sábado, 26 de agosto de 2023

XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 16,13-20:

 


O texto proposto para a meditação deste vigésimo primeiro domingo do tempo comum, retoma a leitura do Evangelho segundo Mateus, no capítulo dezesseis. A perícope começa no v.13. mas ela deve ser compreendida em seu seu contexto amplo, a partir de duas situações que servem de estopim para a narrativa que se segue. O primeiro acontecimento foi uma controvérsia entre Jesus e os fariseus, os quais pediram a ele um sinal que comprovasse que ele seria messias (Mt 16,1-4), no qual Jesus respondia que nenhum sinal seria dado, a não ser o de Jonas. A segunda situação foi motivada pela advertência contra o fermento dos fariseus e saduceus (Mt 16,5-12). O fermento dos fariseus, a que Jesus se refere é a ideia equivocada acerca do messias, bem como a própria hipocrisia. Diante deste contexto, Jesus leva os discípulos para a cidade de Cesaréia de Filipe. Indicação importante para os leitores da catequese de Mateus.

Cidade situada ao norte de Israel, dedicada à Cesar, imperador romano, era sede do poder romano na província da Palestina e, portanto, lugar de culto ao imperador e de cultivo da ideologia imperial. Um território pagão. Por outro lado, a cidade fica distante de Jerusalém, sede do poder religioso. Jesus e seus discípulos encontram-se longe das influências do poder religioso. Lugar propício para fazer uma experiência nova e pura com Deus. É o que Ele deseja propor. “ali perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” (v. 13b). Não há concordância entre os biblistas a respeito da intencionalidade de Jesus na pergunta. Mais do que preocupado com a imagem que a multidão fazia dele, estava preocupado com a ideia que faziam de sua missão. Ora, tendo ensinado e realizado tantas coisas em benefício das multidões, com toda a certeza transmitira alguma imagem de si, pela qual se guiavam no trato com ele.

Segundo os discípulos: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). A atuação de Jesus tinha dado margem para variadas interpretações, e as figuras do passado serviam aos espectadores de Jesus fazerem alguma imagem Dele. É bem verdade que o modo através do qual Jesus decidiu-se por viver sua missão foi a via profética.

Após a resposta dos discípulos, Jesus dirige a pergunta para eles: “E vós, quem dizeis que eu sou?” (v.15). Afinal, são eles os mais próximos, e, por isso, os primeiros destinatários dos ensinamentos do Mestre, que os prepara para anunciarem a Boa Nova do Reino. A compreensão da multidão se justifica plenamente, uma vez que ela não adere em profundidade ao ensinamento do Senhor. Por isso, interessa ao mestre saber como estava sendo compreendido pelos discípulos. Estariam a altura de dar um passo a mais em relação à multidão. Trata-se de uma pergunta importante, porque a resposta revelará a percepção dos discípulos a respeito dele. Mais ainda, revelaria também as expectativas que traziam consigo, e qual mentalidade nutriam acerca dele. A comunidade cristã não pode ver Jesus como uma personagem do passado que deixou um grande legado a ser lembrado.

“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (v.16), responde acertadamente Simão, em nome dos doze. É uma reposta que ele dá em nome do grupo, e, portanto, eclesial. Uma profissão de fé comunitária. Os demais discípulos componentes do grupo dos doze também responderam com Pedro. Deus está a agir em seu ungido. Toda ação de Cristo revela o querer do Pai.

“Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v. 17). Jesus admira-se com a resposta tão acertada. E reconhece em Simão um bem-aventurado. Seu entendimento não provém do esforço humano; só pode ser revelação do Pai dos céus. O apóstolo é chamado pelo seu nome “Simão”. Todas as vezes que Jesus se dirigir ao discípulo desta maneira, significa que o seu agir e seu pensamento estão corretos e condizem com o querer do Pai. A capacidade de compreensão do discípulo acerca da identidade de Jesus como messias e filho de Deus provém do Pai do Céu. A sua abertura ao Pai permitiu-lhe compreender a verdadeira identidade do Filho do Homem, superior ao que pensavam as multidões. Aquele que desejar fazer um caminho de fé semelhante ao de Pedro será capaz de assimilar como ele quem Jesus é.

“Por isso eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus declara Simão Pedro como rocha firme devido à Fé que professara. O acento aqui não recai sobre o discípulo, mas sobre a Fé que ele, juntamente com a comunidade dos discípulos, a Igreja, professa. A pedra firme por sobre o qual se edifica a comunidade dos crentes é o conteúdo e o núcleo da Fé professada pelo discípulo: Cristo, o filho do Deus vivente. Simão Pedro, na verdade, é o garantidor da unidade em torno desta Fé. Esta não se baseia num conjunto de ideias ou de proclamações dogmáticas, mas se embasa numa pessoa e na relação experiencial com ela: Jesus de Nazaré.

