sábado, 11 de maio de 2024

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR - Mc 16,15-20

 

O evangelista Marcos conclui seu evangelho com o anúncio da ressurreição de Jesus às mulheres, incumbindo-as da missão de comunicar aos onze que se dirijam de Jerusalém para a Galileia. O ressuscitado os encontrará lá. No entanto, amedrontadas, as mulheres fogem. Abruptamente, o evangelista interrompe a narrativa, pondo um ponto final em seu evangelho (Mc 16,1-8), o que chamamos de final original. O que suscitou certo incômodo nas comunidades cristãs do primeiro século. Por isso, a Igreja, no século II acrescentou um segundo final ao primeiro evangelho, considerando-o como final canônico, oriundo da tradição eclesial das comunidades pós-pascais. Trata-se do texto de Mc 16,9-20. A solenidade da Ascensão, no entanto, serve-se dos versículos finais deste capítulo dezesseis, Mc 16,15-20.

O Mistério da Ascensão, dentro dos acontecimentos pascais, tem a intenção de prolongar o tempo do Ressuscitado em meio aos discípulos, de modo a ajuda-los a viver e amadurecer a experiência da vida que venceu a morte. É verdade, que, quem periodiza o tempo dos eventos pós-pascais é o evangelista Lucas. Marcos – que é o evangelho a ser meditado – nem se preocupa em quantificar cronologicamente o evento. Mas o terceiro evangelista foi muito sábio ao estabelecer este período, que não é essencialmente cronológico, mas teológico. O número 40 marca “um tempo necessário”. É o período de uma geração. Nesse sentido,  após este período teológico, de acordo com o evangelista, Jesus é entronizado (colocado à direita de Deus) no céu. Isso significa que a experiência dos discípulos feita com o Senhor Ressuscitado havia sido suficiente para se compreender a novidade da ressurreição.

No v.15, o evangelista recorda a ordem de Jesus: devem sair – andar – ir, e não ficarem parados e fechados num único lugar, a fim de proclamar a Boa Nova. Através deste mandato, Marcos recorda os primeiros capítulos de seu evangelho, a missão dada aos quatro primeiros: pescar homens. Devem ir aos homens e mulheres de seu tempo e retirar lhes das situações de morte e dar lhes vida (Mc 1,16-20). Iluminados pela Ressurreição/Ascensão de Jesus, os discípulos são convidados a ressignificar e reanimar a própria vida e a Missão recebidas. Mas em que consiste esta Boa Notícia? Consiste no Amor de Deus que atinge toda criatura. Importantíssimo este versículo. Em nenhuma parte dele se fala em converter as pessoas. Mas somente: proclamar/anunciar o Evangelho. Somente o Espírito e o Evangelho geram a conversão no indivíduo. Nunca o pregador. Este é apenas instrumento. E o conteúdo da pregação e da proclamação, isto é, o Evangelho é sempre oferta gratuita; uma proposta. Jamais uma imposição. Quem faz acontecer a obra é Cristo e Seu Espírito.

Dos v.16-18, o Jesus de Marcos elenca os efeitos do anúncio da Boa Noticia naqueles que aderiram a ela. “Quem foi batizado será salvo. Quem não foi já está condenado”. Este dito do Senhor merece atenção e deve ser compreendido, de modo a evitar qualquer mentalidade exclusivista e excludente. Aquele que confronta sua consciência com Jesus, e, percebendo seu significado vital, adere a Ele está salvo. A salvação não pode ser entendida como uma localização como paraíso, céu. Mas a realização plena da humanização da pessoa, a qual acontece unicamente por meio da humanidade de Jesus. Aquele que recusa e faz resistência a Jesus e seu modo de vida, se exclui da Salvação.

No v.17, o evangelista faz a memória dos sinais que acompanharão a vida do fiel, decorrentes da opção fundamental por Jesus e seu projeto. Eles serão os mesmos realizados pelo Senhor durante sua vida e ministério: expulsar demônios; falar novas línguas; pegar em animais peçonhentos e beber venenos; impor as mãos sobre os enfermos para fazer lhes bem. Eles devem ser compreendidos bem, e dentro do horizonte do texto.

1) Expulsar demônios consiste na atitude de libertar as pessoas de todas as forças e ideologias funestas, ou sistemas, anti-projetos e situações que impedem a acolhida do Reino de Deus anunciado por Jesus. Para fazer a experiência com Deus, se faz necessária a plena liberdade. E não se trata, aqui, de exorcismos rituais. A pesquisa teológica e exegética classifica os demônios do tempo e da cultura de Jesus como psicopatologias ou enfermidades estudadas e explicadas pela medicina e pela psicologia atual. Tudo o que era desconhecido na Palestina dos anos trinta era tido como algo sobrenatural.

A própria palavra “demônio” em grego é neutra, ou seja, não possui gênero e pode significar algo ruim ou bom. Por isso, se faz necessário compreender e interpretar esta figura do demônio como sendo as mesmas coisas contra as quais o Senhor enfrentou durante sua missão: a alienação da consciência, ainda que a fonte originária deste fosse a própria instituição religiosa; a exclusão gerada pelos poderes imperiais; a prepotência e autossuficiência dos líderes religiosos; a recusa; a resistência e a maldade. Com efeito, “expulsar demônios”, de acordo com o horizonte do texto, significa eliminar o mal do mundo e comprometer-se com o Bem. Aquele que aderiu, real e profundamente, ao Evangelho elimina o mal de sua vida, e da vida de seu próximo.

Quais são os demônios que precisam ser expulsos de nosso meio? A maldade, a violência, o ódio, a vingança, a indiferença, o desamor, a maledicência, a intolerância, a soberba e puritanismo, arrogância, a autossuficiência, a mentira e a inveja e a  O amor é o antidoto frente ao mal.

Em relação ao 2) “falar novas línguas”, este sinal aponta, na verdade, para realidade da salvação e missão universal, onde o Evangelho encontra-se com a cultura, com a realidade, com homem concreto de todos os tempos e lugares. Uma boa noticia que não exclui, antes, inclui. Para bem compreender estes sinais importa recordar que eles não são dons extraordinários com os quais Jesus dota os discípulos, mas são símbolos de um compromisso: gerar e transformar vidas. Falar a língua do amor, da solidariedade, da fraternidade, da gratuidade, da fraternidade, da harmonia e da comunhão. Estas são as novas línguas faladas pelo próprio Jesus.

Ninguém deverá ser inconsequente ao manusear 3) animais selvagens e peçonhentos, tampouco beber, como tira-gosto, algum tipo de veneno; 4). Serpente e veneno simbolizam, no horizonte cultural da época, tudo o que pode causar mal e ferir. O discípulo que aderiu ao projeto de Jesus deverá ser aquele que se compromete em transformar situações de morte e de perigo em situações e condições de vida.

5) Impor as mãos sobre enfermos para fazer lhes bem: é interessante que o evangelista não use, no original em grego, o verbo “curar (Therapéuo)”, mas a expressão “fazer bem (gr. καλῶς ἕξουσιν / kalós éxousin)”, porque o gesto de impor as mãos, não necessariamente garante a cura. Ora, Jesus não curou a todos! Mas trata-se de um gesto de solidariedade, porque o enfermo, na cultura e na sociedade de seu tempo, era visto como pecador público. A enfermidade era concebida como fruto de um pecado cometido pela pessoa ou por seus antepassados. Quando o Senhor realiza um gesto terapêutico, mais do que a cura física, ele restaura a dignidade da pessoa, reinserindo-a na vida social, novamente. Impor as mãos para fazer-lhes o bem, significa, portanto, a capacidade que o discípulo e a comunidade possuem de se solidarizar, reintegrar e gerar vida.

