A liturgia desta noite santa também resplandece como um dia. Brilha vez primeira entre as trevas a luz. Uma luz que nos transmite uma boa-notícia a ser recebida e acolhida. O texto evangélico do qual a liturgia se serve para fazer a memória atualizadora da primeira vinda do Senhor é retirado do capítulo segundo da catequese de Lucas, Lc 2,1-14. O texto não pode ser lido e interpretado como uma crônica jornalística dos fatos. O autor quer transmitir uma mensagem de Fé. Uma teologia da história e na história. Vamos ao texto.
O evangelista nos informa a respeito de um recenseamento de todo o mundo habitado ordenado por Cesar Otaviano Augusto. Um levantamento do povo, por volta do ano 5 a.C, quando Quirino era governador da Síria, que incluía a Palestina (v.2). Otaviano foi o primeiro imperador a quem o Senado Romano outorgou o título de “Augustus”, isto é, “aquele que é digno de veneração, o poderoso, o divino”. O censo ordenado por ele tinha, na verdade, a seguinte intenção: saber se a população havia aumentado para arrecadar mais impostos, e, ao mesmo tempo uma autossatisfação megalomaníaca: saber por sobre quantos dominava, imperava ou exercia sua soberania. Sempre que os reis de Israel tomavam essa iniciativa, Deus os censurava através dos profetas, porque Ele era o único senhor do povo, e não o rei. Somente Deus poderia ordenar o recenseamento, como assim o fez por seis ocasiões. Uma tradição rabínica da idade média interpretava esses censos ordenados por Deus da seguinte forma: “Deus ordenou o recenseamento não para saber por sobre quem ele estaria governando, enquanto único rei de seu povo, mas para saber se não estava faltando alguém dentro de seu povo”. Uma interpretação bela, e que difere daquela intenção de Augusto. Deus não deseja saber por sobre quem ou quantos domina, mas se não está faltando alguém; se não há a possibilidade de ter alguém ficado alguém de fora.
O evangelista, com este dado, pretende transmitir para seus leitores-ouvintes esta mensagem: se Cesar Otaviano “Augusto” quer elevar-se, Deus em seu mistério de amor subverte esta lógica e se põe no mesmo nível da humanidade. Ele faz o movimento inverso, descendo até a humanidade marcada pela injustiça, pela dominação, pela morte. Diferentemente do imperador, que toma a vida e é sinal das estruturas de morte, Deus comunica um Evangelho de vida. Colocando-se não do lado dos dominadores, mas dos dominados. É o que se verá a seguir.
Lucas nos informa os versículos seguinte (v.4-6) alguns dados importantes: José, de Nazaré foi à Belém (v.4), sua cidade, juntamente com Maria, sua esposa. Eram já casado, pois estavam na primeira fase do casamento, a promissão. Por isso, a palavra desposada já não sirva mais ou não expresse o verdadeiro significado de que a promissão seja já casamento. Outra contextualização importante, para não cairmos em narrativas ou interpretações romantizadas acerca do fato: José e Maria já se encontravam na cidade de Davi, pois uma viagem de Nazaré à Belém era feita a pé, algo impensável para uma mulher no último mês de gestação, como nos informa o evangelista. Na cidade de Belém ela dá à luz ao filho primogênito. Interessante, segundo a tradição Judaica, a cidade de Davi era Jerusalém, pois foi ali que ele, enquanto rei fixou sua residência. Lucas não concorda. Ele estabelece Belém como a cidade de Davi, porque ela remete ao seu passado de simples pastor. Uma vez mais o catequista pretende transmitir uma mensagem teológica, e, portanto, de fé: o que virá a ser o menino que nasce em Belém, isto é, qual o sentido que sua vida e missão tomarão; quais serão os destinatários de sua ação salvadora.
O v. 6 nos informa que Maria dá à luz ao seu primogênito (hbr. Ya’hid), o filho por excelência, ao qual são reservados todos os direitos jurídicos. Mas, primogênito tem um significado muito profundo para a tradição religiosa de Israel, a qual Lucas capta bem e transmite para seus leitores. O primeiro filho é aquele que, conforme tradição judaica, deve ser consagrado ao Senhor. Ou seja, o catequista deseja antecipar para sua comunidade que a vida deste recém-nascido será toda voltada para Deus.
No v.7, o relato diz que o recém-nascido foi envolvido em faixas e posto numa manjedoura. Aqui temos um detalhe interessante: Lucas recorre ao Livro da Sabedoria: “Envolto em faixas fui criado no meio de assíduos cuidados; "porque nenhum rei teve outro início na existência; "para todos a entrada na vida é a mesma e a partida semelhante” (Sb 7,4-6). O evangelista pretende assinalar a humanidade de Jesus, uma vez que foi um homem no sentido pleno de sua liberdade. Este Deus é também plenamente homem. Encontra-se enredado na humanidade. Verdadeiramente encarnado. É humano em todos os sentidos.
