sábado, 6 de abril de 2024

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:

 


A liturgia deste segundo domingo de páscoa apresenta a leitura e meditação do belíssimo texto de Jo 20,19-31, onde se narra o encontro de Jesus Ressuscitado com a comunidade dos discípulos. Durante esta oitava pascal – um grande domingo vivido na semana – as comunidades de fé tiveram a oportunidade de vivenciar uma série de encontros com o Senhor, após a experiência do sepulcro vazio. Esta narrativa que meditaremos a seguir é a imediata continuação do encontro de Madalena com o Cristo no jardim da sepultura (Jo 20,11-18).

A cena narrada por João é uma verdadeira página de catequese que deseja recuperar e transmitir uma força de ânimo para as comunidades e para os discípulos de todos os tempos e lugares. Na verdade, este trecho evangélico trata de mostrar a ressurreição da comunidade e do discípulo. Com efeito, o texto transmite o sentido pleno da ressurreição de Jesus: ela é a nova criação realizada por Deus.

Uma importante constatação: os relatos pascais, ou seja, que contém e transmitem a experiência com Jesus Ressuscitado são textos que narram o Encontro vivenciado entre a comunidade e Ele. Não são narrativas de aparições de um fantasma ou de uma alma desencarnada. Nada disso!

Há diferença entre aparição e encontro? Sim. Os textos evangélicos pós-pascais desejam afirmar que a iniciativa do encontro é do próprio Jesus. Sabendo das dificuldades que ela possui na assimilação do acontecido com Sua vida, ele mesmo vai ao encontro dela. Esta, por sua vez, faz a experiência com o Senhor vivendo a memória do sentido de sua vida. Através desta dinâmica relacional, se pode fazer experiência com o Ressuscitado e com a ressurreição. Para ficar mais claro ainda, estes relatos são de Encontros porque Jesus não é uma alma penada (o que não existe); tampouco uma ideia ou memória psicológica; mas, um vivente. Somente com um vivo se pode experimentar encontros. Feitas estas considerações iniciais e a nível de contexto, se pode mergulhar com profundidade no texto.

O v.19 é denso: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” João nos situa no tempo e no espaço, como gosta de fazer. A anotação que oferece não é sem sentido, pois ele deseja mostrar que o espaço e o tempo mudaram. Não é mais o amanhecer daquele primeiro dia, mas o entardecer, o final do dia. Ou seja, o dia avançou, e, com ele, se faz necessário que as consciências dos discípulos acerca do acontecido com Jesus tenham também avançado, e, portanto, mudado. A mudança de cenário também tem a intenção de ensinar que a comunidade e os discípulos distanciaram-se do sepulcro. Estão na casa.

A delimitação cronológica “primeiro dia semana” é importante em duplo sentido: o evangelista pode estar se referindo ao dia em que a comunidade se reunia para celebrar a memória pascal de Jesus. Ou, se se assimila a lógica de se contar os dias naquela época, este primeiro dia acaba por ser, na verdade, o oitavo, uma vez que o sétimo era o sábado. Mas, qual a importância desta informação? O número oito, na tradição cristã primitiva é número da ressurreição, e, portanto, do ressuscitado. É neste primeiro/oitavo dia da semana que o evento da ressurreição acontece. Todavia, há um detalhe que o evangelista conserva e transmite: os discípulos, e, portanto, a comunidade está fechada, com medo. Mesmo o dia tendo avançado, o cenário tendo mudado, a comunidade encontra-se fechada no medo.

O medo é o contrário da Fé. Ele, se não encarado, pode paralisar a pessoa. João pretende mostrar o estado de ânimo da comunidade frustrada pela morte de seu mestre: bloqueada na experiência do medo. Isso a impede de fazer a memória das palavras do Senhor que se disse vencedor do mundo.

Não há mal em ter medo. Ele é um mecanismo natural da condição humana. Não se pode viver a vida de forma banal e destemida. Não é isso que o evangelho orienta e pede. Ao contrário, é necessário saber coexistir com ele, tomar a vida nas mãos, e, se aventurar a viver. Não cair na tentação de perder a vida por deixar-se bloquear pelo medo. No horizonte da vida daqueles primeiros discípulos, o medo era devido à captura do mestre. Que poderia resultar na prisão também deles. Ou seja, a possibilidade de ter a vida ameaçada e abreviada. Outra face que o medo oferece aos discípulos, é a de terr que assumir o sentido da vida do Senhor. E, agora, “sozinhos”, ou seja, sem a presença física do Cristo, terem de viver as consequências das escolhas.

