sábado, 30 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA O III DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 21,1-19:

 


O texto que a liturgia deste domingo pascal nos oferece para nossa meditação é retirado do capítulo vinte e um do Quarto Evangelho, também conhecido como epílogo do evangelho segundo João. O final original da obra joanina é o capítulo vigésimo, o qual pudemos meditar nos domingos anteriores (Jo 20, 1-30).

A comunidade de João, motivada pelas dúvidas e questionamentos sob a experiência pós-pascal dos discípulos com Jesus, tomou a iniciativa de redigir o capítulo vinte e um, fazendo a memória de outros fatos importantes, os quais são narrados neste epílogo. As motivações foram muitas, mas retemos nossa atenção pelo menos em três: 1) a reabilitação de Pedro, que depois da oposição ao projeto de Jesus, negando-O três vezes, precisou ser evidenciada no intuito de mostrar a sua “remissão” diante da comunidade dos discípulos e para as gerações posteriores; 2) a questão dos outros sinais realizados por Jesus ressuscitado exigiu da comunidade exemplos concretos; 3) o encontro entre o Ressuscitado e a comunidade dos discípulos que ocorre, agora na Galileia e a céu aberto, e não mais num ambiente fechado, acenando para a realidade da condição do Ressuscitado que não se limita mais e nem se deixa reter pela comunidade (a condição do ressuscitado não é limitada ao tempo e ao espaço). Por isso, o v. 30 terminava a narrativa afirmando que “muitos outros sinais foram realizados por Jesus, mas que não haviam sido colocados por escritos, mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo e, que, crendo, tenhais a vida em Seu Nome”. Vamos ao texto.

Dos vv.1-15 o evangelista narra uma pesca. Pedro e os outros se encontram a beira do mar da Galileia. Diferentemente das narrativas anteriores, este encontro com Jesus Ressuscitado se dá num lugar específico: a Galileia, em plena luz do dia e a céu aberto. Ela, mais do que um dado geográfico, é um lugar teológico. É o lugar daquela primeira experiência que os discípulos fizeram com o mestre; o lugar do primeiro chamado. Esta pesca, tem, pois, o sentido de reorientar os discípulos àquela primeira experiência com Jesus. Ela funciona como uma memória: um chamado para voltar e confirmar a vocação e a missão. Quem deixou-se seduzir por Jesus deve retomar a vida e os processos. No horizonte da Ressurreição e das experiências com o Ressuscitado acontece sempre a oportunidade e o convite de ressignificar a vida e a existência.

O evangelista faz questão de mencionar as sete personagens. Pedro, Tomé, os irmãos Zebedeu (Tiago e João) e outros dois discípulos, Natanael e o famoso discípulo amado. O número sete indica a plenitude (a completude), e quer acenar para o a realidade da comunidade. Mas alude também à universalidade da missão da comunidade. Ela é de todos e deve chegar a todos. Do anúncio e do encontro com a Boa Nova de Jesus não pode e nem deve ficar ninguém de fora.

Pedro – mais uma vez movido de ímpeto – toma a iniciativa de ir pescar (v.3). E os demais, seguem com ele. A pesca, mais do que uma informação dada pelo evangelista ou qualquer interpretação de que os discípulos voltaram a antiga função, simboliza a missão da comunidade. Todavia, a missão não pode ser tomada a peito, sozinha. Este é o equívoco da comunidade. Isso se verifica pelo fracasso da pesca dos discípulos.

João nos informa que “naquela noite” os discípulos não pegaram nenhum peixe. O indicativo temporal “naquela noite” acena para a ausência de Jesus. A noite, no Quarto Evangelho, é símbolo das trevas, e, por isso, da ausência de Luz. Para o evangelista, Jesus é a Luz. Ora, quando a comunidade empreende suas tarefas sem dar espaço para Jesus (sem que Ele esteja em meio), as suas iniciativas ou obras fracassam. Quando Jesus não está em meio, as obras, por mais bem intencionadas que sejam, perdem seu sentido. Abre-se espaço para um ativismo desmedido, um “heroísmo” egóico. É preciso reconhecer que sem Ele nada se pode fazer (cf. Jo 14).

Mas, no amanhecer do novo dia, Jesus vem-lhes ao encontro na margem do lago. Após o diálogo entre eles, o mestre diz para lançar as redes à direita da barca. Esse convite aguça os sentidos da fé do discípulo amado que, fazendo memória das palavras de Jesus reconhece ser o Senhor na beira da praia. Somente quem ama é capaz de fazer a memória e reconhecer que aquele que ordena lançar as redes é, de fato, o Senhor. Pedro, ao ouvir o discípulo amado faz algo que parece contraditório: toma a roupa e veste-se, pois estava nu, e lança-se na água. Que atitude descabida. Natural e lógico seria o contrário: se está na embarcação, na água, deveria tirar a roupa, mergulhar e nadar até Jesus e vestir-se depois. Todavia, o relato não pretende ser uma crônica dos fatos, mas transmitir uma mensagem salvadora e refazedora de horizontes. Retomando a simbologia da pesca, ela é metáfora da missão. Mas, ela só pode acontecer quando o discípulo compreendeu todo o sentido da vida e da missão de Jesus. O evangelista ao relatar que Pedro estava nu, pretende dizer que ele não estava preparado interna e externamente para o serviço. A roupa simboliza a dignidade da pessoa no ambiente bíblico, e se esta encontra-se cingida na cintura, significa que a pessoa está apta para o serviço a ser realizado. Por isso, a personagem se cinge após vestir-se, para indicar que está, agora, disponível para servir. E mergulha, portanto, nas águas daquele lago. É uma imagem que também evoca o Batismo. O discípulo precisa passar pelas águas para torna-se uma nova pessoa e viver a vida conforme a vida de Jesus, colocando-se disponível para o serviço.

A finalidade deste relato atinge sua intencionalidade, que é a de reconhecer o Senhor nas atividades concretas e cotidianas. É nesse momento que Jesus interage com os discípulos. No cotidiano da vida reconhecer a Graça de Deus que transforma a mesmice em tempo de Salvação. Na cotidianidade e na simplicidade de um trabalho até corriqueiro e rotineiro ver os sinais e a oportunidade de se fazer experiência com o Ressuscitado, a fim de retomar a missão e a vida. É o que a segunda parte do evangelho de hoje acena para nós.

Na segunda parte do relato (vv.8-19), o evangelista narra um momento intenso entre Jesus ressuscitado e os discípulos. Uma refeição. A refeição era o momento e o lugar privilegiado da partilha e da comunhão de vida, do amor e do servir os irmãos, como nos faz recordar a ceia com os discípulos (cf. Jo 13). O texto nos mostra que os discípulos trazem uma multidão de peixes para a praia e, para a surpresa deles, Jesus já lhes tinha preparado a refeição (vv.8-13). O evangelista ressalta para a comunidade através deste gesto de Jesus a realidade da Eucaristia. No gesto singelo e profundo de uma refeição eles fazem a experiência com o ressuscitado.

No v.15, o narrador aponta para outro momento forte do texto: o diálogo entre Jesus e Pedro (Jo 21,15-19). Sabemos das atitude de endurecimento de Pedro, de seu ímpeto e de suas resistências frente ao projeto de vida de Jesus, até no momento da ceia. Ali, dissera que seria capaz de seguir o mestre inclusive na atitude do “dar a própria vida”. Sabemos também de sua negação no pátio da casa do sumo sacerdote, por ocasião do julgamento de Jesus. A sua consciência devia pesar, e de fato era este o estado de Simão Pedro. O diálogo que se segue com as três perguntas acerca do amor do discípulo por Jesus serve de contraponto àquela tríplice negação durante o processo contra Jesus. O diálogo é profundo. Mas podemos captar lhe a essência.

A pergunta que Jesus faz a Simão pode ser entendida a partir de três perspectivas: 1) se o amor de Simão é mais intenso que o de seus companheiros; 2) se amor por Jesus é maior que amor que sente pelos seus; e, por fim, 3) se Pedro ama a Jesus mais que a seus empreendimentos, mais que a pesca? Isso é bem coerente, porque a pesca, como imagem da missão, só pode alcançar seu objetivo porque ela é fruto e motivada pelo Amor a Jesus. Para isso, devem chamar a nossa atenção as formas dos verbos em que são formuladas as três perguntas de Jesus. João emprega dois verbos importante, ἀγαπάω (Agapein/agapao, amor oblativo e operativo de Jesus, capas de dar a vida) e φιλέω  (Filein/Filêo, amor na forma de amizade).

