sábado, 31 de dezembro de 2022

SOLENIDADE DE SANTA MÃE DE DEUS – Lc 2,16-21:



Durante oito dias, desde a noite santa da solene vigília de natal, a Igreja permaneceu ao redor do menino de Belém. Hoje, concluindo esta Oitava do Natal, a liturgia celebra a Solenidade de Maria Mãe de Deus, uma proclamação da fé da Igreja acima de tudo cristológica – relacionada à Fé em Jesus de Nazaré. Sempre válido dizer e relembrar que tudo aquilo que se pode dizer acerca de Maria, Mãe de Jesus, só é possível em virtude do que foi dito acerca de seu filho. Só se pode afirmar que ela é mãe de Deus porque seu filho primogênito é Deus – feito homem.

Na solenidade do santo Natal, a Igreja faz a memória do mistério da Encarnação, ou seja, Deus que se fez carne, armando sua tenda entre nós (Jo 1,14). Com a solenidade de Maria, mãe de Deus, pretende-se visibilizar ainda mais a realidade deste mistério, colocando acento, agora, na humanidade do Filho.

A proclamação de Fé eclesial sobre a maternidade divina de Maria, que já era celebrada pela tradição orante da Igreja, possui seu contexto histórico, e é importante recordá-lo. No século III, o bispo de Antioquia, Nestório, juntamente com seus companheiros acreditavam (de modo equivocado, é claro) que a humanidade e divindade de Jesus eram distintas e separadas. Tal afirmação não era correta. Os primeiros concílios do cristianismo, começando por Nicéia (325 d.C) e culminando em Calcedônia (451 d.C), confessavam e professavam a unidade das naturezas (humana e divina) na pessoa Jesus. Em 431, o Concílio de Éfeso, através de Cirilo de Alexandria, reafirmou esta fé cristológica: em Jesus existe uma comunicação (de idiomas) tão grande entre humanidade e divindade. Assim, Maria é mãe de Jesus Cristo em sua totalidade, e não só de sua humanidade. Dizer que Maria é mãe de Deus, significa confessar que o Logos-Palavra de Deus assumiu concretamente a natureza humana: Jesus é verdadeira e plenamente Deus; verdadeira e plenamente homem.

O grande Ambrósio, bispo de Milão, refletia sobre a realidade da maternidade de Maria, afirmando que ela foi primeiro mãe de Jesus no coração, para ir se tornando mãe de Deus na Carne. E isso, só foi possível mediante sua condição exemplar de discípula. É a segunda lição que o evangelho desta solenidade quer nos transmitir. Por isso, somos convidados a adentrar no seu horizonte.

A liturgia traz para a nossa meditação, a continuidade do texto do Evangelho segundo Lucas (Lc 2,16-21). Sabemos, que neste evangelho, Maria ocupa o modelo do discípulo do Reino. As características fundamentais residem na escuta, no acolhimento, e no cumprimento da Palavra de Deus na vida, e através dela, na história humana. A Mãe de Jesus apresenta estas características neste mini-evangelho da infância.

Lucas, após o parto, descreve os acontecimentos seguintes com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, por isso não eram habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico. No v.16, eles vão se certificar de que aquela Boa Notícia dada pelo mensageiro celestial era realidade.

Ao chegarem encontram tudo conforme lhes fora dito pelo anjo. O recém-nascido envolvido em faixas e posto numa manjedoura. É oportuna esta informação. Lucas quer enfatizar através da imagem do menino enfaixado a realidade da sua humanidade, a fim de que sua comunidade e seus leitores nunca percam de vista a novidade que este acontecimento traz: Deus que se faz homem. O divino que se deixa envolver pelas faixas da humanidade. Aquela criança, cuidada e protegida, através de sua humanidade e fragilidade traz em si o divino.

O Evangelista nos informa a postura da mãe do Menino. Ela guardava e meditava no seu coração todas aquelas coisas (cf. v.19). Temos aqui o sentido rico e autêntico do verbo guardar (hbr. shemá), que é como no nosso português popular, o verbo curtir: Maria ficou curtindo todas essas coisas no coração. “Guardar no coração” pode aludir a atitude da ruminação, ou mesmo um confronto consigo mesma. Maria rumina aquele alimento da Palavra de Deus, bem como aqueles fatos carregados da força daquela mesma Palavra; rumina, como que num gradativo e necessário processo digestivo, que precisa ser feito sempre e constantemente. A postura de Maria nos encoraja a aceitar os processos da vida e da história, de modo a compreender que nada é ou acontece num piscar de olhos, ou como que num passe de mágica.

No esquema da obra lucana, o discípulo de Jesus é aquele que escuta a palavra de Deus, a acolhe em seu íntimo, ruminando-a, para, enfim, colocá-la em prática, frutificando a Palavra de Deus através da vida e do serviço aos irmãos. Com a informação que Lucas nos dá sobre a mãe do menino, o leitor do evangelho é convidado e enxergar nela o modelo, a exemplaridade do discípulo de Jesus.

O v.21 encerra para nós a narrativa de hoje: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo antes de ser concebido”. O evangelista revela aos leitores-ouvintes de seu evangelho qual será a vocação do menino. Jesus é a tradução do hebraico Y’eshua, que significa “Deus salva”. Nesse sentido, a salvação não vem do imperador de Roma, que recebia o título de salvador (gr. Sôter), mas do menino envolto em faixas, na manjedoura. Deste menino, do qual Maria, da condição de mãe, é chamada a assumir a condição de discípula. Mas a salvação que este menino/homem trará será uma constante contradição. Será uma salvação que acolhe e reintegra a todos, sem distinções; uma salvação que atingirá a totalidade do ser humano e da história, isto é, que tocará todas as dimensões constitutivas da condição humana, não sendo somente uma salvação do religioso, mas do humano, do social, do ético. Esta vocação salvadora de Jesus emergirá de modo explosivo no capítulo 4 da catequese de Lucas, no episódio de Nazaré. A primeira palavra que sairá da boca de Jesus, na Sinagoga de Nazaré, será a de que seu projeto de vida e sua missão messiânica contemplará o anúncio da Boa Notícia aos pobres, a libertação aos cativos, a recuperação da visão aos cegos, e o ano favorável de YHWH, e, que para esta missão, o Espírito do Senhor estaria sobre ele com a unção (Lc 4,18). Mas esta modalidade de salvação deverá ser acolhida também por sua mãe. Por isso será sempre um exercício constante a atitude de “guardar” no coração e meditar sobre os fatos e acontecimentos que a rodeiam. Por isso, Maria é nossa mãe, modelo e companheira. Ela nos precede no discipulado e na missão.

Quando proclamamos “Maria, mãe de Deus”, estamos dizendo, conforme o dogma, que ela é a mãe do Filho de Deus encarnado. Ela não se tornou uma deusa, nem entrou na Trindade. Por isso, devemos vê-la em relação às pessoas deste Deus Uno e Trino. Eis o terceiro ensinamento para solenidade de hoje.

Em relação ao Pai, Maria é igualmente filha. Ela foi agraciada com ternura pelo Criador, que a moldou com especial carinho. Ao mesmo tempo, Maria concretiza, de forma humana, a eterna geração que o Pai realiza acerca do Filho, no seio da Trindade. Como toda mãe, ela é figura do amor criador de Deus-Pai.

Em relação ao Filho, Maria é mãe, educadora e discípula. O seu relacionamento com Jesus supera os laços de família. Mas sua missão vai mais além. Esteve junto do Filho durante sua vida terrena e, agora, glorificada, continua junto do Ressuscitado, na comunhão dos Santos.

No tocante ao Espírito Santo, Maria é uma pessoa plena Dele. Como perfeita discípula de Jesus, acolheu o Espírito e fez-se transparente a ele. Tornou-se um templo vivo de Deus e se transformou, por Graça, na mãe do Messias.

O dogma da maternidade de Maria é, igualmente, um convite para homens e mulheres recuperarem sua dimensão materna. Ajuda-nos a abrir-nos para o projeto de Deus: escutar (ouvir), acolher e realizar a Palavra de Deus em nossa vida e através dela. Este é o melhor bom propósito para este novo tempo da Graça – Kairós – de Deus, que se inicia.


Pe. João Paulo Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 24 de dezembro de 2022

EVANGELHO DA NOITE DE NATAL - Lc 2,1-14:



 A liturgia desta noite santa também resplandece como um dia. Brilha vez primeira entre as trevas a luz. Uma luz que nos transmite uma boa-notícia a ser recebida e acolhida. O texto evangélico do qual a liturgia se serve para fazer a memória atualizadora da primeira vinda do Senhor é retirado do capítulo segundo da catequese de Lucas, Lc 2,1-14. O texto não pode ser lido e interpretado como uma crônica jornalística dos fatos. O autor quer transmitir uma mensagem de Fé. Uma teologia da história e na história. Vamos ao texto.

O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). Otaviano foi o primeiro imperador a quem o Senado Romano outorgou o título de “Augustus”, isto é, “aquele que é digno de veneração, o poderoso, o divino”. O censo ordenado por ele tinha, na verdade, a seguinte intenção: saber se a população havia aumentado para arrecadar mais impostos, e, ao mesmo tempo uma autossatisfação megalomaníaca: saber por sobre quantos dominava, imperava ou exercia sua soberania. Sempre que os reis de Israel tomavam essa iniciativa, Deus os censurava através dos profetas, porque Ele era o único senhor do povo, e não o rei. Somente Deus poderia ordenar o recenseamento, como assim o fez por seis ocasiões. Uma tradição rabínica da idade média interpretava esses censos ordenados por Deus da seguinte forma: “Deus ordenou o recenseamento não para saber por sobre quem ele estaria governando, enquanto único rei de seu povo, mas para saber se não estava faltando alguém dentro de seu povo”. Uma interpretação bela, e que difere daquela intenção de Augusto. Deus não deseja saber por sobre quem ou quantos domina, mas se não está faltando alguém; se não há a possibilidade de ter alguém ficado alguém de fora.