Depois de comunicar lhes a missão, Jesus foi elevado aos Céus. É necessário compreender a cosmologia da época, isto é, a concepção de universo, espaço e tempo do povo da bíblia. O céu é o lugar da habitação de Deus, e expressa a condição divina.  “E sentou-se à direita de Deus”. Jesus dissera aos discípulos que eles veriam o Filho do Homem sentado à direita do Poder. Esta condição acena para uma posição de honra. Aplicando essa imagem ao Cristo, o evangelista pretende afirmar que Ele cumpriu plenamente a missão de revelar a face misericordiosa do Pai. Por ter sido fiel a ela, isso foi levado em conta pelo Pai, que o enalteceu, ao entronizá-lo a sua direita.

Ação de elevar o Filho é realizada pelo Pai, assim como a ressurreição. A sua elevação não é outra coisa que retornar ao âmbito divino. Desse modo, Marcos visa responder aos assassinos de Jesus: aquele homem que havia sido condenado como blasfemo, e morto por eles, agora está à Direita de Deus, porque Ele mesmo assim o quis. É uma maneira que o evangelista encontra para dizer que o Crucificado pertence, agora, ao âmbito da vida inextinguível.

A ascensão de Jesus não é uma separação ou um distanciamento do mundo e dos homens. O mistério deste acontecimento pretende mostrar que Ele leva consigo a nossa humanidade, porque a fez sua, elevando e glorificando a Carne e a Natureza humana. E, mais ainda, desde a plenitude de sua divindade colabora com a atividade dos seus, como se lê no versículo seguinte: “Os discípulos então saíram e pregaram por toda parte. O Senhor os ajudava e confirmava sua palavra por meio dos sinais que a acompanhavam” (v.20). Subiu aos céus, mas permanece com eles, tornando esta presença ainda mais intensa, e com maior proximidade.

A ascensão do Senhor marca a plenitude (ou a consumação) da ressurreição. O ressuscitado penetra o mundo do Pai, conferindo a sua comunidade a continuidade de Sua missão, proclamando a Boa Nova a toda a criação.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 4 de maio de 2024

REFLEXÃO PARA O VI DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 15,9-17:

 


O texto proposto pela liturgia para este sexto domingo da páscoa é a continuidade da alegoria da videira, meditado no domingo anterior (Jo 15,1-8). Jo 15,9-17 toca no tema do amor: o bem mais precioso que Jesus entrega em seu testamento somado ao dom de sua existência. Com isso, chegamos ao coração deste discurso de despedida que o Quarto Evangelho faz memória.

O amor é o dinamismo de vida que o Espírito de Jesus e do Pai realizam na pessoa e na realidade. Amor, que gera uma nova condição relacional entre a humanidade e Deus (amigos; e não mais servos), e a alegria, o distintivo do discípulo e da comunidade cristã.

O Senhor, na continuidade de seu ensinamento iniciado no discurso da videira, declara: “Como meu Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor” (v.9). O modelo do amor de Jesus é a forma como o Pai O ama. O evangelista usa o adverbio “como” para expressar a unidade existente entre eles. A forma como o Pai ama só pode ser encontrada na existência do Filho. Ele revela através do dom de sua vida, com gestos, atitudes, opções e palavras – durante toda a Sua missão – em que consiste o amor de Deus. 

O leitor-discípulo do Quarto Evangelho não pode se esquecer de que este discurso de despedida se dá junto a mesa. Antes, porém, Jesus realiza o gesto que expressa, profeticamente, a doação da própria vida – a sua capacidade de amar – lavando os pés dos seus (Jo 13). Este, é paradigma – modelo, forma – para a sua vida. Ele expressa a radicalidade do Seu amor.

Mas que amor é este? É importante se deter sobre esta reflexão um pouco. Na antiguidade clássica havia duas formas muito comuns de se falar de amor: Eros (gr. Ἔρως) e Filía (gr. Φιλία). O primeiro, sempre relacionado à ideia da reciprocidade. Consistia na capacidade de nutrir-se daquilo que outro pode oferecer, e, nesse sentido, oferecer-lhe o que falta. Ele está na forma sentimental, buscando identifica-lo com coisas atrativas que suscitam tudo aquilo que é belo. É uma pulsão de vida, inerente à natureza humana criada e desejada por Deus. Interessante: é o próprio Deus que cria o ser humano também com o Eros. É a busca e o anseio por tudo aquilo que pode preencher de sentido e de plenitude a vida. Impulsiona a buscar pelo outro por aquilo que ele pode dar. Esta forma de amor era expressão da vida dos apaixonados. Todavia, este impulso – pulsão – de amor corre o risco de fechar a pessoa em si mesma, e passar a uma dimensão egoística. Não é deste amor sobre o qual fala Jesus.

Quase não utilizado na antiguidade clássica pelos gregos, o ágape é a forma utilizada por Jesus para descrever, expressar e realizar o Seu amor e do Pai. O verbo agapao (gr. αγαπαω) aparece só neste discurso de despedida vinte e cinco vezes, sendo que cinco, só neste capítulo quinze. O amor ágape é a forma do amor incondicional e gratuito; é puro dom. É desinteressado. Não exige nada em troca, muito menos ser amado. Ama, não porque o outro pode corresponder e, como que numa troca, encontrar força de sentido, mas sim porque percebe a falta existente no outro. O amor com que o Cristo ama é aquele que deseja ofertar tudo se si para que o outro tenha tudo; tenha vida. É a capacidade de amar inclusive aqueles que desejam o mal ao próximo; que persegue e odeia. Portanto, é gerador de vida. Ou seja, o Senhor estabelece como Sua forma de vida este modo de amar. Assim, o amor do discípulo deverá ser como aquele vivido existencialmente pelo Mestre. Porque este não é um sentimento, mas uma atitude: doar-se em serviço. Ele não se transmite através de uma doutrina, mas por meio de gestos que comunicam e geram vida.

“Permanecei no meu amor” (v.9b). O evangelista trabalha, uma vez mais, com o verbo “permanecer” (gr. μένω), o qual indica a capacidade e estabelecer comunhão. Como já sabemos, ele alude à temática da habitação de Deus na história e na realidade. Jesus de Nazaré é a habitação – morada – de Deus definitiva. Mas o Senhor instrui o discípulo para permanecer no Seu amor. Ou seja, tornar a forma do amor com o qual Ele vive, como sua morada/habitação. Residir no amor do mestre significa tornar-se Sua morada.

“Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, assim como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor” (v.10). Jesus fala de “mandamentos” no plural. Mas na narrativa do lava-pés ele mencionou apenas um mandamento, ao qual chama de “novo”. Novo, porque supera em qualidade todos os outros mandamentos da lei de Moisés, e não por ser algo a se acrescentar ao decálogo. Existe um único mandamento: o amor. Quando este é vivido através das atitudes e gestos servidores pelo discípulo ele se torna um mandamento único, que tem a capacidade de superar os demais. Por isso, o amor transformado e vivido na dinâmica do serviço se torna a única garantia de comunhão com Jesus e o Pai. Aquele que acolhe em dom e resposta o mandamento de amor, faz a experiência da comunhão com Deus e se torna sua morada; sua habitação.