Jesus é intenso na pergunta a Pedro, perguntando se ele O amava (ἀγαπᾷς με / agapás mê). Pedro responde nas duas vezes “Sim, senhor. Tu sabes que te amo (συ οιδας οτι φιλω σε / sy oidas hoti fîlo sê)” que pode ser entendido assim: “Senhor tu sabes que te quero bem, que sou teu amigo”. Pedro não tem estofo para captar a profundidade da pergunta de Jesus. O amor do qual fala e pretende indicar Jesus é aquela adesão, decisão e fidelidade. O discípulo só consegue dizer que é seu amigo.

Jesus pergunta uma terceira vez a Pedro se ele o ama. Aqui, o evangelista opera uma mudança nos termos: por duas vezes aplicou o verbo agapein (amor) na pergunta de Jesus, e por duas vezes para Pedro usou o verbo Filia/filein (amizade). Uma vez mais Jesus surpreende. A reviravolta está no fato de, agora, Jesus perguntar a Pedro se ele é seu amigo. O Senhor é entra e assimila as dinâmicas de Pedro. Ele vai ao encontro do discípulo; se dirige até onde o discípulo/humanidade pode ou tem condições de ir, nada mais, nada menos. Ele aceita e assume a medida do discípulo. Vai até onde Pedro está; assume as dinâmicas dele (e da cada um de nós) para reorientar e fazê-lo sair de si. Jesus alcança a medida de Pedro fazendo-o relembrar que somente o amor é o caminho da relação e da vida, e, por conseguinte, da missão. Então, percebe-se que o acento do diálogo entre Jesus e Simão não recai num acerto de contas com o discípulo complicado. Mas é uma forma de mostrar que mesmo com as fragilidades e limites, o amor precisa ser sempre renovado e confirmado. É do amor que depende o fruto da missão.

No v.17, Pedro responde pela terceira vez, mas acrescenta que “o Senhor tudo sabe”. Jesus, pela terceira vez faz o convite para apascentar Suas ovelhas. Apascentar significa cuidar, nutrir, e dar condições de vida digna para todos. Mas a base para o pastoreio é aquela fidelidade do amigo. Por isso, para exercer esta missão, Pedro precisa renovar seu amor e sua fidelidade: ser amigo do Senhor. O amigo, na tradição bíblica, é aquele que coopera com o agir de Deus.

O Jesus de João diz, então, a Pedro sobre os rumos que hão de tomar a sua vida e sua missão, “Em verdade, em verdade te digo: quando eras jovem, tu te cingias e ias para onde querias. Quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará para onde não queres ir”.  Em seguida, ressignifica a vida de Pedro novamente, convidando-o: “Segue-me”. Pedro deve entender o caminho (a vida) do Senhor. A morte de Jesus está neste horizonte. Quando o discípulo, assim como Pedro, compreende o que significa a fidelidade e o amor a Jesus, que é perpassado pela experiência da vida levada, em amor, até o fim, é que poderá, então, seguir a Jesus no discipulado. 

O texto nos questiona. 1) temos ressignificado nossa vida e missão, e, por conseguinte, nossa vocação batismal no horizonte do Amor ao Senhor (vestir e cingir a roupa para o serviço e mergulhar nas águas da existência)? 2) Como tenho vivido a minha relação com o Senhor, tenho assumido sua amizade? 3) Tenho permitido que o Senhor se aproxime de minha medida, para tirar-me dela? Peçamos ao Senhor que Ele se aproxime de nossa medida e nos reoriente para o Seu Amor, a Sua medida.

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 23 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA O II DOMINGO DA PÁSCOA - Jo 20,19-31:


A oitava pascal compreende o grande domingo da Ressurreição do Senhor. Por oito dias, a comunidade dos discípulos de todos os tempos se reúne ao entorno da novidade da ressurreição e dos encontros com Jesus, o vivente. E a narrativa proposta pela liturgia para a nossa meditação, que coroa estes oito dias memoriais da Ressurreição, é tomada da conclusão original do Quarto Evangelho, Jo 20,19-3, uma vez que o capítulo vinte e um do Evangelho segundo João é um apêndice da obra. O texto de Jo 20,19-31 é, sem sombra de dúvidas, uma narrativa de recriação, tanto do ponto de vista da comunidade, como do discípulo. O leitor situa-se na continuidade da leitura do capítulo vigésimo, omitindo apenas o encontro de Maria Madalena com Jesus Ressuscitado.

Nesta seção o leitor-discípulo é convidado a tomar parte da experiência da comunidade dos discípulos com o Ressuscitado. Não se trata de aparições, propriamente, mas de Encontros com Jesus, o vivente. É evidente, que para os discípulos não foi tarefa fácil encarar as horas e os dias seguintes ao “acontecido” com o  mestre. Por isso, o fiel e leitor do Quarto Evangelho, ou melhor, a geração posterior (na qual somos incluídos), deverá colocar-se no mesmo horizonte daquelas testemunhas oculares. Caberá a esta geração “Crer sem ver”, para ser considerada bem-aventurada. Para João, morte e ressurreição não são realidades estanques, mas dois aspectos inseparáveis da mesma realidade, a glorificação de Jesus.

A indicação cronológica e espacial que o autor informa é importante: “Ao anoitecer daquele mesmo dia (v.19)”. A narrativa insere-se na cronologia das cenas anteriores: o primeiro dia. Mas a variação temporal revela que a comunidade dos discípulos já deu passos significativos: ela transitou da “madrugada” daquele primeiro dia; da escuridão da incompreensão dos acontecimentos da primeira hora da ressurreição. A partir deste novo indicativo temporal, João dá mostras de que a comunidade está despertando de seu sono de morte. Está fazendo, processualmente, a experiência da ressurreição. Fundindo os horizontes do tempo narrado com o tempo da comunidade, esta indicação do “primeiro dia” pode acenar para a prática da comunidade de dedicar aquele dia para celebrar a Memória do Senhor Ressuscitado. Ocorre, igualmente, a transição de cenário. O espaço já não é o mesmo; a comunidade dos discípulos não se situa mais no sepulcro, mas noutro espaço, o da própria comunidade, a casa. Sinal de que ela saiu do sepulcro.

“Estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam” (v.19). A comunidade, mesmo se distanciando dos esquemas de morte e, tendo dado passos no processo da experiência da ressurreição, ainda estava bloqueada pelo medo. Na Teologia Bíblica, o Medo é sempre contrário à Fé. O medo preocupa, impede a missão; fruto da angústia, da desilusão e do remorso de alguns. Acena também, para a ausência do Senhor. Todavia, é preciso fundir os horizontes novamente, pois o texto não é uma peça de museu, mas ilumina os processos históricos da vida da comunidade e dos discípulos de todos os tempos. O leitor é chamado a unir o panorama temporal da comunidade dos discípulos, que fazia a experiência com o ressuscitado com a realidade da comunidade joanina dos anos 90 d.C, que sofria perseguição por parte dos Judeus e das autoridades romanas.

Jesus põe-se no meio deles (cf. v.19b). É importante a informação dada pelo evangelista. O Ressuscitado não se manifesta aos discípulos colocando-se acima ou distante. Não se trata de um Jesus acima de tudo e de todos. É um Senhor em meio! Para uma comunidade viver realmente os propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que ao centro do seu existir esteja o Ressuscitado. Na comunidade de Jesus, o vivente (e na comunidade joanina) não existe supremacia, nem relações piramidais. Não há espaço para sentimentos de importância ou de inferiorização. Não existe maior ou menor.  Mas uma comunidade igualitária, livre de estruturas de domínio, de poder e de submissão; uma comunidade fraterna, tendo um único centro: Jesus. Encontrando-se com os discípulos (no meio deles), o Ressuscitado opera lhes a transformação, oferecendo o primeiro antídoto ao medo: o dom da paz! É o encontro com a paz de Jesus que levanta o ânimo da comunidade fracassada.