O evangelista, com este dado, pretende transmitir para seus leitores-ouvintes esta mensagem: se Cesar Otaviano “Augusto” quer elevar-se, Deus em seu mistério de amor subverte esta lógica e se põe no mesmo nível da humanidade. Ele faz o movimento inverso, descendo até a humanidade marcada pela injustiça, pela dominação, pela morte. Diferentemente do imperador, que toma a vida e é sinal das estruturas de morte, Deus comunica um Evangelho de vida. Colocando-se não do lado dos dominadores, mas dos dominados. É o que se verá a seguir.

Lucas nos informa os versículos seguinte (v.4-6) alguns dados importantes: José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, sua esposa. Eram já casado, pois estavam na primeira fase do casamento, a promissão. Por isso, a palavra desposada já não sirva mais ou não expresse o verdadeiro significado de que a promissão seja já casamento. Outra contextualização importante, para não cairmos em narrativas ou interpretações romantizadas acerca do fato: José e Maria já se encontravam na cidade de Davi, pois uma viagem de Nazaré à Belém era feita a pé, algo impensável para uma mulher no último mês de gestação, como nos informa o evangelista. Na cidade de Belém ela dá à luz ao filho primogênito. Interessante, segundo a tradição Judaica, a cidade de Davi era Jerusalém, pois foi ali que ele, enquanto rei fixou sua residência. Lucas não concorda. Ele estabelece Belém como a cidade de Davi, porque ela remete ao seu passado de simples pastor. Uma vez mais o catequista pretende transmitir uma mensagem teológica, e, portanto, de fé: o que virá a ser o menino que nasce em Belém, isto é, qual o sentido que sua vida e missão tomarão; quais serão os destinatários de sua ação salvadora.

O v. 6 nos informa que Maria dá à luz ao seu primogênito (hbr. Ya’hid), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os direitos jurídicos. Mas, primogênito tem um significado muito profundo para a tradição religiosa de Israel, a qual Lucas capta bem e transmite para seus leitores. O primeiro filho é aquele que, conforme tradição judaica, deve ser consagrado ao Senhor. Ou seja, o catequista deseja antecipar para sua comunidade que a vida deste recém-nascido será toda voltada para Deus.

No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas recorre ao Livro da Sabedoria: “Envolto em faixas fui criado no meio de assíduos cuidados; "porque nenhum rei teve outro início na existência; "para todos a entrada na vida é a mesma e a partida semelhante” (Sb 7,4-6). O evangelista pretende assinalar a humanidade de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade. Este Deus é também plenamente homem. Encontra-se enredado na humanidade. Verdadeiramente encarnado. É humano em todos os sentidos.

O evangelista informa que o menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para eles na sala da hospedaria. Isso é importante, e não pode correr o risco de se romantizar a cena. Há que se encará-la em sua realidade, a de que desde seu nascimento, a rejeição e a recusa a sua pessoa serão constantes. Acompanharão sua vida e seu ministério. Para ilustrar esta condição de rejeição, Lucas informa sobre o fato de o menino ser colocado num cocho, pois ele tem em mente a profecia de Isaias: “O boi reconhece o seu dono; o burro o estabulo (cocho) do seu dono. Mas Israel não reconhece; meu povo não compreende” (cf. Is 1,3). Jesus está entre os não acolhidos da história. Um tema que aparecerá, novamente no Prólogo do Quarto Evangelho: “Ele veio para os seus, mas os seus não o acolheram” (Jo 1,11). Ora, se faz necessário recordar também que quando a mulher dava a luz, segundo a Lei de Israel, ela ficava impura (por conta do contato com o sangue que saia dela) e, por isso, deveria ser afastada do convívio social até o momento de sua purificação no templo, quarenta dias depois. Nesse sentido, pode-se entender o motivo de o casal não encontrar lugar na hospedaria e serem realocados para o lugar dos animais, e, portanto, da impureza. No recém-nascido de Belém, Deus faz seu repouso entre os impuros. E será para estes que dirigirá sua mensagem de Salvação. Lucas quer mostrar que Jesus está entre os excluídos.

Após o parto, os acontecimentos são descritos com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Segundo o Talmud, nenhuma condição social poderia ser mais desprezada que a dessas pessoas. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, praticavam pequenos roubos para sobreviverem muitas vezes; por não terem vida religiosa eram considerados como pagãos e, por isso, não estavam habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições de purificação; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente! Mas para o projeto literário e para a catequese lucana, eles são transformados em símbolos: servem de metáfora para todos aqueles que se encontram na exclusão, na marginalização, na indigência, entre as minorias. Por isso, se tornam destinatários do projeto salvador de Deus.

Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. O “anjo do Senhor” aparece pela terceira vez neste bloco literário do evangelho da infância de Jesus: a primeira, no templo, comunicando o nascimento de João à Zacarias; depois, a vinda de Jesus à Maria. Agora, o anjo do Senhor aparece aos pastores – símbolos dos pecadores. Não para julgar e castigar (conforme mentalidade religiosa da época), mas para comunicar um evangelho de vida. Lucas quer ensinar para sua comunidade que o projeto de Deus que se inaugura em Jesus envolve a todos; não exclui a ninguém; não condena os pecadores, mas os abraça. Os envolve. Por isso, o evangelista declara que a Glória (hbr. Kabod) do Senhor os envolveu, e lhes exorta, primeiramente, a não ter medo. Em segundo lugar, lhes dá um motivo: uma boa notícia, isto é, um Evangelho de alegria para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor! A palavra Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Mas, ao mesmo tempo, era o título empregado ao imperador romano. Lucas quer assinalar que não é este o salvador. A salvação repousa no menino de Belém. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor do senhorio e da vontade de Deus.

O mensageiro celestial (Deus mesmo) lhes dá um sinal para encontrar o menino: deitado numa manjedoura, envolto em faixas! É encontrar, portanto, a criança colocada no lugar da exclusão! O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso a ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Nem no esplendor do templo de Jerusalém. Tampouco entre os poderosos. Mas colocado em meio a paus trançados – a manjedoura. Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feitas Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos optando e empoderando-os.

A manjedoura de paus trançados, prefigura-se também o mistério da Cruz, que expressa o significado da vida doada, partida, como um pão despedaçado. Por isso, a tradição subjacente do nascimento de Jesus em Belém, comum a Lucas e a Mateus, cumpre também seu papel. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida. 

Na narrativa, imediatamente após o sinal dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr), surge uma multidão da corte celeste para proclamar que a Glória (presença) de Deus, desde o mais alto dos Céus, que agora se faz presente na terra, na história humana para inaugurar o Shalom, a paz. Lucas faz memória também do Sl 84. A realização plena (plenitude) – Shalom da vida e do querer de Deus, comunicada e destinada a todos! Não somente aos de boa-vontade (tradução equivocada do texto, que dá a entender que só pode ser salvo quem tem a boa-vontade de fazer a vontade de Deus). Mas uma salvação que atinge e abraça a todos. Por isso a nova tradução corrigiu aquela ideia de Deus revelaria seu querer e seu amor somente aos homens de boa-vontade. Pelo contrário, o Deus e Pai de Jesus, revela através Dele, o seu amor e benevolência aos homens e mulheres que Ele ama. Por isso, a tradução correta deverá ser esta: “Glória à Deus nos mais altos dos céus, e paz na terra aos homens, que Ele ama”.

Possamos nós estarmos entre os pastores que recebem este evangelho: Deus põe seu Agrado em nós, através de Jesus, seu Filho. Possamos estar onde o menino está; no lugar da opção feita por Deus. Eis o Mistério desta noite Santa.

 

Feliz Natal.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.

sábado, 10 de dezembro de 2022

III DOMINGO DO ADVENTO - Mt 11,2-11:


O terceiro domingo do advento é permeada pela temática da alegria. A espera, a vigilância e a conversão oferecem um lugar a alegre esperança da pela vinda do Senhor. Para isso, a liturgia propõe a leitura e meditação do texto de Mt 11,2-11, que mostrará a figura de João – aquele profeta batizador – em crise. A sua crise é a de todos aqueles e aquelas que se deparam com uma maneira nova de Deus agir; é aquela crise que chama também à mudança de perspectiva, mentalidade e de agir. O texto mateano do capítulo onze situa-se após o discurso missionário, Mt 10, o qual recupera o ensinamento de Jesus acerca da missão destinado aos discípulos. Após concluir o discurso-catequese, é o mesmo Senhor que sai em missão. Todavia, no caminho anterior a este discurso missionário, Ele realizou dez gestos de poder, que teriam a finalidade de revela-lo como messias poderoso através das obras (Mt 7,1 – 9), até chegarmos à narrativa de hoje. É a respeito destes dez gestos de poder que o evangelista se refere no v.2 do capítulo onze.

“João estava na prisão. Quando ouviu falar das obras de Cristo enviou-lhe alguns discípulos, para lhe perguntarem: És tu, aquele que há de vir, ou devemos esperar um outro?” (v.2-3). O evangelista faz uma interrupção da narrativa após a conclusão do “discurso missionário” e insere, novamente, a personagem de João Batista. Ele está preso na fortaleza de Maqueronte, a mando de Herodes, que ficara incomodado pela denúncia que fizera João: ter tomado a esposa de seu irmão Filipe, Horodiades, e a ter levado mais sua filha, para a morar na corte. O Batista denunciava a atitude do governante porque lhe colocava numa condição de impureza por se tratar do relacionamento com a mulher de seu irmão, conforme Lv 20. Isso incomoda a mulher e o monarca, o que o leva a encarcerar a João.

Muitos estudiosos do evangelho de Mateus definem este trecho de Mt 11,2-12 e Mt 14 (a paixão e morte de João) como sendo o momento da “crise do Batista”. No cárcere, João ouve falar das obras de Jesus. E a crise emerge na personagem, precisamente por aquilo que ouve falar acerca daquele galileu, que um dia fizera parte de seu grupo.