“Eu vos disse isto, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (v.11). Jesus insere um ensinamento novo na catequese acerca do amor: a alegria. O distintivo do fiel discípulo é a alegria. Esta, não depende das alternâncias da vida. A alegria provém da capacidade de sentir-se amado. Ela é a constante expressão daquele que encontrou o verdadeiro sentido da vida. Assim, a alegria consiste na capacidade de gerar vida e amor ao próximo. Não consiste numa vida sorridente, desconexa da realidade nua e crua que rodeia; não se trata de uma euforia entusiástica, ou mesmo, inconsequente. Uma pessoa/discípulo que tem em si a alegria do Seu Senhor é aquela que, mesmo diante das dificuldades e obstáculos de sua vida sabe e consegue transmitir a plenitude de vida de Jesus àquele que ainda não a tem ou à quem a perdeu. A alegria, mais do que um sentimento eufórico, é uma atitude de vida.

No versículo 13, emerge uma temática que perpassará os v.v.14-16. A amizade. “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos”. Jesus inaugura um novo modo de relação com Deus. Ele se serve do contexto da relação mestre-discípulo. Na sua época esta relação acontecia de modo muito distante. O discípulo era servo do seu mestre, e, este, por sua vez, lhe era superior, como um patrão. Todavia, a relação com Jesus (e com Deus) não se dá a partir dessa ótica. Ele chama seus discípulos de amigos. Este, é aquele que nutre proximidade, intimidade, constância, familiaridade. Sensível ao que o outro necessita e se põe a realizar, sem que lhe seja mandado ou pedido. Entre os amigos não existe maior e menor. Não há hierarquias. Há igualdade e horizontalidade. O Senhor não precisa de servos porque ele mesmo se põe a servir a humanidade. O que ele necessita é de pessoas que, como ele e com ele, colaborem com este serviço. Mas isso só é possível se o discípulo guardar, no sentido de observar, praticar, realizar o mandamento: viver a vida na dinâmica do amor gerador de vida.

“Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça” (v.16). O fruto que Jesus e o Pai desejam e esperam do discípulo é o amor. A comunidade dos discípulos não pode ser uma comunidade imóvel. Pelo contrário, ela deve ir. O evangelista usa um verbo de movimento, a fim de indicar para os discípulos que a comunidade deve viver e frutificar esse amor indo ao encontro das pessoas.

O texto de hoje propõe algumas perguntas: como temos vivido nossa relação com Jesus, na condição de servos, ou temos ousado viver na condição de amigos? Em nossa vida e em nossa comunidade a alegria tem sido o distintivo de que somos discípulos e comunidade de Jesus? Como temos vivido na prática o mandamento do amor?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 27 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA PÁSCOA – Jo 15,1-8:


 

A liturgia deste quinto domingo da páscoa continua a leitura e meditação do Quarto Evangelho. Na semana anterior, o evangelista apresentou a alegoria do Bom Pastor. Jesus se autodeclarava o “pastor ideal”, “exemplar”, modelo, porque agia de forma diferente daqueles que deviam agir como pastores do povo. A exemplaridade deste pastor se verificava pela capacidade de colocar a Sua própria vida em jogo, por causa de suas ovelhas. O texto evangélico deste final de semana apresenta outra revelação essencial do Senhor. Declara ser a videira verdadeira.

O texto de Jo 15,1-8, no horizonte da catequese joanina, encontra-se ao interno do livro da glória – a segunda parte do Quarto Evangelho. O contexto imediato em que estes oito versículos se encontram é o do bloco discursivo que compreende o Testamento de Jesus (Jo 14 – 16), através do qual o evangelista concatena e faz memória do ensinamento do Senhor destinado aos discípulos que com ele se põem à mesa. O testamento representa o elenco dos bens importantes que se deixa para alguém muito amado. Ele sempre expressa àqueles que o recebem a última vontade do doador, e, via de regra, a forma através da qual devem se empenhar por viver. Por isso, este discurso de despedida transmite e apresenta a forma através da qual o discípulo deverá viver depois da páscoa do Mestre, a fim de continuar a Sua obra, e perpetuar sua existência no seio da comunidade. 

Qual o conteúdo do testamento de Jesus? No desenvolvimento deste bloco discursivo de 14 – 16, o Senhor transmitirá o mandamento novo do Amor e o dom de sua vida – que já foi explicitado pelo gesto do lava-pés. Através de imagens muito vivas, o evangelista faz a memória das palavras do Cristo aos discípulos, de modo a ensinar para a sua comunidade qual é a forma exemplar de se viver a vida do Filho de Deus. Feita a contextualização do texto ao interno do conjunto da catequese joanina pode-se tomar os versículos que ajudarão na assimilação da mensagem de salvação.

O v.1 inicia o ensinamento de Jesus com uma solene declaração “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor”. Novamente o evangelista se recorda da expressão de revelação do nome divino. Com essa proclamação, ele pretende transmitir para sua comunidade que Deus está plena e substancialmente presente em Jesus, em suas obras e palavras. Ele é o lugar definitivo da revelação e da ação do Pai.

A declaração adquire peso ainda maior porque Jesus se declara a “videira verdadeira”. Ora, se ele diz ser a verdadeira, então existiria uma videira falsa? Há que se entender o sentido da palavra “verdade” e, então, o significado do adjetivo “verdadeiro”. Por “verdade”, o evangelho de João entende o conceito de fidelidade. A palavra Aletheia (gr. ἀλήθεια), utilizada pelo evangelista traduz o hebraico “Emet” (אמת hbr.), que significa “fidelidade”. Acontece que esta palavra traz consigo outra, indissociável, “Hesed” (חסד hbr.), que significa amor. Portanto, todas as vezes que, no Quarto Evangelho aparecer o termo verdade se deve entender por “amor fiel”. Assim, o adjetivo “verdadeira” significa fiel, aquele que age com um amor fiel. O senhor está se declarando como a videira fiel, isto é, aquela que conseguiu viver e expressar toda a fidelidade e o amor de Deus.

Na tradição religiosa do povo de Jesus, a videira (e a vinha também) era a imagem simbólica aplicada a Israel. O profeta Isaias, em seu cântico (5,1-24), narra a empreitada de um amigo seu que construí uma vinha numa fértil encosta, e esperou dela uvas boas. Frutos bons. No entanto, só produziu frutos ruins, uvas amargas. Jeremias é mais direto na crítica que faz à Israel, dizendo que o YHWH plantou uma videira excelente, mas que havia se transformado numa parreira podre e selvagem. A primeira vinha (videira), portanto, era Israel. Este, não conseguiu ser fiel ao projeto de Deus, deixando-se sempre seduzir pela idolatria e rompendo com a Aliança e com amor fiel de Deus. Jesus, ao contrário, vive na fidelidade e no amor do Pai. Por isso, supera a primeira vinha.

Jesus declara que o Pai é o agricultor. Que imagem bela. Pois, aquele que cuida da vinha se mostra próximo dela. O vinhateiro proporciona a nutrição e o cuidado. Ao dizer isso, o Senhor está revelando que é Pai que nutre e cuida de Sua vida. A seiva que sustenta a existência do Filho é o amor fiel de Deus. O Cristo, como videira, transmite aos seus ramos a mesma linfa de vida que recebeu do Pai.

O v.2 continua o ensinamento de Jesus: “Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto ele o limpa, para que dê mais fruto ainda”. Este versículo precisa ser bem compreendido para não gerar confusões. O Ramo, que mesmo estando unido à videira, e não transformou a seiva de nutrientes em uvas, é o discípulo, que, estando em Cristo, não frutificou em amor e alegria. Porém, a palavra final é do Pai, o agricultor. Somente ele, vendo se o ramo produziu ou não, a seu tempo, é quem pode realizar o corte. É uma advertência que João recolhe do ensinamento de Jesus e o destina à comunidade e a todos os discípulos. Não basta estar unido à Cristo. Há que se produzir o fruto. Pois pode muito bem acontecer de se estar na videira e, mesmo assim, ser um galho morto, ou seja, que impede a seiva de produzir o nutrimento e a gestação do fruto. Porém, a última palavra sempre será de Deus no que toca a produção e a qualidade dos frutos.

