quinta-feira, 20 de junho de 2019

HOMILIA PARA A SOLENIDADE DO CORPO E DO SANGUE DO SENHOR (Corpus Christi – ano C) – Lc 9,11b-17:




A Liturgia de hoje retoma a leitura do Evangelho segundo Lucas e, apropria-se, para esta Solenidade do Corpo e do Sangue do Senhor, do capítulo nono do terceiro evangelho, a partir do v.11b, onde se narra o episódio do que ficou conhecido como multiplicação dos pães.

Para compreender esta perícope de Lc 9,11b-17, é preciso situar o capítulo desde o começo. Os vv.1-6 abrem o capítulo narrando o envio do grupo dos Doze para a missão, por parte de Jesus. Os versículos seguintes (v.7-9) reinsere a figura de Herodes, que reconhece ter matado o Batista, e dando a sua impressão sobre a pessoa de Jesus. Lucas volta, novamente, o foco da narrativa para os discípulos no v.10, ao narrar o retorno dos Doze da missão. Do v.11 em diante, tem-se, pois a narrativa bíblica desta solenidade.

Outro elemento que deve chamar a nossa atenção é a localização geográfica na qual se narra toda a ação de Jesus até o presente momento. Ele está percorrendo a Galileia: terra de gente simples, empobrecida pelo poder vigente e pela cultura social e religiosa da época; lugar de pessoas pagãs, segundo o raciocínio do povo do sul; recôndito da marginalização e da exclusão. A narrativa que temos diante de nós apresenta, pois, o ponto alto da missão de Jesus na Galileia, a ser demonstrado pelo gesto que ele realizará a seguir. Com este episódio, Lucas recupera o dito de Jesus na Sinagoga de Nazaré, que contém o seu discurso inaugural e programático: “ungiu-me para anunciar a Boa Nova aos pobres, aos cegos a recuperação da vista, a libertação aos cativos e aos oprimidos, e anunciar o ano favorável de YHWH” (Lc 4,16).

Agora pode-se adentrar no horizonte do texto. O v.11 inicia, dizendo que Jesus levou os doze para um lugar próximo de Betsaida, deserto e afastado. Talvez para que pudessem restabelecer as energias depois de uma jornada intensa de trabalho e missão. Mas a multidão não alivia, e vai ao encontro de Jesus, que estava cuidando deles. Jesus as acolhe e começa a ensinar e curar os que necessitavam.

Até aquele momento, os discípulos tiveram contato com a vida de Jesus para poderem, futuramente, assumir a missão confiada. Ora, estamos no capítulo nono, o qual inicia a viagem de subida para Jerusalém (que é uma catequese que visa preparar bem o discípulo do reino). Mas eles demonstram não terem compreendido ainda a dinâmica da vida e da existência de Jesus. Prova disso é o fato de se aproximarem dele para pedir que despedisse a multidão, dado o lugar deserto e a hora avançada.

Lucas põe o acento na informação de ser ali um lugar deserto. Ele é mencionado, aqui, para relembrar a experiência do Êxodo dos hebreus. Da mesma forma que YHWH interveio para libertar seu povo da opressão do Egito, e atraiu-os ao deserto para alimentá-lo, o Pai atrai para Jesus o povo faminto e oprimido para alimentá-los com sua Palavra (ensinamento) e com sua ternura e cuidado (as curas). O evangelista quer ensinar para sua comunidade que, a partir de Jesus, começa um novo e definitivo Êxodo.

No v.13, Jesus ordena: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Como inaugurador de um novo êxodo, Ele quer ensinar e orientar seus discípulos a saírem de si e romperem com a logica do pensar em si mesmo somente, para abri-los em relação aos outros; a quebrar com o esquema do cada um por si, muito propagado através da ideologia do império romano e pela religiosidade individualista e intimista do judaísmo da época. Através desta ordem, Jesus ensina aos seus a se preocuparem e solidarizarem-se com os outros.

Jesus vence a tentação dos apóstolos - que espelha a prática de Herodes e dos poderosos - e os desafia a buscar uma alternativa. Eles continuam agarrados ao “cada um por si...”; Jesus ordena preocupar-se pelos outros, ou seja, solidarizar-se: “Vocês é que têm de lhes dar de comer”.

Ainda no v.13, os discípulos respondem que só possuem cinco pães e dois peixes. Mas, para Jesus, isto é o suficiente. O resultado de 5 + 2 é 7, número que na teologia bíblica significa plenitude. O Jesus de Lucas quer ensinar para os seus (e para nós, hoje) que Deus dispõe tudo (da sua plenitude) para todos. Em seguida, no v.14, Jesus orienta aos discípulos que façam sentar a multidão em grupos de 50 pessoas, perfazendo um total de 100 grupos. Cinquenta e cem são números perfeitos (completos), que também acenam para a completude.

Jesus dá, então, o exemplo. “Então Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, elevou os olhos para o céu, abençoou-os, partiu-os e os deu aos discípulos para distribuí-los à multidão” (v.16). Elevar os olhos para céu (âmbito da morada de Deus), significa orientar toda a sua ação para Deus; abençoa aqueles dons, parte e reparte-os entre os discípulos, para que fizessem o mesmo com a multidão. É Jesus quem inicia o gesto de condividir os alimentos e colocar em comum o que se tem, e este ecoa entre a multidão, que vendo o exemplo, faz o mesmo.  Por isso, esta perícope merece ser chamada de Condivisão dos pães. Pois o gesto de Jesus não é um ato mágico, senão, um apelo ao projeto de comunhão, solidariedade e partilha, que fazem parte do projeto criador e salvador de Deus.

Onde está, então, o “milagre” da multiplicação? Ele está no fato de Jesus qualificar aquele gesto de condividir (por em comum / partilhar) como sendo da vontade de Deus, através da bênção que profere sobre os alimentos. Dito de outro modo, a Bênção que Jesus profere indica que a partilha e a condivisão representam a vontade e o querer de Deus, desde a criação.

“Todos comeram e ficaram satisfeitos. E ainda foram recolhidos doze cestos dos pedaços que sobraram” (v.17). Quando a comunidade partilha e coloca em comum o que tem, realiza, então a vontade de Deus; atualiza e assume a mesma vida, existência e missão de Jesus em seu meio; alimenta (cuida e acolhe) os irmãos (a todos, e, em especial, os pobres, excluídos e marginalizados), ninguém passa necessidade e ainda superabunda. Nesse sentido, a comunidade assume uma vida eucarística no modo de Jesus.

Seria uma incoerência de nossa parte, partirmos o pão-corpo sacramental do Senhor em nossas Eucaristias, quando não partilhamos o pão cotidiano com o irmão. O que celebramos – enquanto um “nós eclesial” – em nossa liturgia deve ecoar na vida concreta. Ao nos alimentarmos do corpo e do Sangue do Senhor, somos eucaristizados em seu Corpo real e, portanto, eclesial, para sermos no mundo e na história suas mãos realizadoras da partilha, seus pés que vão ao encontro do irmão e seu coração, colocando-nos à serviço dos irmãos. Nisto consiste fazer comunhão (relação existencial, vital e sacramental) com o Corpo e com o Sangue do Senhor.

Pe. João Paulo Sillio.
Arquidiocese de Botucatu-SP

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