Mateus se serve de duas palavras gregas muito parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα - petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las. “Petros” corresponde à pedra, pedregulho ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção; “petra”, por sua vez, alude à superfície rochosa, base ideal para os fundamentos de uma construção segura. São estas as bases necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do Reino. Portanto, Jesus diz que Simão é Pedro (Πέτρος /petros), uma pedra-tijolo da construção. Ele deve estar assentado a pedra-rocha (πέτρα /petra), Jesus e a fé que professou acerca de Sua pessoa: “Tu és o Messias e Filho do Deus vivente”.  Só aqui, e em Mt 18,17, o evangelista chama de “Igreja” a comunidade dos discípulos do Reino, evocando o antigo povo de Deus (hbr. qahal). A missão da igreja consiste em ser, na história humana, um sinal da presença do Reino, vivendo os seus valores e o seu projeto. Alicerçada sobre a rocha.

O Mestre confia plenamente no discípulo e na comunidade. Por isso, lhe dá plena autoridade para liderar a comunidade, ilustrada pelas “chaves do Reino dos céus”. Da metáfora do fundamento, simbolizada pela pedra, Jesus passa para a da chave como liderança. A entrega das chaves como imagem para autoridade para ligar e desligar na terra só é respaldada no céu, lugar de Deus, quando a vida do discípulo e da comunidade assimilam a vida e o Espírito do Mestre da forma mais profunda possível. Qualquer um que professa convictamente a fé em Jesus e vive seu programa de vida expressado nas bem-aventuranças (Mt 5 – 7), tem a chave de acesso ao Reino. Mais que delegar poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade para fazer o Reino acontecer já aqui na terra, vivendo segundo sua existência.

“Jesus, então, ordenou aos discípulos que não dissessem a ninguém que ele era o Messias” (v.20). A ordem dada aos discípulos pode-se entender como precaução para se evitar confundi-lo com o messias glorioso e esperado com ansiedade pelo povo e pelas elites religiosas. Mas serve igualmente de advertência para a comunidade que ouve, medita, lê e recebe o texto, a fim de que ela não reproduza o pensamento equivocado acerca da forma messiânica de Jesus, e se coloque sempre em sintonia com o Pai para acolher e compreender a vida do Cristo e assimilá-la para si. O texto litúrgico termina, preparando a sua continuação, o primeiro anúncio da paixão. O modo pelo qual Jesus exercerá plenamente seu messianismo será a da cruz.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 19 de agosto de 2023

SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO DE NOSSA SENHORA – COMENTÁRIO À 1Cor 15,20-27:

 


A Igreja celebra neste final de semana a Solenidade da Assunção de Maria, Mãe do Senhor, aos céus. Um dogma de fé relacionado, numa primeira análise à pessoa de Maria. Todavia, ao lançarmos um olhar para o fundamento do dogma – da verdade de fé proclamada e celebrada, acima de tudo – os dogmas marianos estão radicalmente ligados e fundamentados na fé cristológica. Dito de outra maneira, só se pode dizer alguma coisa a respeito de Maria, porque, antes, e, primeiramente, foi dito sobre a pessoa de Jesus. Aqui urge corrigir a expressão cunhada pela mariologia antiga, “Sobre Maria nunca se poderá falar suficientemente (De Maria Nunquam Satis)”. Ao contrário, só se pode dizer algo de suficiente sobre ela porque algo foi afirmado primeiro e suficientemente acerca de Jesus. O dogma mariano da assunção reafirma a índole escatológica da Igreja peregrina, da qual Maria é imagem – ícone. Ou seja, ao declarar e professar que Maria foi acolhida na Glória de Deus, a Igreja confessa sua fé na ressurreição. A fé na eternidade junto de Deus

A proclamação de fé acerca da assunção de Maria aos céus reafirma e reflete o futuro e fim escatológico que está reservado para todo o crente: a vida definitiva e plena em Deus. Dizer que Maria foi assunta aos céus significa dizer que sua vida e história foram assumidas por Deus, em seu projeto salvador e redentor. Mas só é possível dizer que Deus assumiu a vida inteira de Maria porque ela assumiu viver segundo o projeto de Deus, enquanto verdadeira discípula do Reino. Ela participa daqueles que, conforme linguagem paulina (1Cor 15,20-27), pertencem a Cristo. Por isso, para a meditação desta Solenidade propomos o texto da segunda leitura, o texto extraído da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios, justamente por esse escrito tão precioso tratar na sua essência da vida da comunidade cristã, chamada a ser corpo histórico e real do Senhor. Uma vez que Maria assumida (assunta) pela glória da Trindade é ícone/imagem final da Igreja de Cristo (typus ecclesiae).