“A paz esteja convosco (gr. ειρηνη υμιν / Eiréne ymín)” (v.19). Esta saudação se repete por três vezes, o que indica completude, e, ao mesmo tempo a plenitude do ser humano. O número três, na bíblia indica plenitude do homem. É o número do ser humano. Por isso, esta primeira palavra dirigida por Jesus aos seus possui conotações de manifestação da realidade divina. A Paz, no ambiente bíblico, alude à plenitude da Benção (ou garantia) dos bens no tempo do Messias. O Shalom (שָׁלוֹם) bíblico remete ao ambiente dos sacrifícios cultuais (Shelamim), cujo pagamento que o povo recebe em virtude daquele sacrifício é a Paz.  Aqui, parece implicar também a realização das promessas anunciadas por Jesus na hora da despedida: os seus haviam de revê-lo (14,19; 16,16s) com alegria (16,21s.24; cf. 15,11), e ele lhes daria a sua paz (14,27). A paz e a alegria contrastam com o medo mencionado no início. O Jesus joanino, ao desejar a paz pretende ensinar que através do Dom da vida de Jesus vivida, em amor até o fim, tudo encontra-se “pago”, “quitado”. As promessas feitas encontram-se cumpridas, ninguém deve mais nada.

O v.20 é importante para a continuidade do relato, porque a paz comunicada acima só  se tornou possível por conta das mãos e do lado de Jesus. Ele mostra-lhes, então, as mãos e o lado marcados e feridos pelos pregos e pela lança. É intenção de João mostrar a continuidade existente entre Jesus Crucificado e sua condição ressuscitada. As mãos são sinais do serviço, do agir, e o lado é sinal do amor, pois representa o coração. Os principais traços característicos da identidade de Jesus são o serviço e o amor. “Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio” (v. 21). A missão de Jesus estava fundamentada na tarefa recebida do Pai e na Sua fidelidade ao realiza-la; a dos discípulos, na de Jesus. Aqui, encontramos três termos importantes: os verbos apostellein e pempein (enviar, gr. ἀποστέλλω; mas aqui απεσταλκεν (apestalkén), cujo tempo verbal encontra-se no perfeito, que indica ação contínua) e a conjunção kathôs (gr. καθως, como). Os verbos e a conjunção têm a intenção de exprimir semelhança e a causa, isto é, a missão dos discípulos é continuação daquela que Jesus recebeu do Pai e encontra nela seu modelo e origem. Esta missão é um ato contínuo e continuado pelos discípulos de todos os tempos.

Os vv.22-23 são profundamente importantes para a finalidade do relato. Ao enviar os discípulos, Jesus sopra sobre os discípulos o seu Espírito. O gesto de soprar recorda a narrativa da criação em Gn 2,7, onde Deus soprou nas narinas do vivente seu sopro de vida. O Gesto de Jesus remete à Criação, e por isso, na Sua ressurreição acontece uma nova Criação. Ao receber o Espírito Santo, a comunidade se torna também comunicadora dessa força de vida. A ressurreição de Jesus é uma ressignificação na vida da Comunidade dos discípulos. A comunidade tem a responsabilidade de fazer esse Espírito soprar em todas as realidades, para que toda a humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente tirado do mundo (cf. Jo 1,29). Os pecados são perdoados à medida em que o amor de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se deixam conduzir pelo Espírito Santo. “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). O Espírito é dado à comunidade para que ela continue fazendo a Obra de Jesus. Essa missão é: tirar o pecado do mundo. Jesus não está dando um poder aos discípulos, mas uma responsabilidade: reconciliar o mundo; transformar as realidades. O que perdoa os pecados é o amor de Jesus; logo, ficam sem a experiência do perdão, o discípulo que recusa amar como Ele amou.

A comunidade não está completa. Falta um certo Tomé, que, diga-se de passagem, precisa ser compreendido bem. Ora, ele não se encontra ali, naquele ambiente fechado. O que pode acenar para o fato de que ele não compartilhasse da mesma mentalidade.  Dídimo (gr. διδυμος), cujo significado é gêmeo, era seu nome. Mas quem seria o seu outro irmão gêmeo? Teríamos um personagem anônimo na narrativa? Os personagens anônimos têm, no Quarto Evangelho (e em toda a Sagrada Escritura), a função de espelhos para a comunidade e os leitores. Ou seja, eles servem para que os leitores assumam aquela identidade; se identifiquem com ele. Um convite aos leitores e discípulos de todos os tempos a assimilar a Tomé como seu gêmeo: questionador, corajoso, atento, perspicaz e convicto; mas reconhecer também suas dificuldades. A sua coragem – atestada pelo fato de não estar no ambiente fechado da comunidade amedrontada – foi ofuscada pelo rótulo inadequado de incrédulo. O seu erro foi o de não aceitar o testemunho da comunidade. Por isso pediu os mesmos privilégios dos dez, ver, e, também, tocar o Senhor.

Oito dias depois (v.26), Jesus novamente se pões no meio deles, deseja-lhes a Paz; se dirige a Tomé. Convida-o a executar o gesto que havia pedido como prova. Ele, ao invés de tocar o Senhor formula uma confissão de fé de valor incomparável: “Meu Senhor e meu Deus!” (v.28). O título de Senhor (Kyrios) é o que cabe àquele que entrou na glória de Deus. João reserva este título para Jesus ressuscitado.

Aqui, revela-se a intencionalidade do texto. A bem-aventurança proclamada por Jesus: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto” (v. 28), reflete a preocupação do evangelista com as novas gerações de discípulos, muito questionadores chegavam a duvidar do anúncio, exigindo provas concretas da ressurreição.

O evangelista responde a essa realidade: não há necessidade de visões e aparições; basta integrar-se a uma comunidade de fé para experimentar a presença do Ressuscitado. A comunidade reunida é o lugar por excelência de manifestação do Ressuscitado.

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré-SP / Arquidiocese de Botucatu.


sábado, 16 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENE VIGÍLIA PASCAL (Ano C) – Lc 24,1-12:

           
                    (arte: Gleydson / pequeno rebanho)

Nesta noite santa a Igreja celebra o ápice e o centro de sua fé: o memorial da Páscoa do Senhor, de sua ressurreição dentre os mortos e de sua vitória sobre o pecado que afastava a humanidade de Deus. Nesta noite fazemos, ainda, a memória de nossa passagem pelas águas da morte-vida, que nos deram vida nova. É uma festa batismal. Para saborearmos o mistério, a liturgia nos propõe o texto do evangelho de segundo Lucas (Lc 24,1-12), o último capítulo do terceiro evangelho. Por isso, se faz necessário compreender o contexto e as motivações do evangelista ao escrever este relato pascal, cuja a primeira seção (ou primeira parte) somos convidados a meditar.

O último capítulo do evangelho de Lucas, que fala da ressurreição de Jesus, não é só a conclusão de sua trajetória histórica, mas a meta última de sua caminhada idealizada, o cumprimento de todas as promessas e expectativas de salvação. O autor situa os eventos pascais em Jerusalém. Para ele, a cidade tem um papel importante em sua redação. Ela, representante simbólica da antiga história da salvação, é a meta não só geográfica, mas teológica da caminhada de Jesus: em Jerusalém se revela a grande ação salvadora de Deus, a morte e a ressurreição do messias; aqui Jesus, como o “vivente” e glorificado, encontra-se com os seus discípulos para enviá-los a todos os povos. Nesse sentido, os relatos pascais são, acima de tudo, narrativas dos encontros entre os discípulos e Jesus Ressuscitado. Não pretendem narrar aparições, porque o Ressuscitado não é u fantasma ou “alma penada”, mas homem vivo; pessoa humana com uma vida qualitativamente superior, que se encontra com os seus.

Outra nota importante: Lucas organiza o relato em torno de três episódios: 1) as mulheres que vão ao sepulcro; 2) a passagem dos discípulos de Emaús; e, por fim, 3) o encontro com o grupo dos onze. Acontecem num arco de um só dia, o domingo. O que revela um motivo litúrgico.

Para nós, interessa o primeiro relato (Lc 24,1-12). As mulheres vão até o sepulcro onde havia sido posto o corpo de Jesus. Ao chegarem ao lugar, deparam-se com o sepulcro aberto e vazio (cf. v.1-2). Algo aconteceu ali: a pedra foi retirada do túmulo, e este encontra-se vazio. Mas atenção, a tônica do relato não deve ser colocada sobre o sepulcro vazio. Isso ainda é pouco. Diante do sepulcro vazio não nasce a fé, mas a perplexidade, a desconfiança, o medo, a inquietação e, o mais perigoso, a frustração. O acento ou a tônica do texto devem ser direcionados para o que virá a seguir.