A crise se instaura em João devido a incompatibilidade de sua mensagem frente ao agir de Jesus. Dito de outra maneira, a ação e missão de Jesus fogem da regra e das expectativas de João, as quais ele anunciara em sua pregação. O Batista havia declarado que o Messias viria já com a foice nas mãos; que o machado já estava na raiz; que o batismo do “mais forte” seria com o Espírito, para inserir os fieis na vida de Deus e no tempo do messias; mas com o fogo destruidor, para aqueles que tivessem sido infiéis ao querer de Deus. João envia, então seus discípulos a Jesus para perguntar-lhe se era mesmo o messias esperado ou deveriam esperar outro (cf. v.3).

Jesus responde aos discípulos de João: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (v.4-5). No agir e no ensinamento de Jesus não há uma palavra de condenação; de recusa ou de violência. Ao contrário, gestos, atitudes e palavras de acolhimento, amor e perdão aos que não mereciam: cegos, paralíticos, leprosos, surdos, os pobres e os que se encontravam envolvidos em sistemas e estruturas de morte. Pessoas estas, que, conforme a pregação de João e crença religiosa da época, não mereciam a salvação por serem pecadores e enfermos. Às pessoas excluídas e marginalizadas como estas eram lhes reservadas o fogo exterminador, o machado já posto na raiz. Em Jesus, não se encontram tais atitudes, mas somente uma proposta de plenitude de vida e um amor oferecido incondicionalmente pelos inimigos. Por isso, este não poderia ser o Messias, segundo o pensamento de João, o qual deveria vir com o poder, com autoridade, força e realizar o juízo de Deus, inclusive para o Batista que se encontrava encarcerado naquelas condições injustas. Se Jesus fosse o Messias, deveria agir em favor do próprio João, inclusive.

O que desconcerta João e o coloca na condição da crise é o fato de que Jesus anuncia e vive um amor do Deus de Israel, a quem chama de Pai, que se estende e se oferece a todos, injustos e incompreendidos. Diante disso, Batista entra no processo pessoal da revisão da vida, porque toda a sua pregação caiu por terra. Jesus respondeu aos discípulos de João com fatos e não com teorias. A práxis de Jesus, ou seja, seu agir, recupera, inclusive, a pregação dos profetas que anunciaram o tempo messiânico a partir do surgimento de um tempo novo onde cegos, surdos, paralíticos, leprosos, todo tipo de gente ruim, seriam acolhidos e reconciliados com Deus. Mateus mostra de forma muito clara o agir salvador e reconciliador de Deus através de Jesus, por meio dos dez gestos de poder que o Senhor realiza nos capítulos anteriores (Mt 8 – 9). São dez porque remetem às dez pragas que feriram o Faraó e os egípcios, em Ex 7 – 12. Elas tinham a função de mostrar o poder de YHWH e o chamado à conversão ao Faraó. São dez oportunidades para que o líder egípcio cai na conta da soberania de Deus, e mudar o coração, a ponto de deixar o povo hebreu escravizado partir.

O evangelista reinterpreta a passagem de Ex 7 – 12, e ao invés de mostrar o poder e a autoridade de Deus em Jesus exterminando e destruindo, mostrará o agir de Jesus ao purificar leprosos, curar surdos, fazer falar os mudos, perdoar pecado, o anúncio da Boa Nova do Reino aos pobres. Jesus responde aos discípulos de João com fatos. Com ações positivas que tem a função de realizar a recuperação da vida a todos aqueles e aquelas que se encontram destituídos, excluídos e marginalizados, que eram descritos simbolicamente assim.

Jesus profere uma bem-aventurança ao final desta resposta aos discípulos de João: "Feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim!” (v.6). Ela é, ao mesmo tempo, um convite de conversão para o próprio João. Interessante notar que a imagem de um Deus que pune, condena, destrói, queima, não causa terror nas pessoas do tempo de Jesus e João (inclusive neste). Mas a imagem de um Deus que age salvando através do amor, do acolhimento, da restituição da vida e da história é a que mais gera escândalo. A palavra escândalo deve ser entendida aqui como barreira, obstáculo, impedimento, ou, literalmente, pedra de tropeço. “Bem-aventurados são aqueles que não encontram em mim qualquer impedimento para que Deus possa agir através destas minhas atitudes”, ou seja, não encontrar nas ações de Jesus qualquer impedimento para reconhecer Deus agindo. Ou seja, felizes serão todos aqueles que não encontrarem qualquer obstáculo no agir de Jesus, a fim de reconhecer Nele Deus agindo. Mas, os discípulos de João se retiram. Mostram que não estão de acordo com o ouviram. São pessoas ainda necessitadas de uma mudança de mentalidade.

Jesus, diante da dúvida posta por João e seus discípulos no tocante ao Seu agir, faz o contrário, elogia a missão e a vida do Batista: “Jesus começou a falar às multidões, sobre João: O que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? O que fostes ver? Um homem vestido com roupas finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos palácios dos reis. Então, o que fostes ver? Um profeta? Sim, eu vos afirmo, e alguém que é mais do que profeta. É dele que está escrito: Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu caminho diante de ti” (v.7-11). O Batista é um profeta, assegura Jesus! Ele não é uma cana agitada pelo vento, ou seja, frágil, facilmente de ser dobrado, alguém inconstante, conveniente, pende para onde o poder está, mas sim um homem coerente; não é um homem de palácio, ao contrário dos profetas da corte do rei que adulavam o chefe do povo, ao contrário, possuía um modo de vida austero e simples, e na contramão das expectativas do rei. João, declara Jesus, é o mensageiro enviado (gr. ἄγγελος/anjo) para preparar o caminho. Mas apenas para isso. João apresentou dificuldades para assimilar o caminho de Jesus. Por isso, deve também ele converter aquela imagem divina que tinha em seu íntimo e pregava.

O v.11 conclui esta passagem da catequese mateana com um dito de Jesus que é por demais revelador e, ao mesmo tempo, funciona como mais uma característica a ser vivenciada por aqueles e aquelas que querem ser discípulos do reino dos céus, e acolher o Senhor do Reino que está para chegar. “Em verdade vos digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista. No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele” (v.11). Jesus declara a grandeza de João. Mas exige tanto do batista, quanto de seus discípulos a coragem de se tornar “menor”. O que Jesus quer dizer com isto? Para se tornar participante deste Reino que vem se faz necessário passar pelo nascimento segundo o Espírito, Aquele que é doado, segundo pregação de João Batista, pelo “mais forte”, o Messias-Jesus. Esta vida segundo o Espírito de Jesus, é a mesma vida Dele, que se fez menor entre as minorias marginalizadas de seu tempo. 

Dito de uma forma mais simples: quem quiser fazer parte deste Reino e acolher sua chegada deve assimilar a vida de Jesus, suas atitudes, suas escolhas, ensinamentos e opções, porque ele sendo grande se tornou o menor entre todos, colocando-se ao lado das minorias de seu tempo. Esta é a vida de Jesus sendo conduzida pelo Espírito. Desta vida, carregada da plenitude de vida do Espírito de Jesus é que o discípulo é chamado a assimilar e participar. Eis a terceira atitude que o fiel-discípulo é chamado a assimilar neste tempo do advento, fazer-se menor entre todos e colocar-se entre os menores desta história e realidade, convertendo aquela imagem de um Deus castigador, destruídos, carrasco, para imagem que Jesus transmite com sua vida e missão, o amor, a misericórdia e a salvação.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.  


sábado, 3 de dezembro de 2022

SEGUNDO DOMINGO DO ADVENTO - Mt 3,1-12:



A liturgia do segundo domingo do advento, continuando a leitura do evangelho mateano apresenta o capítulo terceiro desta catequese evangélica, que proporá para o leitor o tema da conversão. A tônica das duas primeiras semanas do advento é colocada sobre a segunda vinda do Senhor. No evangelho da semana passada (Mt 24,37-44), a pedagogia litúrgica fez a memória da atitude da vigilância requerida ao discípulo do Reino. Por se tratar da temática da espera do retorno do Senhor – a segunda vinda – a liturgia pretende formar a consciência dos  fieis para as atitudes relacionadas à ética que é exigida pelo Reino. Nesse sentido, ela se serviu do texto do discurso escatológico contido na catequese de Mateus, através do qual Jesus exortava os discípulos à manterem a vigilância em face da vinda eminente do Reino, e, para os leitores da geração seguinte (dentre os quais nos encontramos), para o advento da segunda vinda do Senhor.

Não diferente, a temática deste segundo domingo mostra mais uma atitude que se espera daquele que deseja ser discípulo do Reino e de Jesus em face da Sua segunda vinda: a conversão constante que o homem e a mulher de fé deve empreender. Ela é apresentada através da figura do batizador, o profeta João. A seu modo, o evangelista Mateus insere o Batista na narrativa. E é sempre bom ter presente, que o autor do evangelho utiliza as grandes personagens e eventos da tradição histórica e religiosa (teológica) do povo de Israel para transmitir sua mensagem acerca de Jesus de Nazaré, sua personagem principal. Mesmo ela não se fazendo presente na narrativa, como é o caso da perícope que meditaremos. Isto posto, podemos mergulhar no mar do texto.

“Naqueles dias, apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia” (v.1). Pela primeira e única vez, o evangelista utiliza a expressão “naqueles dias”. Mateus se serve dos eventos da tradição histórica e religiosa de Israel, e seu leitor-discípulo, ao ouvir esta expressão já ativa sua memória para um acontecimento pertencente ao AT, o episódio de Ex 2. Ali, Moisés cai em si e percebe os sofrimentos do povo Israel, rompe com a influencia do Faraó, e inicia seu caminho como grande cooperador de Deus no projeto da libertação de sua gente. Esta expressão remete, então, a um tema do livro do Êxodo. Mateus deseja transmitir e ensinar à sua comunidade que, a partir de agora, Deus começará um novo êxodo na história, com a ajuda de uma personagem: João, cujo nome significa “Deus é misericórdia”, que será levada adiante por Jesus, na continuidade do  evangelho de Mateus.