Como princípio e regra de uma interpretação coerente e saudável do texto bíblico, sempre se é oportuno contextualizá-lo. Em se tratando de uma carta, o que ainda não fizemos neste espaço, situar o escrito paulino que a liturgia propõe tomará um pouco da atenção. Assim, tentaremos em forma de síntese reter o que mais é importante: data da redação, lugar (ambiente vital) da comunidade de Corinto e tema da carta (os quais refletem os problemas da comunidade) que o apóstolo trabalhará. Cronologicamente, as duas Cartas aos Corintios foram redigidas entre 52 e 53 d.C, em Éfeso. O apóstolo Paulo está ali fundando e cuidando daquela comunidade quando recebe informações da família de Cloé, muito amiga dele, acerca das condutas equivocadas que a comunidade vem nutrindo ao seu interno, as divisões e comportamentos contrários ao Evangelho que ele pregou para eles. As cartas serão, portanto, bilhetes intencionais que Paulo enviará de modo a preparar a sua visita. Elas tratarão de colocar as coisas em seus devidos lugares.

Corinto era uma comunidade difícil para Paulo. Ela foi uma das mais belas cidades gregas da Antiguidade Clássica, tendo sido autônoma e soberana durante o Período Arcaico da história da Grécia. Experimentara um notável desenvolvimento comercial devido à sua localização. Possuía dois importantes portos que movimentavam sua economia: um ficava no golfo de Corinto, outro se localizava ao sul, no mar Egeu. Havia ali dois grandes templos: um dedicado a Afrodite (deusa do amor), e outro a Apolo (deus da música, canto, poesia e da beleza masculina). A comunidade de Corinto, fundada por Paulo, era composta por Judeus cristãos e gentios. Dentro do grupo dos judeus-cristãos, encontram-se os que viviam segundo a orientação de Paulo (conformes ao Evangelho de Cristo), outros, segundo Cefas-Pedro (considerados judaizantes; um pé em Cristo e outro na lei judáica), e os gentios (oriundos do paganismo), que identificavam-se mais com a pessoa do pregador Apolo (eram cristãos entusiastas e carismáticos). O tema/eixo da Primeira Carta é o da unidade da comunidade cristã. Pode-se dizer que este escrito possui uma preocupação eclesial: todas as vezes em que a unidade e a comunhão da comunidade estiver ou for ameaçada, se poderá gerar feridas no Corpo de Cristo. A Primeira Corintios é um escrito cujo tema central é a Igreja.

A liturgia nos propõe o penúltimo capítulo da carta – mas não menos importante – para a meditação nesta solenidade mariana, 1Cor 15,20-22. Oportunamente ele apresenta a última indagação que Paulo trata de responder à sua comunidade. O tema da ressurreição dos mortos. Ora, se o apóstolo toca neste tema é porque a comunidade, de alguma forma, apresenta dificuldades e questionamentos, ou noções equivocadas que precisam ser corrigidas. É importante compreender que este problema constitui o núcleo fundador da fé cristã.

Nos primeiros anos das comunidades cristãs, a primeira geração dos discípulos esperava a manifestação definitiva de Jesus, a sua segunda vinda (gr. Parusia; retorno/vinda encontro). Pensavam que o retorno do Senhor estava próximo (parusia iminente), o que gerava um comportamento rigorista, com a ruptura da realidade. Acontece, que, na medida em que esta vinda demorava e as perseguições e dificuldades aumentavam na vivência da fé, crescia também o desânimo, com a postura do acomodar-se diante da vivência do Evangelho (Parusia adiada). Rigorismos e laxismo eram duas atitudes diante da expectativa da vinda do Senhor. Este cenário atingiu igualmente as comunidades fundadas pelo Apóstolo. Só que em Corinto a situação agravou-se muito. Os membros da comunidade apresentavam distorções e visões equivocadas acerca da fé na Ressurreição.

Influenciados pelo ambiente que os cercava, as religiões mistéricas (gregas, pagãs), pela corrente filosófica do gnosticismo, que ensinava que a libertação da alma estaria na aquisição do conhecimento, e que, portanto, o homem estaria livre da perturbação quando buscava o conhecimento, os cristãos de Corinto pensavam que uma vez alcançado o conhecimento acerca de Cristo, e tendo passado pelo Batismo, já teriam alcançado a ressurreição, e não haveria mais nada a fazer, a não ser, cruzar os braços. Com isso, desconectavam da realidade, preocupando-se somente com o presente, e esquecendo-se de projetar a vida para o futuro de Deus. Com isso, eliminavam do horizonte de visão a virtude da esperança. Para o pregador das nações, ela é a meta do cristão, discípulo e discípula do Senhor, porque a esperança é a concretização do encontro com Jesus. Ao se preocupar somente com o presente, esqueciam-se de preparar-se para o encontro com o Cristo, que virá novamente. Paulo fará uma séria advertência a este comportamento através do capítulo quinze (ver também 1Cor 7, o tema da ética do discipulado em face da segunda vinda, que para o Apóstolo aconteceria num horizonte próximo). Agora podemos meditar o texto, tendo oferecido a contextualização.

“Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (v.20), afirma Paulo. Não é qualquer coisa que ele diz. O apóstolo toca no cerne da fé cristã: a ressurreição do Senhor. Este é o núcleo e evento fundador da vida e da fé da comunidade. É o polo orientador da vida e da fé do discípulo e da comunidade. Trata-se de uma chamada de atenção, no intuito de transmitir um ensinamento importante: para ele, Cristo Jesus é o Primeiro dentre os que já morreram a ressuscitar. Paulo utiliza e aplica o termo “primícia” ao Senhor. Este termo recorda os primeiros dons (frutos, sementes, animais) que a tradição judaica oferecia em sacrifícios à Deus, no templo. Eles deveriam ser puros e perfeitos; ou seja, deveriam ser o melhor exemplar. O modelo perfeito de tudo o que se ofertava. A melhor oferta a ser apresentada.

Paulo pretende ensinar a comunidade de Corinto que Cristo Jesus é a primícia, o primeiro e perfeito dom que o Pai oferece para que se ter a vida divina. Jesus Ressuscitado é o homem perfeito e pleno que doa da Sua vida para que o homem possa participar de sua vida. No Senhor, a Trindade revela o modelo do ser humano redimido, e, portanto, assumidos por Ela: uma humanidade assunta!

“Com efeito, por um homem veio a morte e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão (v.21-22)”.  Paulo faz uso do gênero retórico demonstrativo, por meio do qual se utiliza a comparação (Sincresi) entre personagens como ocorre neste versículo (cf. também em Rm 5: Cristo x Adão; Fl 2,6-11). A comparação que o apóstolo faz não é para mostrar a igualdade, mas a superioridade de Cristo Jesus, homem pleno, em relação à Adão. O ser humano, para Paulo, não morre mais por causa de Adão. Mas morre para o sentido da vida de Adão na morte de Cristo, e ressuscita/revive na ressurreição do Senhor.

Paulo é muito didático, e, para não deixar dúvidas na comunidade estabelece uma ordem dos acontecimentos. Atenção! O apóstolo não está descrevendo o acontecimento como se ele tivesse tido uma visão ou revelação de como acontecerá, mas colocando em ordem as coisas: “Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda” (v.23). O apóstolo não tem interesse ou preocupação acerca de quando ou o quê, mas com o “como”, isto é, com a forma: a ressurreição é pertencer à Cristo. Por isso, não há com quê e porquê se preocupar ou descuidar, pois a segunda vinda só acontecerá quando todos pertencerem a Cristo. Enquanto isso não acontecer, o discípulo e a comunidade terão a tarefa e a missão de continuar a obra do Senhor, até que ele venha. Certo é o evento, ou seja, ele retornará; incerto é o quando, o tempo. Por isso, ao discípulo e a discípula caberá viver a vida do Senhor, isto é, “pertencer a Cristo”. Até que o último inimigo esteja sob os pés, a morte. Mas se pode pensar em todas as realidades geradoras e portadoras de morte. O discípulo está implicado, ao pertencer a Cristo, a colaborar com Ele a colocar toda a realidade contrária ao querer de Deus sob os pés do Filho. Por isso, o discípulo não pode se acomodar, esmorecer ou desanimais diante da “demora” de Jesus, mas empenhar a vida pelo Evangelho, de modo a pertencer a Ele.

O apóstolo quer ensinar para os cristãos de sua comunidade, e para os de todos os tempos e lugares que quem morreu unido à Jesus não está morto. Mas vive num estado glorificado do grande corpo eclesial do Senhor. Assim, no Corpo de Cristo não existem mortos, estando todos vivos. Cada um, participando de uma dimensão deste corpo eclesial. Nele não existe distinção entre mortos e vivos. Nele não existe morte! Morto está quem se apartou de Jesus e de Seu Corpo. Aquele que não quis pertencer a Cristo.

Neste preciso sentido é que Maria ocupa o lugar do pertencimento a Cristo, e, portanto, assumida pelo Pai e pelo Filho. Assim, ela se torna modelo para todos os que desejarem ser  discípulo e discípulas, pois desde o sim dado procurou assumir para si o querer gerador de vida de Deus, partilhando esta vida com os outros através da vida doada ao serviço aos irmãos (como o evangelho dominical narra, em Lc 1,39-56) e sendo firme e perseverante na fé, como a mulher do Apocalipse (imagem da Igreja, Apo 12,1.3-6a.10ab) perseguida pelas forças contrárias do Anti-Reino (o dragão, metáfora para o Império Romano).  