João, como bom catequista e escritor, sabendo de que esse pode também ser o medo da sua comunidade, faz a memória da experiência com Jesus Ressuscitado, narrando esta cena: “Jesus entrou e pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco’” (v.19b). A superação do medo se dá com a certeza da presença de Jesus Ressuscitado que lhes comunica uma plenitude da vida.

A Paz (hbr. Shalon) que ele oferece aos discípulos tem esse significado de plenitude dos bens divinos; a certeza de que Deus agiu de forma definitiva. E a maneira através da qual ele agiu foi a forma da vida de Seu Filho, que se torna o realizador das promessas de Deus. Não há porque ficar preso no medo quando se tem a certeza que em Jesus Deus já nos deu as condições de viver; é como se ele dissesse “tudo está realizado; eu vos abri o caminho para a vida; tome a vida nas mãos e se coloque a vive-la”.

Um detalhe importante: o evangelista apresenta Jesus em meio aos discípulos. A intenção é a de ensinar que quando o Senhor está em meio, a comunidade e o discípulo podem fazer experiência com Sua vida plena. O centro da vida de ambos deve ser o Cristo. Quando ele está no meio não existe maior ou menor. Todos são iguais; todos estão referidos à uma única direção: o Vivente. Em Jesus, Deus não está acima ou distante de todos, mas próximo.

“Depois destas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor” (v.20). Esta informação é profunda e carregada de significado. Primeiro, o evangelista quer mostrar para a sua comunidade que o Ressuscitado traz consigo as marcas da sua paixão e morte, isto é, o Crucificado é o Ressuscitado. Não é um fantasma. Não é alguém diferente. Segundo, o sentido da vida que o Senhor deu à sua existência, pois na antropologia bíblica as mãos são símbolos do agir. Mostra-las aos discípulos significa fazê-los compreender qual foi o caminho pelo qual decidiu pautar a sua missão. Mostrar o lado aberto significa indicar que este agir foi motivado por puro amor, pois o lado alude ao coração e este é imagem do amor existencialmente vivido. Jesus deseja mostrar que a sua vida vivida desta maneira, em amor até o fim, tem a potencia e a plenitude de uma vida indestrutível, e deve ser assimilada por eles como meta. Diante de uma existência como esta, nem a morte tem poder.

No v.21, ao conceder a Sua paz, Jesus abre os discípulos para o horizonte da missão: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio". O evangelista deseja ensinar para a sua comunidade que a obra e missão do Senhor tem origem no querer divino do Pai. Há uma comunhão de vida entre eles. Desta comunhão de plenitude de vida, ele deseja tornar participante o discípulo e a comunidade. Enviados pelo Cristo estarão em unidade e em comunhão com o Pai.

Depois de enviar os discípulos, Jesus realiza um gesto muito profundo e carregado de significado, que o evangelista soube recordar e transmitir: “soprou sobre eles e disse: ‘Recebei o Espírito Santo’” (v.22). O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O verbo soprar (gr. έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. No seu gesto, Jesus recria a comunidade e, através dela, a humanidade inteira, e, por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida.

“A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor do Senhor é espalhado pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Seu Espírito.  

Note-se, que este dinamismo de vida e amor, o Espírito,  é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. O Senhor não está dando um poder exclusivo aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilha da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Esta personagem, na verdade, é um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a toma-lo como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades.

Tomé não estava com eles porque não tinha medo (oposição da Fé), e, por isso, não se deixou paralisar diante da experiência negativa. Portanto, circulava livremente e sem temor algum. Porém, sua coragem foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (que continua sendo o primeiro da semana, o dia da Memória do Ressuscitado), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a realizar o gesto que havia pedido como prova. Todavia, ao invés de tocar o Senhor, o discípulo formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado. O título “Deus” aplicado a Jesus retoma a dupla menção no Prólogo (Jo 1,1.18), a qual tem a intenção de afirmar a identidade do Mestre.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos: muito questionadores, chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição. O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

Quais são os medos que ainda podem nos paralisar e à nossa comunidade? O Cristo tem ocupado o centro de nossas vidas e de nossas comunidades? Nossas comunidades conseguem aponta-lo aos que necessitam desta experiência de vida plena? Quais dimensões em mim precisam ser recriadas pelo Senhor?


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Paróquia São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


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