O Batista atua no deserto da Judeia. Uma localização importante, tanto geográfica como teológica. Uma vez mais, evocando temas da tradição do Êxodo, o deserto é o lugar em que o povo recém-saído do Egito passa um período até conquistar, mais tarde, a terra prometida. Esta localidade é uma constante teológica para os israelitas, e, igualmente para aquele que deseja tomar parte do projeto de Deus, pois o deserto é o lugar privilegiado para se fazer a experiência da Aliança com YHWH, renovando-a e purificando-se. Este deserto da Judeia é composto por um relevo acidentado, com elevações e depressões; com formações rochosas, que termina às margens do Mar Morto. Ele precisa ser rebaixado e aterrado. Preparado e aplainado, a fim de que o Deus de Israel possa passar. Assim sendo, o deserto é mais um lugar para o refazimento da experiência e da relação com Deus.

João Batista apresenta o conteúdo da sua mensagem e pregação: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo” (v.2). A atitude da conversão. O evangelista apresenta o verbo converter no imperativo. Este verbo significa uma mudança de mentalidade; um refazimento da forma e do modo de pensar. Que depois se verificará na mudança da atitude. Ou seja, uma nova forma de pensar que encontrará seu reflexo numa nova forma de agir. João se concentra sobre aquele anúncio do profeta Isaias, “deixai de fazer mal; fazei o bem(..) ainda que vossos pecados sejam escarlates, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a branca lã” (Is 1,16-18). Assim, o Batista convida a uma mudança de mentalidade e de agir, a orientar a vida para bem do outro. O convite à conversão tem uma finalidade: acolher o Reino dos Céus.

Pela primeira vez no evangelho de Mateus aparece o termo Reino dos Céus. É o mesmo e único Reino de Deus, que já apareceu no primitivo evangelho de Marcos. Mas o catequista, respeitando sua comunidade de origem judaica se priva de mencionar o nome de Deus e, utiliza, portanto, Reino dos Céus. Uma questão de respeito e sensibilidade, apenas. Não uma tentativa de delimitar o lugar do Reino. Ele não é um lugar geográfico, mas significa o agir soberano de Deus na história, através de Seu ungido. Por isso é preferível utilizar o termo Reinado de Deus. 

O reinado de Deus é  (e sempre será) o Seu agir na história e pela história, através de Jesus. Então, o Reino ou Reinado de Deus converge para uma pessoa, Jesus. E, evidentemente, as consequências éticas que derivam da adesão que o discípulo faz pelo Cristo ajudam a transformar/converter esta história, a realidade e a vida humana em Reinado de Deus. Não é uma vida ou reino para o além, mas a realidade em que Deus governa e exerce Seu agir, sua soberania e senhorio.

O evangelista, que gosta de utilizar as citações dos profetas da tradição de Israel, e com um enunciado próprio de um narrador, que interrompe a narração com uma informação que ajuda o leitor a entender ainda mais a narrativa, serve-se do profeta Isaias uma vez mais, “João foi anunciado pelo profeta Isaías, que disse: Esta é a voz daquele que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!” (v.3). Todavia, Mateus realiza uma modificação no texto de Is 41. Lá, se lê: “Uma voz grita: no deserto, preparai (abri) um caminho para YHWH; na estepe, aplainai uma vereda para nosso Deus.” No tempo deste escrito, atribuído à Isaias, o povo vivia exilado na Babilônia, e este versículo canta e prepara a libertação do exílio, ou seja, o retorno dos israelitas para Jerusalém, na companhia de Deus. Desse modo, fazia sentido que o caminho fosse preparado no deserto. Porém, a forma como o evangelista modifica o texto do profeta evidencia que o novo êxodo tem e começa por um caminho contrário; ou, inicia-se na contramão. A modificação operada pelo autor dá a entender que, a voz grita “no” deserto, ou seja, a partir do deserto, o caminho contrário à terra da promissão, que era símbolo do bem-estar e da benção de Deus para seu povo. Aquela terra e modelo de sociedade, na perspectiva do anúncio do Batista não serve mais ao bem, mas havia se tornad modelo, esquema e estrutura de morte e ruptura com o projeto de Deus.

No v.4, João é caracterizado por Mateus nos moldes dos antigos profetas, por trajar uma vestimenta de pelos da pele de camelo, com um cinturão de couro a cingir os rins. Esta era a maneira de se vestir do maior profeta da tradição de Israel: Elias. Segundo a tradição religiosa e teológica do AT, o retorno do profeta Elias antecederia a vinda do Messias. Para o evangelista, João Batista encarna a predisposição profética de Elias, ou seja, simboliza e marca o retorno do carisma profético do grande profeta da fidelidade ao Senhor. Era austero em seu modo de vida, a ponto do evangelista informar que ele "alimentava-se  de gafanhotos e mel", isto é, daquilo que o deserto lhe oferecia, ou seja, a dieta própria dos beduínos.

“Os moradores de Jerusalém, de toda a Judéia e de todos os lugares em volta do rio Jordão vinham ao encontro de João. Confessavam os seus pecados e João os batizava no rio Jordão” (v.5-6). João pregava um batismo de conversão, ou seja, de mudança de mentalidade e de vida, e as expectativas de todos os que habitavam aquela região de Jerusalém e do Jordão acorrem a ele. Eles compreenderam que os meios e os instrumentos utilizados pelos chefes religiosos (sacerdotes/saduceus, escribas e fariseus), bem como a instituição sagrada não lhes serviam mais para favorecer lhes o encontro com Deus. Por isso, se dirigiam á João no Jordão e eram batizados. Este era já um rito conhecido pelos judeus: consistia numa imersão na água, que simbolizava a morte para o próprio passado, bem como a purificação e o nascimento para uma vida nova.

João, conforme a tradição dos quatro evangelhos, realiza o batismo nas margens do rio Jordão. Esta localização é, também, importante. Na tradição do Êxodo, o ele representava a última etapa para que o povo, atravessando suas águas, pudesse conquistar a terra prometida sob a liderança de Josué. Mas, agora, este Jordão torna-se a etapa inicial para sair desta terra, que não mais representa sonho, vida e libertação, mas esquemas de domínio, submissão e impossibilidade de relação com Deus, porque estava nas mãos dos sacerdotes, escribas e fariseus e da instituição religiosa. Desta terra, deste esquema e estrutura contrárias ao querer de Deus se deve sair. Assim, João anuncia o novo êxodo que depois será levado à termo por Jesus. Nesse sentido também, o Batista acolhe as lideranças religiosas que se achegavam às margens do Jordão: “Raça de cobras venenosas, quem vos ensinou a fugir da ira que vai chegar? Produzi frutos que provem a vossa conversão. Não penseis que basta dizer: “Abraão é nosso pai”, porque eu vos digo: até mesmo destas pedras Deus pode fazer nascer filhos de Abraão” (v.7-9). Com palavras inflamadas ele os acolhe, porque sabe que estes vêm para o cumprimento de mais um rito, apenas. Chama-lhes a atenção para uma mudança de mentalidade e de atitude, que são os frutos que comprovam a conversão. Todavia, estas pessoas, no decorrer do evangelho, não acolherão a palavra de João, tampouco a de Jesus. 

Para concluir o trecho bíblico, que é muito rico, Mateus coloca na boca de João o seguinte: “Eu vos batizo com água para a conversão, mas aquele que vem depois de mim é mais forte do que eu. Eu nem sou digno de carregar suas sandálias. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (v.11). Este gesto que João realiza não é o mesmo que um outro, que ele distingue como o “mais forte”, pode realizar. O Batista sabe que não pode dar o Espirito de Deus. O Espirito de Deus, reconhecido como Santo é o dinamismo de vida que pertence à Deus e a seu Cristo. Ele possui a missão e a capacidade de mergulhar (batizar) a pessoa na realidade mesma do Pai e do Filho, isto é, na plenitude da vida divina. O batismo de João, realizado na água, acena para o fato de ser submergido numa realidade externa/exterior ao homem. Mas o batismo no Espírito (vida e amor de Deus), que só o Cristo, o "mais forte", pode realizar, significa ser preenchido e impregnado da mesma vida de Deus. Será isto que permitirá com que a pessoa possa levar adiante a sua vida em conversão.

Que o evangelho deste segundo domingo do advento possa preparar o deserto de nossos corações e nossas vidas, para que Deus passe. Que estejamos sempre dispostos a viver as pequenas conversões de cada dia, mudando a mentalidade e transformando nosso agir. Que nossa vida e história possam ser o deserto a partir do qual Deus possa realizar seu novo e constante êxodo, e como o Batista, preparar a estrada para o Senhor que definitivamente virá, e que constantemente nos visita.


Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.
 


sábado, 26 de novembro de 2022

PRIMEIRO DOMINGO DO ADVENTO - Mt 24,37-44

 


A Igreja inicia um tempo litúrgico e com ele um ciclo de leituras bíblicas evangélicas retiradas do evangelho segundo Mateus aos domingos. Este tempo chamado de advento é marcado pelas dinâmicas da espera, da vigilância e também pelo constante apelo à conversão. Ele se divide em dois ciclos: os dois primeiros domingos, e, consequentemente as duas primeiras semanas são marcadas pela temática da segunda vinda do Senhor. Por isso, as celebrações semanais e dominicais serão iluminadas por textos bíblicos de caráter escatológicos, isto é, que tratam de temas relacionados ao fim, às renovações históricas e cósmicas, e, por isso, revestidos de uma linguagem pura e essencialmente simbólica. O tempo do advento tem a intenção pedagógica de ensinar a partir dos dois primeiros domingos, que tratam da segunda vinda de Cristo, precisamente que é para esta segunda vinda que devemos esperar e nos empenhar. Uma vez que a primeira vinda do Senhor, no Santo Natal, nós já o celebramos constantemente na liturgia. Os dois últimos finais de semanas, que já estarão praticamente no segundo ciclo do advento, de 17 a 24 de dezembro, já tocarão na temática da primeira vinda de Jesus celebrada litúrgico-sacramentalmente através das solenidades do Santo Natal.