O ramo produtivo também é purificado pelo agricultor. A limpeza acontece para que este possa produzir sempre mais. Qual é o fruto produzido? Na lógica interna do texto é a lógica e o dinamismo do Amor do Senhor. A forma e modo do amor de Jesus que se doa a todos deve ser o fruto que o galho ligado à videira deve sempre produzir. Este Amor gera alegria

No v.3, Jesus revela a ferramenta da poda utilizada pelo Pai-Agricultor: “Vós já estais limpos por causa da Palavra que eu vos falei”.  A Palavra de Jesus é toda a sua existência, obra e ensinamento, unida à Escritura, a Palavra de Deus. A Palavra de Deus que se verifica unida na de Jesus, quando aceita pelo discípulo, purifica-o. Quem adere a ela fica mais unido ao Senhor e mais produtivo em termos daquilo que Deus espera. Aquele que assimila sua palavra – seu modo de viver e ser – encontra-se intimamente unido à Ele. Logo, produz o mesmo fruto de amor que Ele produz.

Para produzir o sentido da vida de Jesus em si, na vida do próximo e à esta realidade, o discípulo precisa crescer numa atitude muito importante. “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós... Vós não podereis dar fruto se não permanecerdes em mim” (v.4). O verbo “permanecer” (gr. μένein/ménein) no evangelho joanino é muito importante. Por isso, ele será recorrente até o final do discurso. João o usa 7 vezes para expressar a união entre o tronco e os ramos, ou seja, entre Jesus e os fiéis, mas também em relação ao Pai. O sentido é o da mútua inabitação de Deus (ou Jesus, ou o Paráclito) nos seus, e deles em Deus.

Da parte de Jesus, trata-se de Sua presença salvífica, como a Morada (hbr. shekiná) de Deus no meio do povo (a Tenda no deserto), só que agora, na própria existência do discípulo. Da do discípulo, na medida em que este abre espaço para a presença do Senhor em si, também ele “permanece” no âmbito de Deus. A sua vida passa ser morada de Deus, e este passa ser a morada do fiel! Por isso esse convite também deve ser lido no horizonte da comunidade joanina – e das gerações futuras.

“Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos” (v.8). O versículo oitavo encerra de modo sugestivo a alegoria da videira. Deus é glorificado quando o agir do discípulo corresponde ao agir do Filho. O agir de Jesus consiste na comunicação da vida mesma do Pai para o mundo. O agir do discípulo deverá ser a mesma comunicação de vida e de amor do Senhor. Isto significa frutificar a vida em Cristo.

Quem somos a partir deste texto? Temos permanecido em Jesus, ou em outros referenciais? Que frutos temos produzido e apresentado à Deus? Permitimos que Deus nos pode (purifique, nos limpe), para que produzamos os frutos? Quais galhos secos Deus precisa eliminar de nossa vida, e que nos impedem de sermos fecundos?

Se desejamos saber se Cristo está em nós, cabe verificar se suas palavras – vida e obra – desempenham um papel efetivo e afetivo em nossa vida. Deus deseja ver-nos produzir muito fruto – o amor fraterno – através do qual visibilizamos e testemunhamos ser verdadeiros discípulos de Seu Filho. Do fruto do amor fraterno todos os outros derivam.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


domingo, 21 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O IV DOMINGO DA PÁSCOA- Jo 10,11-18:

 


O capítulo décimo do evangelho segundo João apresenta o discurso (alegoria) do Bom Pastor, proferido por Jesus. A liturgia, ao quarto domingo da páscoa, sempre se serve dos versículos que compõem este capítulo. Qual a sua finalidade para o tempo pascal? Afirmar que somente Jesus tem uma vida plena a doar para o seu rebanho. A exemplaridade desta vida é capaz de dotar a existência de uma vida ressuscitada.

A nível de contextualização, João insere o discurso do Bom Pastor proferido por Jesus, imediatamente após o ocorrido no capítulo nono, a cura do cego de nascença. Após realizar o sinal do restabelecimento da visão ao cego, o Senhor se autodeclara Luz do Mundo. O evangelista tem a intenção de mostrar para a sua comunidade a oposição existente entre as autoridades judaicas – que estão na escuridão – e Jesus. Durante o episódio, os chefes religiosos tomam a decisão de expulsar aquele o ex-cego de seus meios de convivência.

O discurso do Bom Pastor, recolhido no capítulo décimo do Quarto Evangelho, é uma denúncia de Jesus contra a atitude das autoridades religiosas de seu povo; ao mesmo tempo, João o transforma numa verdadeira catequese destinada à sua comunidade, a fim de revelar que o Pastor verdadeiro é Jesus. Pois, desde antiga tradição, a função de pastorear (cuidar, nutrir, conduzir) o povo de Israel pertencia aos líderes. Num primeiro momento, ao rei. Mas, após o exílio babilônico, esta tarefa ficou sob a responsabilidade dos sacerdotes, dos escribas e dos fariseus. Todavia, a partir de um projeto pessoal de poder e ideológico, aqueles que deveriam cuidar do povo, quais pastores à seus rebanhos, estavam mais preocupados consigo mesmos, com seus poderes e domínios, com seus prestígios; com a autoridade moral e religiosa, do que com o bem estar e a plenitude da vida das pessoas. Ao invés de as aproximarem do projeto de Deus, acabavam por afastá-las.

João, para dar ainda mais colorido ao texto, se serve da profecia de Ezequiel. O capítulo 34 daquele livro serve de pano de fundo para que o evangelista transmita sua catequese. O profeta denuncia os maus pastores de Israel, os quais apascentavam a si mesmos, ao invés de apascentar o (povo) rebanho (cf. Ez 34,1-2). Por isso, Deus tomaria a iniciativa de destituir os maus pastores e cuidaria, ele mesmo, do rebanho (cf. Ez 34,11). Contextualização feita, estamos prontos para mergulharmos na meditação dos versículos 11, 14 e 16.

O texto inicia-se a partir do v.11, com uma declaração importante de Jesus: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas”. A expressão “Eu sou” (gr. Ἐγώ εἰμι – egô eimí) recorda a condição divina de Jesus, pois essa é a fórmula da revelação, com a qual Deus tinha se revelado a Moisés (cf. Ex 3,14). O evangelista João a emprega somente ao Cristo. Tem a intenção de afirmar que Ele possui a identidade libertadora de Deus, e é a libertação e vida plena que ele está oferecendo. Mas de que modo? Na forma de Pastor. O evangelista recupera esta declaração solene de Jesus, que precisa ser bem compreendida a partir da sua correta tradução: “O pastor exemplar sou eu”. Não é utilizado pelo autor o adjetivo bom (gr. άγαθος / agathos), mas “belo (gr. καλός / kalós)”.

Não se trata de uma beleza estética. O adjetivo Kalós deve ser compreendido a partir de seu contexto, pois, a beleza, da qual os gregos se referiam era a exemplaridade. Assim, o belo era sinônimo de exemplo, modelo. A intenção de João é a de indicar e reavivar o horizonte de sua comunidade, e para aqueles que estão iniciando-se na fé, que Jesus é o protótipo do pastor. É o pastor exemplar. Qual o motivo de sua exemplaridade? A capacidade de empenhar a vida pelas ovelhas.