Mulher da escuta da Palavra de Deus, que se coloca na missão aos mais necessitados, sem perder a esperança, a meta, que é Cristo. Neste sentido, Maria pertence a Cristo, e, portanto assumida por ele e pelo Pai na vida ressuscitada. Modelo para todo aquele e aquela que deseja ser discípulo de Jesus.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu - SP.

sábado, 12 de agosto de 2023

XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Mt 14,22-33:


 

A liturgia propõe para meditação eclesial deste domingo a cena da manifestação de Jesus caminhando sobre as águas do mar de Tiberiades, após o gesto da condivisão dos pães e peixes versículos antes (Mt 14,13-21). Este capítulo catorze do evangelho mateano encontra-se inserido no bloco narrativo (14 – 17) que sucede o discurso em parábolas (Mt 13). No capítulo treze, o Senhor ilustrou o acontecimento do Reino dos Céus através de sete parábolas. Na sequência, o evangelista mostrará como a comunidade do Reino vai se formando progressivamente através do aprofundamento da Fé, por meio do seguimento à Jesus, em seus contínuos deslocamentos. Os discípulos serão desafiados a compreender, na concretude da vida, o ensinamento em parábolas dado pelo Cristo. Ao mesmo tempo, esta seção narrativa terá a função de preparar o próximo discurso-catequese, o discurso comunitário, em Mt 18.

Temas como a “compreensão” expressados pelo verbo compreender aparecerão nove vezes. As expressões “pessoas de pouca fé (gr. Oligópistos)”, “fé pequena (gr. oligopistía)”, “falta de fé (gr. apistía)”, “incrédulo (gr. ápistos)”, “grande fé (gr. megále pístis)” e confissões de fé aparecerão nesta seção relacionadas às posturas dos discípulos e da comunidade. Assim, este bloco narrativo mostrará o grande esforço do evangelista Mateus de ajudar a sua comunidade a vencer a crise de fé que a rodeia em face ao programa de vida do Senhor e do projeto do Reino. Este anúncio e o modo de vida vinculado a ele colocará o discípulo e a comunidade (de todos os tempos e lugares) em crise, ou, se preferir, “no mar tempestuoso” da história e da realidade.

Uma advertência assaz importante: o relato proposto pela liturgia de hoje não se trata de uma crônica dos fatos acontecidos, mas de uma catequese. Por se tratar de um gênero como este, a sua linguagem e atmosfera estão repletos de elementos simbólicos retirados do patrimônio religioso da tradição do povo de Israel. Nisto, Mateus se mostra um hábil redator. A preocupação do leitor/ouvinte do texto não deve ser se o fato aconteceu tal e qual o evangelista narra, mas qual a mensagem o texto evangélico tem a intenção de apresentar. Isso posto, se pode tomar o texto e meditá-lo.

O texto litúrgico começa situando o leitor/ouvinte na sucessão dos fatos, “Depois da multiplicação dos pães...” No original não aparece este dado; trata-se de uma contextualização que o liturgista faz. O v.22 apenas informa que “[Depois disso] Jesus mandou que os discípulos entrassem na barca e seguissem, à sua frente, para o outro lado do mar, enquanto ele despediria as multidões”. Se faz necessário contextualizar: esta cena ocorre após a multiplicação dos pães, e este gesto de Jesus provoca crise nos discípulos. O mestre compartilha entre o grupo dos doze o que possuem e os impele a fazer o mesmo, sem fazer distinção de pessoas. É para todos o pão que o Senhor oferece. Isso causa no grupo incompreensão e resistência. Eles não aceitam que a Boa Nova (o pão) que Jesus traz e reparte seja para todos. Por isso, que na sequencia da narrativa o Mestre ordena/manda/obriga com que os discípulos entrem na barca.

Atenção à forma como Mateus relata a atitude de Jesus. Ele “mandou”. Literalmente, obrigou que os discípulos entrasse na barca. O verbo “anangkadzo (gr. ἀναγκάζω)” expressa com profundidade o sentido de “obrigar”. Se o discípulo quer ser verdadeiro seguidor e companheiro de Jesus ele precisa obedecer à Sua palavra. 

Mas por que os discípulos são obrigados? Aqui aparece a profundidade da crise: o Senhor os manda para a outra margem. No evangelho de Mateus, quando Jesus diz para que se dirijam para a outra margem do mar de Tiberíades, é porque ele pretende ir ao território da Galiléia, e isso os incomoda e desestabiliza, pois lá é terra de gente odiada; lugar dos pagãos; dos excluídos da benção de Deus, conforme pensavam os judeus piedosos de Jerusalém. Na cabeça dos discípulos, a salvação e a benção de Deus pertenciam somente ao povo fiel de Israel. Mas na atuação de Jesus a salvação é para todos, inclusive os que estão na outra margem.

Neste ponto, o evangelista começa a utilizar os elementos simbólicos, que exigirão do leitor/ouvinte atenção. O narrador informa que Jesus fica sozinho. Sem os discípulos; sem a multidão, “Depois de despedi-las, Jesus subiu ao monte, para orar a sós. A noite chegou, e Jesus continuava ali, sozinho (v.23)”. A montanha uma vez mais aparece como oportunidade de se fazer experiência com Deus. Mateus quer recordar à comunidade a montanha do Sinai/Horeb, onde Deus se manifesta à Moisés; também faz eco àquela montanha das bem-aventuranças. O Senhor é mostrado em oração, sozinho, durante a noite. A oração do Mestre é necessária para que ele possa discernir o querer do Pai. Somente nestes espaços de solidão e oração é que Ele pode sintonizar sua vida e obra à vontade de Deus. Interessante notar que após as orações pessoais, Jesus realiza algo. Para mostrar, que aquilo que ele fez, foi antes partilhado, discernido e sentido junto com o Pai. Mensagem importante que esta cena quer apresentar é a de que todas as coisas que o discípulo realizar, primeiramente devem ser rezadas diante do Pai e de Jesus, para que, através deste momento que a oração proporciona, se possa discernir se corresponde ao querer e ao projeto de Deus.