O texto que temos para a nossa meditação é um pouco difícil. Não por sua interpretação, mas devido ao fato de que ele está fora de seu contexto próximo. Sempre se correrá o risco de interpretar equivocadamente o texto, quando retirado do seu contexto, traindo, inclusive, as intenções do próprio evangelista. Por isso, se faz necessário contextualizá-lo. A liturgia propõe para a abertura do tempo do advento – e, do novo ciclo litúrgico – um trecho do capítulo vinte e quatro do evangelho de Mateus. Neste capítulo, o autor do evangelho apresenta o último discurso de Jesus, o “discurso final” (ou, discurso escatológico), através do qual, tratará de recuperar o ensinamento do Cristo para seus discípulos acerca eventos relacionados ao fim. Por isso, discurso final.

O tema do fim do mundo, da história e da realidade devem ser sempre refletidos e entendidos não como fim catastrófico ou trágico, mas como um convite a uma nova história. O fim na bíblia nunca é fim de um mundo, mas fim de uma época/era a fim de que outra, totalmente nova, possa surgir. Para falar do surgimento desta nova era (no sentido mais positivo do termo), os autores sagrados se servem sempre de uma linguagem com um vocabulário carregado de elementos e termos simbólicos. Principalmente quando os destinatários da mensagem estão em risco, em crise e em dificuldades, ou mesmo a fé encontra-se fria e desalentada. Esta linguagem, além de simbólica, é cifrada e codificada através de elementos já presentes na tradição religiosa da comunidade: são textos do Antigo Testamento, revestidos do gênero literário apocalíptico, que todos já conheceram uma primeira vez, e, que, portanto, não parecerá complicado para eles entender a mensagem. Os autores do Novo Testamento, cada um a seu modo, se serviram deste recurso para transmitir suas catequeses a respeito do ensinamento de Jesus sobre as coisas tocantes ao momento do fim. Assim deve ser compreendida esta parte do chamado discurso final do Senhor ao interno do evangelho mateano.

Por último, o tema do fim deve ser entendido também como “a meta”, “a orientação”, “a plenitude”. A novidade apresentada pelo Novo Testamento é justamente esta: a partir de Jesus, e, através dele, Deus inaugura o tempo pleno de seu agir. Jesus é a novidade, a ultimidade, a meta e a orientação da vida de todo o ser humano, ao mesmo tempo em que Ele apresenta a meta definitiva e plena para a qual toda a criação e o gênero humano tendem: a vida em Deus, que chamamos salvação. Nesta perspectiva é que se deve orientar a interpretação destes discursos finais de Jesus nos evangelhos sinóticos (Mt, Mc e Lc). Eles tem a intenção de preparar, animar e chamar à reflexão os discípulos de todos os tempos e lugares para que saibam discernir e acolher os sinais dos tempos que são plenos, a fim de sempre acolher em suas vidas a novidade do Deus-conosco, presente em Jesus de Nazaré.

A fim de se compreender melhor o texto evangélico deste primeiro domingo do advento, se faz necessário lançar um olhar retrospectivo para os versículos anteriores, através dos quais Jesus dirige palavras duras contra o templo, contra a cidade santa (cf. 24,1-25), e causa desconforto nos discípulos com as mesmas palavras simbólicas referentes aos sinais cósmicos e terrestres (26-34), que geram e alimentam a expectativa deles acerca do momento em que tudo isso se realizará. Diante disso, em Mt 24,35, Jesus adverte a seus discípulos que aquela geração não passará sem que tudo isso aconteça, mesmo tendo passado o céu e a terra. E, tranquilizando a inquietação dos discípulos, declara no v.36 que, sobre aquele dia, somente o Pai tem conhecimento de quando será. É, precisamente, sobre este tema que Jesus quer trabalhar com seus discípulos, isto é, o modo (o “como”) através do qual o discípulo, se ele desejar ser, de fato, discípulo do Reino e de Jesus, deverá balizar e pautar a sua vida, e não sobre o “quando”, ou seja, sobre dia e a hora exatas em que Deus plenificará definitivamente esta história, o mundo e a vida de seus filhos e filhas; este dia Ele somente é quem sabe, portanto, isto não poderá ser o centro da ocupação e da preocupação do discípulo e da discípula. Antes, deverá preocupar o discípulo o modo e a forma como ele acolhe e vive o tempo novo e definitivo que é inaugurado em Jesus, o Cristo. Acerca deste modo, ou seja, deste comportamento, desta forma de ser e de agir, que Jesus quer ensinar os seus discípulos de ontem e de hoje através deste trecho contido em Mt 24,37-44.

“A vinda do Filho do Homem será como no tempo de Noé” (v. 37). Jesus recuperar para seus ouvintes a realidade vivida nos tempos de Noé. O que representa este elemento simbólico do dia de Noé? O dia de Noé faz referência ao dilúvio. Este, não pode ser interpretado como o fim do mundo, mas o surgimento de uma nova humanidade, em Gn 6 – 7. A vinda do filho do homem acontece, justamente, para propor uma nova forma de vida, uma humanidade renovada. Já se sabe que esta personagem “filho do homem” pertence ao capítulo sétimo do Livro de Daniel, e se trata de um ser (humano) que realiza o querer divino na história com sua própria vida; é aquele que executa o projeto de Deus; que leva a termo o senhorio e o juízo divinos. Filho do Homem não significa a natureza humana apenas, mas a humanidade marcada pela condição divina. Com esta personagem também, é que Jesus se assemelhará, além da daquelas do servo e justo sofredor de Deus. Agora, este não é um privilégio somente de Jesus, mas uma forma de vida oferecida a todo aquele que se coloca no caminho e no seguimento a Ele ao Reino. Filhos e filhas de Deus, porque decidiram-se a viver segundo a vida do Filho, que se fez homem.

Mas, para que o dom de Deus, o tempo de uma nova vida e da renovação constantes trazidas por Jesus, não passe despercebido ao homem a mulher, a cada pessoa, estes não podem ser indiferentes ao acontecimento da vinda e da vida do Filho do Homem, como foi aquela geração do tempo de Noé, diante do apelo de Deus. Como eles viviam? Jesus mesmo recorda que, “nos dias, antes do dilúvio, todos comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca. E eles nada perceberam até que veio o dilúvio e arrastou a todos” (v.38). Jesus fala das atitudes de comer, beber e casar-se. E esse dito precisa ser bem entendido, de modo a evitar interpretações moralizantes e desconectadas da vida. O casamento e as refeições eram, no tempo da sociedade de Jesus acontecimentos comuns e normais. Jesus está evocando a normalidade, a cotidianidade, o comum enquanto lugar do acontecimento do extraordinário do agir de Deus, e não no extraordinário, no tremendo, no fascínio, no chamativo e gritante. No entanto, é no “aí e no agora” que Deus acontece. Sabiamente dizia Santa Teresa de Jesus (Ávila, Espanha – Séc. XVI): “Deus está entre as panelas também”.

Jesus se serve da realidade cotidiana, rotineira e comum mais uma vez para expressar a novidade do agir de Deus acontecendo na história. Ilustra a sua catequese, agora, com a imagem do trabalho, onde dois homens e duas mulheres estarão realizando seus afazeres, dentre os quais um será “levado” enquanto que o outro será deixado; e uma, das duas mulheres que trabalham na moenda será “levada” e a outra, não. Deve se ter presente que a expressão “ser levado(a)” não se refere a algo negativo ou castigo. Ela precisa ser compreendida da seguinte maneira: “ser levado(a)” significa ser “tomado(a)” da parte de Deus. Então, as duas personagens são “levadas” ou tomadas pelo próprio Deus. Significa que elas estão sendo acolhidas pelo próprio Deus porque souberam acolher Deus em meio à vida. Ora, o Reino de Deus é um convite para todos, mas pouco são os que aderem, uma vez que o ato de ser tomado/levado ou deixado da parte de Deus acontece diante da adesão e aceitação da conversão, da mudança da mentalidade e da vida.

Todavia, para que esta novidade de Deus agindo em meio a essa história e diante desta novidade de ser tomado da parte de Deus possam ser percebidas é necessária a vigilância, a qual é e sempre será uma das virtudes do discípulo que o ajudarão em seu modo de viver a vida e o seguimento à Jesus: “Portanto, ficai atentos! porque não sabeis em que dia virá o Senhor” (v.42). A vigilância bíblica não é uma espera passiva e descomprometida, mas a espera ativa/operante, daquele que sabe esperar cooperando com o projeto de Deus através de suas atitudes. É a espera comprometida com o agir; a capacidade de leitura da realidade unida à ação transformadora de Deus através de seus filhos e filhas. A vigilância cristã revela-se aquela grande virtude do discípulo de ver, discernir, e cooperar com agir de Deus que renova a história. Significa romper com a tentação dos braços cruzados, do sentar e esperar cair dos céus, ou do “tudo está garantido”. Ela confirma ainda mais esta lição de Jesus, de que o Reino é para todos, mas nem todos o abraçam. Porque, efetivamente, o deixam passar. Não se colocam atentos e esperançosos para acolher o Senhor que sempre vem. Nesse sentido, ela se torna o grande antidoto para indiferença daquela geração de Noé, criticada por Jesus, que não soube olhar e discernir nos acontecimentos da vida cotidiana e simples, rotineira e comum, os sinais dos tempos que Deus oferecia. E serve de lente histórica para ajudar a pessoa a perceber a vinda deste Deus que vem para tomar-nos para si.