Em seguida, João mostra a Jesus estabelecendo um contraste entre si e o assalariado mercenário), diante do perigo do lobo. Quem era esse mercenário (assalariado)? Uma espécie de cuidador de rebanho, contratado mediante um salário, para passar a noite com as ovelhas nos campos. Era um funcionário. Exercia o seu trabalho visando unicamente o lucro, a recompensa, o pagamento. Não se importava com a vida das ovelhas. Era indiferente começar o turno com 100 ovelhas e acabar, no dia seguinte, com 80. Receberia seu salário da mesma forma. Evidentemente, esse mercenário, no horizonte do discurso, serve de imagem para as lideranças religiosas daquele tempo. Não se importavam com o povo e suas necessidades. Diante do perigo e das situações adversas que se colocam contra o rebanho, simbolizado pelo lobo, o Pastor Exemplar não tem medo de encará-lo. O funcionário, pelo contrário, pensa mais em si e na recompensa que ganhará, e, por isso, foge. Ou seja, não se compromete com elas.

Interessante notar que em nenhum momento, tanto Jesus como João mencionam a recompensa que o Pastor Ideal ganha. Porque, na verdade, ele não a ganha nada. Ao contrário ele é quem dá. Ou seja, a gratuidade é a marca existencial de sua vida, a tal ponto de oferece-la às ovelhas. Ao contrário do mercenário: aquele, só deseja receber sua recompensa.

“Eu conheço minhas ovelhas e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu empenho minha vida (lit.: dou/ponho minha alma) pelas ovelhas (do Pai!)” (v.14-15). Entre Jesus e os seus discípulos existe uma comunhão que se fundamenta na relação que ele tem com o Pai. É o que o verbo “conhecer” deseja expressar: relacionamento pessoal, e, também, esponsal. Precisamente, nesse sentido é que Jesus se declara como pastor ideal e exemplar. Ele possui uma relação profunda, existencial e um vínculo estreitos com seu discípulo. Ou seja, nesta relação existe a partilha da vida entre pastor e ovelha. Assim como a relação profunda entre os esposo gera vida, a de Jesus (pastor) com seus discípulos (ovelhas) tem capacidade de gerar vida plena e amor. Gerar força de sentido.

“Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil: também a elas devo conduzir; escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (v.16). Quem são elas? Sempre que se leem os textos bíblicos, se faz necessário e oportuno utilizar a técnica da fusão dos horizontes. Unir o tempo narrado (os anos 30 d.C) ao tempo em que a narração é elaborada ( 90 d.C), o tempo da comunidade de João. As ovelhas seriam os samaritanos (primeiro grupo a acolher a fé em Jesus, após sua ressurreição) e aos greco-romanos provindos do paganismo. Porém, se faz necessário corrigir a tradução de Jerônimo. Não há a conjução “e” (“E haverá um só rebanho e um só pastor”). Esta, que, na verdade está mais para uma interpretação do tradutor do que um esforço de tradução propriamente dito, dá a entender que Jesus deve sair e reunir todas as ovelhas que estão por aí, a fim de trazê-las para o seu rebanho. Não é este o sentido do texto, porque o termo utilizado “aulé” (gr. αὐλή), não significa rebanho, mas recinto. Do qual o Senhor deseja retirar todas as ovelhas que se encontram fechadas por causa dos ladrões e assaltantes mencionados nos versículos introdutórios deste discurso (Jo 10,1-10). Este recinto é o átrio do Templo de Jerusalém. Ele se refere, nesse sentido, à instituição religiosa de seu tempo que pregava uma relação falsa com Deus. Na qual as pessoas eram mantidas.

Na perspectiva de Jesus, e que João sabe muito bem captar, o Templo de Jerusalém havia se tornado um lugar sem vida, que precisa ser superado. Então, é necessário retirar as ovelhas daquele recinto sem vida. Atenção: Ele não deseja retira-las de lá para confina-las em outro lugar. Mas para introduzi-las numa relação nova, de liberdade com Deus, onde não há necessidades de dar nada de si para obter dele seu amor e seu favor, porque Ele concede tudo gratuitamente.

Para onde, então, Jesus, o Pastor Exemplar levará as ovelhas daquele redil e as que estão em outro? Para si mesmo. O rebanho do Senhor não se fixa nem, nem se encarcera num lugar, nas numa Pessoa. Este é o real sentido do versículo no original grego: “e haverá um só rebanho, um só pastor”. Ou seja, um só rebanho unido ao seu Pastor. Uma comunidade identificada com Ele. A comunidade de Jesus precisa estar inteiramente relacionada à Ele. Quando vive dessa maneira, o Senhor sempre se fará presente em seu meio. Através desta comunhão de vida é que ela poderá aponta-lo a que o procura.

Um rebanho unido e identificado a Seu Pastor Ideal, é, na verdade um rebanho que coopera com ele na missão de pastorear, cuidar, alimentar, acolher e apontar caminhos, mais do que carregar ao colo. É um rebanho que assimila a exemplaridade de seu Pastor, ao ser sinal e lugar gerador de vida e amor.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 6 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:

 


A liturgia deste segundo domingo de páscoa apresenta a leitura e meditação do belíssimo texto de Jo 20,19-31, onde se narra o encontro de Jesus Ressuscitado com a comunidade dos discípulos. Durante esta oitava pascal – um grande domingo vivido na semana – as comunidades de fé tiveram a oportunidade de vivenciar uma série de encontros com o Senhor, após a experiência do sepulcro vazio. Esta narrativa que meditaremos a seguir é a imediata continuação do encontro de Madalena com o Cristo no jardim da sepultura (Jo 20,11-18).

A cena narrada por João é uma verdadeira página de catequese que deseja recuperar e transmitir uma força de ânimo para as comunidades e para os discípulos de todos os tempos e lugares. Na verdade, este trecho evangélico trata de mostrar a ressurreição da comunidade e do discípulo. Com efeito, o texto transmite o sentido pleno da ressurreição de Jesus: ela é a nova criação realizada por Deus.

Uma importante constatação: os relatos pascais, ou seja, que contém e transmitem a experiência com Jesus Ressuscitado são textos que narram o Encontro vivenciado entre a comunidade e Ele. Não são narrativas de aparições de um fantasma ou de uma alma desencarnada. Nada disso!

Há diferença entre aparição e encontro? Sim. Os textos evangélicos pós-pascais desejam afirmar que a iniciativa do encontro é do próprio Jesus. Sabendo das dificuldades que ela possui na assimilação do acontecido com Sua vida, ele mesmo vai ao encontro dela. Esta, por sua vez, faz a experiência com o Senhor vivendo a memória do sentido de sua vida. Através desta dinâmica relacional, se pode fazer experiência com o Ressuscitado e com a ressurreição. Para ficar mais claro ainda, estes relatos são de Encontros porque Jesus não é uma alma penada (o que não existe); tampouco uma ideia ou memória psicológica; mas, um vivente. Somente com um vivo se pode experimentar encontros. Feitas estas considerações iniciais e a nível de contexto, se pode mergulhar com profundidade no texto.

O v.19 é denso: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” João nos situa no tempo e no espaço, como gosta de fazer. A anotação que oferece não é sem sentido, pois ele deseja mostrar que o espaço e o tempo mudaram. Não é mais o amanhecer daquele primeiro dia, mas o entardecer, o final do dia. Ou seja, o dia avançou, e, com ele, se faz necessário que as consciências dos discípulos acerca do acontecido com Jesus tenham também avançado, e, portanto, mudado. A mudança de cenário também tem a intenção de ensinar que a comunidade e os discípulos distanciaram-se do sepulcro. Estão na casa.