No v.24, o foco da cena é deslocado para os discípulos, na noite escura, dentro da barca, que é agitada pelas ondas do mar. Três elementos que merecem a atenção e compreensão do leitor/ouvinte: 1) a barca, ela simboliza a comunidade cristã; 2) a noite indica a escuridão/trevas, que revela o estado de ânimo dos discípulos, isto é, a incompreensão, a resistência e oposição que os discípulos alimentam diante do projeto de Jesus; 3) o mar, que na tradição bíblica simboliza o caos, a desordem, e as forças contrárias à Deus; a realidade desta história que, muitas vezes se opõe ao Reino de Deus.

Ora, Mateus relata a situação da sua comunidade através desta imagem do grupo dos doze na barca. A missão de anunciar o Reino, o projeto de Deus, destina-se à todos; a comunidade dos discípulos simbolizada pela barca, deve ter consciência disto; ela acontece nesta realidade histórica e concreta (o mar) que muitas vezes faz oposição e rejeita a Boa Nova. Deve se crescer na consciência de que as perseguições, oposições, rejeições, simbolizadas pelo vento contrário, estão no caminho da missão. Enquanto o discípulo alimentar a incompreensão e a resistência ao projeto de Jesus (alimentar noite e vento contrário), ele só deixará crescer em si e ao seu redor, o medo e a resistência. Este é o pior vento contrário que atinge a barca: a resistência, a oposição e a incompreensão para com Jesus. É o que eles estão vivenciando dentro da barca agitada pelo vento. Mas é o que a comunidade de todos os tempos também pode experimentar. Para superar este obstáculo, Mateus narra os acontecimentos seguintes.

Dos vv.25-30, o narrador apresenta o clímax da cena. Jesus vai ao encontro dos discípulos, pelas três da manhã, caminhando sobre as águas. O horário é um elemento simbólico que merece atenção. Corresponde ao tempo da quarta vigília, período entre três e seis da manhã, ou seja, período em que já está se gestando o dia novo, a luz que vem iluminar a nova jornada. O Senhor se manifesta aos discípulos como luz em meio a escuridão. Ele vem caminhando sobre o mar. Só Deus tem esse poder. As primeiras forças contrárias que Deus domina (com muita facilidade, inclusive com simples palavras) no AT são as forças das águas; no Êxodo, para libertar seu povo da escravidão, YHWH domina e separa as águas do mar, para que pudessem passar. Mateus quer ensinar para a sua comunidade que este Jesus, que caminha sobre as águas é Deus, vem da parte Dele, executa sua vontade, e, que, portanto, os discípulos não podem oferecer resistências a Ele. Se assuntam diante da visão e o Senhor lhes encoraja com palavras já conhecidas, convidando-os a não alimentarem o medo, que é contrário à fé.

Pedro aparece como símbolo dos Doze e revela que o grupo ainda está na superficialidade da relação com Jesus. Apresentam dificuldades. “Então Pedro lhe disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água". E Jesus respondeu: "Vem!" Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus” (v.28-29). O discípulo desafia o Mestre, que não rechaça-o, mas permite que ele também caminhe sobre as águas revoltas. Andar sobre as águas não é poder só de Jesus, mas pode ser uma experiência concedida e vivenciada por todos os discípulos. Ou seja, o Senhor comunica a todos os que O escutam e aderem ao sentido de Sua vida a plenitude divina da qual ele é portador. A capacidade de andar por sobre as realidades contrárias à vida e à missão que a comunidade e que cada um tem para viver. Estar na barca de Jesus, isto é, sua comunidade não é garantia de ausência de ventos contrários, mas garantia de que eles serão superados quando o discípulo e a comunidade terem a certeza de que o Senhor está com eles enfrentando a realidade.

Todavia, é preciso estar com os olhos fixos em Jesus. “Mas, quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: Senhor, salva-me! Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: Homem fraco na fé, por que duvidaste?” (v.30-31). Mateus retrata através desta cena o que acontece o discípulo e a comunidade perdem do horizonte de visão a Jesus: começa afundar; o mar da realidade contrária ao projeto de Deus submerge o discípulo. Este só perecerá quando desviar o olhar da meta que o Cristo. Pedro afunda não porque tem medo do mar. Ora, ele era pescador! Quantas noites e dias inteiros enfrentando aquele cenário? Não seriam aquelas águas que o matariam. Ele afunda porque tem medo do sentido para o qual a vida e a missão de Jesus apontam: viver a mesma existência do Senhor. Esta é a dificuldade e a razão do medo do discípulo, e que podem afundá-lo. Por isso o relato é uma catequese e não uma crônica jornalística dos fatos.