Por isso Mateus encerra esta seção com um segundo apelo à vigilância, da parte de Jesus, ilustrado pela imagem metafórica do dono casa sempre atento, alerta e vigilante diante da possível vinda de um ladrão roubar/tomar lhe a casa. A espera da vinda de Deus deve ser tida como semelhante a espera do dono casa em relação ao ladrão. Certa, porém, é a vinda de Deus, não importando quando, na medida em que certa deverá ser a atitude daquele que espera, a vigilância, o modo e forma da vida do discípulo e da discípula do Reino. É com esta motivação que a liturgia nos convida a iniciar o tempo do advento, ou seja, da espera daquele que já veio uma vez e que virá uma segunda vez. 

Diante desta vinda do Senhor (sacramentalmente celebrada e vivida através da Palavra e da liturgia) estejamos vigilantes, e não indiferentes como os do tempo de Noé.

 

 

Pe. João Paulo Goes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP

sábado, 19 de novembro de 2022

REFLEXÃO PARA A SOLENIDADE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, REI DO UNIVERSO – Lc 23,35-43:

 



A Igreja celebra a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Com esta celebração, encerra-se o ciclo litúrgico C, dedicado à leitura e meditação da catequese evangélica de Lucas. Por isso, nos é apresentada para a meditação eclesial o texto do “proprium” lucano das narrativas acerca da Paixão e Morte de Jesus segundo Lucas. Nesta solenidade, a sabedoria eclesial selecionou textos extraídos das narrativas da Paixão do Senhor, os quais revelam a realeza de Jesus às avessas. 

A pergunta que possivelmente poderia pairar seria, “como é possível um celebrar a realeza de uma pessoa a partir do fracasso?”, ou “Por que não mostrar a realeza de Jesus com outros textos que falam do seu retorno glorioso, ao invés destes textos que o mostram crucificado?” É bem verdade que a leitura do ciclo litúrgico A, apresenta para esta solenidade o discurso escatológico de Mt 25, através do qual o evangelista pretende mostrar como será o reinado definitivo de Deus. Os outros dois anos litúrgicos poderiam se servir de textos menos trágicos, mas optam por apresentar as narrativas concernentes à morte de Jesus na cruz, isto é, correspondem às horas finais de sua vida. Há um motivo, evidentemente.

A intenção de Lucas é a de mostrar que tipo de reinado Deus exerce em seu Cristo, e, consequentemente que rei seria Ele. Em sua narrativa da paixão-morte de Jesus, o evangelista recupera os temas que foram percorrendo e costurando sua catequese evangélica desde o início: a salvação universal, que abraça a todos, indistintamente, a qual é proclamada, a começar por Jerusalém, chegando aos confins da terra; a inclusão dos pobres e pecadores, excluídos e marginalizados; os temas da misericórdia e da graça de Deus, dos quais Jesus se torna rosto e voz da parte do Pai. Assim como as narrativas da infância anteciparam os temas da misericórdia,  da salvação universal, da inclusão dos pobres no projeto do Reino de Deus, as narrativas da paixão/morte ao apresentarem novamente estas temáticas no decurso deste bloco literário, as encerram, levando-as à plenitude, formando como que uma grande moldura que sustenta a pintura em tela do quadro do evangelho de Lucas. Isso posto, podemos meditar o texto de Lc 23,35-43.

O texto litúrgico começa a partir do v.35, situando-nos no contexto imediato, isto é, o calvário e a crucifixão. Os julgamentos diante do sinédrio (processo judaico) e o inquérito diante da autoridade romana, o procurador Pôncio Pilatos, se encarregaram de levar Jesus para ser torturado e sentenciado à pena de morte dos prisioneiros políticos, arruaceiros, subversores e revolucionários; aqueles que pudessem representar algum perigo para o Império, a crucifixão. Aos pés da cruz encontram-se os chefes religioso do povo, os soldados responsáveis pela manutenção da ordem de execução, e outras duas companhias, os malfeitores, crucificados juntos com Jesus. É importante ler os versículos seguintes em unidade.

“os chefes zombavam de Jesus dizendo: A outros ele salvou. Salve-se a si mesmo, se, de fato, é o Cristo de Deus, o Escolhido! Os soldados também caçoavam dele; aproximavam-se, ofereciam-lhe vinagre, e diziam: Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo! Acima dele havia um letreiro: Este é o Rei dos Judeus. Um dos malfeitores crucificados o insultava, dizendo: Tu não és o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós!” (v.v35-39).

Os insultos que Jesus que recebe na cruz são um eco das tentações sofridas no deserto, no início de seu ministério. Por isso, estes insultos só podem ser entendidos a partir de Lc 4,1-13. As tentações foram seduções oferecidas pelo Diabo, com o propósito de fazer com que Jesus se desviasse do projeto do Pai, lhe fosse infiel, e usasse seu messianismo para benefício próprio; elas tinham a intenção de causar a divisão, a cisão, a ruptura entre Jesus e o Pai. O caminho mais fácil; a lógica do ser e do ter, do domínio, da submissão e do prestígio. Quando o tentador percebe que nada afastará Jesus da fidelidade ao Pai, em 4,13, o autor narra: “Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno”. 

Lucas coloca o calvário e a cruz como o tempo oportuno para a última tentação de Cristo. Nesse sentido, os chefes religiosos, os soldados e o malfeitor com suas zombarias e troças, personificam a figura do tentador, nos momentos finais da vida de Jesus. Assim, a Sua última tentação se dá no calvário e na cruz. Os insultos, são, na verdade, a tentação para que o Senhor se sirva de um messianismo fácil, sedutor, poderoso, espetacular; diametralmente oposto ao caminho do Messias encarnado por ele enquanto justo (Sl 22; 33; 69) e servo sofredor (Is 49 – 55). Diante da tentação de salva-se a si mesmo, Jesus oferece-se ao Pai, não respondendo através do caminho mais fácil. Torna-se, pois, rei de si mesmo e de suas vontades. De fato, é Jesus os justo fiel e servo sofredor, que escolhe o caminho da doação da própria vida, ainda que lhe venha a custar caro, até o sangue!

No meio daquele vozerio, alguém fala com consciência: um malfeitor, que provavelmente, para estar ali, deveria ter cometido um delito muito sério, que lhe custava também a vida. Ao censurar a fala do outro bandido, reconhece em Jesus o Justo, aquele que realizou durante toda a sua vida a vontade e o querer de Deus; que, ali, naquele injusto sofrimento, padece com confiança total na silenciosa presença de Deus. O Justo, na sagrada escritura é aquela pessoa que cumpre o querer de Deus; que padece sofrimentos por conta de sua fidelidade, e, mesmo assim, ainda permanece fiel à Deus. Assim é reconhecido Jesus pelo malfeitor: “Mas o outro o repreendeu, dizendo: Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma condenação? Para nós, é justo, porque estamos recebendo o que merecemos; mas ele não fez nada de mal. E acrescentou: Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu reinado” (v.v. 40-42).

Jesus lhe responde com a absoluta certeza de quem confia plenamente no Deus do Reino que ele anunciou durante toda a sua vida: “Jesus lhe respondeu: Em verdade eu te digo: ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (v.43). Só neste versículo, dois temas se entrelaçam, se correspondem e se tornam plenos: a salvação universal que Deus oferece indistintamente. O reinado de Deus em Jesus é este: o agir amoroso e misericordioso de Deus através de Jesus, sempre inclusivo e acolhedor, humanizador e gerador de novas e plenas possibilidades de vida; e, nunca poderá ser aquele outro da exclusão, da indiferença, da violência, da divisão, da lógica do “salve-se quem puder”, ou do “bandido bom é bandido morto”. Igualmente importante é o tema do Hoje salvífico de Deus: esta salvação, dom e graça, oferecida a todos, sem distinções, acontece sempre no hoje da história pessoal do indivíduo. Por isso, a vida de todo aquele se abre para acolher a vida e a história de Jesus de Nazaré, do Reino anunciado por Ele, transforma-se num encontro salvífico constante com o Deus e Pai de Jesus. 

Assim é o reinado de Deus em Jesus: amor, misericórdia, salvação universal, acolhimento. Assim é Jesus Rei, que, paradoxalmente, não reina de um trono ou de um palácio, envolvido pelas ideologias imperiais e monárquicas; não reina a partir do poder, do prestígio, da fama, da glória e da vaidade; reina desde a cruz, a expressão máxima da doação da própria vida, expressão de que o seu reinado, seu agir em nome do Deus que chama de Pai, foge dos esquemas e da lógica mundana. O discípulo que quiser tomar parte deste reinado deverá estar disposto a assimilar e assumir esta mesma lógica e dinâmica de vida de Jesus.

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré / Arquidiocese de Botucatu-SP.  

sábado, 5 de novembro de 2022

SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS E SANTAS DE DEUS - Mt 5,1-12:


 

A solenidade de todos os santos nos propõe o capítulo quinto do Evangelho segundo Mateus. Na catequese mateana, este capítulo apresenta discurso inaugural de Jesus, encerrando-se em 7,11. Esta primeira catequese de Jesus é de fundamental importância para a comunidade dos discípulos e para as gerações futuras. Com ele, Jesus faz uma releitura ou uma reinterpretação da Lei de Deus (a Torá), contida no Decálogo. Mateus, em seu propósito catequético e literário, identifica a Jesus como o novo Moisés, que dá, agora, um sentido novo à Lei. Este sermão da montanha se abre com as chamadas bem-aventuranças. Elas são mais extensas em Mateus que em Lucas (cf. Lc 6), e fazem parte do gênero literário de profecia e de congratulações ou felicitações, podendo ser de estilo sapiencial ou escatológico. Este último alude à promessa da intervenção salvadora de Deus na história para libertar e salvar o ser humano e seu povo. É desse estilo que Jesus se serve ao iniciar o seu primeiro discurso.