A delimitação cronológica “primeiro dia semana” é importante em duplo sentido: o evangelista pode estar se referindo ao dia em que a comunidade se reunia para celebrar a memória pascal de Jesus. Ou, se se assimila a lógica de se contar os dias naquela época, este primeiro dia acaba por ser, na verdade, o oitavo, uma vez que o sétimo era o sábado. Mas, qual a importância desta informação? O número oito, na tradição cristã primitiva é número da ressurreição, e, portanto, do ressuscitado. É neste primeiro/oitavo dia da semana que o evento da ressurreição acontece. Todavia, há um detalhe que o evangelista conserva e transmite: os discípulos, e, portanto, a comunidade está fechada, com medo. Mesmo o dia tendo avançado, o cenário tendo mudado, a comunidade encontra-se fechada no medo.

O medo é o contrário da Fé. Ele, se não encarado, pode paralisar a pessoa. João pretende mostrar o estado de ânimo da comunidade frustrada pela morte de seu mestre: bloqueada na experiência do medo. Isso a impede de fazer a memória das palavras do Senhor que se disse vencedor do mundo.

Não há mal em ter medo. Ele é um mecanismo natural da condição humana. Não se pode viver a vida de forma banal e destemida. Não é isso que o evangelho orienta e pede. Ao contrário, é necessário saber coexistir com ele, tomar a vida nas mãos, e, se aventurar a viver. Não cair na tentação de perder a vida por deixar-se bloquear pelo medo. No horizonte da vida daqueles primeiros discípulos, o medo era devido à captura do mestre. Que poderia resultar na prisão também deles. Ou seja, a possibilidade de ter a vida ameaçada e abreviada. Outra face que o medo oferece aos discípulos, é a de terr que assumir o sentido da vida do Senhor. E, agora, “sozinhos”, ou seja, sem a presença física do Cristo, terem de viver as consequências das escolhas.

João, como bom catequista e escritor, sabendo de que esse pode também ser o medo da sua comunidade, faz a memória da experiência com Jesus Ressuscitado, narrando esta cena: “Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’” (v.19b). A superação do medo se dá com a certeza da presença de Jesus Ressuscitado que lhes comunica uma plenitude da vida.

A Paz (hbr. Shalon) que ele oferece aos discípulos tem esse significado de plenitude dos bens divinos; a certeza de que Deus agiu de forma definitiva. E a maneira através da qual ele agiu foi a forma da vida de Seu Filho, que se torna o realizador das promessas de Deus. Não há porque ficar preso no medo quando se tem a certeza que em Jesus Deus já nos deu as condições de viver; é como se ele dissesse “tudo está realizado; eu vos abri o caminho para a vida; tome a vida nas mãos e se coloque a vive-la”.

Um detalhe importante: o evangelista apresenta Jesus em meio aos discípulos. A intenção é a de ensinar que quando o Senhor está em meio, a comunidade e o discípulo podem fazer experiência com Sua vida plena. O centro da vida de ambos deve ser o Cristo. Quando ele está no meio não existe maior ou menor. Todos são iguais; todos estão referidos à uma única direção: o Vivente. Em Jesus, Deus não está acima ou distante de todos, mas próximo.

“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.20). Esta informação é profunda e carregada de significado. Primeiro, o evangelista quer mostrar para a sua comunidade que o Ressuscitado traz consigo as marcas da sua paixão e morte, isto é, o Crucificado é o Ressuscitado. Não é um fantasma. Não é alguém diferente. Segundo, o sentido da vida que o Senhor deu à sua existência, pois na antropologia bíblica as mãos são símbolos do agir. Mostra-las aos discípulos significa fazê-los compreender qual foi o caminho pelo qual decidiu pautar a sua missão. Mostrar o lado aberto significa indicar que este agir foi motivado por puro amor, pois o lado alude ao coração e este é imagem do amor existencialmente vivido. Jesus deseja mostrar que a sua vida vivida desta maneira, em amor até o fim, tem a potencia e a plenitude de uma vida indestrutível, e deve ser assimilada por eles como meta. Diante de uma existência como esta, nem a morte tem poder.

No v.21, ao conceder a Sua paz, Jesus abre os discípulos para o horizonte da missão: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio". O evangelista deseja ensinar para a sua comunidade que a obra e missão do Senhor tem origem no querer divino do Pai. Há uma comunhão de vida entre eles. Desta comunhão de plenitude de vida, ele deseja tornar participante o discípulo e a comunidade. Enviados pelo Cristo estarão em unidade e em comunhão com o Pai.

Depois de enviar os discípulos, Jesus realiza um gesto muito profundo e carregado de significado, que o evangelista soube recordar e transmitir: “soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v.22). O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, através dela, a humanidade inteira, e, por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor do Senhor é espalhado pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Seu Espírito.  

Note-se, que este dinamismo de vida e amor, o Espírito,  é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. O Senhor não está dando um poder exclusivo aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilha da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Esta personagem, na verdade, é um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a toma-lo como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa. Portanto, circulava livremente e sem temor algum. Porém, sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a realizar o gesto que havia pedido como prova. Todavia, ao invés de tocar o Senhor, o discípulo formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18), a qual tem a intenção de afirmar a identidade do Mestre.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos: muito questionadores, chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

Quais são os medos que ainda podem nos paralisar e à nossa comunidade? O Cristo tem ocupado o centro de nossas vidas e de nossas comunidades? Nossas comunidades conseguem aponta-lo aos que necessitam desta experiência de vida plena? Quais dimensões em mim precisam ser recriadas pelo Senhor?


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


quinta-feira, 28 de março de 2024

QUINTA-FEIRA SANTA – MISSA DA CEIA DO SENHOR: Jo 13,1-15:

 


O Memorial da páscoa do Senhor começa a ser celebrado a partir da Quinta-feira santa da Ceia do Senhor. O caráter memorial desta noite, que perpassa os outros dois dias do Sagrado Tríduo Pascal reside no fato de se fazer memória, isto é, atualizar o evento fundador da fé cristã: a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Somos convidados, através desta solene e grande celebração a sermos contemporâneos ao acontecido com o Senhor. Ou seja, a partir da dinâmica memorial, com nossos pés teológicos (da fé), a ir para a ceia, para o calvário e para o sepulcro vazio, e, ao mesmo tempo eles virem até cada um de nós. Por isso, esta noite “é diferente das outras noites”.

A dinâmica memorial é apresentada pela primeira e pela segunda leitura da liturgia desta noite santa. Em Ex 12,1-8.11-14, o autor sagrado narra a pascoa-passagem do Senhor sobre a terra do Egito para libertar seu povo, este é convidado, através do sinal do cordeiro imolado, a celebrar esta passagem de YHWH como Memorial em honra à Ele, e, portanto, como instituição perpetua (v.14). Assim, todo os israelitas, ao celebrarem a páscoa, de geração em geração, deverão ver-se a si mesmos sendo libertados do Egito, passando pelas águas, a exemplo dos primeiros pais na fé. Na segunda leitura, através da memória que o Apóstolo Paulo transmite para a sua comunidade de Corinto (1Cor 11,23-26), a mesma dinâmica aparece na ordem de iteração “fazei isto em memória de mim”, ligada ao relato da Ceia do Senhor. Ou seja, todas as vezes que a comunidade de Jesus, isto é, a Igreja se reunir para celebrar a Eucaristia, que contém e conserva o sentido existencial de Sua vida, ela deverá se ver naquela Ceia, ouvindo as Suas palavras e assimilando a exemplaridade de sua existência. Precisamente esta Ceia ocupará a nossa reflexão, assumindo o texto de Jo 13,1-15.