Após ser salvo por Jesus, Pedro é corrigido por Ele através da censura sobre a fé enfraquecida (v.31). O evangelista está constatando a superficialidade da fé dos discípulos. A dinamicidade da fé deve sempre ser entendida como relação, após uma opção e adesão fundamental que o discípulo faz pela vida do Mestre. A fé não é um sentimento de estima ou de qualquer outra conotação afetiva, mas uma relação interpessoal com Deus. Jesus pretende dizer a Pedro que o nível da sua relação com ele não atingiu a adesão plena de vida, a constância e a maturidade de reconhece-lo como Senhor e único absoluto de sua vida. O discípulo e a comunidade que mantiverem os olhares fixos e centrados em Jesus, ou seja, estabelecerem uma relação íntima e profunda com Ele serão conscientes das dificuldades e obstáculos, mas serão também possuidores da certeza de poderem caminhar sobre isto, sem que sejam submergidos pelo mar revolto ou abalados pelos ventos contrários. O discípulo só enfraquecerá sua fé quando não cultivar a relação com o Senhor.

O vento cessa assim que sobem na barca. Os discípulos, em forma de adoração e reconhecimento da presença divina diante deles, como todos os personagens bíblicos, se prostram. Mas também fazem uma confissão de fé no messianismo de Jesus: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus!” (v.33). O mesmo acontecerá aos pés da cruz, quando o oficial e a soldadesca romana exclamarão, “Realmente, ele era o Filho de Deus” (Mt 27,54). Nesse sentido, a mensagem catequética é a seguinte: as duas tempestades, a do mar e a provocada pela cruz do Senhor possuem a força de gerar profissões de fé autênticas. As tribulações da vida, pelas quais passam o discípulo e a comunidade do Reino podem ser ocasiões oportunas e profundas para o crescimento na relação com Jesus, ou seja, o crescimento da fé, na medida em que se reconhece ter consigo, na barca da vida ou da comunidade, o Emanuel Jesus. Reflitamos.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 5 de agosto de 2023

FESTA DA TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR – Mt 17,1-9:

 


A liturgia deste domingo nos convida a meditar a narrativa da transfiguração de Jesus, que está presente em Mateus, Marcos e Lucas. Mas cada evangelista deu a esse fato cores próprias, de acordo com as necessidades de suas respectivas comunidades. No horizonte da catequese mateana, esse episódio é precedido por três importantes momentos interligados: a confissão de Pedro (Mt 16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata, pois, de uma sequência narrativa que cumpre a função de revelar a identidade e a meta de Jesus, cuja conclusão é exatamente o episódio da transfiguração.

No entanto, neste domingo se faz uma interrupção da leitura semi-continua do evangelho de Mateus, avançando abruptamente para o capítulo dezessete. Como compreender o texto proposto depois de haver meditado na íntegra a leitura do discurso em parábolas (Mt 13), do discurso missionário (Mt 10) e do Sermão da Montanha (o discurso inaugural em Mt 5 – 7)? Precisamente assumindo os ensinamentos destas catequeses anteriores enquanto caminhos para a transfiguração. Esta será a intenção central do comentário de hoje, de modo a compreender mais e melhor a identidade de Jesus e a transfigurar a nossa identidade enquanto discípulos e discípulas do Reino.

O texto evangélico inicia-se situando as personagens e o lugar. “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha” (v.1). Primeiro, atenção às personagens: estes três discípulos sempre aparecem em primeiro plano nas narrativas, em detrimento aos demais. A preferência não se trata de privilégio, mas de necessidade de aprender profundamente acerca da identidade de Jesus e sobre a sua missão. Eles foram os mais necessitados do ensinamento do Mestre. É verdade que os três personificam o grupo dos Doze. E, na cultura e tradição judaicas atuam também na função de testemunhas qualificadas, ou seja, aquelas que dão veracidade ao fato que se desenrolará diante de seus olhos.

Um segundo elemento é o aspecto geográfico. Mateus situa-os na montanha. A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de Sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Mas ela deve recordar para o discípulo a montanha das bem-aventuranças. Ora, toda a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo um “subir a montanha”, um convite a transfigurar, ao assimilar a Boa Nova do Reino contido nas bem-aventuranças.  Por isso é preferível não cair no erro tradicional de identificar a montanha com o Tabor, proposta por Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia.