Após dar início a sua missão, depois de ser batizado por João, o batista, e ter sido tentado no deserto quarenta dias, e retornar para a Galileia e reunir um grupo que se decidira por segui-lo, o evangelista começa o capítulo quinto situando o leitor-discípulo na narrativa, num novo cenário. Jesus, seguido de seus discípulos e de uma multidão que o seguia, conforme somos informados em Mt 4,25, chegou a uma montanha ali no território da Galileia. O autor nos descreve a atitude de Jesus.

“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los (v.1-2)”.  Dois pormenores merecem a atenção do discípulo-leitor nestes dois versículos introdutórios. A personagem da “multidão” e a montanha (lugar teológico). Ela remete o leitor-discípulo do primeiro evangelho a outra montanha importante na história do Povo: o Sinai. Ali, YHWH dera a Lei, o decálogo, à Moisés. Mateus quer ensinar para os fieis discípulos de sua comunidade judeu-cristã, que o que Jesus faz equipara-se e supera o gesto de Moisés, ao transmitir ao povo no deserto a Lei que Deus havia dado. 

Agora, lancemos um olhar para a multidão. Esta, ao interno do evangelho de Mateus, será sempre o grupo que apenas ouve falar de Jesus, se encanta com suas palavras e com seus ensinamentos, mas não dá o passo decisivo e qualitativo para o discipulado, ou seja, não compromete a vida com o ensinamento e a vida do Senhor. Os discípulos, pelo contrário, são aqueles que aderiram ao ensinamento de Jesus, saíram da multidão e deram o passo do discipulado, permanecendo com Ele, para, mais tarde, tornarem-se apóstolos, missionários do Reino. O evangelista afirma que Jesus viu as multidões, mas os que se aproximaram foram os discípulos. Mas é claro que o ensinamento que Jesus dirige também contempla a multidão, visando provoca-la a dar o passo para o discipulado.

Jesus começa o ensinamento, dizendo: “Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3)”. Ele declara serem felizes os “pobres em espirito”. É bem verdade que a tradução mais acertada desta primeira bem-aventurança, conforme nos mostra o texto grego, seria: “Bem-aventurados os pobres (com o / no) espírito...” Junção da preposição em + o, que resultaria na expressão “pobres no espírito”, ou seja, aqueles que estão no Espírito de Deus; ou “pobres com espírito de Deus...” São os pobres que, mesmo em sua condição de marginalização estão em comunhão com o Espírito de Deus. Quem são estes? Pode admitir dois sentidos, a pessoa dotada da virtude da humildade, que corresponde à interpretação dos textos de Qumran (hbr. ‘anwê ruah), bem como a pessoa pobre no sentido econômico-político. Mas, por que estes são declarados felizes por Jesus? Quer seja o humilde ou o miserável, este são declarados felizes em virtude da atitude de se apresentarem diante de Deus com as mãos vazias, porque souberam abdicar da autossuficiência e do orgulho. E, mesmo sofrendo a exclusão social, se abrem para Deus e nele põem sua confiança. Aqueles que se recusam a escolher o caminho da idolatria dos bens deste mundo para mudar a situação. Jesus diz ser destes o Reino dos Céus. Em outras palavras, são chamados, em razão de sua coragem e coerência com o querer de Deus, a cooperar com a construção do Reinado de Deus no já, no aqui e no agora; e, por isso, entrarão definitivamente, no mundo dos ressuscitados para a vida.

No v.4, Jesus declara serem bem-aventurados, os aflitos (os que choram, em Lc 6). Mateus mudou a versão de Lucas embasando-se na profecia de Is 61, onde se lê que “O Senhor enviou-me para consolar os aflitos”. Os aflitos são aqueles sofrem os golpes de uma realidade que ainda está sob influência das forças contrárias ao Reino, o Mal. Vítimas da violência e da injustiça, que não tem a quem recorrer, mas que tem a Deus para consolá-las. Quando os valores do Reino não permeiam as relações interpessoais e o tecido social, as pessoas são cruelmente violentadas. São aqueles que se recusam a revidar violência com violência (Mt 5,39; Rm 12,17; 1 Ts 5,15). Jesus declara que Deus mesmo será o consolador, sofrendo com elas (Is 40,1; 61,2). A consolação prometida é a salvação final e definitiva.

Nesta mesma lógica, Jesus diz a bem-aventurança dos mansos (v.4). Os mansos, pela força de Deus, recusam-se a ser violentos e, desta forma, quebram a maldita espiral da violência. Portanto, serão herdeiros da terra que, com seu gesto de resistência não violenta, ajudaram a construir (SI 37[36]). Com certeza esta bem-aventurança foi criada por Mateus, inspirando-se no Sl 37. Diante dos outros, o manso apresenta-se desarmado, sem defesas nem esquemas ou autoproteção, colocando-se na dinâmica da não-violência. Um modelo perfeito desta bem-aventurança é o próprio Jesus (Mt 11,29, “Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”.). Somente os não-violentos, aqueles que quebram a cadeia (espiral) da violência podem possuir a terra (que num sentido metafórico alude ao Reino de Deus).

A bem-aventurança relacionada aos famintos e sedentos de justiça pode ser compreendida de duas maneiras: 1) Os famintos e sedentos da justiça não têm quem os defenda, para fazer valer seus direitos. Na Lei mosaica, todos e, especialmente, os mais fracos e desprotegidos deveriam ter um protetor (go’el). No projeto de Jesus, o Pai, em pessoa, será o go’el dos discípulos do Reino. Esta bem-aventurança é difícil de traduzir do original grego, que, literalmente poderia vir traduzida assim “Felizes os famintos e sedentos da justiça”. O artigo “a” faria referência à Justiça do Reino (cf. Mt 5,20). E, sendo assim, esta bem aventurança abre-se para uma segunda interpretação: 2) os bem-aventurados por terem fome e sede da Justiça do Reino são saciados quando colaboram para que esta Justiça (que é o agir e a vontade de Deus acontecendo na história) se cumpra, ou seja, se propõem a fazer aquilo que o pai quer.

No v.7, Jesus declara: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. Um tema muito querido por Mateus. A misericórdia na bíblia não se trata de um sentimento, mas de uma atitude operativa em favor do outro. É uma atitude relacionada à vida concreta. Na mentalidade do evangelista, o Pai, no último juízo, se mostrará misericordioso com aqueles que viveram a experiência do amor e da misericórdia em relação ao próximo. Quem tem o coração e a vida cheios da misericórdia puderam assimilar o modo de ser de Deus, cuja bondade é eterna (SI 136 [135]). Assim,  viverá da misericórdia do Pai.

A bem-aventurança relacionada à pureza de coração deve ser entendida corretamente. São aqueles que são puros desde o íntimo do ser, para além das aparências. Não são pessoas de fachada. Sem falsidades. São transparentes, e essa condição os coloca lado-a-lado com Deus.

Os “fazedores de paz (gr. εἰρηνοποιός / eirehnopoiós)” empregam toda sua vida para construir o Shalom (paz) neste mundo, propiciando um nível de vida humano e justo onde todos desfrutem do bem-estar e da prosperidade. Serão chamados filhos de Deus por construírem o mundo desejado por Deus. São aqueles que colaboram para o diálogo, a concórdia, a reconciliação entre as pessoas, costurando novamente os fios corroídos das relações humanas e selando os laços da fraternidade. Jesus diz que, no último dia, estes serão reconhecidos solenemente por Deus como autênticos filhos seus.

Nos vv.10-12, Jesus diz diretamente aos discípulos (bem-aventurados vós...) que estes são felizes por serem perseguidos por causa da Justiça, recebendo injurias, sendo alvos de mentiras por causa dele. Os discípulos deverão se alegrar e exultar, porque a recompensa nos céus será grande. Quem assume viver a dinâmica do Reino, abraçando a causa de Jesus (o cuidado com os pobres e enfermos; acolhendo os marginalizados, excluídos; procurando e colocando-se ao lado dos pecadores, dos injustiçados, das minorias; libertando as consciências das pessoas oprimidas e chamando à conversão a todos), atrai sobre si insultos, perseguições, mentiras e maledicências. Todavia, os perseguidos por causa da justiça (o querer/vontade de Deus), não devem temer, tampouco recuar, pois já possuem a recompensa mais valiosa: o Reino dos Céus. Essas situações difíceis são para eles motivos de alegria e de exultação, contrariando as expectativas do mundo que os quer tristes, resignados e derrotados.

O Sermão da Montanha, para o leitor-ouvinte do evangelho de Mateus funciona como um caminho programático que deve tocar bem fundo na ética do discípulo do Reino; o modo de ser e agir, propostos aos que são chamados ao discipulado/seguimento ao Deus do Reino, a partir de Jesus, que, por primeiro, na concretude existencial de sua vida, se empenha por vive-las.  No discurso inaugural, bem como em toda a sua vida, Ele não prega um moralismo desencarnado da história humana. Suas palavras apontam, antes, para um ideal, um projeto de vida, que tem o Pai como fundamento e modelo, e que toca a concretude da existência.

As bem-aventuranças compreendem, nesse sentido, a síntese do programa de vida de Jesus e dos discípulos e discípulas de todos os tempos e lugares. É um texto belo, mas muito fácil de ser deturpado, se interpretado de modo equivocado, como geralmente tem acontecido. Aplicado à solenidade de todos os santos e santas, tem tudo a ver com o autêntico seguimento de Jesus de Nazaré. Por isso, é importante refletir cada vez mais sobre as palavras de Jesus que o Evangelho apresenta. O ensinamento contido nas Bem-aventuranças não são palavras de consolação, muito menos uma pregação moralista para suportar, tendo em vista uma recompensa celeste. É, antes, um apelo de alegria e exultação, que prepara um anúncio de libertação e intervenção de Deus. Não se trata de oito diferentes tipos de pessoas, e, sim, oito diferentes ilustrações da vida do discípulo centradas no Reino.

