A
liturgia deste quinto domingo da páscoa continua a leitura e meditação do
Quarto Evangelho. Na semana anterior, o evangelista apresentou a alegoria do
Bom Pastor. Jesus se autodeclarava o “pastor ideal”, “exemplar”, modelo, porque
agia de forma diferente daqueles que deviam agir como pastores do povo. A
exemplaridade deste pastor se verificava pela capacidade de colocar a Sua
própria vida em jogo, por causa de suas ovelhas. O texto evangélico deste final
de semana apresenta outra revelação essencial do Senhor. Declara ser a videira
verdadeira.
O texto de Jo 15,1-8, no horizonte da catequese joanina, encontra-se ao interno do livro da glória – a segunda parte do Quarto Evangelho. O contexto imediato em que estes oito versículos se encontram é o do bloco discursivo que compreende o Testamento de Jesus (Jo 14 – 16), através do qual o evangelista concatena e faz memória do ensinamento do Senhor destinado aos discípulos que com ele se põem à mesa. O testamento representa o elenco dos bens importantes que se deixa para alguém muito amado. Ele sempre expressa àqueles que o recebem a última vontade do doador, e, via de regra, a forma através da qual devem se empenhar por viver. Por isso, este discurso de despedida transmite e apresenta a forma através da qual o discípulo deverá viver depois da páscoa do Mestre, a fim de continuar a Sua obra, e perpetuar sua existência no seio da comunidade.
Qual o conteúdo do testamento de Jesus? No desenvolvimento deste bloco discursivo de 14 – 16, o Senhor transmitirá o mandamento novo do Amor e o dom de sua vida – que já foi explicitado pelo gesto do lava-pés. Através de imagens muito vivas, o evangelista faz a memória das palavras do Cristo aos discípulos, de modo a ensinar para a sua comunidade qual é a forma exemplar de se viver a vida do Filho de Deus. Feita a contextualização do texto ao interno do conjunto da catequese joanina pode-se tomar os versículos que ajudarão na assimilação da mensagem de salvação.
O v.1 inicia o ensinamento de Jesus com uma solene declaração “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor”. Novamente o evangelista se recorda da expressão de revelação do nome divino. Com essa proclamação, ele pretende transmitir para sua comunidade que Deus está plena e substancialmente presente em Jesus, em suas obras e palavras. Ele é o lugar definitivo da revelação e da ação do Pai.
A declaração adquire peso ainda maior porque Jesus se declara a “videira verdadeira”. Ora, se ele diz ser a verdadeira, então existiria uma videira falsa? Há que se entender o sentido da palavra “verdade” e, então, o significado do adjetivo “verdadeiro”. Por “verdade”, o evangelho de João entende o conceito de fidelidade. A palavra Aletheia (gr. ἀλήθεια), utilizada pelo evangelista traduz o hebraico “Emet” (אמת hbr.), que significa “fidelidade”. Acontece que esta palavra traz consigo outra, indissociável, “Hesed” (חסד hbr.), que significa amor. Portanto, todas as vezes que, no Quarto Evangelho aparecer o termo verdade se deve entender por “amor fiel”. Assim, o adjetivo “verdadeira” significa fiel, aquele que age com um amor fiel. O senhor está se declarando como a videira fiel, isto é, aquela que conseguiu viver e expressar toda a fidelidade e o amor de Deus.
Na
tradição religiosa do povo de Jesus, a videira (e a vinha também) era a imagem
simbólica aplicada a Israel. O profeta Isaias, em seu cântico (5,1-24), narra a
empreitada de um amigo seu que construí uma vinha numa fértil encosta, e esperou
dela uvas boas. Frutos bons. No entanto, só produziu frutos ruins, uvas amargas.
Jeremias é mais direto na crítica que faz à Israel, dizendo que o YHWH plantou
uma videira excelente, mas que havia se transformado numa parreira podre e selvagem.
A primeira vinha (videira), portanto, era Israel. Este, não conseguiu ser fiel
ao projeto de Deus, deixando-se sempre seduzir pela idolatria e rompendo com a
Aliança e com amor fiel de Deus. Jesus, ao contrário, vive na fidelidade e no
amor do Pai. Por isso, supera a primeira vinha.
Jesus declara que o Pai é o agricultor. Que imagem bela. Pois, aquele que cuida da vinha se mostra próximo dela. O vinhateiro proporciona a nutrição e o cuidado. Ao dizer isso, o Senhor está revelando que é Pai que nutre e cuida de Sua vida. A seiva que sustenta a existência do Filho é o amor fiel de Deus. O Cristo, como videira, transmite aos seus ramos a mesma linfa de vida que recebeu do Pai.