O evangelista nos informa que apareceram dois mensageiros celestes. Eles se colocam ao lado das mulheres e lhes interroga, com uma pergunta em tons de afirmação: “Por que estais procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui. Ressuscitou!” (v.5-6). O mensageiro celestial, que, na teologia bíblica é personagem simbólica para a ação do próprio Deus, faz uma revelação. Em outras palavras, O Pai mesmo se encarrega da revelação. Ora, se faz necessário acolher uma revelação do alto para que nasça a Fé, e olhar para o alto, deixando de contemplar passivamente um sepulcro vazio. É urgente elevar o olhar e deixar de olhar para chão. Devem se colocar atentas ao anúncio de uma Palavra de novidade que Deus as dirige. Escutar o anúncio da Palavra da ressurreição, ali, nas proximidades do túmulo.

A pergunta-revelação traz um conteúdo fundamental: Jesus está vivo. O texto grego nos ajuda a perceber esta afirmação. Ele soa mais ou menos assim: “por que procurais um vivo (vivente) entre os mortos?”. Um vivente. Ora, o evangelista usa de uma pergunta porque, evidentemente espera uma resposta. A revelação divina acerca de Jesus exige sempre uma resposta do ser humano. Esta boa-noticia não é uma palavra que se ouve e basta. Pelo contrário, ela exige um acolhimento na vida do discípulo.

Um detalhe importante. A presença de dois mensageiros, na antiguidade e na cultura do povo de Jesus, serve para dar credito (credibilidade) a um testemunho. Este só seria válido e autorizado pela presença de duas ou três pessoas (cf. Dt 19,15). Eles funcionam, pois, como testemunhas autorizadas da ressurreição, dado que o testemunho de mulheres ou menores de idade não eram validos na época. Eles atestam para as mulheres que Jesus é o Vivente. Não significa que Ele retornou à vida, mas que entrou na vida mesma de Deus. A ressurreição não é um ato tão somente, mas um estado, uma condição permanente!

A afirmação de que Jesus é o vivente está carregada da influência do ambiente bíblico, no qual Deus é chamado de “o vivente” (cf. Js 3,10; Jz 8,19). Na Igreja de Lucas, esta denominação é referida a Jesus ressuscitado (cf. At 1,3; 25,19) e é uma maneira de falar da sua ressurreição em termos compreensíveis, principalmente para gente estranha à cultura bíblica.  

Se Jesus é o vivente, não tem mais sentido procurá-lo no lugar onde estão os mortos; Ele não está mais no passado, mas vive no presente e é projetado rumo ao futuro como todo aquele que vive. Então, o sepulcro vazio não diz mais nada sobre a nova realidade; é simplesmente um sinal negativo e equivocado quando olhado isoladamente. Só a palavra de Deus, que se tornou a palavra ou a promessa de Jesus, oferece a chave hermenêutica para compreender a nova experiência salvífica. Por isso, Lucas relata as palavras de Jesus que explicam o sentido de sua morte, através da recordação que as personagens celestiais faze: “Lembrai-vos do que ele vos falou, quando ainda estava na Galileia: O Filho do Homem deve ser entregue nas mãos dos pecadores, ser crucificado e ressuscitar ao terceiro dia” (v.6b-7).

Recordar para compreender. A aparição dos anjos e sua mensagem não trazem, a rigor, nada de novo ou de inesperado. Mas tem a função de reavivar, ou acordar, a memória do que já existia naquelas mulheres, enquanto ouvintes das palavras de Jesus. Na perspectiva dos mensageiros celestes elas deverão recordar, fazer memória, para poder compreender. Porque, para abrir-se à ressurreição não basta ver o sepulcro vazio, tampouco bastaria a visão dos anjos: mas fazer memória, o que não é uma simples recordação do passado – e, no caso, os eventos da paixão e morte de Jesus – mas repensar, reler, ressignificar e atualizar (trazer para o momento presente) aquele evento da vida, paixão e morte de Jesus. Ora, é partindo da ressurreição que se poderá lançar luzes e significados para sua vida e morte. Lucas sublinha repetidas vezes que a memória, a capacidade e o dom de reler/ressignificar, é necessária para abrir-se à ressurreição e à sua credibilidade. Sem ela, não se retém os sinais e o sentido da ressurreição.

Em outras palavras, a ressurreição de Jesus não poderá ser compreendida se não for relacionada à toda a Sua trajetória histórica, culminando na morte de cruz. E esta, por sua vez, não tem sentido a não ser no horizonte mais vasto de uma existência histórica de salvação que envolve todos os homens.

A ressurreição de Jesus é a grande afirmação da parte de Deus de que a vida do seu Filho se tornou uma vida salvífica e redentora. Em outras palavras, Sua ressurreição, operada pelo Pai, foi a afirmação, da parte de Deus, à toda a vida (existencialmente vivida) de Jesus de Nazaré (suas atitudes, gestos, palavras, opções). Deus diz uma palavra definitiva sobre a vida de Jesus: ela é indestrutível. Por isso, ele está ressuscitado, em pé (gr. ἠγέρθη / Egherthe).

Dos vv. 8-11 as mulheres retornam para junto do grupo dos discípulos – Lucas nos dá a conhece-las. Elas seguem a ordem dos mensageiros celestiais e passam para a condição de missionárias, anunciadoras daquela boa-notícia. Elas se tornam, a partir de agora, aquelas importantes testemunhas qualificadas que dão fé ao anúncio. O verbo usado por Lucas (gr. ἀπαγγέλλω / aphangello, anunciar) é um verbo missionário, que sempre indica o anúncio de um evento importante e inesperado (os quatro evangelistas fazem uso dele em suas narrativas pascais, Mt 28,8-10; Mc 16,10.13; Lc 24,9 e Jo 20,18).

Mas elas se deparam com a incredulidade do grupo. Para além do que foi dito acerca da credibilidade dos testemunhos das mulheres, a incredulidade dos discípulos para o evangelista é profunda e verdadeira. É um fechamento e endurecimento da parte deles da verdade divina acerca da ressurreição de Jesus e ao convite de fazer memória da vida e obra de Jesus, para poder fazer a experiência da ressurreição. O verbo usado por Lucas, ἀπιστέω (apisteuo), está no imperfeito e sugere uma incredulidade obstinada e contínua. Os onze resistem acreditar e em fazer a memória de Jesus.

Dentre os onze emerge a figura de Pedro. Ele toma a atitude diferente. Ainda que descrita de modo rápido, “levanta-se, corre até o sepulcro, encontra-o aberto, se inclina para olhar para dentro”, ela é importante, porque reforçada pelo verbo ver (gr. βλέπω / blêpo), que se refere a atitude de olhar com atenção. Este espanto e perplexidade são já um passo importante do discípulo. Mas ainda não é a Fé. Pedro percorreu uma lenta caminhada interior, de revisão de suas convicções: da crise e do medo, na negação de Jesus preso e humilhado, à dúvida diante da mensagem das mulheres, à admiração e ao estupor do túmulo vazio, até culminar no encontro com o Senhor que vive.

O relato conclui-se com a constatação da incredulidade: da parte dos discípulos é obstinada e fechada; de Pedro, é abertura e disponibilidade. Mas ainda se faz necessário um encontro e uma experiência pessoal com Jesus Ressuscitado. Todavia, as mulheres são exemplares: delas emerge a certeza e a abertura para fazer a memória da vida, paixão e morte de Jesus, para fazer a experiência da ressurreição. A ressurreição é a vida de Jesus passada a limpo pelo Pai e pelas comunidades dos discípulos de todos os tempos que se propõem a viver a exemplaridade da vida de Jesus em suas vidas, fazendo Dela memória constante. Isso significa viver uma vida ressuscitada.

Feliz e Santa Páscoa do Senhor!