O discurso da montanha é um indicador de direção para o discipulado de Jesus e, portanto, para a santidade existencialmente vivida. Devemos, pois, concentrar nossa reflexão na mensagem do evangelho, evitando que esta solenidade se transforme em mero devocionismo ingênuo ou mesmo estéril; que faça pensar ou conceber a santidade, a qual todos são chamados, em virtude do santo Batismo, como sendo algo de outro mundo ou impossível de viver; ou, pior, só possível a alguns “separados ou alienados” da realidade. A santidade vive-se na dinâmica relacional e histórica, ou seja, através das relações fraternas restauradoras da dignidade humana, nesta realidade bem concreta. Por isso, é preciso ter clareza que o programa de vida de Jesus, ilustrado pelas bem aventuranças, não se trata de um discurso alienante ou desvinculado da realidade concreta; tampouco um conjunto de ditos moralizantes, mas, como processo de seguimento e discipulado, enquanto balizas para se viver o projeto do Reino, aberto e proposto a todos os batizados e batizadas. 

No hoje de nossa vida e de nosso discipulado podemos nos considerar bem-aventurados pelo Senhor? Estamos na multidão já conseguimos dar o passo do discipulado, assumindo as Bem-aventuranças como nosso programa de vida? Será que conseguimos reconhecer os bem-aventurados de hoje?

Aprendamos também com eles.

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.


sábado, 22 de outubro de 2022

REFLEXÃO PARA O XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM - Lc 18,9-14:

 


A liturgia deste trigésimo domingo do tempo comum apresenta a continuidade do capítulo dezoito do evangelho de Lucas, com um texto muito desconcertante: a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14). Esta parábola apresenta em sua sentença final, uma provocação absolutamente questionadora que vai além da lógica humana, a qual tem a intenção de conduzir o leitor/ouvinte à uma mudança de mentalidade e no modo se relacionar com Deus – não o deus da religião, mas o Deus e Pai de Jesus – e com as pessoas. Nesse sentido, a pergunta inquietante para uns, desconcertante para outros se expressaria assim: “Seria possível continuar ou viver uma situação considerada pecaminosa pela religião ou pela moral, e ser igualmente amado por Deus?  É o caso do publicano que veremos nesta parábola, que o Senhor conta aos seus no caminho para Jerusalém. Caminho de formação dos discípulos no projeto do Reino.

A fim de compreender esta mudança radical na relação com Deus, Jesus narra a parábola do fariseu e do publicano, destinando-a àqueles que pensam ser perfeitos diante de Deus, graças aos seus esforços, ou, na linguagem do evangelista, “aqueles que confiavam na própria justiça” (v.9). A parábola começa assim: “Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos” (v.10). As personagens já são apresentadas. Um fariseu e um publicano. Duas pessoas com condutas opostas.

O fariseu era o observador zeloso da Lei, conhecendo-a nas suas minucias e em suas virgulas. Cumpria rigorosamente as 613 prescrições da lei de Moisés. Pessoas leigas e piedosas, profissionais do sagrado. Mais religiosas que os chefes da religião. Assim, considerava-se justo diante de Deus, e, com isso, separavam-se do povo. O publicano era um judeu que trabalhava para o Império, cobrando impostos de sua própria gente. Eram considerados como traidores do povo e, nesse sentido, piores pessoas e pecadores públicos, e transgressores dos mandamentos de Deus. Para estes, não haveria nenhuma esperança de salvação. Nesta personagem, Jesus apresenta uma pessoa, de cuja a situação não pode sair!

Jesus mostra a atitude e o conteúdo da oração do fariseu rezado: “O fariseu, de pé, rezava assim em seu íntimo” (v. 11). Interessante, o fariseu rezava em pé (para ser visto) e em seu íntimo. A tradução grega é melhor, pois mostra com realismo o modo com que ele rezava, “voltado para si mesmo”. O fariseu se coloca diante do Senhor, mas permanece voltado para si, ainda que as palavras que saíssem de sua boca fossem direcionadas à Deus; um monólogo de sua própria santidade: fala para si mesmo e sobre si mesmo.

O fariseu, por sua vida separada, fazia da sua santidade a medida para julgar os outros: “Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos. Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda” (v.12).  Jesus denuncia a incoerência do fariseu, que através da sua mania de ostentar a sua justiça diante dos homens, na realidade serve somente para mascarar a profunda e real injustiça que existe diante de Deus. Ele, no templo, ao exaltar e glorificar a sua dignidade e santidade, ao incensar suas práticas, não faz outra coisa senão usurpar o lugar de Deus. É o pecado da idolatria, que na tradição religiosa de Israel, é o próprio pecado do adultério, porque o fariseu dava a si mesmo a glória que era devida a Deus: acredita que está cultuando a Deus, mas, na verdade, se coloca, idolatricamente, em Seu lugar. Tal é a convicção equivocada dele, que a sua atitude de lançar uma olhar de desprezo ao publicano lhe denuncia a insensatez e o desprezo: “não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos”.

A concepção equivocada do fariseu em relação à Deus é ainda mais acentuada na parábola, quando elenca as suas atitudes: “Eu jejuo duas vezes por semana, e dou o dízimo de toda a minha renda” (v.12). São elas centradas nas práticas da piedade judaica. Entretanto, nenhuma delas voltadas às relações com o próximo. Todas voltadas para o cumprimento do dever religioso em relação à Deus, mas totalmente desinteressadas do bem ao próximo. Por exemplo, ele elenca a prática do jejum. Na tradição de Israel, a prática era prescrita uma única vez ao ano, no chamado Yon Kippur (dia da expiação/perdão). Mas, a prática religiosa acrescentou mais quatro, aludindo ás quatro grandes catástrofes nacionais do povo. Mas, os fariseus, para destacarem-se dos demais, jejuavam às quintas e às segundas-feiras, porque a quinta-feira era o dia em que Moisés, conforme a tradição, havia subido ao Sinai, e a segunda-feira, o dia em que ele havia descido da montanha. Este jejum bi-semanal era o distintivo dos fariseus. Paga o dizimo de tudo o que possuía, e não somente sobre o que era exigido pela Lei, isso porque queria estar seguro de não transgredir nenhuma norma ou prescrição. Assim, fazia muito mais do que era estabelecido. Apresentava a lista de seus pretensos méritos diante de Deus.

Agora, é importante lançar o olhar para o publicano. Ele vai ao templo com a intenção de rezar, mas não arrisca em fazê-lo. Jesus mostra muito bem a discrepância existente entra as duas personagens. O cobrador de impostos está à distância, “O cobrador de impostos, porém, ficou à distância, e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu” (v.13). Ele tem consciência de sua indignidade; sabe que não pode entrar numa casa comum de um judeu piedoso, quiçá no templo de Deus, e tornar impuro todos os que se aproximavam.

A forma e o conteúdo da oração do publicano é, por demais, reveladora, conforme narra Jesus: “batia no peito, dizendo: 'Meu Deus, tem piedade de mim que sou pecador!” (v.13). Jesus apresenta duas personagens num contraste abissal entre si, mas com atitudes iguais em relação à Deus: o fechamento. O fariseu, enquanto ídolo e deus de si mesmo, se fecha ao Senhor, que pede amor e não sacrifício; o publicano, que convive cotidianamente com o engano e com o roubo. Mas somente este é consciente de sua impureza, de sua indignidade. Mais curioso ainda, ele não promete a Deus mudar de vida porque não lhe é possível. Mas roga a Deus para mostrar lhe, mesmo em sua impureza pecadora, a Sua misericórdia: “Senhor, veja a vida desgraçada que levo. não posso fazer outra coisa, não posso voltar atrás. Não obstante a isso, mostrai-me vossa misericórdia”.

A parábola, como dissemos no início, termina de uma forma inexplicável, com uma sentença desconcertante de Jesus, que faz refletir: “Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, o outro não. Pois quem se eleva será humilhado, e quem se humilha será elevado” (v.14). O publicano retorna para a sua casa justificado, ou seja, em paz com Deus. Mas isso é inquietante: o que esse fariseu fez de errado? Por outro lado, o que fez o publicano ser justificado? O primeiro cumpria e realizava tudo o que ordenava a Lei, e muito mais. O segundo, não faz o propósito de mudar de vida, mas é destinatário da misericórdia de Deus.  O erro do fariseu foi o fato de ter se exaltado a si mesmo, isto é, tomou o lugar de Deus. Fez se Deus de si através da mercadoria de troca que seus méritos representavam. 

A parábola de Jesus pretende mostrar como é a lógica do Reino de Deus: nesta nova realidade que Ele propõe, o Reino, não se torna grande e amado por de Deus quem se apoia em seus próprios méritos, mas é amado por Deus devido às suas necessidades. Méritos, nem todos o tem, nem todos podem apresentar. Agora, necessidades, todos possuem. Então, a moral deste trecho precioso é esta: Deus ama, sem impor a mudança de vida; a comunhão com Deus não depende da conduta religiosa e dos méritos do homem, mas no acolhimento do amor Daquele que, como Lucas disse, é bondoso também com os ingratos e maus.

Quem somos, diante deste espelho do texto? O fariseu, mais religioso que os líderes (mais cristãos que o próprio Cristo; mais católicos que o papa; mais padres que os próprios padres)? Ou o publicano, consciente de ser indigno diante de Deus, ciente de não poder ter ou apresentar algum mérito? Como está nossa oração, dado que ela é o modo de se estabelecer uma relação com Deus: é uma relação que se baseia no mérito, enquanto “moeda de troca”; uma oração voltada a si? Ou uma relação que sabe ser grata e gratuita, e, portanto, livre diante de Deus, o qual nos ama livre e gratuitamente, sem esperar de nós os méritos?

 

Pe. João Paulo Góes Sillio.

Santuário São Judas Tadeu, Avaré/Arquidiocese de Botucatu-SP.