Ali, Jesus é transformado. “E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz” (v.2). A palavra grega para esta ação é o verbo “metamorphote (gr. μετεμορφώθη)”, que está na voz passiva (lit. “Foi transfigurado...”). O que indica que a ação é realizada por Deus. Ou seja, o Pai está a revelar quem Jesus é, a partir de dentro; a partir da Sua humanidade. Os três discípulos se tornam testemunhas oculares desta revelação, e, por isso possuem condições de fazer uma leitura distinta da morte injusta do Mestre, já predita e que ainda está por acontecer. Nesta perspectiva, o texto cumpre sua função para o leitor-discípulo, a de mostrar como será o caminho do Mestre; como ele executará sua missão, e, qual será o desfecho de sua existência. O seu messianismo não será vivido na perspectiva do poder, do domínio, da força, da submissão, do prestígio como alerta no primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21). Tampouco a morte violenta e ignominiosa terá a última palavra na sua vida. Pois a cena narrada trata de antecipar, tanto para o discípulo que o acompanhará até o monte, como para o leitor-discípulo e ouvinte do evangelho, a Sua condição ressuscitada. Ou seja, a quê qualidade de vida a humanidade de Jesus será dotada.

No v.3, o evangelista informa a presença de outras duas personagens, Moisés e Elias. O primeiro, faz alusão à Lei; o segundo, à profecia. Na intenção de Mateus, Lei e Profecia representam a totalidade da Palavra de Deus. Ao lado de Jesus, eles indicam-no como a plenitude da Lei e dos Profetas, ou seja, Ele é a realização plena das Escrituras.

Pedro interrompe a cena dizendo que a aquela experiência era boa (v.4). Muito se vê na atitude dele algo de negativo. Mas, na verdade, o discipulo fica empolgado com a experiência e propõe ao Senhor fazer aí três tendas, de modo a poderem eternizar a convivência com ele, Moisés e Elias. O número três é importante nessa cena. Na simbologia numérica judaica, corresponde ao número do ser humano. Sendo assim, a mensagem da cena da transfiguração diz respeito à humanidade de Jesus revelada à humanidade dos discípulos.

Todavia, a atitude de Pedro apresenta três elementos apontados por Mateus que devem ser recusados pelo discípulo-leitor do evangelho. O primeiro é o comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi o Mestre quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo.

O segundo elemento é o apego ao tradicionalismo que impede de reconhecer Jesus como o centro da vida, que se verifica na fala de Pedro: “Vamos construir três tendas: uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias” (v.4). Na estrutura desta fala e da frase, Moises aparece em segundo lugar, ocupando o centro dela. Era costume colocar a pessoa de maior destaque e importância no centro da frase, ou seja, nomeá-la em segundo lugar. Isso indica, infelizmente, que Jesus ainda não ocupava o centro na vida dos discípulos, e sim Moisés. Pedro ainda insiste com a antiga tradição: está seguindo o Senhor, mas colocando Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar o Evangelho do Cristo como centro.

O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é não reconhecer a Jesus como a verdadeira tenda. No Antigo Testamento, sobretudo no contexto do Êxodo, ela era o lugar do encontro com Deus. Mas na plenitude dos tempos Deus arma a sua tenda em meio a nós: a pessoa do Filho. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o revelador de Deus por excelência.

Da nuvem, ouviu-se a voz do Pai: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” (v.5 // Mt 3,17; Is 42,1). O Pai o confirma como o único que tem autoridade para falar e agir em nome Dele, e ser ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o Pai lhe corrige. Eles já disseram o que tinham de dizer; à comunidade cristã, só interessa o Evangelho. A nuvem os envolve. Interessante este detalhe, que significa que os discípulos foram acolhidos por Deus. O bem-querer do Pai pelo Filho, portanto, alarga-se a ponto de abarcar, acolher e abraçar os discípulos e toda a humanidade.

Jesus, porém, aproxima-se deles e os toca dizendo: “Jesus se aproximou, tocou neles e disse: Levantai-vos, e não tenhais medo” (v.7). Ter medo corresponde a não ter fé (Mt 14,30-31). Fé e medo são sempre atitudes opostas. A primeira, sempre deve estar presente na vida do discípulo; a segunda, deverá ser sempre evitada. Quem tem fé coloca-se diante de Deus com confiança filial, a exemplo de Jesus. O toque do Senhor, que é a sua própria Palavra, levanta e transforma os discípulos: “Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias não são mais vistos para que as atenções dos discípulos se voltem somente para o Mestre. Já não se ouve nenhuma voz de Deus através da nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar para si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo e seu Evangelho.

Só pode transfigurar como Jesus aquele discípulo que se propõe a subir a montanha com Ele e ouvir sua voz, ou seja, assimilar a Boa Nova do Reino contida montanha das Bem-aventuranças (Mt 5 – 7);  assimilando o sentido da existência e missão do Mestre, através do caminho da missão (Mt 10), e, por fim, abraçar o mistério do acontecer do Reino a partir das parábolas que ilustram como o Reino acontece. Assim, o discípulo e a discípula do Reino viverão uma vida verdadeiramente transfigurada, que outra coisa não é senão viver a vida do Filho de Deus.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeus, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.