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.


sexta-feira, 15 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA A SEXTA-FEIRA SANTA DA PAIXÃO DO SENHOR - Jo 18,1 - 19,42:


 

A narrativa da paixão no evangelho joanino é diferente das contidas nos sinótcos (Mc, Mt e Lc). O evangelista segue um fio narrativo de Mc (o primeiro evangelho escrito), porém distancia-se e muito na forma de narrar e de apresentar a personagem principal da “opera”, por assim dizer. Trata-se de um relato que vai a fundo ao apresentar e revelar a Glória de Deus em Jesus. O catequista bíblico não economiza ao mostrar a realeza de Jesus. Pode-se dizer com toda a segurança que, ao interno da narrativa da paixão em João, e somente nesta seção narrativa, Jesus é mostrado como soberano; é rei. Devido ao fato da extensão do relato joanino da paixão, opto por apresentar esta reflexão a partir das personagens: quem são, o que fazem e quais finalidades possuem ao interno do relato, a fim de transmitir a mensagem salvífica que o texto contém e que o autor quer entregar para a sua comunidade e para as gerações futuras dos discípulos. Contudo, é importante situar o texto ao interno do contexto litúrgico, isto é, na sequência do texto da quinta-feira santa da ceia do Senhor. Ora, somente o discípulo que segue Jesus até à “bacia, o Jarro e à mesa”, poderá tomar parte da hora da glorificação.

Chegou a Hora de Jesus. Durante toda a primeira parte do evangelho joanino – o livro dos sinais – os gestos simbólicos operados por ele possuem a finalidade de revela-lo como enviado do Pai, Aquele que realizará sua obra, como também aprontar o discípulo para a Hora da Glória (seu enaltecimento/elevação). Um esclarecimento importante: a Glória da qual fala o evangelista João não pode ser entendida como um brilho ou algo resplandecente. No vocabulário do evangelista, que é todo proveniente da tradição bíblica do Antigo Testamento, a palavra “glória” (hbr. Kabod) é traduzida por “presença”. Logo, ao se falar da “Glória de Deus” (Ez 10; Ez 43,1-27), está se referindo à presença (ao peso) de Deus. A glória, portanto, da qual o Jesus joanino fala é a realidade da presença de Deus mesmo no dom da Sua vida, existência e obra. Quando se revela a Glória de Jesus? Na Hora da Cruz. Ela revela a que a vida de Jesus é o [novo] lugar/santuário da presença de Deus na história. Agora podemos tomar o texto a partir das personagens.

No Jardim (Jesus e Judas) – Jo 18,1-12:

O evangelista chama a atenção do discípulo-leitor para Jesus. Na teologia do Quarto Evangelho, João o apresenta sempre consciente e onisciente. Na ceia (13,4), o havia relatado ciente de que havia chegado a sua Hora, e de que tudo o Pai havia posto em suas mãos.  Não seria diferente na narrativa da paixão. Ele não é vitimizado pela situação. Não permite que ninguém, exceto o Pai, tenha a Sua vida nas mãos. É um homem senhor-de-si.  Por isso, não é surpreendido por Judas e pelas pessoas que vieram prendê-lo. Note-se que Ele mesmo vai ao encontro do traidor (Jo 18, 4). Típica ironia joanina, o evangelista nos conta que Judas vem equipado com lanternas e tochas, que são iluminações artificiais. Recordemos que na ceia Judas já havia feito sua opção pelas trevas à luz que veio no mundo (3, 19). Ao sair do convívio com Jesus na ceia já era noite fechada (13, 30). O evangelista quer mostrar que este discípulo fez a opção contrária à luz; cindiu com ela. E agora, ele é quem precisa de luz artificial. Esta personagem contrasta com Jesus na medida em decide-se por agir contra o projeto e o querer de Deus que se realiza através do Filho. Judas é o modelo que o verdadeiro discípulo deve rejeitar, ou se distanciar na medida em que vai relacionando-se com Jesus.

 

Anás, Pedro e o discípulo amado - Jo 18,13-27:

O evangelista apresenta três personagens. Anás, sogro de Caifás, o sumo sacerdote em exercício. O segundo personagem é Pedro. Notemos um contraste operado pelo evangelista entre Pedro e Jesus: enquanto este está demonstrando sua inocência naquele interrogatório viciado, seu mais conhecido seguidor está mostrando fraqueza. Pedro, durante a narrativa da ceia se mostra todo resistente. Esta personagem serve ao discípulo que lê o Evangelho de João como símbolo daquele que precisa assimilar verdadeiramente o sentido da vida de Jesus, para poder fazer a sua opção pró-Jesus. Emerge uma outra personagem, presumivelmente “o discípulo que Jesus amava”. Não há fundamento em identificá-lo com João, o autor do Quarto Evangelho (o que seria demasiado simplista). Mas, fato é, ele está à frente de Pedro e contrasta com ele. Ele é sempre mais rápido ao ver, ao compreender e em acreditar, precisamente porque fez a experiência com o amor de Jesus, que é uma marca da verdadeira condição de discípulo

 

Jesus diante de Pilatos – Jo 18, 28-42:

O evangelista apresenta uma personagem confusa. Um camaleão. Um amedrontado Pilatos. Soma-se a isso a alternância dos cenários externos e internos. Nesse vai-e-vem, Pilatos vai mudando e assimilando as imagens de seus ambientes. Ao interno do palácio ocorre a alternância entre luz (externo) e trevas (interno). Na maneira como João dispõe a narrativa, o inquérito acontece ao interno do palácio, para revelar esta oposição típica de seu evangelho: luz / trevas. A intenção (ainda que através de sua ironia) é revelar Jesus, mesmo solitário e recluso no palácio, como Luz diante de Pilatos, envolvido em dúvidas e trevas.

O diálogo entre eles revela muito, de acordo com o evangelista. Na intenção dele está para começar o processo de Jesus contra o Mundo, representado pelo Império. João disse no prólogo do evangelho que “O mundo não o conheceu (Jesus), e os seus não O acolheram”. Jesus está diante do procurador romano, que o interroga com base naquilo que ouviu. “Tu és o rei dos judeus?” A resposta de Jesus soa desafiadora: “Estas dizendo isso por ti mesmo, ou outros te disseram isso de mim?” Jesus não responde nem que sim, nem que não. Ele deixa que o próprio Pilatos tome sua decisão e tire suas conclusões. Ao insistir na culpabilidade de Jesus, emerge, pois, uma declaração muito importante acerca de Jesus, de sua vida e obra. Ele responde: “O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui”. O que o Jesus joanino quer dizer com essa reposta?

Se faz necessário tomar o texto dos originais, em grego, para captar o sentido da resposta de Jesus, que se expressa assim: “o meu reino não vem deste mundo ( gr. Ἡ βασιλεία ἡ ἐμὴ οὐκ ἔστιν ἐκ τοῦ κόσμου τούτου / ek tou kosmou tuotou)”. A realeza de Jesus não provém das realidades mundanas, das estruturas de poder, domínio, opressão. Vem do alto. Jesus declara, pois, que sua realeza depende e está estritamente relacionada à Deus. A autoridade que ele exerce, só a faz porque é da vontade do Pai. As palavras “meu reino não é daqui (= deste mundo)”, portanto, não dão margem para sugerir uma fuga do mundo, da realidade, da história humana, nem justificam qualquer tipo de alienação. Pelo contrário, convocam o discípulo a uma lucidez superior. Aderir ao reino de Jesus é aderir à verdade daquele que, em tudo o que faz, é palavra de Deus e que liberta de toda escravidão, e que restaura o mundo, enquanto realidade criada por Deus.

Mas neste diálogo emerge mais uma novidade muito profunda e marcante. Pensemos. Pela lógica do inquérito, Pilatos faz as vezes do juiz que interroga, questiona e apura os fatos para dar cabo de uma sentença. Entretanto, a partir das respostas eloquentes que Jesus dá aponta para uma revelação importante: o juiz não é Pilatos. No inquérito, quem assume a figura do juiz é Jesus, deixando para Pilatos o papel de investigado. Mais uma vez, a finalidade é mostrar Jesus superior a realidade e a trama que o circundam, porque só quem autoridade sobre sua vida é o Pai. E mesmo assim, é através de sua liberdade enquanto homem que Jesus vive sua fidelidade ao projeto de vida plena, em amor até o fim, ao Deus que chama de Abá-Pai. Porque este Abá não exige do seu Filho qualquer sacrifício de sangue, ou mesmo uma morte expiatória.