A ceia, no Quarto Evangelho, não é de caráter pascal. É uma ceia comida às vésperas. A cronologia do evangelho joanino não bate com a de Mt, Mc e Lc. Há um motivo teológico que toca nas intenções do evangelista: ao narrar a ceia nas vésperas da páscoa, pretende lançar a narrativa da morte de Jesus para o dia de páscoa, justamente para o exato momento em que se imolavam os cordeiros pascais, no templo. Assim, a ceia joanina é um jantar de despedida. O que não enfraquece o sentido e a importância desta, pois será nela que o Senhor começará a entregar seu Testamento de amor.

Outra consideração importante a ser feita é a contextualização da narrativa da Ceia joanina. O leitor-discípulo encontra-se no capítulo treze. Ele se encontra na segunda parte do evangelho de João, o chamado livro da glória. Neste bloco (Jo 12 – 21), aquele que acompanhou a Jesus durante os sinais que realizou, e se abriu ao dom de Deus que se faz presente através de Sua obra, poderá contemplar a hora da glória (glorificação) que foi preparada pelos mesmos sinais. A ceia encontra-se dentro de um estilo literário chamado “discurso de despedida” ou “testamento”.  De 12 – 16, o Senhor entrega o seu bem mais precioso aos discípulos: sua vida e o mandamento do Amor. Esta entrega começa a ser feita através do gesto emblemático e questionador que meditaremos agora.

O evangelista situa a cronologia: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). João não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa celebrada pelo Senhor já não é mais a mesma do templo. A sua não exige ofertas e sacrifícios, pois será ele mesmo a se oferecer e doar-se. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto que na de Jesus com sua comunidade, se celebra o triunfo da vida na forma do serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há triunfo da morte sobre a vítima/oferta do sacrifício, há doação de vida por amor. Ele inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

O evangelista coloca o seu leitor diante de personagens que servirão de espelhos para a comunidade. Ele informa: “Estavam tomando a ceia. O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus” (v.2).  Uma vez mais aparece o traidor. O Diabo (o divisor; o opositor)” o havia seduzido para que entregasse Jesus (cf. Jo 13,2). João realiza a técnica literária do contraste, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) do discípulo traidor e a ação realizada pelo Senhor.

Judas pensa que tem o destino da vida do mestre nas mãos. Por outro lado, com habilidade, João faz questão de mostrar Jesus com a consciência livre e orientada para o projeto de Deus. Na perspectiva do Quarto Evangelho, o Senhor é um homem livre. Consciente, acima de tudo. Não é uma vítima das circunstâncias. Por isso, a atitude que chamará a atenção de todos é narrada com solenidade: “Jesus, sabendo que o Pai tinha colocado tudo em suas mãos e que de Deus tinha saído e para Deus voltava, levantou-se da mesa (...)” (v.3-4). Ninguém tem poder ou autoridade sobre a vida de Jesus. Ele mesmo a doa! Realiza-se, assim, a confirmação do dito de Jo 10,11-30: “Ninguém tira a minha vida. Eu a dou por mim mesmo. Tenho autoridade para entregá-la e também para tomá-la de volta, pois foi isso que meu Pai ordenou”.

Solenemente, os gestos de Jesus são narrados pelo evangelista: “tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (v.4-5). Após levantar-se, saindo da condição de homem livre (pois se assentavam à mesa as pessoas livres), e deixar a condição de mestre, o evangelista oferece uma pérola que só pode ser compreendida a partir do original grego. A tradução litúrgica diz que o Senhor tirou o manto. Mas não é correto. Pois o texto original diz que tirou a túnica. Ao traduzir a palavra manto, Jerônimo pode ter se confundido com a palavra túnica. Manto, no grego, é “imátio” (tón imatíon), e túnica, “imátia” (tha imátia). Mas feita esta constatação, o leitor discípulo precisa confrontar-se com a forma na qual Jesus está: ao retirar a túnica (imátia), ele ficou com a roupa mais inapropriada, surrada, sem acabamento que se usava por baixo daquelas outras, que recebia o nome de perisôma. Portanto, vestido como um escravo, ao cingir-se na cintura com a toalha. Mas era também a veste dos noivos, na ocasião das núpcias.

O gesto que Jesus realiza é paradoxal: “e começou a lavar os pés dos discípulos” (v.5). Aos olhos dos discípulos, e, de qualquer pessoa de bom senso a época, esta atitude é inapropriada e inadmissível. Porque esta purificação, geralmente, era feita por um escravo, em relação aos patrões; pelos filhos para com os pais; ou pela esposa, ao marido; e, numa demonstração de profunda estima por alguém, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões.

Jesus, despe-se de sua condição de mestre, de aparente homem livre, e assume a condição de um escravo, lavando os pés dos discípulos. Este é o sentido do v.1, “tendo amados os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”. O gesto de lavar os pés é, portanto, sinal profético da forma que sua vida assumiu, e assumirá na entrega no alto da cruz. Ele é uma antecipação da doação de si, em amor fiel. Este gesto ilustra o sentido do verbo agapáo (gr. ἀγαπάω), Amor. O Amor de Jesus é qualitativamente mais profudo; é a capacidade da doação de si; é um amor sacrifical, e, portanto, oblatívo. Mas, acima de tudo, operativo. É um amor capaz de esvaziar-se para que o outro encontre vida e seja pleno. É isso que os discípulos precisam aprender, assimilar.

Chega a vez de Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para si e seus companheiros, aquela atitude era inconcebível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma que, por hora, eles não sabem o  seu significado (isto só acontecerá à luz da Ressurreição). Mas, para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior!

“Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. O que Pedro não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo. Impensável que um mestre, um rabino, um líder fizesse algo assim. Ainda pensa que é ele que deve levar o mundo nas mãos. Que tem que fazer tudo sozinho. Que é ele que tem que ser forte. Contudo, Jesus inverte as lógicas. Ele não veio para ser servido, mas para servir. Ele não veio para ser senhor da vida dos outros, mas para fazer-se servo de todos. Ele não veio impor sua lei, mas para doar a sua vida.

O Senhor responde, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). Em termos joaninos, “não ter parte” significaria não participar da plenitude e inteireza de Sua vida. Por outro lado, “ter parte” significaria ter em si a vida de Jesus e torná-la vivida de novo, através da existência do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará da Sua obra messiânica. Não contemplará a Sua glória. Ele está a mostrar que é necessário ser primeiro lavado por Ele, para poder lavar os pés dos outros.

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Aqui se encontra, pois, o nexo entre eucaristia e lava pés. O gesto profético que realiza Jesus é colocado durante a ceia pelo evangelista João. Isso é muito significativo. Mesmo não narrando as palavras sobre o pão e sobre o cálice, como fazem os sinóticos, o Quarto Evangelho se insere nesta lógica. A ceia, contém os gestos de comer do pão e beber do cálice. Jesus interpreta e identifica o sentido de sua vida e missão à semelhança do que acontece com o pão e o vinho: da mesma forma que o pão é partido, espedaçado, aniquilado, ao ser comido, e a uva, pisoteada aniquilada para produzir o vinho, sua carne (simbolizada pelo pão) e sua vida existencialmente histórica (vinho) terão o mesmo sentido. É, precisamente, neste contexto, que o gesto do lavar os pés encontra sua mesma força de significado. Por isso, não há “fazei isto em minha memória” sem “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz”. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical.  Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 16 de março de 2024

REFLEXÃO PARA O V DOMINGO DA QUARESMA – Jo 12,20-33 (Ano B):

 


A liturgia deste quinto domingo do tempo quaresmal apresenta a leitura e a meditação do capítulo 12 do Quarto Evangelho. O texto apresenta a Jesus como doador da vida plena. Para isso, João recorda-se da imagem do grão de trigo que, ao cair na terra deve “morrer”, a fim de produzir fruto.