O evangelista informa que o menino encontra-se na manjedoura porque não havia lugar para eles na sala da hospedaria. Isso é importante, e não pode correr o risco de se romantizar a cena. Há que se encará-la em sua realidade, a de que desde seu nascimento, a rejeição e a recusa a sua pessoa serão constantes. Acompanharão sua vida e seu ministério. Para ilustrar esta condição de rejeição, Lucas informa sobre o fato de o menino ser colocado num cocho, pois ele tem em mente a profecia de Isaias: “O boi reconhece o seu dono; o burro o estabulo (cocho) do seu dono. Mas Israel não reconhece; meu povo não compreende” (cf. Is 1,3). Jesus está entre os não acolhidos da história. Um tema que aparecerá, novamente no Prólogo do Quarto Evangelho: “Ele veio para os seus, mas os seus não o acolheram” (Jo 1,11). Ora, se faz necessário recordar também que quando a mulher dava a luz, segundo a Lei de Israel, ela ficava impura (por conta do contato com o sangue que saia dela) e, por isso, deveria ser afastada do convívio social até o momento de sua purificação no templo, quarenta dias depois. Nesse sentido, pode-se entender o motivo de o casal não encontrar lugar na hospedaria e serem realocados para o lugar dos animais, e, portanto, da impureza. No recém-nascido de Belém, Deus faz seu repouso entre os impuros. E será para estes que dirigirá sua mensagem de Salvação. Lucas quer mostrar que Jesus está entre os excluídos.
Após o parto, os acontecimentos são descritos com uma aureola em torno deles, ao mesmo tempo despojado e misterioso. Temos as narrativas dos pastores, os quais passam a fazer parte da temática da exclusão. Segundo o Talmud, nenhuma condição social poderia ser mais desprezada que a dessas pessoas. Os pastores eram os mais humildes e desprezados porque conviviam com os animais, praticavam pequenos roubos para sobreviverem muitas vezes; por não terem vida religiosa eram considerados como pagãos e, por isso, não estavam habilitados para o cumprimento das prescrições legais e rituais do culto judaico, bem como observar as prescrições de purificação; para os fariseus e judeus de bem, os pastores não eram gente! Mas para o projeto literário e para a catequese lucana, eles são transformados em símbolos: servem de metáfora para todos aqueles que se encontram na exclusão, na marginalização, na indigência, entre as minorias. Por isso, se tornam destinatários do projeto salvador de Deus.
Os pastores recebem então uma manifestação divina. São envolvidos por uma luz, e isso lembra, logicamente, outras manifestações de Deus ao longo do AT. O “anjo do Senhor” aparece pela terceira vez neste bloco literário do evangelho da infância de Jesus: a primeira, no templo, comunicando o nascimento de João à Zacarias; depois, a vinda de Jesus à Maria. Agora, o anjo do Senhor aparece aos pastores – símbolos dos pecadores. Não para julgar e castigar (conforme mentalidade religiosa da época), mas para comunicar um evangelho de vida. Lucas quer ensinar para sua comunidade que o projeto de Deus que se inaugura em Jesus envolve a todos; não exclui a ninguém; não condena os pecadores, mas os abraça. Os envolve. Por isso, o evangelista declara que a Glória (hbr. Kabod) do Senhor os envolveu, e lhes exorta, primeiramente, a não ter medo. Em segundo lugar, lhes dá um motivo: uma boa notícia, isto é, um Evangelho de alegria para todo o povo: nasceu para vós o Salvador, Cristo, o Senhor! A palavra Salvador (gr. Sôter) é, primeiramente a tradução do hebraico Yeshua – Jesus. Mas, ao mesmo tempo, era o título empregado ao imperador romano. Lucas quer assinalar que não é este o salvador. A salvação repousa no menino de Belém. Cristo é tradução grega do hebraico messias, que significa o “ungido”: é o delegado, o enviado, o portador e executor do senhorio e da vontade de Deus.
O mensageiro celestial (Deus mesmo) lhes dá um sinal para encontrar o menino: deitado numa manjedoura, envolto em faixas! É encontrar, portanto, a criança colocada no lugar da exclusão! O sinal que anjo dá aos pastores no campo não é um sinal grandioso a ser encontrado na opulência do palácio de Herodes ou de Otaviano. Nem no esplendor do templo de Jerusalém. Tampouco entre os poderosos. Mas colocado em meio a paus trançados – a manjedoura. Na estrabaria encontra-se a Glória e a misericórdia de Deus feitas Carne. Deus fez-se encontrar entre os pequenos e excluídos optando e empoderando-os.
A manjedoura de paus trançados, prefigura-se também o mistério da Cruz, que expressa o significado da vida doada, partida, como um pão despedaçado. Por isso, a tradição subjacente do nascimento de Jesus em Belém, comum a Lucas e a Mateus, cumpre também seu papel. Belém (do hebr. Beth-lehem) significa Casa do Pão. O menino será Pão para humanidade. Servirá de sustento, e será doador de Vida.
Na narrativa, imediatamente após o sinal
dado pelo Herói de Deus (Gabriel – Gebehr),
surge uma multidão da corte celeste para proclamar que a Glória (presença) de
Deus, desde o mais alto dos Céus, que agora se faz presente na terra, na
história humana para inaugurar o Shalom, a paz. Lucas faz memória também do Sl
84. A realização plena (plenitude) – Shalom da vida e do querer de Deus,
comunicada e destinada a todos! Não somente aos de boa-vontade (tradução
equivocada do texto, que dá a entender que só pode ser salvo quem tem a
boa-vontade de fazer a vontade de Deus). Mas uma salvação que atinge e abraça a
todos. Por isso a nova tradução corrigiu aquela ideia de Deus revelaria seu
querer e seu amor somente aos homens de boa-vontade. Pelo contrário, o Deus e
Pai de Jesus, revela através Dele, o seu amor e benevolência aos homens e
mulheres que Ele ama. Por isso, a tradução correta deverá ser esta: “Glória à
Deus nos mais altos dos céus, e paz na terra aos homens, que Ele ama”.
Possamos nós estarmos entre os pastores que recebem este evangelho: Deus põe seu Agrado em nós, através de Jesus, seu Filho. Possamos estar onde o menino está; no lugar da opção feita por Deus. Eis o Mistério desta noite Santa.
Feliz Natal.
Pe. João Paulo Góes Sillio.
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