A morte (19,28-37):

Após um caminho longo, Jesus chega ao lugar da crucifixão. Depois de tomar o vinho azedo, Jesus exclama: “Tudo está consumado” (mesma expressão do v. 28), inclina a cabeça e “entrega o espírito”. Nestes versículos 28-30 ocorre duas vezes o verbo teléo, “consumar/levar ao fim” (vv. 28 e 30). O dito “Tudo está consumado” acena para a realidade de que toda a vida de Jesus, através de suas obras e Palavra refletem a vontade de Deus. Significa, ainda, que a vida e obra de Jesus atingem a Plenitude. Mas também revela a superação dos sistemas antigos dos sacrifícios levítico-cultuais. João faz coincidir a morte de Jesus no calvário com o exato momento em que se imolavam os cordeiros no templo, por ocasião da festa da pascoa. Jesus supera, com o dom de sua vida em amor, os antigos sacrifícios e se torna, pois, o único mediador entre a humanidade e Deus. Não são mais a observância da Lei, nem das prescrições cultuais os meios necessários para se ter acesso a Deus, mas a humanidade, a vida e a obra de Jesus. Esta vida, Ele a entrega nas mãos do Pai.

O “entregar o espírito” (a existência) acena para aquela onisciência e senhorio de Jesus, de que se falou a pouco. O verbo grego paradidomai (entregar/doar) percorre toda a narrativa da paixão, mas aqui ele revela e, ao mesmo tempo, afirma o domínio de Jesus diante da situação: quem entrega sua vida é ele mesmo, sabendo que tem o poder de retomá-la novamente. Ele livremente a doa, para que o Pai reconheça esta mesma vida como salvífica e redentora, dizendo a última palavra sobre a vida deste seu Filho.

A morte de Jesus, de maneira tão crua, só pode ser entendida à luz de sua vida vivida, através de seu ministério. Ela é a consequência e o resultado da vida, das opções, decisões, vividas à luz do amor fiel ao Pai e aos irmãos, mesmo em face às hostilidades dos chefes do povo. Isso não é fazer uma leitura política da vida de Jesus. Sua vida era conflituosa pelas questões que provocava e pelos interesses que abalava. Isto vê-se no seu modo de viver, na sua práxis escandalosa, não facilmente aceita, principalmente no tocante a Sua opção pelos últimos. Nesse sentido, a pregação de Jesus foi uma inversão de valores. Rompeu com os esquemas estabelecidos. Assim, a condenação de Jesus é uma rejeição a sua pessoa e a tudo o que Ele faz durante sua vida.


O relato de hoje nos deixa diante de duas perguntas: 1) Com quais personagens me identifico? 2) Como tenho vivido minha existência cristã e meu discipulado? A chave e o modo para viver o discipulado é a forma da Paixão. Não existe discipulado que não seja perpassado pela Cruz. Mas Ela não será a última palavra. 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu (Avaré-SP) / Arquidiocese de Botucatu - SP

quinta-feira, 14 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA A QUINTA-FEIRA SANTA - CEIA DO SENHOR: Jo 13,1-15:


 A Quinta-feira Santa nos faz cruzar o limiar (das celebrações) do Mistério Pascal de Cristo. Gosto de pensar naquela pergunta que o filho mais novo faz para seu pai, ao iniciar a ceia pascal judaica: “Por que esta noite é diferente das outras noites?” E o pai, com toda a delicadeza de uma pedagogia tanto ritual como existencial se coloca a narrar a libertação do povo de Israel, operada por Deus. O chefe da família responde à criança: “Porque nesta noite fomos arrancados da casa da escravidão no Egito, e agora somos livres”. Esta noite começa a ser para nós, povo da Nova Aliança, uma noite diferente, que culminará na grande e solene noite da Vigília Pascal. Nesta noite recebemos a oportunidade de termos nossos pés lavados a fim de podermos tomar parte / comungar do mesmo gesto de Jesus. 

Nesta noite santa, somos convidados a meditar nos gestos de Jesus na ceia com os seus, o que ele realizará na oferta da própria vida na Cruz. A última ceia carrega consigo, portanto, profecia e testemunho. Profecia, porque ela se torna um gesto simbólico da entrega de Jesus mediante o gesto de lavar os pés dos seus; e testemunho, porque convida, interpela e questiona a conduta e a atitude do discípulo de todos os tempos, provocando-o a “seguir o exemplo” do mestre e Senhor, num fazer memória de Seu gesto, que institui o sacramento do amor serviçal (Ministério Ordenado), e do sacramento de seu Mistério Pascal, presente entre nós (Eucaristia). O “fazei isto em memória de mim” (1Cor 11,24), alcança sua plenitude histórico-salvífica quando estreitamente vinculado ao “dei-vos o exemplo para que façais como eu fiz” (Jo 13,15). Isto posto, podemos meditar o texto desta noite santa retirado do Quarto Evangelho, Jo 13,1-15.

O leitor-discípulo é convidado, agora, neste capítulo 13, a tomar parte do Ensinamento Final de Jesus; chamado a entrar na dinâmica da sua Glória, através dos sinais realizados por Ele na primeira parte do evangelho Joanino, os quais preparam para esta Hora, a revelação da Glória de Deus em Jesus. Estes últimos ensinamentos constituem, ao interno do Quarto Evangelho, o bloco literário que contém o chamado Testamento Senhor (Jo 13 – 17).

Um testamento é aquilo de muito precioso que é deixado ou dado para quem se ama. O que Jesus deixará para seus amigos constitui o coração de todo o seu ensinamento, concomitante à revelação que realiza acerca da Glória de Deus, através de sua Hora: o seu enaltecimento na Cruz (Jo 18 – 19). Porém, só poderá contemplar a Glória de Jesus, aquele discípulo que compreendeu a pedagogia dos Sinais operados por Ele, que assimilou o seu “ensinamento em forma de testamento”. Em outras palavras, o discípulos só conseguirá compreender a cruz, se primeiro tiver passado pelo testamento de Jesus, que começa a ser transmitido pelo gesto do lavar os pés.

O autor do Quarto Evangelho situa a narrativa no tempo: “Era antes da festa da pascoa” (v.1). Diferentemente da tradição sinótica (Mc, Mt e Lc), o evangelista situa a ceia de Jesus na véspera da solenidade pascal. De modo que a ceia pascal seja celebrada no dia seguinte (coincidentemente no Sábado, aquele ano). Por que? O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas diferenciar para mostrar a superação dela: a páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A sua não exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus a substitui e a supera. Na Páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto que na de Jesus com sua comunidade, se celebra o triunfo da vida na forma do serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há morte, há doação de vida por amor. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma páscoa subversiva; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.

A páscoa subversiva de Jesus começa ao redor da mesa. Através da refeição. É importante compreender o simbolismo das refeições para os povos do oriente, em especial para os semitas. A refeição era o momento privilegiado para se partilhar a vida entre os comensais. Uma pessoa ao ser convidado para uma refeição deveria encarar tal convite como uma honra, porque era o sinal de que anfitrião nutria muita estima pelos seus convidados e, fundamentalmente, tinha a intenção de torná-los participantes de sua vida e de sua alegria.

O v.1 inicia a sessão com uma solenidade ímpar. Anuncia a chegada da hora que vinha sendo preparada desde os primeiros sinais realizados por Jesus, e, que, agora, começa a ser levada a termo. É a hora de Jesus glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. Esta forma solene com a qual João inicia o versículo primeiro, aponta para a finalidade da missão de Jesus: manifestar o amor do Pai até o fim para os seus, que estavam no mundo. A expressão “Amou-os até o fim” pretende indicar a plenitude e a intensidade do gesto de Jesus. O amor começa a ser levado à sua plenitude ao interno de um jantar (no original grego, o autor não usa artigo definido, mas o indefinido).

O evangelista coloca o seu leitor diante de personagens que servirão de espelhos para a comunidade. Primeiro, focaliza-se internamente a personagem de Judas Iscariotes, ao informar que “o Diabo (o divisor; o opositor)” o havia seduzido para que entregasse Jesus (cf. Jo13,2). João, ao focalizar a consciência diabólica (cindida / dividida) de Judas realiza um contraste com a consciência livre e orientada para o projeto de Deus que Jesus possui: a de que o Pai, “tudo” (semitismo para Todos) havia colocado nas mãos de Jesus (lit. “o Pai colocou Tudo e Todos nas mãos do Filho”) (v.3), e de que a partir daquele momento começava seu retorno para Deus, afim de prestar contas de sua missão, enquanto Seu enviado.

