sábado, 5 de agosto de 2023

FESTA DA TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR – Mt 17,1-9:

 


A liturgia deste domingo nos convida a meditar a narrativa da transfiguração de Jesus, que está presente em Mateus, Marcos e Lucas. Mas cada evangelista deu a esse fato cores próprias, de acordo com as necessidades de suas respectivas comunidades. No horizonte da catequese mateana, esse episódio é precedido por três importantes momentos interligados: a confissão de Pedro (Mt 16,13-20); o primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21-23) e a declaração das exigências para o discipulado (Mt 16,24-28). Se trata, pois, de uma sequência narrativa que cumpre a função de revelar a identidade e a meta de Jesus, cuja conclusão é exatamente o episódio da transfiguração.

No entanto, neste domingo se faz uma interrupção da leitura semi-continua do evangelho de Mateus, avançando abruptamente para o capítulo dezessete. Como compreender o texto proposto depois de haver meditado na íntegra a leitura do discurso em parábolas (Mt 13), do discurso missionário (Mt 10) e do Sermão da Montanha (o discurso inaugural em Mt 5 – 7)? Precisamente assumindo os ensinamentos destas catequeses anteriores enquanto caminhos para a transfiguração. Esta será a intenção central do comentário de hoje, de modo a compreender mais e melhor a identidade de Jesus e a transfigurar a nossa identidade enquanto discípulos e discípulas do Reino.

O texto evangélico inicia-se situando as personagens e o lugar. “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha” (v.1). Primeiro, atenção às personagens: estes três discípulos sempre aparecem em primeiro plano nas narrativas, em detrimento aos demais. A preferência não se trata de privilégio, mas de necessidade de aprender profundamente acerca da identidade de Jesus e sobre a sua missão. Eles foram os mais necessitados do ensinamento do Mestre. É verdade que os três personificam o grupo dos Doze. E, na cultura e tradição judaicas atuam também na função de testemunhas qualificadas, ou seja, aquelas que dão veracidade ao fato que se desenrolará diante de seus olhos.

Um segundo elemento é o aspecto geográfico. Mateus situa-os na montanha. A montanha, para a teologia bíblica, é o lugar ideal para se fazer a experiência com Deus, bem como o lugar costumeiro de Sua manifestação (as teofanias). Não se trata de um mero lugar geográfico, mas, acima de tudo, teológico. Mas ela deve recordar para o discípulo a montanha das bem-aventuranças. Ora, toda a possibilidade e ocasião de encontro com Deus acaba sendo um “subir a montanha”, um convite a transfigurar, ao assimilar a Boa Nova do Reino contido nas bem-aventuranças.  Por isso é preferível não cair no erro tradicional de identificar a montanha com o Tabor, proposta por Origenes (escritor e teólogo) entre os séculos II e III. Este dado não se sustenta com a leitura da bíblia.

Ali, Jesus é transformado. “E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz” (v.2). A palavra grega para esta ação é o verbo “metamorphote (gr. μετεμορφώθη)”, que está na voz passiva (lit. “Foi transfigurado...”). O que indica que a ação é realizada por Deus. Ou seja, o Pai está a revelar quem Jesus é, a partir de dentro; a partir da Sua humanidade. Os três discípulos se tornam testemunhas oculares desta revelação, e, por isso possuem condições de fazer uma leitura distinta da morte injusta do Mestre, já predita e que ainda está por acontecer. Nesta perspectiva, o texto cumpre sua função para o leitor-discípulo, a de mostrar como será o caminho do Mestre; como ele executará sua missão, e, qual será o desfecho de sua existência. O seu messianismo não será vivido na perspectiva do poder, do domínio, da força, da submissão, do prestígio como alerta no primeiro anúncio da paixão (Mt 16,21). Tampouco a morte violenta e ignominiosa terá a última palavra na sua vida. Pois a cena narrada trata de antecipar, tanto para o discípulo que o acompanhará até o monte, como para o leitor-discípulo e ouvinte do evangelho, a Sua condição ressuscitada. Ou seja, a quê qualidade de vida a humanidade de Jesus será dotada.

No v.3, o evangelista informa a presença de outras duas personagens, Moisés e Elias. O primeiro, faz alusão à Lei; o segundo, à profecia. Na intenção de Mateus, Lei e Profecia representam a totalidade da Palavra de Deus. Ao lado de Jesus, eles indicam-no como a plenitude da Lei e dos Profetas, ou seja, Ele é a realização plena das Escrituras.

Pedro interrompe a cena dizendo que a aquela experiência era boa (v.4). Muito se vê na atitude dele algo de negativo. Mas, na verdade, o discipulo fica empolgado com a experiência e propõe ao Senhor fazer aí três tendas, de modo a poderem eternizar a convivência com ele, Moisés e Elias. O número três é importante nessa cena. Na simbologia numérica judaica, corresponde ao número do ser humano. Sendo assim, a mensagem da cena da transfiguração diz respeito à humanidade de Jesus revelada à humanidade dos discípulos.

Todavia, a atitude de Pedro apresenta três elementos apontados por Mateus que devem ser recusados pelo discípulo-leitor do evangelho. O primeiro é o comodismo; permanecer na montanha é ignorar o mundo real com seus problemas e contradições, é mostrar-se indiferente às situações desafiadoras e fechar os olhos às injustiças que assolam o mundo. Mais uma vez, Pedro procura uma maneira de tirar a cruz do caminho de Jesus; na primeira vez, foi o Mestre quem o repreendeu, agora será o próprio Pai, ao interrompê-lo.

O segundo elemento é o apego ao tradicionalismo que impede de reconhecer Jesus como o centro da vida, que se verifica na fala de Pedro: “Vamos construir três tendas: uma para ti, uma para Moisés, e outra para Elias” (v.4). Na estrutura desta fala e da frase, Moises aparece em segundo lugar, ocupando o centro dela. Era costume colocar a pessoa de maior destaque e importância no centro da frase, ou seja, nomeá-la em segundo lugar. Isso indica, infelizmente, que Jesus ainda não ocupava o centro na vida dos discípulos, e sim Moisés. Pedro ainda insiste com a antiga tradição: está seguindo o Senhor, mas colocando Moisés e a Lei no centro da vida; resiste em aceitar o Evangelho do Cristo como centro.

O terceiro elemento reprovável na fala de Pedro é não reconhecer a Jesus como a verdadeira tenda. No Antigo Testamento, sobretudo no contexto do Êxodo, ela era o lugar do encontro com Deus. Mas na plenitude dos tempos Deus arma a sua tenda em meio a nós: a pessoa do Filho. A ideia de fazer tendas revela incompreensão e não aceitação de Jesus como o revelador de Deus por excelência.

Da nuvem, ouviu-se a voz do Pai: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o!” (v.5 // Mt 3,17; Is 42,1). O Pai o confirma como o único que tem autoridade para falar e agir em nome Dele, e ser ouvido pela comunidade. Pedro ainda estava propenso a ouvir Moisés e Elias e o Pai lhe corrige. Eles já disseram o que tinham de dizer; à comunidade cristã, só interessa o Evangelho. A nuvem os envolve. Interessante este detalhe, que significa que os discípulos foram acolhidos por Deus. O bem-querer do Pai pelo Filho, portanto, alarga-se a ponto de abarcar, acolher e abraçar os discípulos e toda a humanidade.

Jesus, porém, aproxima-se deles e os toca dizendo: “Jesus se aproximou, tocou neles e disse: Levantai-vos, e não tenhais medo” (v.7). Ter medo corresponde a não ter fé (Mt 14,30-31). Fé e medo são sempre atitudes opostas. A primeira, sempre deve estar presente na vida do discípulo; a segunda, deverá ser sempre evitada. Quem tem fé coloca-se diante de Deus com confiança filial, a exemplo de Jesus. O toque do Senhor, que é a sua própria Palavra, levanta e transforma os discípulos: “Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus” (v. 8). Moisés e Elias não são mais vistos para que as atenções dos discípulos se voltem somente para o Mestre. Já não se ouve nenhuma voz de Deus através da nuvem, porque quem vê Jesus, vê o Pai (cf. Jo 14,9) e, portanto, quem o escuta, escuta também ao Pai! A comunidade precisa sempre olhar para si mesma e perceber que seu único referencial é Jesus Cristo e seu Evangelho.

Só pode transfigurar como Jesus aquele discípulo que se propõe a subir a montanha com Ele e ouvir sua voz, ou seja, assimilar a Boa Nova do Reino contida montanha das Bem-aventuranças (Mt 5 – 7);  assimilando o sentido da existência e missão do Mestre, através do caminho da missão (Mt 10), e, por fim, abraçar o mistério do acontecer do Reino a partir das parábolas que ilustram como o Reino acontece. Assim, o discípulo e a discípula do Reino viverão uma vida verdadeiramente transfigurada, que outra coisa não é senão viver a vida do Filho de Deus.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeus, Avaré / Arquidiocese de Botucatu – SP.


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