O v.2 continua o ensinamento de Jesus: “Todo ramo que em mim não dá fruto ele o corta; e todo ramo que dá fruto ele o limpa, para que dê mais fruto ainda”. Este versículo precisa ser bem compreendido para não gerar confusões. O Ramo, que mesmo estando unido à videira, e não transformou a seiva de nutrientes em uvas, é o discípulo, que, estando em Cristo, não frutificou em amor e alegria. Porém, a palavra final é do Pai, o agricultor. Somente ele, vendo se o ramo produziu ou não, a seu tempo, é quem pode realizar o corte. É uma advertência que João recolhe do ensinamento de Jesus e o destina à comunidade e a todos os discípulos. Não basta estar unido à Cristo. Há que se produzir o fruto. Pois pode muito bem acontecer de se estar na videira e, mesmo assim, ser um galho morto, ou seja, que impede a seiva de produzir o nutrimento e a gestação do fruto. Porém, a última palavra sempre será de Deus no que toca a produção e a qualidade dos frutos.
O ramo produtivo também é purificado pelo agricultor. A limpeza acontece para que este possa produzir sempre mais. Qual é o fruto produzido? Na lógica interna do texto é a lógica e o dinamismo do Amor do Senhor. A forma e modo do amor de Jesus que se doa a todos deve ser o fruto que o galho ligado à videira deve sempre produzir. Este Amor gera alegria
No v.3, Jesus revela a ferramenta da poda utilizada pelo Pai-Agricultor: “Vós já estais limpos por causa da Palavra que eu vos falei”. A Palavra de Jesus é toda a sua existência, obra e ensinamento, unida à Escritura, a Palavra de Deus. A Palavra de Deus que se verifica unida na de Jesus, quando aceita pelo discípulo, purifica-o. Quem adere a ela fica mais unido ao Senhor e mais produtivo em termos daquilo que Deus espera. Aquele que assimila sua palavra – seu modo de viver e ser – encontra-se intimamente unido à Ele. Logo, produz o mesmo fruto de amor que Ele produz.
Para produzir o sentido da vida de Jesus em si, na vida do próximo e à esta realidade, o discípulo precisa crescer numa atitude muito importante. “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós... Vós não podereis dar fruto se não permanecerdes em mim” (v.4). O verbo “permanecer” (gr. μένein/ménein) no evangelho joanino é muito importante. Por isso, ele será recorrente até o final do discurso. João o usa 7 vezes para expressar a união entre o tronco e os ramos, ou seja, entre Jesus e os fiéis, mas também em relação ao Pai. O sentido é o da mútua inabitação de Deus (ou Jesus, ou o Paráclito) nos seus, e deles em Deus.
Da parte de Jesus, trata-se de Sua presença salvífica, como a Morada (hbr. shekiná) de Deus no meio do povo (a Tenda no deserto), só que agora, na própria existência do discípulo. Da do discípulo, na medida em que este abre espaço para a presença do Senhor em si, também ele “permanece” no âmbito de Deus. A sua vida passa ser morada de Deus, e este passa ser a morada do fiel! Por isso esse convite também deve ser lido no horizonte da comunidade joanina – e das gerações futuras.
“Nisto meu Pai é glorificado: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos” (v.8). O versículo oitavo encerra de modo sugestivo a alegoria da videira. Deus é glorificado quando o agir do discípulo corresponde ao agir do Filho. O agir de Jesus consiste na comunicação da vida mesma do Pai para o mundo. O agir do discípulo deverá ser a mesma comunicação de vida e de amor do Senhor. Isto significa frutificar a vida em Cristo.
Quem somos a partir deste texto? Temos permanecido em Jesus, ou em outros referenciais? Que frutos temos produzido e apresentado à Deus? Permitimos que Deus nos pode (purifique, nos limpe), para que produzamos os frutos? Quais galhos secos Deus precisa eliminar de nossa vida, e que nos impedem de sermos fecundos?
Se desejamos saber se Cristo está em nós, cabe verificar se suas palavras – vida e obra – desempenham um papel efetivo e afetivo em nossa vida. Deus deseja ver-nos produzir muito fruto – o amor fraterno – através do qual visibilizamos e testemunhamos ser verdadeiros discípulos de Seu Filho. Do fruto do amor fraterno todos os outros derivam.
Pe.
João Paulo Góes Sillio.
Paróquia
São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
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