Com tal consciência, Jesus levanta-se da mesa. Depõe seu manto. Um gesto simbólico: ao depor o manto está, na verdade, despojando-se da imagem de mestre e de sua dignidade enquanto pessoa. Estava sentado, ocupando a posição privilegiada de mestre que ensina. Despiu-se do manto, o qual simboliza a dignidade social no contexto de Jesus. Cinge-se com uma toalha à cintura. Em seguida derrama água na bacia e começa a lavar os pés dos discípulos (v.4-5). Tal gesto era realizado sempre antes que os convivas se colocassem à mesa; deveriam se purificar (ficar limpos) devido as estradas poeirentas daquele tempo. Esta purificação, geralmente, era feita por um escravo; quando não, pelos filhos ou pela esposa, e, numa demonstração de profunda estima, pelo próprio anfitrião. Todavia, continuava sendo um gesto de muita humilhação. Certos rabinos até orientavam escravos judeus a não realizarem este gesto para com seus patrões. Para Jesus e, posteriormente, para a comunidade joanina, esta atitude assume a conotação de um gesto profético. Amarrar um avental na cintura (cingir-se) acena para a atitude do serviço, na forma e na condição de um escravo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Ele quer ensinar que o destino de sua comunidade e de seus discípulos é o serviço! Esta é a sua real e mais essencial identidade. Estes símbolos servem para explicar o gesto de Jesus: uma transfiguração às avessas! Jesus depõe a sua imagem de Senhor, e assume a forma de servo (Fl 2,7). Ele não veste os paramentos sagrados dos sumos sacerdotes, mas os do serviço; não as alfaias da casta sacerdotal, mas o avental dos servos.

Agora, desloquemos o olhar para outro personagem que o evangelista faz aparecer na narrativa: Pedro. Consciente da conotação humilhante daquele gesto, ele protesta: “Senhor, tu me lavas os pés?”(v.6). Para o discípulo pescador de Betsaida e para os demais, tal gesto é incompreensível. E, de fato, o é para aqueles que ainda não conheceram em profundidade o mistério do Filho de Deus. Por isso, Jesus afirma, que, por hora, eles não sabem o significado daquele gesto (isto só acontecerá à luz do enaltecimento na cruz e mediante o dom do Espírito de Jesus Ressuscitado). Para aqueles que pensam em termos de hierarquia, o mundo vira de pernas para o ar quando o superior se torna inferior! “Tu não me lavarás os pés, nunca!” (v.8), declara o discípulo. Mas Jesus retruca, dizendo “que não terá parte com ele, caso não deixe lavar os pés” (v.8b). O que Pedro não quer aceitar e, demora a assimilar, é que a originalidade do gesto de Jesus reside na inversão de que o mestre se faça servo; que o senhor se torne escravo.

Em termos joaninos, “não ter parte” com Jesus significa não participar da plenitude e inteireza de sua vida, que atingirá a qualidade de uma vida eterna. Ter parte com Jesus, significaria, por outro lado, ter em si a vida de Jesus, e torná-la existencialmente vivida de novo, através da vida do discípulo e da comunidade. Não é possível comungar da vida do Filho, sem aceitar sua lógica do serviço radical. Se Pedro (e qualquer outro discípulo) não aceitar o gesto de Jesus, não participará do efeito da obra messiânica de Jesus. A profundidade de seu gesto reside no fato de que ele é símbolo e profecia da entrega / doação da própria vida. O gesto de lavar os pés acena para o que Ele realizará mais adiante: sua vida consumada na cruz.

O Jesus joanino, depois da incompreensão demonstrada por Pedro, volta à mesa, retoma sua condição de mestre e explica-lhes, então, o gesto. De fato, os discípulos reconhecem-no como Mestre e Senhor. Mas se Ele, nesta condição lhes lava os pés, devem também eles fazer a mesma coisa: lavar os pés uns dos outros, tornando-se escravos uns dos outros pelo amor fraterno. Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Dito de outro modo, não há como sentar-se à mesa (tomar parte da ceia do Senhor, comungando de sua vida, corpo e sangue) sem que se tenha lavado os pés dos irmãos. Não há Eucaristia sem lava-pés! 

O texto suscita algumas perguntas para nós mediante este Sagrado Tríduo: 1) Com qual das personagens me identifico: Judas, que não mais se identifica com Senhor, a ponto de tornar-se adversário do projeto de Jesus e de seu Pai, ou com Pedro, que reluta ainda em assimilar a forma servidora de Jesus? 2) Tenho me deixado lavar os pés por Jesus (e com isso aceitado o Seu Dom-Salvação), para poder lavar os pés dos irmãos (através do serviço do amor/doação fraterno)? 3) Tenho crescido na consciência de que ao comungar da Vida do Senhor (através de seu Corpo e Sangue), devo igualmente comungar (assimilar e realizar) no lava-pés do Senhor? Não há Eucaristia sem lava-pés!

 

Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu  / Arquidiocese de Botucatu – SP.

sábado, 2 de abril de 2022

REFLEXÃO PARA O V DOMINIGO DA QUARESMA - Jo 8,1-11:

 


O evangelho proposto para o quinto domingo da quaresma é retirado do Quarto Evangelho, Jo 8,1-11, conhecido como episódio da “mulher adúltera”. O texto é rico de significado. Ele é uma página de misericórdia. E, pode-se dizer, uma cena de ressurreição. Mesmo tendo sido rejeitado nos primeiros tempos das comunidades cristãs. E, por isso, se faz necessário contextualiza-lo a fim de o compreender mais e melhor. A primeira e mais urgente desmitificação acerca do texto se dá em relação à protagonista, a mulher adúltera. Ela foi identificada equivocadamente com Maria de Magdala (Madalena), fato que não tem fundamento algum. A mulher não é, em hipótese alguma, Madalena. A personagem da mulher deve ser mantida anônima. As personagens que não recebem nome nas narrativas funcionam como um expediente do autor. Estas se tornam um convite ao leitor-ouvinte do texto para que ele se identifique com a personagem em questão.

Uma segunda e importante constatação a nível de contexto é a seguinte: o texto em questão foi, até o século IV, recusado pelas comunidades cristãs. Motivo: a temática do perdão para um pecado que era considerado gravíssimo tanto na tradição judaica, como para a tradição cristã, o adultério. O episódio narra Jesus perdoando a personagem adúltera. E, muito provavelmente, em decorrência da institucionalização do cristianismo, e pelo fato de suas lideranças serem masculinas, reproduzindo o ambiente machista e patriarcal da sociedade naquele contexto, a narrativa da mulher adúltera foi um texto que circulou avulsamente pelas comunidades cristãs. Quando os escritos já se encontravam consolidados, era prática comum que as comunidades fizessem um intercâmbio entre si dos textos, para um enriquecimento continuo da fé. Seguramente, este episódio pertence à Lucas e não à João. Pois ele narra a ação misericordiosa de Jesus diante de uma mulher, ou seja, dois temas pertencentes à catequese lucana: a misericórdia e a presença e atuação das mulheres; bem como o vocabulário próprio que o texto de Lucas possui. Ora, o tema da misericórdia já foi ilustrado de modo realista através da parábola do Pai misericordioso (Lc 15). Mas onde, precisamente, este texto se encaixa ao interno do evangelho segundo Lucas? Muito seguramente no capítulo vinte e um, após Lc 21,37-38, onde se diz que, “Durante o dia ele ensinava no templo, mas à noite saía e pernoitava no chamado monte das Oliveiras. De manhã cedo, todo o povo ia até ele, no templo, para ouvi-lo”. Porém, como nos foi transmitido no Evangelho de João, é a partir dele que devemos meditá-lo.

Os dois primeiros versículos nos situam na cena: “Jesus foi para o monte das Oliveiras. De madrugada, voltou de novo ao Templo. Todo o povo se reuniu em volta dele. Sentando-se, começou a ensiná-los” (v.1-2). De acordo com a cronologia joanina, Jesus se encontra em Jerusalém em virtude da festa das tendas. Uma festa importante para a fé judaica. Ela era alimentada com a expectativa da revelação do Messias na ocasião desta festa de grande peregrinação do povo até a cidade santa. Dai, o motivo de Jesus estar no monte das oliveiras. O local era usado pelos peregrinos que não encontravam hospedagem na cidade. Se, como dissemos acima, meditamos o texto a partir da ótica joanina, a informação temporal é importante: de madrugada. Ela funciona muito mais do que um dado cronológico. Antes, teológico. A madrugada é a transição da noite para o dia; a noite no Quarto Evangelho representa as trevas que envolvem o mudo e o discípulo. O dia, simboliza a luz. A madrugada significa a ruptura com as trevas, o surgimento de um novo dia; é um aceno à ressurreição, pois é o momento em que as mulheres descobrirão o sepulcro vazio de Jesus (cf. Lc 24,1). O texto quer acenar para alguma situação de ressurreição que acontecerá no decorrer da narrativa.

