítulo desde o
começo. Os vv.1-6 abrem o capítulo narrando o envio do grupo dos Doze para a missão,
por parte de Jesus. Os versículos seguintes (v.7-9) reinsere a figura de Herodes,
que reconhece ter matado o Batista, e dando a sua impressão sobre a pessoa de
Jesus. Lucas volta, novamente, o foco da narrativa para os discípulos no v.10, ao
narrar o retorno dos Doze da missão. Do v.11 em diante, tem-se, pois a
narrativa bíblica desta solenidade.
Outro
elemento que deve chamar a nossa atenção é a localização geográfica na qual se
narra toda a ação de Jesus até o presente momento. Ele está percorrendo a
Galileia: terra de gente simples, empobrecida pelo poder vigente e pela cultura
social e religiosa da época; lugar de pessoas pagãs, segundo o raciocínio do
povo do sul; recôndito da marginalização e da exclusão. A narrativa que temos
diante de nós apresenta, pois, o ponto alto da missão de Jesus na Galileia, a ser
demonstrado pelo gesto que ele realizará a seguir. Com este episódio, Lucas
recupera o dito de Jesus na Sinagoga de Nazaré, que contém o seu discurso
inaugural e programático: “ungiu-me para anunciar a Boa Nova aos pobres, aos
cegos a recuperação da vista, a libertação aos cativos e aos oprimidos, e anunciar
o ano favorável de YHWH” (Lc 4,16).
Agora
pode-se adentrar no horizonte do texto. O v.11 inicia, dizendo que Jesus levou
os doze para um lugar próximo de Betsaida, deserto e afastado. Talvez para que
pudessem restabelecer as energias depois de uma jornada intensa de trabalho e
missão. Mas a multidão não alivia, e vai ao encontro de Jesus, que estava cuidando
deles. Jesus as acolhe e começa a ensinar e curar os que necessitavam.
Até
aquele momento, os discípulos tiveram contato com a vida de Jesus para poderem,
futuramente, assumir a missão confiada. Ora, estamos no capítulo nono, o qual
inicia a viagem de subida para Jerusalém (que é uma catequese que visa preparar
bem o discípulo do reino). Mas eles demonstram não terem compreendido ainda a
dinâmica da vida e da existência de Jesus. Prova disso é o fato de se aproximarem
dele para pedir que despedisse a multidão, dado o lugar deserto e a hora avançada.
Lucas
põe o acento na informação de ser ali um lugar deserto. Ele é mencionado, aqui,
para relembrar a experiência do Êxodo dos hebreus. Da mesma forma que YHWH interveio
para libertar seu povo da opressão do Egito, e atraiu-os ao deserto para alimentá-lo,
o Pai atrai para Jesus o povo faminto e oprimido para alimentá-los com sua
Palavra (ensinamento) e com sua ternura e cuidado (as curas). O evangelista
quer ensinar para sua comunidade que, a partir de Jesus, começa um novo e
definitivo Êxodo.
No
v.13, Jesus ordena: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Como inaugurador de um novo
êxodo, Ele quer ensinar e orientar seus discípulos a saírem de si e romperem
com a logica do pensar em si mesmo somente, para abri-los em relação aos outros;
a quebrar com o esquema do cada um por si, muito propagado através da ideologia
do império romano e pela religiosidade individualista e intimista do judaísmo da
época. Através desta ordem, Jesus ensina aos seus a se preocuparem e
solidarizarem-se com os outros.
Jesus
vence a tentação dos apóstolos - que espelha a prática de Herodes e dos
poderosos - e os desafia a buscar uma alternativa. Eles continuam agarrados ao
“cada um por si...”; Jesus ordena preocupar-se pelos outros, ou seja, solidarizar-se:
“Vocês é que têm de lhes dar de comer”.
Ainda
no v.13, os discípulos respondem que só possuem cinco pães e dois peixes. Mas,
para Jesus, isto é o suficiente. O resultado de 5 + 2 é 7, número que na
teologia bíblica significa plenitude. O Jesus de Lucas quer ensinar para os
seus (e para nós, hoje) que Deus dispõe tudo (da sua plenitude) para todos. Em
seguida, no v.14, Jesus orienta aos discípulos que façam sentar a multidão em
grupos de 50 pessoas, perfazendo um total de 100 grupos. Cinquenta e cem são
números perfeitos (completos), que também acenam para a completude.
Jesus
dá, então, o exemplo. “Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou
os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para
distribuí-los à multidão” (v.16). Elevar os olhos para céu (âmbito da morada de
Deus), significa orientar toda a sua ação para Deus; abençoa aqueles dons,
parte e reparte-os entre os discípulos, para que fizessem o mesmo com a
multidão. É Jesus quem inicia o gesto de condividir os alimentos e colocar em
comum o que se tem, e este ecoa entre a multidão, que vendo o exemplo, faz o mesmo.
Por isso, esta perícope merece ser
chamada de Condivisão dos pães. Pois o gesto de Jesus não é um ato mágico,
senão, um apelo ao projeto de comunhão, solidariedade e partilha, que fazem
parte do projeto criador e salvador de Deus.
Onde
está, então, o “milagre” da multiplicação? Ele está no fato de Jesus qualificar
aquele gesto de condividir (por em comum / partilhar) como sendo da vontade de
Deus, através da bênção que profere sobre os alimentos. Dito de outro modo, a Bênção
que Jesus profere indica que a partilha e a condivisão representam a vontade e
o querer de Deus, desde a criação.
“Todos
comeram e ficaram satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços
que sobraram” (v.17). Quando a comunidade partilha e coloca em comum o que tem,
realiza, então a vontade de Deus; atualiza e assume a mesma vida, existência e
missão de Jesus em seu meio; alimenta (cuida e acolhe) os irmãos (a todos, e,
em especial, os pobres, excluídos e marginalizados), ninguém passa necessidade
e ainda superabunda. Nesse sentido, a comunidade assume uma vida eucarística no
modo de Jesus.
Seria
uma incoerência de nossa parte, partirmos o pão-corpo sacramental do Senhor em
nossas Eucaristias, quando não partilhamos o pão cotidiano com o irmão. O que celebramos
– enquanto um “nós eclesial” – em nossa liturgia deve ecoar na vida concreta.
Ao nos alimentarmos do corpo e do Sangue do Senhor, somos eucaristizados em seu
Corpo real e, portanto, eclesial, para sermos no mundo e na história suas mãos
realizadoras da partilha, seus pés que vão ao encontro do irmão e seu coração,
colocando-nos à serviço dos irmãos. Nisto consiste fazer comunhão (relação
existencial, vital e sacramental) com o Corpo e com o Sangue do Senhor.
Pe.
João Paulo Sillio.
Arquidiocese
de Botucatu-SP
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