O leitor-discípulo, se chegou até aqui, está em vias de transição para a segunda parte do evangelho de João, o assim chamado Livro da Glória. O livro dos sinais, onde se situa o texto de hoje encerrou a apresentação dos sinais de Jesus com a vivificação de Lázaro (Jo 11). A cena de Jo 12,20-33 encontra-se imediatamente após a entrada em Jerusalém (Jo 12,12-19).

O evangelista situa a cronologia e as personagens: “havia alguns gregos entre os que tinham subido a Jerusalém, para adorar durante a festa” (v.20). Entre a multidão que já aguardava a vinda de Jesus para a festa estavam alguns gregos. Mas para entender a entrada deles na narrativa, se faz necessário retomar os versículos anteriores, que concluem a cena da entrada na cidade santa. Os fariseus, que assistiam a recepção calorosa ao Mestre comentam entre si, “Estais vendo que nada conseguis? O mundo se foi atrás dele” (v.19). No vocabulário do Quarto Evangelho, o termo “mundo” refere-se à realidade, a história, que pode assumir uma atitude contrária ao projeto de Deus e, que, ao interno da narrativa vai sendo chamada a fazer uma opção em favor de Jesus. O mundo que vai atrás de Jesus é simbolizado pelos gregos que buscam vê-lo.

O v.21 informa que aqueles gregos se aproximaram de Filipe, e disseram que queriam ver Jesus. Ele conversa com André e os levam até o mestre. Parece confusa a cena. A responsabilidade em fazer ver o Senhor vai passando de um para o outro. Por que o próprio Filipe não os levou até Ele? Recorde-se, que os evangelistas não querem transmitir uma crônica dos fatos, mas uma experiência de fé. O fato de serem estes dois discípulos a conduzir os gentios/prosélitos para Jesus tem uma finalidade: somente o discípulo que abraça o projeto tem condições de apontar na direção de Jesus e de levar as pessoas à experiência com Ele. Por isso, o verbo empregado pelo autor é “oráo” (gr. ὁράω), que indica a visão aprofundada, isto é, a capacidade de fazer experiência com Deus.  

A cena enfoca no diálogo/meditação entre Jesus e os discípulos André e Filipe. O v.23 traz uma declaração solene do Senhor: “Chegou a Hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado”. Colocando-se na cena, se poderia conjecturar que os gregos, ao ouvirem isso, se pusessem a pensar: “chegamos na hora certa: o Filho do Homem vai aparecer na terra com a glória que recebe de Deus" (cf. Jo 1,51). Contudo, com um solene “Amém, amém (Em verdade...)”, que tem a função de introduzir um ensinamento importante para seus discípulos (geralmente uma revelação), Jesus lhes mostra outra coisa. Ele fala da dinamicidade do grão de trigo, que cai na terra, morre e produz fruto. Banho de água fria? Vão para ver a glória do Filho do Homem e acabam escutando uma metáfora sobre vida e morte!

Todavia, o autor do evangelho pretende chamar a atenção de sua comunidade para a realidade de que a manifestação da Glória do Filho do Homem não será um espetáculo triunfalista, mas um mistério de morte e vida, perpassado pela plenitude da vida de Deus que despontará em Jesus. Ora, Jesus quer dizer que, mediante o dom de sua própria vida neste mundo brotará o fruto que Deus espera, o fruto do amor fraterno (cf. 15,8), gerador e doador de vida. Ora, para produzir o fruto da espiga, o trigo precisa morrer e destruir-se internamente. A semente precisa passar por uma transformação intensa para poder gerar o fruto. Com esta metáfora, Jesus quer dizer que através do mistério de Sua morte, de sua vida consumida, frutificará a vida para o ser humano.

No v.25, Jesus continua seu discurso, afirmando que “Quem ama sua vida (lit. alma) perde-a, e quem odeia sua vida neste mundo guarda-a para a vida eterna”. O texto original apresenta o termo alma (gr. ψυχή/psyche), e o verbo odiar (gr. μισέω/miséo). Eles devem ser bem compreendidos. Na linguagem do Quarto Evangelho, “alma” significa vida física, biológica, psicológica e material. E o verbo odiar, no contexto semítico, é o contrário de preferir. Este versículo deve ser entendido assim: quem prefere/apega-se à própria vida, perde-a; mas quem desapega-se de sua vida, segundo a lógica deste mundo, há de guardá-la para a vida eterna. Ninguém deve odiar sua vida, que é dom de Deus, mas preferir em sua vida, a Vida que Deus doa através de Jesus.

No v.26, Jesus deixa bem claro em que consiste o seguimento. João modifica, com liberdade, mas sem alteração substancial, o tema do seguimento, presente nos evangelhos sinóticos. Se em Mt e Mc o tema do discipulado se dá através do seguimento a Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir, no Quarto Evangelho o seguimento/discipulado é diaconia (serviço ao Senhor). No entanto, quando o Cristo fala de serviço a ele, não está se referindo a uma atitude individual, privada ou restrita a sua pessoa, mas à sua Comunidade. Então, o serviço ao Senhor consiste no serviço à comunidade que ele reuniu. Quem for fiel à diaconia a Ele na comunidade se encontrará aí onde Ele está.

“Agora sinto-me angustiado. E que direi? Pai, livra-me desta hora!? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim” (v.27). João não tem medo de mostrá-lo em sua humanidade. A angustia de Jesus é em virtude da iminência de Sua morte. Esta será uma intensa luta que travará com o chefe deste mundo, Satanás. A luta consiste em permanecer fiel até o fim ao projeto do Pai, isto é, a Sua obra. A cena recorda a passagem de Lc 22,42, “Pai, se queres, afasta de mim este cálice”. Porém, na perspectiva de João, o Cristo não pede o afastamento desta hora, pois tem consciência de que foi para ela que viveu toda a sua missão. Mas pede “Pai, glorifica o teu nome!” Em outras palavras, “revela a tua glória”. O tema da Glória no Quarto Evangelho significa a presença de Deus em Jesus. Assim, Ele está suplicando a presença do Pai, para que o ajude ser fiel até as últimas consequências. Ouve-se uma voz. “Então, veio uma voz do céu: "Eu o glorifiquei e o glorificarei de novo!” (v.28). Para João existe uma plena identificação e comunhão de vontades entre Aquele que traz em si o Nome divino e o próprio YHWH. Por isso, Deus glorificou Seu nome (manifestou sua presença) em todo desenrolar da vida e das obras de Jesus, inclusive na hora da cruz. E o fará novamente na obra da ressurreição.

O final do texto de hoje revela esse momento. A melhor explicação para essa glorificação é o v.33: “Quando eu for elevado (enaltecido) da terra, atrairei todos a mim”. O Enaltecimento de que o Jesus joanino fala é, na verdade, a maneira pela qual morrerá: a Cruz. Ali, na crucificação, ou melhor, no Crucificado, o Pai revelará todo o seu poder de amor e de vida; a sua Glória. Ela não é algo que vem depois da cruz; ela está na cruz como revelação do amor de Deus através do Filho. Amor que vai até às últimas consequências.

O Texto atinge sua utilidade: revelar e ensinar qual será a dinâmica da vida de Jesus, a quem O desejar ver – fazer uma experiência profunda e radical com Ele. Os gregos,  que representam todos os que abraçam a fé devem estar preparados para a dinâmica existencial da entrega da vida, em serviço e em amor, até o fim, como Jesus, a semelhança do grão que morre para produzir fruto (gerar vida); assimilar o serviço a Jesus (e aos irmãos/comunidade) como expressão da existência de uma vida; compreender que a exaltação e a glória de Jesus revelam o amor incondicional do Pai pela humanidade inteira.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.