Jesus, durante seu ensinamento é bruscamente interrompido pelos escribas e fariseus, que trazem uma mulher, pega em flagrante adultério (cf. v.3). Este grupo era opositor a Jesus. Tratava-se da elite e liderança religiosa do judaísmo. Os peritos na lei (escribas) e os mestres da época (fariseus). Eles entabulam um diálogo com Jesus: “Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério. Moisés, na Lei, mandou apedrejar tais mulheres. Que dizes tu?”  (vv. 4-5). São irônicos; chamam a Jesus de Mestre, mas sem, de fato, reconhece-lo. E, pretendendo dele uma solução para um caso da lei, tentam enredá-lo numa armadilha. O autor do texto usa o termo peirâzo (gr. πειράζω), que significa tentação, provação. E essa atitude está sempre ligada ao inimigo e opositor de Deus. Nesse sentido, as autoridade religiosas do tempo de Jesus estão agindo como colaboradoras do tentador. Agem diabolicamente para tirar de Jesus alguma resposta que o possa desmoralizar e desacreditar. Dependendo da resposta, Ele poderia perder toda a sua credibilidade como pregador e homem da misericórdia de Deus; se ele der uma resposta que contrarie a lei, poderia correr o risco de imediatamente ser preso, pois estava dentro do templo e não poderia ali ensinar doutrinas equivocadas ou contrárias.

Aqui, se faz necessária uma terceira constatação. E essa, ajudará a compreender na totalidade e profundidade o gesto e o ensinamento de Jesus. A dinâmica do casamento e o adultério no costume da época. O casamento judaico acontecia em duas partes. A primeira, a promessa. Durante essa etapa – que durava um ano – o rapaz, com dezoito anos, desposava a menina (isso mesmo, menina) de doze anos, ficando ela prometida em casamento. E durante um ano preparavam-se para a segunda parte do casamento, as núpcias. A festa onde a família da noiva (da menina, agora com treze anos) levava-a para a casa do noivo. Em caso de adultério, o Talmude (livro que contém as interpretações da lei de Moisés) orientava dois procedimentos: 1º) em caso de adultério ocorrido na primeira etapa do casamento, a promissão, o adúltero e adúltera deveriam ser levados diante do tribunal (cf. Dt 22,23-24), com mais duas testemunhas, e serem ambos sentenciados à lapidação, que se realizava da seguinte forma: colocava-se a pessoa deitada num buraco escavado com dois metros de profundidade; em seguida, as duas testemunhas tomariam uma pedra de mais ou menos cinquenta quilos e deixavam cair sobre a pessoa fosso a dentro. Caso ela ainda sobrevivesse, então a plateia lançava sua pedra sobre dentro daquele buraco. 2º) Se o adultério acontecesse após a segunda etapa, a das núpcias, a mulher seria estrangulada.

Por que sublinhar isso? Justamente para quebrar aquela imagem, muitas vezes romantizada pelas tradições populares, de que esta mulher fosse mais velha. Não. Os lideres do povo falam de apedrejamento. E, tal execução, em caso de adultério, só era previsto para a primeira fase. Logo, a personagem é apenas uma menina; uma jovem entre seus doze ou treze anos. E a dúvida que não quer calar: onde está o homem que adulterou com ela? Que, no mínimo, deve tê-la forçado. O fato de somente a mulher ser acusada e exposta revela o machismo enraizado na sociedade e na religião da época. O homem, provavelmente considerado um “bom religioso”, não é mencionado.

Qual a atitude de Jesus, sabedor de tudo isso, frente aos chefes religiosos do povo (peritos da lei)? Com uma refinada ironia, Jesus se inclina e simula escrever no chão do templo. Em primeira análise está indiferente a eles. Mas, na verdade, ele está discernindo que resposta dar. O gesto de escrever no chão remete ao profeta Jeremias, capítulo dezessete, no qual o profeta diz que os pecados de Judá estão gravados na pedra e nas tábuas, porque se esqueceram do Senhor. Jesus, com esse gesto profético, denuncia a dureza do coração deles. Por seu zelo fundamentalista tornaram-se insensíveis e, em nome de uma falsa imagem e concepção acerca de Deus, escancaravam e descarregavam seus ódios e forças de morte contra as pessoas, principalmente os transgressores da lei. Jesus está a dizer que eles se tornaram semelhantes às pedras do chão do templo.

“Como persistiam em interrogá-lo, Jesus ergueu-se e disse: ‘Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra” (v. 7). Jesus não toma lado na discussão. Não problematiza a acusação. Ao dizer para atirar a pedra, ele está jogando na cara dos chefes que eles sabem o que deve ser feito; como devem começar o processo. Jesus devolve para eles a responsabilidade quanto a interpretação daquela lei. É como que se ele dissesse, “comecem vocês mesmos o processo da lapidação”. Porém, com uma condição previa e importantíssima, que constitui a reviravolta que o texto dá: a de examinarem-se antes de tudo, que se traduz pela condição “Quem dentre vós estiver sem pecado...” Jesus os chama, primeiramente, a um exame de consciência, faz a eles um apelo para a mudança daquela mentalidade, em outras palavras, convite à conversão. convida cada um a olhar para si próprio, apelando para o tribunal da consciência. Com essa resposta, Jesus desarticula os acusadores da mulher, os falsos moralistas daquele e de todos os tempos. E acima de tudo, salva uma vida.

Dos vv.8-9, o autor mostra a atitude dos escribas e fariseus. Desconcertados e, com certeza, furiosos, deixam o recinto e a mulher no meio da multidão com Jesus, começando pelos mais velhos, literalmente, os presbíteros (πρεσβύτερος), ou seja, os líderes do sinédrio, órgão máximo da religião judaica. Logo, os mais velhos aqui, não significa a idade, mas a posição social que ocupam, tratam-se dos chefes religiosos do povo.

No local, Jesus e a jovem ficam sozinhos. E, com um tom solene, Ele se levanta e começa o diálogo com a jovem, tratando-a com uma forma de tratamento muito significativa: “Mulher” (v.10). Na sociedade e no tempo de Jesus, isso é um tratamento de honra para com a mulher. Ao passo que as autoridades do povo se dirigiram a ela diante dele com total desprezo (Pegamos essa mulher). Ao contrário, o Senhor devolve-lhe a dignidade; refaz-lhe a vida, ressuscita a sua dignidade e sua feminilidade. Pela primeira vez ela tem voz, e responde que ninguém a havia condenado.

Então, o relato é coroado pela fala de Jesus: “Eu também não te condeno. Podes ir, e de agora em diante não peques mais” (v.11). Como entender este dito de Jesus? Não se trata de uma advertência. Mas de um incentivo diante da vida recuperada e nova que essa jovem readquire a partir da misericórdia que Jesus exerce para com ela. Diante da vida devolvida e recuperada, Ele a encoraja a viver. Diante do fato de ter sido a primeira vez que ela teve voz e teve restabelecido seu horizonte de vida, com certeza ela abraçou esta possibilidade de vida e de conversão.

O texto de hoje, apresenta questões importantes para a nossa vida cotidiana e de fé. Nos coloquemos na cena, imaginemos ser aquelas pessoas que se encontram ao redor de Jesus e presenciam o desenrolar da cena e nos questionemos. Em que Deus nós cremos, no deus legalista, punitivo, vingativo, violento, cobrador? Ou num Deus que, de fato, é amor, misericórdia, doador de vida e refazedor das possibilidades históricas? A imagem transmitida falsamente pelos escribas e fariseus acerca de Deus nos motivam, ou imagem verdadeira de Deus, que Jesus apresenta? A forma e o modo como cremos e nos relacionamos com Deus determinam nossa forma e modo de relação com o irmão. Com Jesus, devemos estar dispostos a recuperar a vida dos irmãos e encoraja-los a viver esta vida ressuscitada; ao invés de lançar a pedra para derrubar, estender a mão para levantar e ressuscitar.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP